Title: A penalidade na India segundo o Código de Manu
Author: Cândido de Figueiredo
Release date: February 11, 2007 [eBook #20570]
Language: Portuguese
Original publication: Lisboa: Imprensa Nacional, 1892
Credits: Produced by Pedro Saborano (This file was produced from
images generously made available by the Bibliothèque
nationale de France (BnF/Gallica) at http://gallica.bnf.fr)
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Sociedade de Geographia de Lisboa
Memoria apresentada á 10.ª sessão do congresso internacional dos orientalistas por
1892
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Historiar a penalidade indiana sería tão vantajoso como diffícil. Vantajoso, porque, de todos os historiadôres do direito penal, nenhum, de que saibamos, se occupou seriamente da penalidade entre os povos hindus: uns guardam sôbre ella absoluto silencio; outros, contra todas as leis ethnográficas e filológicas, agrupam, de relance, os indios com os chinas e japonêses, e segregam-n'os injustamente da legislação comparada; e outros ainda, os que viveram antes dêste século, não podiam occupar-se largamente da antiguidade indiana, porque ainda não estavam explorados os riquissimos filões, de onde os mineiros da sciencia extraíram os assombrosos monumentos da velha literatura indiana.
E sería diffícil, dissemos, historiar a penalidade na India, pela escassez de commentadôres e guias em tão árido caminho. Abeirando-nos apenas do importantissimo assunto, que daria volumes, o que procuraremos sinthetizar em poucas páginas, aventurâmo-nos, sem mestres nem guias, a devassar a enredada legislação de Manu, procurando e separando o que é puro direito penal, d'aquillo que é religioso, civil ou político, visto que a regulamentação das várias esferas da actividade humana se acha ali amalgamada, como succede nos códigos primitivos de todas as sociedades.
O código de Manu é, para muitos orientalistas, o mais antigo monumento legislativo que se conhece na história da humanidade. Ponderando que este código reflecte toda a simplicidade antiga dos dogmas religiosos; que ali ainda se fala de um Deus único, Brahmá, e não se faz referencia a Vichnu nem a Sívá, que com Brahmá constituem a trindade indiana, a Trimurti; ponderando que no código não se fez menção das incarnações de Vichnu, e que das personagens históricas, ali alludidas, nenhuma é posteriôr ao século X antes da nossa era; e ponderando, ainda, que o legisladôr desconhecia a grande revolução religiosa de Budhá, revolução que, como se sabe, precedeu déz séculos a era christan, concluem os modernos intérpretes do código que elle já vigorava na India no século XIII antes de Christo.
O código de Manu (Manava-Dharma-Sastra, no original sanscrito), abrange dôze livros; e as disposições penais deparam-se-nos especialmente no VIII, IX e ainda no XI, se bem que este se occupe sobretudo de penitencias e expiações religiosas.
Quem não é de todo estranho á sciencia do direito penal, sabe que a penalidade póde encarar-se, pelo menos, por quatro faces: incriminações, penas, competencia e processo.
Sôbre incriminações e penas, podemos colhêr no código de Manu disposições abundantes e claras; mas, sobre competencia e processo, o código é excessivamente resumido, ou, antes, excessivamente vago.
Na organização judicial indiana, o rei é o principal julgadôr, e até executôr em alguns casos, se attendermos unicamente á letra da lei.
Lê-se no código de Manu:
«Depois de tomar em toda a consideração o logar e o tempo, os meios de punir e os preceitos da lei, é que o rei inflige a punição com justiça áquelles que se entregam á iniquidade[1].»
[1] Livro VII, çloka 16.
E mais adiante:
«O ladrão, quer elle morra logo com os tratos que o rei lhe dê, quer, tendo sido deixado por morto, haja escapado, fica lavado do crime; mas, se o rei não castiga, o crime do ladrão recái sôbre elle[2].»
Talvez dêstes textos se possa deduzir que o rei, além de juíz, tinha attribuições de executôr da justiça. Não achâmos todavia no código logares parallelos, que nos confirmem o conceito.
