Title: Os Primeiros Amores de Bocage
Author: José da Silva Mendes Leal
Release date: March 2, 2007 [eBook #20725]
Most recently updated: January 1, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net
Tentando traçar os primeiros lineamentos caracteristicos de um grande poeta, esboço a que serve de moldura uma época ainda pouco estudada, desejou ao mesmo tempo o auctor compendiar n'esta peça os tres principaes generos de comedia—a comedia de enredo, a comedia de caracteres, a comedia de costumes.
Dizendo-se que é uma comedia, bem se deprehende que não se coadunam com as suas condições os lances violentos, que só pertencem ao drama. Desejando-se que em tudo sahisse de feição portugueza, evidente se torna que não podia entrar no seu quadro o expediente de inverosimeis situações, que o theatro francez offerece com trivial abundancia.
Não é porém a comedia uma biographia. Não podia apparecer n'ella inteira a vida do poeta, com todas as modificações que os annos successivamente exercem nos espiritos. Por isso não tem por titulo Bocage, senão Os primeiros amores de Bocage; como para dizer—a aurora d'esse homem—um homem egualmente singular pela indole e pelo ingenho.
Aquelle homem, com effeito, encheu do seu nome o fim de um seculo e o principio de outro. Era elle essencialmente o homem do futuro. A morbida inquietação, progressivamente aggravada até ao desvario, vinha-lhe naturalmente do estreito ambito de idéas em que o seu talento se asphixiava!
Para bem o comprehender cumpre ler-lhe attentamente a anciosa poesia, e logo depois fixar a meditação e os olhos nas paredes negras da Inquisição, em seu tempo erguidas ainda, e ainda ameaçadoras!
Surgindo entre duas sociedades, uma que o instincto lhe adivinhava, outra que em torno d'elle se alluia, foi a sua existencia um indeciso protesto e uma turbida agonia. Os desvios dos annos ulteriores, precipitando-o tão cedo na sepultura, fizeram-se o triste refugio de uma actividade intellectual, convulsa de febre, comprimida de fóra, não bem conscia de si. Os seus ultimos desregramentos apparecem-nos hoje como as valvulas perigosas por onde se derramou, e brevemente se exhauriu, a exhuberancia d'aquella alma
«…—que sedenta em si não coube!»
A comedia, tomando o poeta nos primeiros annos e nas generosas paixões da mocidade, mede-lhe a grandeza do vulto pela grandeza dos impulsos, dá aos seus mesmos defeitos a explicação elevada e nobre que só se póde ter por verdadeira em tão alto e claro espirito, mas deixa sempre entrever o germe fatal das futuras aberrações.
Equivocar-se-ia de todo quem unicamente o quizesse ver segundo a tradição que ficou do derradeiro periodo da sua vida, transmittindo-se pela bocca dos que só então o conheceram e chegaram aos nossos dias. O versista das trovas ao Chrispiniano, á Estanqueira do Loreto, e ao Antão Broega, o vate plebeu dos sonetos ao Galina e aos novos árcades, não exclue o admiravel poeta de Leandro e Hero, de Areneu e Argira, do Tritão e das Epistolas. A propria mobilidade do seu talento duplica, multiplica as variantes d'um caracter, cujo principal distinctivo era a excessiva impressionabilidade.
Na comedia, Bocage mostra-se pelas duas faces essenciaes. Está n'isso a verdade: o contrario seria grave erro de observação. Ninguem se apresenta nas salas como na rua. Quando não houvesse esta distincção natural, que é de todos os tempos, bastaria o que a respeito d'elle escreveu o viajante Beckford, (que o tratou no tempo em que frequentava a casa dos Marialvas) para tornar evidente como o fogoso mancebo, apesar das suas singularidades, não podia ter ao despontar da vida desaprendido o que recebera da educação paterna, que recordava com desvanecimento da origem como provam alguns dos seus versos.
Releu cuidadosamente o auctor os preciosos trabalhos dos srs. Castilhos, Rebello da Silva, e Innocencio ácerca de Bocage; compulsou os documentos respectivos ao poeta com tanta meudeza, que teve a fortuna de poder rectificar a data da sua nomeação de guarda marinha para Goa, que não é a de 1782 como se lê na biographia que precede a ultima edição, mas a de 31 de janeiro de 1786, como authenticamente se vê no proprio documento official conservado nos archivos do ministerio da marinha; procurou sobre tudo o segredo d'aquelle complexo caracter nos seis volumes que encerram a collecção completa dos seus poemas, collecção inteirada pela illustrada solicitude e zelo incansavel do nosso primeiro bibliographo, o já citado sr. Innocencio.
A variada feição da indole e talento de Bocage, o seu advento, e os lances principaes da sua vida, alli com effeito se retratam.
Aos 8 annos improvisava uma quadra, que não poderia ter chegado até nós se não fosse logo repetida por apreciada, concluindo-se d'ahi que não póde parecer prematura reputação a que elle goza já aos 19:
Fui ver a procissão a S. Francisco,
A quem o vulgo chama da cidade,
E supposto o apertão, foi raridade
Que indo eu em carne não viesse em cisco.
Logo no primeiro soneto da collecção exclama:
Incultas producções da mocidade
Exponho a vossos olhos, oh leitores;
Vede-as com magoa, vede-as com piedade,
Que ellas buscam piedade e não louvores;
Ponderae da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lagrimas e amores;
Notae dos males seus a immensidade,
A curta duração dos seus favores;
E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja apparencia
Indique festival contentamento,
Crede, oh mortaes, que foram com violencia
Escriptos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependencia.
Ninguem dirá, em presença d'esta dolorosa confissão, que lhe eram extranhos os grandes affectos e os grandes pezares expressos na mais alta e culta lingua; ninguem poderá persistir em consideral-o exclusivamente homem de botequins e oiteiros, incapaz de outras aspirações e outras praticas; ninguem em summa presumirá conhecel-o melhor do que elle a si se conhecia.
O soneto 99.^o do Livro I attesta como n'esse privilegiado ingenho se revelou cedo a vocação, que cedo tambem o fez presado:
Das faixas infantis despido apenas
Sentia o sacro fogo arder na mente.
Se o testemunho d'elle não bastasse, removeria quaesquer duvidas o de
Philinto quando lhe escrevia:
Lendo os teus versos, numeroso Elmano,
E o não vulgar conceito, e a feliz phrase,
Disse entre mim: «Depõe, Philinto, a lyra
Já velha, já cançada,
Que este mancebo vem tomar-te os louros.»
Manifesto é pois que a fama não esperou muito para apregoar o nome de Bocage, e apregoal-o por voz tão auctorisada como esta, a que o moço poeta respondia n'um rapto de enthusiasmo em que se está revelando quanto o lisongeava tal suffragio:
Fadou-me o gran Philinto, um vate, um nume!
Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!
O retrato physico de Bocage acha-se, além de outro inferior, no soneto 22.^o do Livro IV:
Magro, de olhos azues, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura.
O nome que mais frequentemente apparece nas suas queixas amorosas, indicando uma preoccupação e predilecção pouco vulgar em homem tão variavel, e consequentemente certificando que fôra aquelle o seu mais intenso affecto, é justamente o nome de Gertruria. Enlevos, desconfiança, zelos, saudades, presagios, alternam-se em impetuosos arrebatamentos e sentidos desaffogos nos sonetos 13.^o, 18.^o, 23.^o, 37.^o e 57.^o do Livro I, e Gertruria é o objecto d'estas persistentes recordações. Os sonetos 17.^o e 20.^o provam que, indo em viagem, é ainda esta a memoria que lhe enche o espirito. O soneto 58.^o é uma despedida a Gertruria na occasião de partir para a India. O soneto 47.^o chora a ausencia da patria e de Gertruria. Finalmente o 83.^o, com o respectivo mote, é o que o Bocage da comedia no segundo acto improvisa sem mudança de uma virgula, e serve nas mãos astutas do commendador, por intermedio do officioso mestre Amancio, para dar no 3.^o acto motivo aos temporarios arrufos entre a supposta afilhada de D. Filicia e o filho de Manuel Simões.
Já portanto se vê que, só desconhecendo-se totalmente as obras do poeta, se poderiam julgar destoantes do seu caracter estes amores, estes versos, e a feição d'elles, pois que ahi se encontra, n'aquelle periodo da sua vida, uma parte da sua propria individualidade com o que é mais d'ella, ou antes no que é mais ella!
Seria facil multiplicar infinitamente as citações das poesias que authenticam, digamos assim, o caracter e a expressão que lhe deu o auctor. Para que? Seria um estudo demasiadamente longo e prolixo; seria peior, seria pôr em duvida a licção e criterio dos leitores.
Poderia crer-se apenas um freguez do Izidro e do Nicola o poeta que ao partir para Goa soltava esta enternecida e magnifica despedida?
Amigos, patria minha, e lar paterno
Penates a quem rendo um culto interno!
Lacrimosos parentes
Qu'inda na ausencia me estareis presentes,
Adeus! Um vivo ardor de nome e fama
A nova região me atrae, me chama.
Não diz elle as suas arrojadas esperanças e secretas penas n'este quarteto tão cheio?
Camões! grande Camões! quão similhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Egual sorte nos fez, perdido o Tejo,
Arrostar co'o sacrilego gigante!
Não deixa entrever, n'est'outro mavioso trecho, a par d'aquelles grandiosos sonhos, a dôr mysteriosa que o impelle e o acompanha?
Eu parto; e vou teu nome repetindo Por que dê desafogo á magoa dura; Meus tristes ais, suspiros de amargura Áquem dos mares ficarás ouvindo!
De tudo isto se compõe o Bocage da comedia!
Em torno d'elle, concorrendo a uma acção fundada nos costumes do paiz e da época, grupam-se os typos que mais visivelmente representam os sentimentos e tendencias coevas. De um lado as antigas tradições, ainda na sua grave pureza. De outro lado a degeneração variada, já mixturando os elementos d'onde surgirá a necessaria transformação. De um lado o marquez de Marialva, D. Maria Joanna, Gonçalo Mendo; do outro D. Felicia, o Commendador, o Morgado. Ao fundo a burguezia nascente, isto é, Manuel Simões e seu filho,—o proprio Manuel Simões concebido e desenhado por Garrett na Sobrinha do Marquez—quanto possivel guardado e acatado como se guardam e acatam as tellas dos mestres—e só passageiramente retocado com uma leve tintura de ambição, indispensavel para indicar a progressão dos tempos, e os futuros destinos de tal classe. Ao redor do todo, o povo em algumas physionomias rapidamente esboçadas. Ao longe, como horisonte melancholico, uma idéa do são e austero lar provinciano, com seus longes dos costumes patriarchaes e fragueiros que lhe eram usual apanagio.
Eis aqui resumido todo o pensamento e toda a economia da composição, que depois de experimentar a fortuna do palco, vae agora experimentar a fortuna da imprensa—duas temerosas experiencias.
Expondo assim o conjuncto do designio, cujas multiplicadas difficuldades calculou, não procura o auctor antecipar as desculpas, mas unicamente assentar as responsabilidades.
Se logrou o seu proposito não o dirá elle; decidil-o-ha o publico!
O singular favor com que foi acolhido este ensaio n'um genero pouco cultivado no nosso theatro, impõe ao auctor o gratissimo dever de exprimir aqui (vedando-lhe o respeito outra menção) o seu profundo reconhecimento para com o publico, indulgente e attento, que em todos os seus tentames o tem acompanhado como um amigo fiel, ora animando-o com o estimulo do applauso, ora advertindo-o com a benevolencia do conselho, e que, de certo apreciando a obra mais pela intenção que pela valia, recompensou os seus esforços por modo tal que lhe ficará indelevel memoria.
Á imprensa agradece tambem a benignidade com que até aqui o tem honrado.
Á direcção do theatro normal testemunha quanto o penhorou a solicita cooperação que n'ella encontrou.
Seja-lhe finalmente permittido certificar á graciosa actriz, que fez com a estreia da peça o seu beneficio, a sua inteira satisfação pela maneira verdadeiramente distincta com que interpretou o seu variado papel e lhe venceu as numerosas difficuldades, sendo a maior ter ao lado uma artista tão conscienciosa e completa como a sr.^a Delfina, que do esboço senhorilmente comico de D. Felicia tirou uma das suas mais acabadas creações.
Se a estas, pela primasia devida ao sexo, menciona o auctor em primeiro logar, nem por isso esquece que deve egual agradecimento aos mais actores, do primeiro até ao ultimo, tendo achado n'elles tamanho zelo, que, mesmo graduando-os pela ordem dos meritos bem conhecidos, não poderia especialisar um sem offender a boa vontade de todos.
A comedia Os primeiros amores de Bocage, se Deus der vida ao auctor, será o introito de uma trilogia, que se destina a abranger o mais notavel da vida do poeta, e dos curiosos periodos coetaneos da historia patria, até aos ultimos momentos d'elle em dezembro de 1805.
Junho 12—1865.
Além dos córtes, effectuados antes da representação, que vão designados com cômmas no impresso, a experiencia mostrou a necessidade de novas reducções. Como estas reducções tiveram logar depois de completa já a impressão dos respectivos actos, vão ellas aqui notadas para facilitar a execução da peça em quaesquer theatros.
Desde as palavras «estava de pedra e cal que se tinha já livrado» (exclusivè) até começar a phrase: «dizem que ha ahi uma tal senhora morgada, etc.» supprime-se tudo.
E depois, egual suppressão desde as palavras: «se não póde chegar a um rosicler de pedras» (exclusivè) até ao fim da scena.
Suppressão desde as palavras: «elle só bastára para dar a immortalidade ao nome portuguez» (exclusivè) até onde Bocage diz: «ouça-me tambem, sr. Gonçalo Mendo».
Suppressão desde que o Commendador pergunta: «resolveu casar com sua prima quanto antes?» (exclusivè) até prender onde o mesmo Commendador diz: «chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa, etc.»
Á phrase de Gonçalo Mendo, na scena 2.^a do 5.^o acto: «disse-me que ia a Setubal despedir-se dos paes», phrase que por facil inadvertencia escapou na composição e revisão, cumpre substituir est'outra: «disse-me que ia a Setubal despedir-se do pae.»
A mãe do poeta não existia já havia nove annos.
O Marquez de Marialva, 72 annos Sr. Rosa
Manuel Simões, mercador, 69 annos Sr. Theodorico
Gonçalo Mendo de Sendim, da casa de Mendel, tenente de dragões de Campo
Maior, 33 annos Sr. Tasso
Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage, cadete do regimento de Setubal, 19 annos Sr. Santos
Bartholomeu Tojo, morgado da Gesteira, 44 annos Sr. Cezar
Sebastião de Brito Louzellos, commendador de S. Marcos de Monsarás, 52 annos Sr. Izidoro
Francisco Pedro Simões, filho do Manuel Simões, 26 annos Sr. Coelho
Um Transeunte Sr. Corrêa
Zé da Moita, guarda de montado, 30 annos Sr. Pinto
Luiz Manuel, escudeiro, 65 annos Sr. Moreira
D. Maria Joanna Galvão Lobo, morgada de Valmoreno, Fresnos e
Carregueiros, 23 annos Sr.^a E. Adelaide
D. Felicia Moutoso de Cerqueira, morgada da Torre da Palma, 48 annos
Sr.^a Delfina
Maria Gertrudes, sua afilhada, 20 annos Sr.^a Marianna
Tia Paschoa do Espirito Santo Sr.^a Maxima
Tia Vigencia da Purificação Sr.^a C. Emilia
Uma Palmilhadeira. Sr.^a Maria das Dores
Compadre Theotonio Alves Sr. Marcolino
Compadre Amancio Pires Sr. Sargedas
1.^o} { Sr. Amaro 2.^o} POETAS { Sr. Polla 3.^o} { Sr. Soller
1.^o} { Sr. Vencancio } MANCEBOS { 2.^o} { Sr. Christiano
O alcaide do bairro do Rogio Sr. J. Antonio
O tabelião
Um cavalheiro
O Almeirão }
} Picadores
O Gaeta }
Um cego, pregoeiro de impressos Sr. Farruja
Um Volantim
Um penitente
Um escudeiro do Marquez.—O mouro do Marquez.—O escudeiro de D.
Felicia.—Povo.—Convidados.—Damas.—Ronda do Alcaide—Criados, etc.
1785 a 1786
O COMMENDADOR (atrás de D. Maria Joanna, do mesmo modo)
Bem… bem diz Xenophonte!… Nem eu sei o que diz! (Deixa-se ir meio desfallecido sobre outra cadeira á entrada da porta do F.)
(Silencio geral. Cada um dos tres personagens procura resfolegar e reanimar-se.)
D. MARIA JOANNA (como tornando a si.) (Para os dois)
Que foi isto?… Como foi isto?…
Pois não sentiu?—Um tiro… tropel de cavallos…
E desappareceu tudo!… E deixaram-me só!… (meio reprehensiva) E o primo a fugir!
MORGADO (levantando-se)
Fugir eu, minha prima!… (Formalisado.) Fugir!… Seria a primeira vez.
D. MARIA JOANNA (recobrando gradualmente o bom humor)
Pois para a primeira não o fazia mal.
Avistei esta casaria… Corria para aqui… para me fazer forte… para nos fazermos fortes!
Mas corria diante… E eu corri tambem… corri que nem eu sei… corri devéras para o poder seguir… E até o commendador correu… Não correu, commendador?
COMMENDADOR (gravemente)
Affirmam boas auctoridades que muitas vezes é prudencia o correr… Pedibus celer, diz Virgilio com louvor.
D. MARIA JOANNA (sorrindo)
Já está mais em si, o commendador… Já não falla como toda a gente.
MORGADO (com extrema volubilidade, que é o seu natural)
Mas, prima, que havia de fazer um homem só, n'aquelle descampado, contra tanta gente!… Agora que venham. Dez, doze, vinte que sejam…
D. MARIA JOANNA (erguendo-se como escutando)
Espere…
MORGADO (assustado)
Que é?
COMMENDADOR (idem, levantando-se e approximando-se á D.)
Que é?
D. MARIA JOANNA (Applicando o ouvido, aos dois que se lhe reunem em grupo turbado)
Não ouvem?
Tropear de cavallos!…
MORGADO (inquieto e interrogando as saidas com os olhos)
Não ter aqui a minha espada!…
D. MARIA JOANNA (com leve ironia)
Perdeu-a?
MORGADO (mais inquieto)
Não sei como foi… (dirigindo-se apressadamente a uma porta lateral)
Vou procurar uma arma.
D. MARIA JOANNA (com terror dirigindo-se a outra)
Chame gente, primo.
COMMENDADOR (que ficára escutando)
Vem subindo alguem! (encaminhando-se desorientado á outra).
(No momento em que os tres aterrados procuram debalde atinar com os fechos das portas a que se dirigem, apparece ao F. Gonçalo Mendo)
OS MESMOS e GONÇALO MENDO
Da parte d'el-rei… nem mais um passo.
COMMENDADOR (apegando-se á umbreira)
Ai!
MORGADO (idem)
Jesus!
Desmaiava… se tivesse onde.
Ninguem tente fugir ou esconder-se. Da parte d'el-rei está preso tudo.
MORGADO (esperançado, comsigo, e ainda voltado para a porta)
Da parte d'el-rei!
D. MARIA JOANNA (do mesmo modo)
Havia de jurar que me não é desconhecida esta voz.
COMMENDADOR (voltando dissimuladamente o rosto, e procurando reconhecer)
Da parte d'el-rei!… Então…
GONÇALO (adiantando-se)
Vamos… Toda a resistencia seria inutil…
D. MARIA JOANNA, MORGADO e COMMENDADOR
(voltando-se simultaneamente)
O sr. Gonçalo Mendo!
GONÇALO (attonito)
Que é isto! (affirmando-se e reconhecendo-os) Na verdade não sei se acredite… A sr.^a D. Maria Joanna Galvão!… O sr. morgado da Gésteira!… O sr. commendador Louzellos!… E eu que pensava colher um bando de salteadores!… (a D. Maria Joanna sorrindo) Não são os salteadores?
D. MARIA JOANNA (recobrando a jovialidade)
Somos os assaltados. Respondo-lhe por elles.—Agora diga-me antes de tudo. Que aventura é esta? Como veiu aqui? Onde estamos? Diga. Foi terrivel o susto, mas ainda é maior a curiosidade.