O que sabemos é que o rei occupava o primeiro logar na jerarquia judicial. Acompanhado de bráhmanes e de seus conselheiros, e trajando modestamente, apparecia no tribunal; e, sentado ou de pé, com a mão direita levantada[3], examinava os negócios judiciários; consultava as leis e o direito consuetudinário da nação, das classes e das familias[4], e decidia as causas que o código agrupa sob dezoito titulos:
[3] VIII, 1 e 2.
Causas sobre dívidas;
Depósitos;
Venda de objecto alheio;
Emprêsas de associações commerciais;
Subtracção de coisa dada;
Pagamento de salários;
Execução de contratos;
Annullações de compra e venda;
Questões entre amo e criado;
Extremas de propriedades;
Maus tratos e insultos;
Roubos;
Salteadôres e violencias;
Adultérios;
Devêres entre marido e mulher;
Partilhas de heranças;
Jogo e combates dó animais[5].
[5] VIII, 4 e 7.
«As contestações dos homens,—são expressões do código,—referêm-se em geral a estes artigos[6]».
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Embora o rei fôsse o principal julgadôr, vemos consignados no código os tribunais collectivos, embora a civilizações menos antigas se haja attribuído esta importantissima instituição.
Com effeito, abrindo o código, no livro VIII, çloka 9 a 11, vemos que o rei, quando não póde por si examinar as causas judiciárias, encarrega um bráhmane instruído de desempenhar essas funcções. Este bráhmane entra no tribunal, acompanhado de três accessôres, e examina as causas sujeitas á decisão do rei.
A autoridade, que se liga a esta assembleia do juízes, é enorme, porque é divina; e o código consagra-lhe expressões tais, que, ao lê-las a primeira vez, naturalmente nos occorrem aquellas palavras amoráveis do nosso Christo:
Ubi sunt duo vel tres congregati in nomine meo, ibi sum in medio eorum.
O código de Manu tinha dito, muitos séculos antes de Christo:
«Onde quer que estejam três bráhmanes, versados nos Vedas, e presididos por um bráhmane sapientissimo escolhido pelo rei, esta assembleia é chamada pelos sábios o tribunal de Brahmá quatrifronte[7].»
O rei póde escolhêr juízes entre a classe dos bráhmanes, e até entre as dos kchatriás e a do vaysiás, mas nunca entre os çudras.
Se bem que estas palavras çudras, vaysiás, kchatriás, bráhmanes, não encerrem mistérios para quem tenha alguma notícia do sistema das castas indianas, afigura-se-nos que não virá fóra de ponto uma ligeira explanação do assunto, visto como os vicios capitais da penalidade indiana estão subordinados ao sistema das castas.
Como é sabido, a velha civilização indiana tinha por bases o sistema das castas e o dogma da transmigração das almas.
Pondo de lado este dogma, que é hoje alheio ao nosso intúito, não omittiremos uma explanação summária do sistema das castas.
O livro I do código refere que Brahmá, o deus supremo, o primeiro de todos os sêres, para povoar a terra produziu da sua bôca o bráhmane, do seu braço o kchatriá, da sua côxa o vaysiá e de seus pés o çudra.
Os çudras constituem a última classe, a servil; os vaysiás a terceira, a dos artistas e agricultores; os kchatriás a segunda, a dos militares e dos reis; e os bráhmanes a primeira, a sacerdotal.
Comquanto dos kchatriás sáiam os reis, o govêrno do país pertence de facto á casta sacerdotal, e a preponderancia brahmânica faz-se resentir em todos os monumentos que nos restam da civilização indiana, e até nos monumentos da antiguidade teocrática europeia.
Um dos resultados da organização sacerdotal do govêrno indiano, organização trazida para a Europa pelos celtas-arianos, e reproduzida pelo druidismo, é que os monumentos mais assombrosos da India antiga e da Europa medieval são os templos, os conventos o os cemitérios[8].
[8] Ch. Steur, Ethnogr. vol. II, pag. 300.
A desigualdade perante a lei, na criminalidade indiana, está, como vamos vêr, subordinada aos privilégios das castas e ás linhas que as separam.
Mas, antes de falar de incriminações e penas, assuntos em que mais resalta aquelle vicio, cumpre falar das provas judiciais admittidas pelo código de Manu, e, em geral, da ordem do processo.
A acção não se intentava sem que os parentes das partes litigantes procurassem conciliá-las; costume seguido também pelos celtas e germanos, e até por outros povos europeus até ao século passado[9].
[9] Steur, cit., pag. 303.
Se os parentes não podiam conciliair as partes, recorria-se para uma assembleia, formada de homens da mesma casta; da decisão dêstes podia apellar-se para os habitantes de toda a communa; dêstes apellava-se para os juízes reais, e dêstes emfim para a decisão do rei numa assembleia composta de bráhmanes.
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A prova principal no processo indiano é o depoimento das testemunhas, que nunca podem sêr menos de três[10].
[10] Cod. de Manu, VIII, 60.
Para testemunhas, hão de escolhêr-se pessoas dignas e desambiciosas, e não as pessoas interesseiras, nem os amigos, nem os inimigos, nem os fraudulentos, nem os inválidos, nem os criminosos[11].
[11] VIII, 63 e 64.
O theólogo hábil, o estudante, o o asceta, não devem chamar-se para testemunhas, porque são despendidos de relações mundanas.
O proprio rei, um artista de baixa categoria, como um cozinheiro, o velho, a criança, um homem só, o ébrio, o dôido, o esfomeado e o sedento, o apaixonado, o colérico, o ladrão, não podem sêr chamados a depôr em cáusas judiciárias[12].
Mulheres só podem depôr a favôr de mulheres. E, diga-se de passagem, não deveremos estranhar muito esta disposição da lei indiana, visto como em pleno século XIX, o código civil português não permitte que as mulheres sejam testemunhas em testamentos[13].
[13] Cod. civ. port., art. 1966, n.º 2.
Os çudras podem depôr a favôr dos çudras; mas, quando se trata do um facto succedido em logar occulto, como num bosque, ou quando se trata de um assassínio, póde depôr quem quer que presenceie o facto. Nêstes casos, á míngua de melhores testemunhas, póde acceitar-se até o depoimento de uma mulher, de uma criança, de um velho, de um discipulo, de um parente, de um escravo ou de um serviçal[14].
Quando as testemunhas estão reunidas na sala da audiencia, em presença do demandante e do defendente, ordena o código que o juíz as inquira, exortando-as brandamente, desta fórma:
«Declarai francamente tudo quanto sabêis sôbre esta matéria, porque se pretende aqui o vosso testemunho[15].»
[15] VIII, 79 e 80.
O legisladôr disserta largamente sôbre a obrigação moral, que ás testemunhas cabe, de dizerem a verdade, e sôbre a responsabilidade e os castigos que importa comsigo um falso testemunho.
Outro meio de prova judicial é o juramento, que o juíz defere ás partes litigantes, quando não há testemunhas, que possam depôr sôbre o facto controvertido[16].
O juíz fará jurar o bráhmane pela sua veracidade; o kchatriá pelos seus cavallos, pelos seus elefantes e pelas suas armas; o vaysiá pelos seus rebanhos, pelas suas searas e pelo seu oiro; os çudras por todos os crimes[17].
Falaremos agora de outra prova judicial, muito conhecida e muito usada na Europa da idade média, e que innegavelmente foi trazida para o occidente pela corrente das emigrações arianas.
Alludimos aos chamados juízos de Deus.
Algumas espécies destas provas absurdas e talvez ímpias, deixaram vestígios no Japão, na Africa occidental, na Escandinávia, na Grécia e na Irlanda. Prova-o Michelet, fundado em testemunhos irrefragáveis[18].
[18] Origines du droit, chap. VII.
Os juízos de Deus acham-se consignados nas leis dos bárbaros, foram sanccionados e regulados pela legislação dos concilios visigóticos, e podemos talvez dizêr que eram ainda invocados, quando já alvorecia a nacionalidade portuguêsa. Em França puseram-n'os em vigôr as Capitulares de Carlos Magno, e foram ao depois confirmados na legislação do tempo de Carlos o Calvo[19].