Responderei logo; perguntarei primeiro. Estes senhores pódem auxiliar as explicações, e eu completo o meu dever. Vinham de jornada e foram atacados alli em baixo, na estrada, ao fundo do valle, entre a ribeira d'Aviz e o azinhal grande?
COMMENDADOR (no seu caracter habitual de prolixa gravidade)
Fomos. Tinhamos jantado em Portalegre, onde mais nos detivemos do que deviamos. E não foi por eu não repetir ao morgado, com a auctoridade de Cicero: «nos negocios graves são perigosas as demoras.» Jornadas, em boa razão, são graves negocios.
MORGADO (no seu caracter de costumada loquacidade)
A que proposito vinha o tal Cicero, ou o que é, quando eu tinha conseguido pôr na meza á prima, em Portalegre… em Portalegre, como se estivessemos na côrte!… tudo por diligencias minhas, tudo com receitas minhas!… uma ôlha á castelhana, um prato de gallinhas de alfitete, outro de coelho á Fernão de Sousa, outro de arteletes de vitella, outro de coroa real de folhado francez, sem contar as miudezas… Em jornada nem princezas teriam melhor, hade confessar, sr. Gonçalo Mendo… Não, que se não fôra a minha consummada pratica n'estas coisas…
Estavamos ha uma hora em Monforte… e provavelmente não nos tinha succedido o que nos succedeu.
MORGADO (desconsolado)
Ah! prima!
GONÇALO (a D. Maria Joanna)
Não me queixarei eu do succedido. (Aos homens.) Vamos ao caso…
Era já ao pôr do sol e estavamos quasi ao meio do azinhal, a sr.^a D. Maria Joanna com a sua aia n'uma liteira, nós dois e dois criados, todos a cavallo, um pouco atrás uma azemola com as bagagens mais leves, e um moço de pé…
Bagagens leves!… Leves serão, mas preciosas!… Mil coisas necessarias!… Uma bateria de cosinha de viagem como não ha outra ainda em Lisboa… completa… completa… Fôrmas, facas, espatulas, agulhas, passadores… Nem na uxaria de Salvaterra!… E tudo precaução minha para commodidade da prima, tudo…
GONÇALO (interrompendo)
Vamos ao caso… vamos ao caso, commendador.
A meio do azinhal, pouco mais ou menos, onde a estrada faz um cotovelo e se aperta entre os montes, damos de rosto com uns poucos de homens armados…
Poucos!… Quinze eram pelo menos… vinte talvez… vinte de certo, se não eram mais…
GONÇALO (atalhando impaciente)
O numero pouco importa.
MORGADO (protestando)
Importa pouco! Para o valor o numero…
O numero não é indifferente… Por não ser indiferente se distinguiu em singular e plural… Basta ver o que a respeito do numero escreveu Prisciano Cesariense… mas n'este caso…
N'este caso, continúo eu… ou não se acaba.—Parámos. O morgado e o commendador vinham ainda um pouco distantes, penso. Os homens fazem menção de nos cercar a liteira. A minha aia desmaia. Os liteireiros fogem pelo azinhal, e creio que os criados tambem. Emfim achei-me não sei como a pé na estrada. N'isto o commendador caiu…
Dei de esporas para acudir, e tropeçou-me o cavallo…
Muito a tempo.
MORGADO (que espreitava a occasião, apoderando-se da palavra)
No meio d'estes apuros, conservo toda a presença d'espirito… deito á carreira, faço parada firme, ponho pé em terra n'um relance, com todos os preceitos… os tres tempos velozes em meio circulo seguido… levanto o commendador que estava tolhido pela sella… não indago mais… a pé mesmo levo da espada, e caio como um raio sobre a malta… Ah! que se tenho tempo! Duas voltas, um cambiamento, treta sobre treta, talho e revez, e ensinava-lhes o que é o morgado da Gésteira com a espada na mão!… A prima veria… Por seu respeito!… Veria… Não digo mais!
Veria… estou certa. Mas não vi. Foi pena. Apagou-se o raio antes de fulminar!
GONÇALO (a D. Maria Joanna)
Depois?
Depois… nem eu sei bem… ouviu-se um galope… um tiro, creio… O morgado diz que foi um tiro…
Foi… Por signal, com o estrondo os nossos cavallos, que tinhamos deixado soltos na estrada, fugiram á desfilada…
Dando exemplo aos cavalleiros. Fugiram os cavallos, fugiram os salteadores… se eram salteadores… já tinha fugido o commendador, fugiu o primo, e eu, que estava desatinada, confesso, vendo-o fugir… segui-o. Debandada geral… Não se ria, sr. Gonçalo Mendo… Segui-o, é verdade, a correr, a bom correr, eu mesma, por essas ladeiras acima, por entre o matto… E tive folego!… Veja que forças dá o terror, e como eguala as condições!… Por fim viemos dar todos aqui. Póde explicar-me o enigma?
Tive a imprudencia de não trazer armas de fogo. Estava apeado, não esperava dois ataques ao mesmo tempo… Mettido assim entre os salteadores que nos esperavam, e o outro bando que atirou sobre nós… Senti assobiar a bala aos ouvidos.
Admira. Disparei para o ar.
MORGADO (surpreso)
Disparou!
Então o outro bando era o sr. Gonçalo Mendo!
Eu mesmo. Voltava de Marvão, com duas ordenanças do meu regimento, em direcção a Monforte. Ao descer a encosta avistei um ajuntamento na estrada… Não podia distinguir bem, porque estava distante ainda, e já começava a escurecer o valle com a sombra do arvoredo… Metti a galope, e desconfiei que era ataque a passageiros. Disparei então uma das pistolas para dar aviso de soccorro, e prevenir alguma ousadia maior. Não esperava tão grande resultado. N'um instante desappareceu tudo… menos a liteira e a sua aia, minha senhora!
Jesus! é verdade! A minha pobre Anna Maria! Que é feito d'ella?… Com o sobresalto, com tudo isto, quasi me tinha já esquecido.
Tornou a si… Acompanha-a um dos meus dragões… Vem ahi já. Nem pode acreditar ainda, que esteja viva.
E os ladrões, os criados, os liteireiros…
Dos ladrões, nem vestigios… Parece que se abriu a terra com elles…
MORGADO (que escutava attentamente, comsigo)
Ainda bem!
GONÇALO (fitando-o)
Como?
Nada, nada… Explica-se tudo perfeitamente. Ainda bem, dizia eu. Ainda bem que se explica, está visto.
Os liteireiros e os criados… deixei a outra ordenança incumbida de procural-os, e esses de certo não hão de estar longe.
E como veio aqui ter, tanto a proposito?
(Vae carregando a noite)
Porque vi que se acoitavam n'esta casaria alguns vultos… e por… (mais baixo) por destino talvez!
D. MARIA JOANNA (idem, motejando)
Como ha dois annos?
GONÇALO (gravemente e com ardor)
Como sempre!
D. MARIA JOANNA (afastando a conversação)
Mas a final, onde estamos? Que havemos de fazer?
Em primeiro logar… procurar luz. É noite quasi. Sr. Morgado da
Gésteira, a casa tem ares de habitada. Se quizesse…
Pois não. Eu chamo. (Successivamente e a intervallos, ás portas da D.)
Olé! Oh!… ó de casa. Venha alguem? Está aqui o morgado da Gésteira!…
Está uma senhora!… Gente de bem, tudo!… (Silencio absoluto.) Nem
viv'alma!
Estarão longe…
É singular!
D. MARIA JOANNA (inquieta)
Será a propria guarida dos salteadores!
Tem-se visto, mas não é provavel… Vamos, sr. morgado. Veja se acha uma luz. Bem reconhece que não posso ir eu. Está aqui uma dama, e agora, como militar, respondo pela sua segurança.
MORGADO (irresoluto)
Assim é, mas… (sem se atrever a ir) Commendador, mais vêem dois do que um.
«Não é a luz dos olhos a que mais vê», como diz…
GONÇALO (instando)
Então! Cada vez se faz mais escuro, e não sabemos onde estamos.
MORGADO (resolvendo-se)
Vamos, commendador, antes que seja noite de todo! Por aqui… (indo á E.) Uma varanda… (indo á D.) d'este lado um corredor… Vamos a ver.
(Saem os dois pela 1.^a porta da D.)
GONÇALO, e D. MARIA JOANNA
(Longo silencio como se receiassem quebral-o)
Sr. Gonçalo Mendo, é ainda submisso como d'antes jurava?
Nunca faltei a nenhum juramento.
Tornamos a vêr-nos em circumstancias extraordinarias… n'um ermo a bem dizer… entre sombras e mysterios… Não lhe permitto uma palavra de galanteio ás escuras… Estão entre nós…
GONÇALO (gravemente)
Estão tres seculos de honra… está a espada de um soldado.—Faz-me a injuria de suppôr necessario advertir-m'o?
Não. Desculpe. É ainda do sobresalto! Desculpe. Conversemos.—Estava bem longe de me encontrar, não? E assim, e aqui muito menos?
Só adivinhando. Suppunha-a ainda em Paris.
Volto de lá. Um mez de jornada, faça idéa! Se não posso aturar o mar!
Um mez!… Entre o commendador e o morgado?
O commendador…
Uma reminiscencia das academias do sr. D. João V… a quem Deus perdôe…
Ao sr. D. João V?
Não, minha senhora, ás academias.
O morgado…
A casca dos antepassados… que não teve.
Já vejo que os conhece a fundo.
GONÇALO (ponderando dolorosamente)
Um mez em tal companhia!… A fadiga do caminho é nada ao pé d'isso.
Um mez com o commendador, que o meu contra-parente D. Vicente de Sousa Coutinho incumbiu de acompanhar-me, attendendo á sua edade, e que emprehendeu render-me á força de erudições… um dia com o morgado, que encontrei em Porto de Espada, e que foi esperar-me á raia, não sei se por sua conta, se por ordem de minha tia D. Felicia, a quem escrevi de Paris.
Ao menos foi só meio supplicio no mez!
Ai! o dia do morgado tem valido bem o mez do commendador. Imagine. È um nunca acabar de proezas em cavallaria, em… esgrima, em altanaria, em monteria e em… gastronomia, como se diz em França. Com o pretexto de um parentesco… de que eu não tinha noticia… quer-me captivar pelas artes como o commendador pela sciencia.
Concluo d'ahi que tenho n'elles dois… dois… Como direi?…
Rivaes. Póde dizer. Não tem risco.
Em summa, requestam-n'a ambos!
O commendador dês que partimos de Paris… O morgado dês que nos saiu ao encontro na fronteira…
Complicando o galanteio… ambulante.
Pelo contrario: simplificando-o. Distraem-se mutuamente, e deixam-me respirar. Dois são menos perigosos que um.
E tres?
Menos perigosos que dois. Já lhe esqueceu o promettido? (Pausa.) Ambos pertendem a minha mão, é verdade… porque n'esta mão, com ser pequena, cabe a herança de tres casas.
GONÇALO (simplesmente)
Não me lembrava!
O MORGADO (fóra)
Prima! Prima!
Ouve? Temos temporal de palavras.
OS DITOS, MORGADO e COMMENDADOR
(Ambos com luzes—Clarea de novo a scena)
Prima. Achámos luz.
Não é difficil verifical-o.
E não só achámos luz, fizemos um grande descubrimento. (Vão pôr as luzes no bufete.)
Não foi o novo mundo?
Não foi o novo mundo. Foi um mundo antigo… um canto d'elle… muito seu conhecido… A prima mal se podia lembrar. Não o vê de pequenina… E eu mesmo… Se não venho por aqui ha bons quinze annos!…
Vamos, acabe. Encontrou gente?
Gente! Ninguem. Um deserto.—Quer saber onde estamos?
Porque não começou por ahi? Não vê que estou morta de impaciencia?
Deus me livre de a molestar na minima coisa, prima. Quizera antes… brigar commigo! Bem sabe que para lhe evitar um dissabor… uma sombra d'elle, um… (Gesto de impaciencia de D. Maria Joanna.) Já vou, prima. Lá vae.—Quer saber onde estamos? Estamos no paço da Torre da Palma!
Em casa de minha tia D. Felicia?
No seu proprio solar. Não ignorava que era para estes sitios, mas deram nova direcção á estrada, e lá em baixo não me occorreu… Depois, quando entrámos, com o lusco-fusco…
D. MARIA JOANNA (maliciosa)
Com a perturbação…
Nem reparei sequer. Agora, entrando por ahi dentro, quiz-me parecer que me não era estranho o corredor… tópo uma escada, e dá-me ares de conhecida… desço, entro n'uma casa lageada, e cada vez se me afigura mais familiar o piso… Procuro, acho vélas, accendo, ólho em redor… Era a cosinha… foi um raio de luz…
GONÇALO (sorrindo)
Pudéra! Na cozinha!
Tantas vezes jantei n'esta casa!… Fui eu que dei as receitas de fartes e de manjar real á Dorothéa!… Foi alli que ensinei o Fernandes velho a fazer perdizes de gigote, quando vinha caçar com seu tio capitão mór…
Memoraveis recordações!… Admira como não reconheceu logo a casa.
MORGADO (machinalmente)
Com a perturbação… (emendando-se) com o escuro, quero dizer… E era tão novo ainda n'aquelle tempo!—Não se lembra de seu tio João, de Carregueiros? Parece-me estar vendo ainda o sr. capitão mór, João Alvares Lobo, sempre sisudo, e sempre triste… triste como a noite!… Tudo por quê? Por não deixar filho varão para herdeiro, (a D. Maria Joanna) e por causa da paixão de sua tia D. Felicia pelos donaires… Nunca se viram dois genios mais oppostos… Elle todo monteador e fragueiro; ella toda côrte e mimos!… Teimava o capitão-mór em eternizar, na Torre da Palma, os costumes do tempo em que era castello fronteiro a casa. A sr.^a morgada D. Felicia não tinha senão um fito… ser açafata no Paço.
E já é?
Espera ainda ser. Ha treze annos que espera.
Na filha unica via o capitão-mór a continuação provavel da indole de sua mulher, e a ruina dos proprios intentos.
Tenho idéa de ouvir dizer que por isso se apartaram.
Por isso, certamente. Foi ella viver na côrte como desejava. Elle deixou-se ficar, não consentindo que sua tia levasse a filha… provavelmente para a criar a seu modo… Ficou pois… Mas como ficou!… Esta casa um ermo, elle uma sombra.—Levou-o mais cedo á sepultura aquelle desgosto!
E a pequenina?
Tinha dezoito mezes apenas. Tratava d'ella aqui a Joaquina Simôa, filha de um matteiro de Carregueiros, que havia dois annos casára com o Luiz Manuel, o escudeiro da Torre da Palma… A creança morreu, e seu tio pouco mais durou… Ha bons quinze annos isto… dezeseis talvez!
E dezesete porque não? Apezar de mais moço, meu pae havia casado muito antes de meu tio João. Tinha eu os meus seis annos feitos por esse tempo, e lembra-me bem de ouvir contar. Foi por morte do tio João e da filha herdeira, que as casas de Fresnos e Carregueiros passaram para meu pae, na qualidade de immediato successor. Não é isto?
É. Vivia ainda seu irmão Nuno Alvares, quando morreu o capitão-mór. Ao menos acabou persuadido de que as terras dos seus iam a herdeiro varão, como tanto desejava.
Deus tinha disposto d'outro modo. Meu irmão Nuno morreu ainda menino tambem.—O morgado não é menos forte em genealogias… patrimoniaes… do que em esgrima, e no resto.—Minha tia D. Felicia nunca mais voltou aqui? Fui cedo para Lisboa, casei aos quinze annos, e parti logo com meu marido para a embaixada de Vienna d'Austria, onde elle era secretario. Desejo informações.
Sua prima? Não voltou. A côrte é o seu encanto, e esta casa só lhe lembrava desgostos. Haverá dez annos mandou ir para a sua companhia a pequena da Simôa, que é sua afilhada. Tem o mesmo nome que tinha a filha, e nasceu pelo mesmo tempo… Recordações… saudades provavelmente.
E a Joaquina Simôa? E o Luiz Manuel? Tenho ainda uns longes d'elles.
Ficaram por feitores da casa.
E não apparecem, essas reliquias de outro tempo?… Procure-m'as, commendador… procure-as morgado… Ah!… (como achando uma idéa) Estarão ellas encantadas? Querem vêr que estão!… Desencantem-m'as.
Se não mudaram os costumes, foram ao terço a Vayamonte, e não tardam.
Sabemos onde estamos, e estamos em morada da familia… Não é pouco, mas não é tudo. Agora que fazemos? Monforte fica ainda longe?
Meia legoa, o muito.
Não me fio n'estas meias legoas.—Visto que nos podemos julgar a salvo… (a Gonçalo.) Podemos?
Sempre o julguei.
Acho-me um pouco moída das carreiras que dei atraz do morgado; e não sei se é do susto, se do ar, se da jornada, sinto uma fraqueza que… que está solicitando com empenho a intervenção e o soccorro da famosa ucharia… (para o morgado) Não seria occasião de experimentar alguma das receitas?… Qualquer coisa.
Preveni tudo… Vem tudo nas bagagens, muito bem acondicionado… Servir-lhe-hei duas ades estilladas, frias, que são um primor, e um queijo de presunto, que verá… sem contar um prato de broas d'ovos que tinha de reserva.
Ouviu já fallar no supplicio de Tantalo, morgado?
Tantalo, rei da Lydia, filho de Jupiter e de Plotis.
MORGADO (sériamente)
Não conheço o sujeito, mas tratarei de fazer o seu conhecimento, se é pessoa de bem.
Não é preciso.—Tantalo ardia em sede, e fugia-lhe a agua que via proxima; devorava-o a fome, e retiravam-se d'elle os fructos que tinha á vista… Assim estamos nós… Tão boas coisas nas bagagens, e as bagagens por montes e valles!
GONÇALO (que parecia escutar)
Perdoe! (Continua a applicar o ouvido.)
Novidade?
GONÇALO (saindo precipitadamente)
Volto já.
OS DITOS menos GONÇALO
Mais inquietações ainda!
COMMENDADOR (turbado)
Não agoiro nada bom… Ouço rumor se me não engano…
Não tem a gente um momento de socego. (comsigo) Dar-se-ha caso que devéras… (alto) Isto está como nunca… Anda tudo minado de malfeitores!
COMMENDADOR (com o ouvido attento)
Que ha rumor lá fóra, ha!
Assim é que me tranquillisam!
OS DITOS e GONÇALO
D. MARIA JOANNA (assustada)
Que foi?
São as suas bagagens. Não é caso de consternar, creio.
D. MARIA JOANNA (meio enleiada ainda)
De certo não.
Teve alguma coisa?
Não tive…—Tive… tive os terrores chronicos do morgado e do commendador.
MORGADO (protestando)
Terrores! Cuidados pela prima.
D. MARIA JOANNA (aos dois)
Hão de acabar por me tornar convulsa.
Chegou a sua aia, voltaram os liteireiros, e appareceu o criado do sr. morgado. Não falta senão o do sr. commendador.
Esse não me dá cuidado. É dos sitios.
Tantalo tem férias?
Tem.—A minha Anna Maria?
Entrou para os quartos inferiores.
Já agora aqui pernoitamos, commendador!
É o mais prudente, se o sr. Gonçalo Mendo nos assegura…
Basta que esteja em Monforte de madrugada. Eu e as minhas ordenanças ficamos de guarda a esta casa.
O Luiz Manuel não póde tardar. Sempre ha de haver modo de não ficarmos peior do que em Monforte.
Ha, pois não… Hade haver onde a prima se accommode como cumpre. Nós…
Nós em qualquer parte e de qualquer maneira.
Como homens de guerra.
Que poeira trago… reparo agora!—Commendador… minha prima havia de ter um quarto de toucar… Quer dizer à Anna Maria que suba e procure.
Procurarei eu mesmo (galanteando). Pretende Tibullo…
D. MARIA JOANNA (atalhando)
Ai! o morgado que faz que não vae acudir ás ades… ás ades… Como é?
Estilladas, prima, estilladas… Vou. Já vou. Deus me livre de entregar coisas d'estas a lacaios nem mochillas… Vou no mesmo instante.
COMMENDADOR (indo para sair pela D., e mirando desconfiado Gonçalo
Mendo)
Dar-se-ha caso que…—Póde lá ser…—Um soldado!