[19] Desmaze, Supplices, prisons et grace en France, chap. II, III.
A ignorancia que na idade média fez da instrucção um privilégio da classe sacerdotal, deixou que os juízos de Deus maculassem mais uma página da história da humanidade. Intendendo-se que o homem, creatura frágil, podia faltar á verdade, intendeu-se que a naturêza, que no panteismo oriental so consubstancía com a divindade, essa não podia mentir.
E assim, quando o juíz pretendia uma prova decisiva, consultava-se a naturêza e tentava-se a Deus, pedindo-lhe uma revelação: sujeitava-se o réu á prova do fôgo, da água fervente, do ferro em brasa, do veneno, da cruz; e, se elle não saísse illeso destas provas bárbaras, é porque estava realmente criminoso. Se elle estivesse innocente, Deus havia de inverter as leis da naturêza, e fazêr que o fôgo ou os demais supplicios não arrancassem um gemido, nem deixassem um vestigio na carne da pobre víctima.
Para todas essas provas, havia formulários em latim, que podem ver-se minuciosamente na collecção de Baluze, tom. II, col. 642 e seg. Por agora, reproduziremos apenas uma dessas fórmulas, em linguagem nossa:
«O culpado tomará na presença do todos o ferro em brasa, e o conduzirá pelo espaço de nove pés; liguem-se-lhe as mãos ao ferro em brasa, durante três noites, e, se ao depois apparecer illeso, dêm-se graças a Deus; mas, se o ferro em brasa tiver escaldado, e se apparecer rubôr e inflammação nos vestigios do ferro, seja julgado criminoso e immundo[20].»
[20] Baluze, tom. II, col. 644.
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Pois bem. Este símbolo, que nos é tão conhecido pela história da penalidade medieval, encadeia-se com quási todos os símbolos jurídicos através dos tempos e dos povos, e vai entroncar nas instituições da India.
E só da India é que podiam derivar os juízos de Deus. Lá, no berço das sociedades, a humanidade, ainda criança, sente-se subjugada pelo império da naturêza. O homem, desprendendo-se do nada, ergue os olhos e dobra os joelhos, adorando a natureza-mãi. Se os arreboes purpureiam os horisontes, adora Mitrá; se o astro do dia se levanta, adora Suryá; se os ventos agitam a floresta, adora os Maruts; se a tempestade estrondeia nos céus, adora Indrá; se os riachos lhe serpenteiam aos pés, adora Varuná; se a terra floresce e frutifica, adora Prithivi; se o fôgo lhe aquece os membros, adora Agni, e o poeta dos Vedas consagra-lhe cânticos de reconhecimento[21].
[21] Rig-Veda, II, 6.
Os indios tributam ao fôgo uma adoração especial; e por isso a prova do fôgo sobresái entre os ordálios da legislação indiana.
Além da prova do fôgo, a India exibe mais oito espécies destas provas: a balança, a água, o veneno, o arrôz, a água em que se lavou um ídolo, o azeite a fervêr, o ferro em brasa, e a imagem de ferro e prata[22].
[22] Hastings, Asiatic researches, I, (Michelet, loc. cit.)
Se percorrermos todo o Digest of hindu law, poderemos acrescentar áquella enumeração de Hastings o chumbo derretido.
Não sendo porém propósito nosso percorrêr toda a legislação indiana, e soccorrendo-nos apenas ao código de Manu, especializaremos a prova do fôgo.
No famoso poema épico, o Ramayana, muito anteriôr ao código de Manu; naquêlle grande e dulcíssimo poema que Michelet chamou um mar de leite[23], já se nos depara a prova do fôgo. Na última parte do poema, o herói, havendo libertado sua esposa Sitá, duvída de que ella lhe guardasse fidelidade, emquanto estêve nas mãos do roubadôr. Sitá, desfeita em lágrimas, faz acendêr uma pira, invoca a protecção do fôgo contra as accusações de seu esposo, e precipita-se nas chammas; mas o fôgo, o testemunho incorruptível do mundo como lhe chama o Homero indiano, comprovou a sua innocencia, porque não molestou sequer a esposa de Ramá.