MORGADO (idem, á porta do F.)
Querem vêr que…—Ora… um filho segundo!
D. MARIA JOANNA e GONÇALO
D. MARIA JOANNA (que tem ido sentar se na cadeira junto ao bufete, acompanhada de Gonçalo, que fica de pé)
Não está cançado, sr. Gonçalo Mendo?
De quê?
Estou eu… creio que estou.
Com um mez de jornadas!…
Não é das jornadas.
Será dos companheiros?
Será.—Continuemos a conversar em quanto elles não veem, os companheiros.
A respeito de quê?
Do que lhe parecer.
Sem restricção?
D. MARIA JOANNA (indicando)
Agora temos luzes.—Diga-me alguma coisa de Lisboa. Hade estar informado.
Sahi de lá ha quinze dias, e volto antes de oito. Vim á provincia em commissão apenas. Estou ás ordens do conde de Aveiras.
D. MARIA JOANNA (distrahidamente)
Que se faz? que se diz?
GONÇALO (encostando-se-lhe ao espaldar da cadeira)
Hade-se dizer em breve que possue Lisboa a perola das formosas e discretas… que já Paris admirava, e agora fica invejando.
Cumprimentos!
Bem sei que a enfadam já por continuados.—Cumprimentos não, prophecias.
É moço para propheta… e ninguem o é na sua terra.
O que se faz?… Deixe-me vêr… (como recordando-se) Não se faz nada.
Pois nada?
O mesmo sempre.—A rainha, minha sr.^a, vae a Salvaterra, e sae ás suas devoções. De tempos em tempos opera em Queluz. Fóra d'isso a nau de viagem de anno a anno, e… e acabou-se. É assim depois que morreu o marquez de Pombal. Ao principio ainda se entretinham em ter medo d'elle, mesmo depois de desterrado. Agora até essa distracção falta.
Ai! sr. Gonçalo Mendo, desculpe. Está ali uma cadeira convidando-o… e ahi um logar a esperal-o. (Indica o lado opposto do bufete. Gonçalo vae buscar a cadeira, e senta-se no ponto designado.) Não lhe parece que estaremos melhor?—São ainda moda os abadeçados?
Uma vez por outra. Agora estão em voga as assembléas.—Como lhe hade parecer tudo isto semsabor!
D. MARIA JOANNA (sériamente)
Engana-se. Sempre são ares nossos. Não sabe que me trazem saudades?
GONÇALO (com intenção)
De…?
D. MARIA JOANNA (accentuando)
Da patria.
E sentimento digno de tal dama. Mas depois sempre se hade lembrar d'esse
Paris, que era já tão seu.
O Paris que viu ha dois annos vae de dia para dia degenerando… Os requebros são curtidos em philosophia… as canções tem um sabor de finanças… Que distracção para damas!…
Amortalharam então a galanteria franceza com a Dubarry?
Que está dizendo! Seria leval-a de caixão á cova. A galanteria sobrevive; mas agora tem por figurino a sensibilidade… e anda de braço dado com uma coisa nova, que veiu ha pouco de Inglaterra, e que se chama… (recordando-se) chama-se?… (occorrendo-lhe) philantropia. Sabe o que é?
Um nome que trescalla a grego. Hade sabel-o o commendador.—Acredita na sensibilidade de figurino?
Não; nem na philantropia de apparato.
N'isso se occupam agora os francezes!… Substituiram isso aos madrigaes?… Pois não ganharam na troca. Estou tentado a preferir-lhes as nossas formalidades ronceiras… a nossa rustiquez e lhaneza… Por fim de contas, são coisas de casa… e muito de bom tem algumas.
Prefiro-as eu. Por isso vim.
E bem haja que veiu! (admirando-a) Vem, ainda mais formosa do que era ha dois annos, quando fui levar officios de gabinete á embaixada de Paris… Lembra-se?
Tinha-se levantado o cerco de Gibraltar!
Só isso lhe lembra?… Vem prendada de todos os primores do espirito, de todas as graças da beleza, e não consente…
D. MARIA JOANNA (detendo-lhe a palavra com o gesto)
Escute! Cuidei que era já o commendador… Quer ver se o commendador com effeito achou o quarto?…
GONÇALO (Ergue-se vivamente. Pausa. Contemplando-a.)
É cruel! (Nova pausa. Com visivel despeito.) Vou procurar o commendador. (Encaminha-se á D.)
D. MARIA JOANNA (levantando-se como por effeito de reflexão)
Não. Espere. O commendador era capaz de pensar que não posso passar cinco minutos sem a sua presença.
GONÇALO (voltando esperançado)
Dispensa-a então… por óra?
Por mais um instante. (Vae sentar-se no canapé.)
GONÇALO (defronte, de costas para o bufete, fitando-a)
Porque me obriga a dissimular commigo mesmo? Porque me força a estes colloquios frivolos? É isto para nós? Não sabe que só a bocca lhe responde, porque tenho a alma e o sentido n'outra coisa?
D. MARIA JOANNA (depois de pausa)
Tem razão. É-lhe absolutamente indispensavel fallar-me do que já me disse ha dois annos em Paris? Pois fallemos… Fallemos.—Dei-lhe então esperanças?
Nenhumas, é verdade.
Dei-as a alguem?
Rodeam-n'a as homenagens como a soberana… é agradavel. Sorri a todos… mas fica a todos insensivel… tambem sei!
Insensivel!… Uma pedra, porque não?… Um gelo dos Alpes, vamos… Diga, diga… Se não o diz, pensa-o.—Somos insensiveis para estes senhores, nós outras, quando não nos declaramos humildemente rendidas apenas se dignam dar-nos um signal de preferencia… Nascemos para seu desenfado… «Sorri a todos»!… Vejam! Uma causa crime, completa só n'esta phrase: «sorri a todos»! Olhem o attentado! Queriam que chorassemos sempre? Queriam que os chorassemos!… E quando choramos… Nem eu digo!—Sentenciado a pena ultima, o nosso sorriso. Sentenciado porquê?… Não sabem que nas mulheres o sorriso anda perto das lagrimas!… Deixem-nos ao menos esse raio de luz entre chuveiros… como o sol de inverno.
Poderia responder-lhe que mais commodo do que ter amor é deixar-se amar… Mas não digo… não me queixo… nada peço. Está na sua mão não preferir ninguem?… Não o está impedir que lhe queiram… mesmo sem esperança. Porque não serei eu d'esses?
O sr. Gonçalo Mendo!…—Sente-se ahi. Vamos, sente-se. Quero confessal-o.
E dá-me a penitencia antecipada!
Verei depois a que merece… segundo o arrependimento.
GONÇALO (com esperança, fazendo menção de ajoelhar)
As culpas dizem-se de joelhos.
D. MARIA JOANNA (vivamente)
Sente-se. Os culpados começam por obedecer. Isso. Vamos a saber: (solemnemente) é verdade que por occasião da sua ida a Paris desafiou em Versailles um capitão dos guardas francezes, e o deixou tres mezes de cama com uma estocada?
É verdade. Foi para lhe provar que as parisienses não eram as primeiras entre todas as damas, como elle pertendia.
E porque não seriam?
Tinha cá as minhas razões.
Boas razões haviam de ser. Como se estiveramos ainda no tempo dos
Magriços!
Os Magriços em Portugal são de todos os tempos.
É verdade que o anno passado, quando se festejou o casamento do sr. infante D. João com a sr.^a infanta D. Carlota, n'uma corrida de touros no paço da Murteira, saiu ao terreiro de espada na mão, e a pé, sem mais capa nem defesa, chamou a si o animal furioso, e matou-o de um golpe, só para que elle não pozesse os pés n'um lenço, que da varanda havia caido a uma dama?
É verdade. A dama tinha sessenta annos.
D. MARIA JOANNA (incredula e motejando)
Sessenta annos!
Mas chamava-se D. Mencia Jorge, e o lenço tinha bordado um M e um J… as suas iniciaes.
D. MARIA JOANNA (lisonjeada)
Ah! (Pausa.) Mais…
Mais ainda? Devo agradecer a curiosidade, que se informou… ou a informou… com tanta miudeza a meu respeito?
Deve responder.—É verdade que um dia, amotinando-se o regimento de Meklemburgo… servia então lá… o tenente-coronel… um allemão, creio… ficou só, ameaçado dos soldados enfurecidos? É verdade que unicamente um alferes se atreveu a collocar-se ao lado do commandante, com tal resolução e bizarria, que o exemplo envergonhou os sublevados, e a firmeza do official salvou a vida ao tenente-coronel?
É verdade. O alferes cumpriu o seu dever, nada mais.
Mas dizem que n'esse dever lhe serviram de estimulo os olhos azues da irmã do tenente-coronel. Será assim?
É. Foi. Ha quantos annos?
Eu sei!…
Ha seis. (a D Maria Joanna.) Não a conhecia ainda.
Ahi está… «Não a conhecia ainda!» O estribilho costumado. É como todos.
Pouco mais ou menos. Se imagina uma especie differente… Sou um simples mortal, confesso humildemente.
É… é todo verduras e temeridades… Por uns olhos affrontar um regimento!… Por uma palavra provocar os melhores espadas de França!… Por um lenço arriscar-se a ficar nas armas de uma fera!… Póde lá dispôr da sua mão, um homem assim?… Para trazer sempre a mulher em vesperas de viuvez!
GONÇALO (encantado)
Oh! se isso fosse uma esperança!
Deus me defenda.—Quando me começavam a florir os annos, casaram-me com um homem… que já ia desfolhando os seus. Deixei patria e familia aos dezoito. Achei-me viuva aos vinte. Acolhendo-me a casa de minha prima, na nossa embaixada em Paris, senti sinceramente a falta do companheiro e protector. Mas d'esta alliança… da primavera com o inverno… podem ter-me ficado memorias que me façam desejar novo captiveiro?
Não o captiveiro, mas a compensação.
Quem m'a assegura?
Quem? A constancia.
Que diria a isso a allemã?
Ama-se devéras uma só vez. Quer-me crer? Amo-a assim eu. Digo-lh'o singelamente, chãmente, cá de dentro, á moda da minha provincia, como um verdadeiro transmontano…. Deixe-me desabafar. Esta vez, e acabou-se.—Não sei que pense, não sei se espere… Unicamente sei que não posso deixar de…
Ia repetir.
Tem razão. Para quê?
Interrompe a confissão?
Visto que me não absolve… (interrogando D. Maria com os olhos; silencio d'esta.) Vou ter com o commendador.
D. MARIA JOANNA (que deitára os olhos para dentro debruçando-se no canapè)
Não é preciso; elle ahi vem.
OS DITOS e o COMMENDADOR
Então achou?
Está remediado. Não é um boudoir, como lá diziamos em França, mas póde passar. Eu mesmo ajudei a pôr tudo em ordem.
O sr. Gonçalo Mendo permitte?
GONÇALO (inclinando-se)
Minha senhora!
Escuso dizer-lhe que ceia comnosco… Desculpa de certo o incommodo que lhe tenho dado, e preciso agradecer-lhe a companhia que me tem feito. (ao commendador) Ha luzes no corredor?
COMMENDADOR (galanteando)
Tudo prevenido, como quem sabe o que n'estes pontos convém. Marcial, que tão bem conheceu os gyneceus de Roma, dá a respeito dos adornos femininos informações preciosas.—Acompanho-a?
D. MARIA JOANNA (relanceando os olhos a Gonçalo)
Obrigada. (ao commendador) Quer ir ver se descarregaram as bagagens, e mandar-me ao quarto as minhas malas?
GONÇALO (vendo o commendador hesitar)
Aproveito a occasião para fazer accommodar as ordenanças.
(Gonçalo dirige-se ao fundo. D. Maria Joanna á D. O morgado apparece á porta d'entrada do F.)
OS DITOS e o MORGADO
MORGADO (ainda fóra da porta, mas á vista do espectador, como reparando e fallando para dentro)
Levantem o animal… Puxa-lhe a arreata, Jacintho… Tirem-lhe o resto da carga… Fortes alarves!… (Entra.)
D. MARIA JOANNA (que parou á porta da D.)
Que mais temos, sr. morgado?
Deixaram deitar-se a azemola… Um instante que eu falte!… Mas não tem duvida já… Arrecadaram-se os comestiveis. (voltando ao F. a observar) Lá está a mula a espojar-se… Levantem-n'a, levantem-n'a.
Commendador, as minhas malas! Acuda ás minhas malas! Cá as vou esperar, e não tardo. (Sae pela D.)
OS DITOS menos D. MARIA JOANNA
COMMENDADOR (ao morgado)
Sr. morgado, as malas?
MORGADO (a Gonçalo)
Sr. tenente, as malas?
Cada qual no seu officio! (Sae.)
OS DITOS menos GONÇALO
Então, commendador, as malas da prima. Eu não posso servir para tudo!
COMMENDADOR (tomando o seu partido)
Bem dizia Socrates, atheniense, «que a mulher é como o altar»: nunca está bastante ornada (para sahir) E com razão a definia o famoso Julio Cesar Scaligero, de Verona… (Sae.)
MORGADO (seguindo-o)
Muito melhor canta o nosso rifão «com a mulher e o dinheiro, não zombes companheiro.»
MORGADO só (voltando)
Bem te percebo, meu feixe de maximas velhas e sentenças occas!… Bom signal é que de mim te receies… Pressentes que te foge a presa… E não ha 48 horas ainda!… O que fará d'aqui a dias… Pudéra! similhante deposito de latins e de catarros, ao pé d'um homem da minha tempera, moço ainda, bem posto, prendado e cavalleiro!… (esfregando as mãos) Está certa, Bartholomeu Tojo, morgado da Gésteira… está caida. Pódes ir encommendando sege á boleia… Sege de côrte e sege de campo!… A fallar a verdade vem a tempo… era tempo. Iam-se já os últimos torrões! (esfregando as mãos) O que é ter artes e astucias!…
MORGADO e ZÉ DA MOITA
ZÉ (deitando a cabeça pela porta da E. em voz baixa e cauteloso)
Sr. morgado… Pschiu!… eh! sr. morgado!
MORGADO (assustado)
Que é? (voltando-se e dando por elle) Tu, homen! (inquieto) Que queres?
Zé (entrando)
Está só?
Não vês? Vae-te, que póde vir gente. Como vieste aqui parar?
Ê sê as trilhas de cór e salteado. Vinha em sua précura.
Porquê? Para quê?
Ê que lá a rapaziada está levada de quantos démos ha. O Manuel da Brazia, o Domingos Picanço, o Chico d'Alter, o João Gallego, o Timotheo d'Alcaraviça… aquillo é todos á uma.
Deixou-se apanhar algum?
Q'al! Bem alma tinham para isso os cavallarias, que não sabem caminho nem carrêra. A gente mettemo-nos pelo azinhal dentro… pés para que te quero… Fossem lá pôr mais a vista em cima a nenhum. D'ali a um credo estava tudo junto no barranco de baixo, ao fundo da Fonte da Fornalha, ahi ao pé da azinhaga da herdade.
MORGADO (inquieto)
Pois sim, mas que me queres?
Como eu é que les fallê por conta do sr. morgado…
Avia-te. Não te dei já o que ajustámos? Quantos eram?
Eram sete… commigo oito.
Dei-te uma moeda. Um cruzado novo para cada um, e dois para ti. O resto para beberem.
Ai! senhor!… Se os ouvisse!
Não estão contentes?
Contentes! Ficaram derramados!… Andam na mente que os enganê… que não era uma brincadêra, como o sr. morgado me disse… que foi uma fidalga que nós fizemos cara de assaltar na estrada… que dá brado o caso e que se mettem n'isso as justiças… que o sr. morgado o que queria era fazer de pimpão sem perigo, á custa dos rapazes… que pódem ficar agora todos mettidos em trabalhos… e que torna e que deixa… Ih! Jesus!… um dia de juizo!
Por esta não esperava eu!
P'ra mais ajuda, um dos criados foi-se direito a Vayamonte, e achou lá o sr. juiz ouvidor com uma escolta do regimento de Setubal… Contou-le tudo pelos modos… e os rapazes dizem que o melhor é ir pedir perdão, porque a final elles não teem culpa, e o sr. morgado ha-de contar a verdade.
MORGADO (atterrado)
Pelo amor de Deus, homem. Vae ter com elles… Anda, depressa, vae. (comsigo) Que não diria minha prima!… (a Zé) Para que haviam de fazer tal? Ninguem os conheceu.
Pois sim! Não ha quem os accommode. Como pesquê que os senhores tinham botado para aqui, lá assoceguê a gente dizendo-le que esperassem todos um nada, que vinha fallar com o sr. morgado.
Mas se te veem aqui!…
Não tem duveda. Ê conheço o feitor, e já fui guarda cá da casa. O Timotheo d'Alcaraviça é que está mais perro. Tem lá a sua aquella que ninguem le põe o pé adiante, (elevando a voz) e como o sr. morgado quiz assim fazer pouco da rapaziada…
MORGADO (afflicto)
Mais baixo. Que precisão tens tu de gritar?
Bem sê que não era a valer… Se fosse… ai… se fosse!… Mas um home é um home, e…
MORGADO (inquieto)
Está bom, está bom… Se lhes désse mais?…
ZÉ (coçando a orelha)
Ê sê!… tão bravos como estão!… Talvez se accommodassem pedindo eu… talvez.—Mais quanto?
MORGADO (com esforço)
Uma peça.
Uma peça! Quanto faz uma peça?
MORGADO (ponderando)
Quinze cruzados novos menos oito tostões.
Quinze?… (comsigo, contando pelos dedos) menos… (resolutamente)
Tem-n'a ahi?…
MORGADO (mostrando-lh'a)
Aqui está.
ZÉ (fazendo-lhe cara)
Em oiro?
Se não tenho troco!
Tem a gente de ir trocal-a a Evora, que lá na villa, se nos vêem com isto, são capazes de pegar logo a desconfiar…
MORGADO (perdendo a cabeça)
Então como ha de ser?
ZÉ (tocando-lhe familiarmente com o cotovelo)
Ó sr. morgado, a fidalga tem uns olhos!… Ella sempre vale as duas loiras! (elevando a voz) Se vem a saber que foi tudo fingido… hein?…
Cala-te! (fitando-o) Com que então… (comsigo.) A final o assaltado sou eu. (Alto) Aqui tens duas peças. (Dá-lhe as duas.)
ZÉ (respeitosamente)
Não manda mais nada o sr. morgado?
A casa do feitor é para esse lado. Olha não te encontre.
É o mesmo. Não desconfia, já le disse. Até mais ver! (sae)
Vae com Deus! (depois de o vêr sair) Os demonios te levem, tratante!
ZÉ (tornando a deitar a cabeça)
Chamou?
MORGADO (impaciente)
Vae com Deus! vae com Deus! (Zé sae definitivamente.)
Que tal é a lição! O susto que me pregaram os cavallarias… cuidar que andava tudo por ahi cheio de salteadores deveras… e ainda mais esta!… Calam-se, agora calam-se: é o seu interesse… O que o desalmado quiz foi… E gabem-me a singeleza dos rusticos!… Tomára que succedesse uma d'estas aos srs. poetas de Lisboa, que não fazem senão deitar lôas á innocencia pastoril… Que remedio! O que lá vae lá vae… E foram-se as peças!… E o que não rirão á minha custa, os malandrins, quando as beberem!…—Por fim de contas vale a pena… Se vale… Vale a pena de tudo…
MORGADO, e LUIZ MANUEL (da E)
MORGADO (vendo-o)
Outro!… (reparando) Um retrato do tempo d'el-rei D. Pedro!… (conhecendo-o) Ai! o Luiz Manuel.
LUIZ MANUEL (Trajo do tempo de D. João V, tristeza profunda, sisudez inalteravel.)
Bem vindo seja á casa da Torre da Palma, o sr. morgado da Gesteira. Que estava aqui me disse um guarda do monte, que topei agora como nos tornavamos do terço. Já não è isto o que era, porque a sr.^a morgada… «gota a gota o mar se esgota», e quem em maio relva, fica sem pão nem herva.» Mas… ella é senhora do que é seu!… E eu venho só a dizer a Sua Mercê que, se bem «onde senhores empobrecem, criados padecem», tudo o que ha na casa e na quintan está ás ordens do sr. morgado, e mais da fidalga companhia que traz, a julgar pelo arruido que por ahi vae.