[23] Bible de l'humanité, pag. 3
O código de Manu reconhece esta prova judicial; e sôbre ella, e sôbre a da água, preceitua o seguinte:
«O juíz, segundo a gravidade do caso, mandará áquêlle, cuja veracidade quer conhecêr, que tome lume nas mãos; ou mandá-lo-á mergulhar na água…
«Aquêlle, a quem o fôgo não queima, a quem a água não afoga, e a quem não succede logo sinistro, deve sêr reconhecido como verídico em seu juramento.
«… O fôgo é a prova da culpabilidade e da innocencia de todos os homens[24].»
Falemos agora dos delictos e das penas, consignados no código de Manu.
Segundo o código, os crimes mais graves e assim declarados pelos legisladôres, são:
Matar um bráhmane;
Roubar o dinheiro de um brâhmane;
Bebêr licores fermentados;
Commettêr adultêrio com a mulher de seu pai natural ou espiritual;
E ainda quaesquer relações com o homem, que tais crimes praticou[25].
Alem dêstes crimes, são punidos pelo código:
Qualquer assassinio;
O roubo;
A injúria e a calúnia:
O falso juramento;
O estupro;
A negação de dívida ou de objecto depositado;
Dar asilo e alimento a ladrões;
A demolição de tanques, edificios e pontes;
Falsificação de cereais;
E outros delitos secundários.
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Entre as penas, applicadas aos differentes delitos, devemos especializar:
A pena de morte;
O confisco;
A amputação dos membros;
A multa pecuniária;
A prisão;
O exilio;
A escalvação;
O azeito a fervêr, etc.
A pena capital applica-se, por exemplo, áquêlle quo roubou a pessoas de boa familia, principalmente se o roubo é de mulheres ou jóias de grande prêço[26].
O confisco applica-se, entre outros casos, aos ministros que, encarregados dos negócios públicos, danificam os interesses, cuja manutenção lhes é confiada[27].
O exílio aos que juram falso[28], o aos adúlteros[29].
A multa pecuniária ao insulto em geral, e aos factos de somenos importância[30].
[30] VIII, 267-271, 332, etc.
A mutilação de membros ao ladrão que dêlles se serviu para fazêr mal[31]; e a outros criminosos[32].
[32] VIII 325, etc.
O azeite a fervêr lança-se nos ouvidos e na bôca do que ousou admoestar um brâhmane sobre o cumprimento dos seus deveres[33].
Conforme já indicámos, observa-se que, na penalidade indiana, as penas não são tão graduadas pelos delitos, como pela classe dos delinquentes e daquêlles que são lesados.
Assim:
Na petição de juros, o credôr poderá exigir de um bráhmane dois por cento ao mês, de um kchatriá três por cento, de um vaysiá quatro, e de um çudra cinco[34].
Um kchatriá, se injuriou um bráhmane, pagará a multa de 100 panás[35]; um vaysiá a multa de 150 ou 200 panás; e um çudra terá pena corporal.
[35] Paná, moeda de cobre. A maior multa eleva-se a 1:000 panás.
(VIII, 138).
Um bráhmane terá apenas a multa de 50 panás, por ultrajar um homem da classe militar; se o ultraje fôr contra um homem da classe commerciante, pagará 25; e 12, se fôr contra um çudra[36].
[36] VIII, 267 e 268.
Se um çudra injuriar gravemente um dwidja[37], ser-lhe-á cortada a língua, ou introduzido na bôca um ferro em brasa, porque é a mais desprezível criatura humana[38].
[37] Dwidja é qualquer homem das três primeiras classes, que foi investido do cordão sagrado.
[38] VIII, 270 e 271.
Se entre um bráhmane e um kchatriá houve insultos recíprocos, o brâhmane será condenado á pena ínfima, e o kchatriá á pena média[39].