Boa companhia trago com efeito. Como no tempo do sr. capitão-mór!
Como no tempo do sr. capitão-mór, que Deus haja!… Isso já lá vae, e não volta… Não volta… Nem conhecia o sr. morgado, se me não avisam… Que annos ha! E como assim nos enterramos n'este ermo!… Tanto faz. Como o outro que diz: «ainda que nos não fallemos, bem nos queremos.»—O sr. morgado precisa alguma coisa?
Já por ahi procurámos e dispozemos do que encontrámos… São ainda necessarias roupas, talheres…
Ha de apparecer tudo… Tudo?… tudo o que resta. Fizeram bem em se ir logo servindo… Haviam de achar as chaves nas portas… Era o costume antigo, bem sabe.
Achámos. Extranhei até… Estando aqui sós…
Não tem perigo. Pouco ha já que fechar e arrecadar. Vasios quasi, os taleigos que andavam de cogulo… a bem dizer no fundo, as arcas d'antes a arrebentar de fartas. Não será como então, que melhor se podia dizer: «em casa cheia depressa se faz a ceia.» Mas o que ha, o que houver… É a vontade da sr.^a morgada… decerto ha de ser. Com ir ahi tudo por agua baixo… que nem sei já se virei a cerrar os olhos n'esta casa onde nasci… ella a final sempre é quem é… (como para atravessar para a D.) Vou dar ordem a… (parando de repente e com tom consternado.) Queria, sr. morgado, mas não posso… Queria pôr a alma e a vida no que me cumpre, já que a Torre da Palma está sem amos… Eu bem conheço que «hospedes em casa dia santo é»… mas… mas… Estou velho, faltam-me as forças! «Uma coisa se deseja e outra é bem que seja.»
Tem alguma coisa, Luiz Manuel?
Eu não, sr. morgado. É a minha Simôa… Isto de viver assim vinte annos juntos, deita raizes cá dentro!…
Pois… que lhe succedeu?
Mal acabou o terço, a minha Simôa foi á sacristia buscar um papel, que pelos modos tinha encommendado ao nosso padre cura do Vayamonte… Eu estava á porta á espera… Mal vinha a sair, entra-me a tremer, a tremer toda, a torcer-se como um vime, e a revirar os olhos, e a sumir-se-lhe a falla, e sem se poder ter!… Aquillo não é senão olhado que lhe deram!… Foi preciso trazel-a em braços, e lá ficou em baixo na cama… (lembrando-se de subito) Ai! Jesus! esta cabeça como está com tanta coisa de repente!… Então não me esquecia?… Quando o moço passou por nós, e nos advertiu que estava cá o sr. morgado da Gesteira, tornou assim mais a si a minha Simôa, e disse… (como recordando) Queira Deus que me lembre… Foi isto: «É parente da sr.^a morgada… pede-lhe que venha ver-me, pede-lhe Luiz… Tral-o hoje aqui a Providencia!» Foi isto, foi!
E não m'o dizia? Vamos já. (comsigo) Porque será?
Pois o sr. morgado quer?… Aquillo é tresvario do mal!
Sua mulher assim!… Vamos. (comsigo.) Para que será?
Como o outro que diz: «o pequeno mal espanta, o grande amansa.» Deixei gente com ella. A obrigação primeiro. E a obrigação era…
Dispenso-o eu d'ella… Vamos, vamos. Depois se tratará do mais.
Agora é o sr. morgado quem manda. (Sae. O morgado vae a seguil-o, entra Gonçalo e Bocage.)
GONÇALO (da porta)
Sr. morgado.
MORGADO (saindo vivamente)
Já volto. Volto já!
GONÇALO, e BOGAGE
Quem é?
Uma singularidade, emparelhada com outra que hade ver logo.—Não o esperava aqui, sr. Bocage. Vem mesmo por ordem do Ouvidor?
Mesmo por ordem do Ouvidor. Faz trez semanas que me aquartelei em Monforte, n'um destacamento do meu regimento. Esta manhã o sr. Juiz Ouvidor de Villa Viçosa, que está em correição na villa, saiu a Vayamonte, e trouxe comsigo uma escolta em que eu vim. Ha pouco chega lá um homem todo esboforido… Um criado ouvi que era… D'ahi a um instante o sr. Ouvidor manda-me chamar em pessoa, e envia-me com quatro soldados aqui, para proteger não sei que fidalga que vem de jornada… O encargo póde ser lisongeiro, mas confesso que o dava a todos os demonios quando deitei por esses fraguedos abaixo. Agora, encontrando-o, meu tenente, dou-me por pago de tudo… Informei-me, e disseram-me que se tinham recolhido n'esta casa os viajantes. (reparando) Que casa santo Deus!… Dá-me ares de ter escapado ao diluvio… Pois a mobilia!… Da arca de Noé a trouxeram para aqui, certamente!… E aquelle canapé… Que canapé!… Um canapé? Um monumento!…
«Quando a velha antiguidade
Dentro n'esta sala entrou,
Disse áquelle canapé:
Sua benção, meu avô!»
Bravo, sr. Bocage. Não se lhe estanca a veia por estes desertos do
Alemtejo. O mesmo sempre!
O mesmo diz? Estou a ponto de cair em melancolia… britanica. Mulher que se alberga n'uma habitação d'estas é por força como ella. Uma mumia, não? Uma curiosidade archeologica… uma contemporanea das pyramides… Não me diga quantos annos tem.
Vinte e tres annos, viuva, todos os dotes do espirito, todas as graças da formosura, todos os primores de duas côrtes.
Tudo isso! Aqui?… Aqui!…
De passagem.
Não diga mais, meu tenente. Quer-me fazer apaixonar, ou está já apaixonado.
Isso estão quantos a vêem.
Severa ou jovial?
Um porte que infunde respeito, uma afabilidade esmaltada de sorrisos.
Não ha temeridade que se lhe atreva, nem isenção que lhe resista.
Esse enthusiasmo faz-me tremer! Uma perfeição!
Um enigma.
Enigma ou mulher, o mesmo é.
GONÇALO (olhando para dentro)
Eil-a!
O enigma.
A perfeição.
OS DITOS, D. MARIA JOANNA e o COMMENDADOR
Se dá licença, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão, apresento-lhe o sr. Manuel Maria Barbosa de Bocage, cadete do regimento de Setubal, que lhe traz recado do sr. Juiz Ouvidor de Villa Viçosa.
O sr. Juiz Ouvidor teve noticia de nós, e digna-se pensar em mim!
Dever é de todo o homem proteger as damas. Mais ainda quando o homem é magistrado. Mais ainda quando as damas são de tal qualidade.—Por sua ordem e em seu nome venho. Infelizmente não chego a tempo de ser util.
Se não é já necessario auxilio, o sr. cadete vem sempre a tempo de receber os meus agradecimentos, e os do sr. commendador de Monsarás… (Os homens inclinam-se, cumprimentando-se) que me acompanha… para os transmittir á estremada cortezia do sr. Juiz Ouvidor.—Está aqui ha muito?
Ha um instante. Os meus soldados esperam as ordens de v. s.^a
Soldados! Mais? Temos uma guarnição completa. Coitados! Mande-os descançar.
Estão já descançando.
N'esse caso, o sr. cadete demora-se tambem.
BOCAGE (inclinando-se)
Mandaram-me ficar ás ordens! (baixo, a Gonçalo.) Tinha rasão.
Gentilissima!
GONÇALO (a Bocage, do mesmo modo)
Inflammado já? (alto.) Apresentei-lhe o militar, permitta-me agora que lhe apresente o poeta… O sr. Bocage é conhecido, e já apreciado, pelo seu estro brilhante… um estro que se revelou desde a infancia… Nem só em França se frequenta o Parnaso. Aqui tem um moço que nasceu poeta.
Como outros nascem vesgos ou tartamudos.—Talvez seja assim, se a amizade do sr. tenente o não cega, ou me não favorece… mas talvez tambem a segunda apresentação prejudique a primeira.
Porque? As armas e as musas não são inimigas, que eu saiba.
Horacio esteve na batalha de Philipes, o Suetonio foi escriptor e guerreiro! Ainda que Pittaco, um dos sete sabios da Grecia, dizia «os validos de Marte são a injustiça e a violencia» não deixou o grande Plutarcho de escrever «que os Lacedemonios pintavam Pallas armada» posto serem uma só Pallas e Minerva.
BOCAGE (contemplando-o abysmado, a Gonçalo em voz baixa)
Este quem é?
GONÇALO (idem)
A outra singularidade!
Que pena ter estudado! Forte asno se perdeu ali!
«N'uma das mãos a pena, n'outra a espada,» diz, creio eu, o nosso
Camões, poeta e soldado tambem.
Ahi está um tambem capaz de inventar orgulho no mais modesto… se o não tomasse á conta de exageração obsequiosa. (a Gonçalo, baixo) Venus, disfarçada em viajante!
Exageração! Em que? Por ler vivido fóra da patria não lhe desaprendi a lingua, nem lhe desestimo as glorias.
BOCAGE (lisongeado)
D'essas glorias não participo eu, como obscuro ainda.
Não tanto, sr. Bocage!
Ainda? Não ha n'essa palavra a consciencia do que é? a confiança no que será? As musas não deixam muito tempo sem gloria os seus predilectos.
Sabe se sou d'esses?
Adivinho-o. Deixa-me vaticinar-lh'o?
BOCAGE (com enthusiasmo)
Bastaria o vaticinio para inflammar o estro.
Deveria provar-me que tenho razão. Em França estima-se a poesia, e eu venho sequiosa da nossa. Era dar-me as boas vindas.
Ninguem melhor do que o sr. Bocage. É não só poeta, mas improvisador.
Como em Italia.
Ainda ha pouco…
BOCAGE (atalhando-o)
Por quem é! (a D. Maria Joanna) Vem de França, v. s.^a?
De Paris.
Francez era meu avô; com as musas francezas me creou minha mãe… Somos quasi conhecidos.
Bocage!… Não me é novo o appellido. Não tem em França parentes?
Tenho. Uma segunda tia materna… Bocage tambem por seu marido.
Já sei. A sr.^a D. Marianna, auctora do poema da Columbiada… coroada ha annos em Ferney pelas proprias mãos de Voltaire… E queixa-se de lhe faltar a gloria!