Para comprovar ainda o facto de desigualdade legal na applicação das penas, citaremos finalmente o texto seguinte:
«Um bráhmane adúltero é comdenado a uma tosquia ou escalvação ignominiosa, nos mesmos casos em que um homem das outras classes é punido com a morte[40].
Não obstante a desigualdade perante a lei, vício capital na penalidade indiana, entrevê-se, de espaço a espaço, no código de Manu, um clarão do justiça, que não illuminou por certo todos os códigos menos antigos.
E, com effeito, o legisladôr indiano ordena que o rei não deixe de punir seu proprio pai, seu mestre, seu amigo, sua mãi, sua esposa, seu filho, se elles não cumprirem seus devêres[41].
Ácerca da naturêza da pena, há no código de Manu ideias que ressumbram uns longes de alta filosofia e de profunda moralidade:
«A punição é a justiça,—diz admiravelmente o código;—a punição é um rei cheio de energia, e um sábio admnistradôr da lei.
«A punição governa e protege o gênero humano; a punição véla, emquanto todos dormem.
«A punição não póde sêr infligida convenientemente por um rei que não tem bons conselheiros, que é imbecil, ambicioso, cuja intelligencia se não aperfeiçoou no estudo das leis, e que é dado aos prazêres dos sentidos[42].
[42] Esprit des lois, chap. XIII.
Consignada perfunctoriamente a lêtra e o espírito do Manava Dharma Sastra, com referência á penalidade, desta ligeira exposição resalta a virtude, o defeito e a importancia daquêlle sistema penal; e ainda a convicção de que a penalidade indiana é, nalguns pontos, mais plausível que a penalidade dos povos europeus, em épocas que nos são mais próximas.
Nota-se na penalidade indiana a desigualdade, e talvez a arbitrariedade; mas, até os fins do século passado, qual foi na Europa a sociedade, em que as leis se libertaram daquêlle vício?
Por outro lado: as penas não eram só applicadas com mais barbaridade, do que ao depois o foram, na vigência do código visigótico, das ordenanças da dinastia carolina, em França, e da justiça ecclesiástica em todo o sul da Europa.
Mais ainda: não se vê consignada no código de Manu a ideia de vingança; em todos os códigos da Europa, até o seculo XVIII, sabemos que a pena procedia da ideia de vingança. O termo vindicta consubstanciou-se com a legislação penal da Europa; e, quando os legisladôres viram que era tempo de afastar da penalidade a ideia de vingança particular, fizeram que a pena derivasse da vindicta pública…
Nos proprios tribunais ecclesiásticos, o ministério público era exercido por um agente especial, que se chamava vindex religionis (vingadôr da religião).
Para que desapparecesse esta falsa ideia sôbre a origem das penas, foi mister que a sciencia e a consciencia erguessem a vóz da justiça; que Montesquieu protestasse contra a barbaridade das penas[43]; que da Italia se levantasse o grito eterno de César Beccária; e que por fim os Estados Gerais de 1789 escrevessem na primeira folha da grande revolução:
«A lei é a mesma para todos, premiando ou punindo.
«Ninguem é prêso, senão nos casos fixados na lei.
«A lei só estabelece penas estricta e evidentemente necessárias; e ninguém é punido, senão em virtude da lei estabelecida e promulgada anteriormente[44].»
[43] O marquez de Beccária publicou em Monaco (1764) o seu Tratado das penas, que em dois annos teve seis edições.
[44] Déclaration des droits de l'homme, art. 6.º, 7.º e 8.º
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O direito penal é uma sciência progressiva. Lentamente embora, o direito penal moderno vai accusando salutares progressos; e, se não é permittido aspirar á realização das utopias de Girardin[45], é licito confiar em que o progresso arrastará comsigo a sciência penal; e em que os princípios da justiça social e as noções superiôres do direito hão de ir allumiando as páginas de todos os códigos, radicando-se cada vêz mais na consciencia universal.
[45] Le droit de punir.
Lisboa, 1892, maio.