Agora não me queixo. Ainda que não seja minha essa gloria, é meu o proveito d'ella.
COMENDADOR (que tem disfarçado alguns signaes d'impaciencia, murmurando comsigo)
Coroada por Voltaire!… Boa prenda hade ser!…
BOCAGE (que não ouviu bem, mas que lhe notou o gesto, a Gonçalo)
Antipathiso formalmente com a singularidade!
A poesia é hereditaria nos seus, já vejo.
De ambos os lados. Seu pae o dr. José Luiz Soares de Barbosa adorna a toga com a lyra, e é um dos discipulos mais estimados de Souto-Mayor.
BOCAGE (sorrindo)
É doença de familia, não o nego. Doença chronica, e por isso incuravel.
Em França diz-se: noblesse oblige. A poesia, que é nobreza tambem, está a obrigal-o.
BOCAGE (exaltando-se progressivamente)
A poesia… A poesia é a lingua dos deuses, e a historia do mundo. É o raio omnipotente de Jupiter, e o carro fulgurante de Apollo. N'ella, em todos os tempos, teem cantado os homens as suas alegrias, teem chorado as suas dores, teem perpetuado os seus feitos, teem immortalisado as suas catastrophes. N'ella começou a balbuciar a humanidade; n'ella fundou os monumentos que desafiam os seculos. A poesia é a expressão do que ha mais intimo no coração e mais celestial no pensamento; é magnificencia e harmonia; é arrebatamento e seducção; esplendor pela fórma, delicia pelo som. É resumo de quantas artes levantam o homem ao Olympo; sentimento para a alma, idéa para o espirito, imagem para os olhos, musica para o ouvido, enlevo para todos os sentidos! Seria a poesia a unica lingua digna de saudal-a, minha senhora, se a mais completa poesia não fosse a propria formosura. (recrescendo) Deve ser a poesia…
COMMENDADOR (que durante esta falla passeou ao F. indo á janella)
Não quer que lhe feche esta janella, sr.^a D. Maria Joanna? Estão frias as noites, e o ar por aqui traspassa. Dos ares montesinhos, diz o insigne Columella…
D. MARIA JOANNA (atalhando-o impaciente e reprehensiva)
Commendador!
(O commendador approxima-se tirando a caixa de rapé.)
BOCAGE (reprimindo um gesto furioso e como continuando)
Mas a poesia, como dama, tem os seus dias, tem os seus momentos, tem os seus caprichos. É rainha, e não serva. Impéra, não obedece. Se vae arremessada no vôo, se a fazem colher as azas e baixar á terra (fitando o commendador)… para tropeçar na impudencia, ou no ridiculo… faz-se allegoria, faz-se apologo; é epigramma, é satyra; fustiga, flagella, punge, dilacera, fulmina… e segue, a sorrir desdenhosa, deixando atascada no seu lodaçal immundo a sandice enfatuada e grosseira!…
COMMENDADOR (sorrindo dubiamente e saboreando a pitada)
Hypotypóse arrojada! Já Democrito, philosopho da Thracia, dizia… o que quer que seja similhante… ao divino Hypocrates, natural da ilha de Cós! (Bocage vae para replicar arrebatado. Entra o morgado.)
OS DITOS e o MORGADO
MORGADO (com um papel na mão, que esconde apenas vê os que estão em scena)
Grande novidade, prima! Grande novidade!
GONÇALO (que observou tudo)
Diversão a tempo.
D. MARIA JOANNA (ao morgado)
Como as do costume?
A mulher do Luiz Manuel que está muito mal! Perdeu já a falla.
Tão mal a pobre Simôa!… Commendador, sr. Gonçalo Mendo, venham, venham.
Póde ir logo, prima. A sua refeição hade estar prompta!
Quando me diz que temos ahi uma creatura em perigo! Enlouqueceu? (aos outros) Vamos… (como lembrando-se, e detendo-se) Sr. cadete… qualquer dos seus soldados póde ir buscar o cirurgião á villa.
Que monte a cavallo um dos dragões: irá mais depressa.
Vamos, venham. (Sae, e o commendador pela E.)
BOCAGE (baixo, apressado e a Gonçalo.)
Uma nympha! uma deusa! Estou doido por ella. Tem só um defeito…
GONÇALO (indicando o commendador)
A singularidade?
A asnidade, digo eu. (Sae pelo F.—Gonçalo segue D. Maria Joanna).
MORGADO só, pouco depois o COMMENDADOR
MORGADO (vendo-os sair, desconfiado)
Um cadete agora! É o quartel general aqui… (olhando em redor) Tardava-me já ver-me só… (tirando o papel e examinando-o) Fechado!… sem direcção!… E com que ancia e mysterio a Simôa me segredou… «isto á sr.^a morgada… sem falta!…» Que pena perder os sentidos!… Que será? Pois que não tem direcção… (lançando novamente os olhos em redor) facil é sabel-o. (Abre, lê attentamente, e acaba com um grito de admiração) Oh!… (passeiando e meditando) Quem tal havia de dizer? (pára como resolvendo de repente) Não ha que pensar… Agora posso ir encommendando a sege… (assoma á porta da E. o commendador, sem que o morgado o presinta) Com um segredo d'estes!…
Que segredo, sr. morgado?
MORGADO (sobresaltado, e guardando apressadamente o papel)
Segredo!… (serenando, ironicamente) Um segredo meu, sr. commendador.
COMMENDADOR (com o habitual sorriso entre fatuo e maligno)
Segredos, só debaixo da terra… como faziam os romanos!
(Cae o panno)
Ao fundo a frente e esquina d'um quarteirão da rua Augusta, tomadas da extremidade de uma travessa, cujos edificios estão ainda em obras. Janellas praticaveis em dois andares. A entrada do predio pela travessa.—Renques de marcos de pedra guarnecendo os passeios.—Toldo cubrindo a rua.—As janellas, ornadas de armações de damasco, e preparadas para illuminação. Cubertores de seda e colxas da India nos parapeitos.—O chão areiado; espadanas e murta. Faltam ainda os lampiões.
Fins da tarde. Pouca animação. Alguns transeuntes apenas.
BOCAGE (á paizana, encostado á esquina da direita, com os olhos n'uma das janellas da rua Augusta.)—COMPADRE THEOTONIO e COMPADRE AMANCIO (que veem de lados oppostos.)
(Durante esta scena e a seguinte, BOCAGE dá algumas voltas, apparecendo e desapparecendo, mas sempre tornando ao mesmo logar e á mesma observação.)
COMPADRE AMANCIO (topando-se com o outro)
Aonde vae com tanta pressa, compadre Theotonio!
Ao presepio da Mouraria. Quero ver se apanho ainda o Manuel Gonçalves da Ribeira das Naus.
Trabalha hoje com os arames?
Entra no fim. Porquê? Não vou a tempo?
Se vae! O Manuel Gonçalves tem sua graça… principalmente na scena do diluvio, quando se queixa que perdeu o pente de derrubar.
Pois quando ardem as estopadas! As pulhas que elle deita aos demonios!… Tem pilhas de graça!—Deixe-me ir que se faz tarde, e já agora a de seis está destinada (partindo).
COMPADRE AMANCIO (detendo-o)
Que eu, cá para mim, como o Tortinho da Sé, apesar de velho, é que não ha… Nem o Antonio Antunes, do Bairro-Alto. Saca as palavras assim com um tremor do buxo, o maldito, que é a gente espojar-se!—Deus o leve, compadre. Até á noite na loja.
Não fecha hoje?
Lá mais tarde. É dia de muito freguez de fóra, não tem mãos a medir os rapazes, e para alguma barba, assim mais tal, preciso servir eu. Bem sabe a roda que tenho.—Chego alli abaixo á Arcada, a comprar os Autos da Maria Parda para o serão das pequenas, e volto já.
Vá com Deus, compadre Amancio, e até logo. (Separam-se e sahem, compadre Theotonio para a E., compadre Amancio para a D.—Entram logo tia Paschoa, e tia Vicencia vindo juntas da E.)
TIA PASCHOA, TIA VIGENCIA e BOCAGE
Ih! Jesus, Deus Menino! Ainda por aqui arrastadinha, tia Paschoa! O seu homem ainda no Limoeiro! Quer creia, quer não, estava de pedra e cal que se tinha ja livrado. Uma pessoa estabelecida! com loja aberta!…
E mestre d'officio!… Um mestre de torno, que ninguem lhe leva as tampas!… É isto, que vê, tia Vicencia… Debaixo dos pés se levantam os trabalhos… Que a culpa não é d'elle…
Isso sempre eu disse… Pobre homem!… Não fui logo lá quando sube, porque da rua dos Remedios á Esperança sempre é um estirão. Aquillo com a labotação do padejo, é vir uns dias por outros ao Terreiro, e não ha tempo para mais.
Pois eu não sei!—Tudo intrigas do Alcaide!
Sim? Ora vejam! E então como foi?
O Alcaide tem uma sobrinha na rua do Lambaz… Sobrinha, vamos… sobrinha ou o que quer que é, que se eu tivesse má lingua…
Sim, sim, não sabe a gente o que são sobrinhas d'essas!… Que mundo, ai! que mundo, tia Paschoa!
Uma sobrinha toda peralta!… Sempre como em dia de cirio ou de festa!… Quer na rua, quer em easa, capotilho de durante e bajú de escumilha, um palmito mesmo!… Sobrinha, pois não!… Vá que fosse sobrinha… Estava a ir-nos todos os dias à loja, que até já eu não andava contente, Deus me perdôe… Tudo era encommendar continhas, botõesinhos, coquilhos, cabos de chapeus… um nunca acabar. Mas coisa de pagar, qual! Tanto encommendou, e tanto faltou, que o meu Francisco por fim deixou de lhe fazer obra, e quiz obrigal-a a pagar por justiça… Justiça, está bom!… Ella tinha o pae Alcaide… pae ou tio, que eu sei lá o que lhe é… Foi-n'os a casa toda assanhada… palavra puxa palavra… Emfim, deram-n'os uma força por injuria, e agora o veràs… Eu bem dizia ao meu homem: «ó Francisco, deixa… deixa. Não apertes com a moça.» «Agoa vertida nem toda é colhida.» Mas, nada. Pensam que só elles teem juizo, estes senhores homens! Teimou, teimou, e aqui está. Vae já para um mez que dura este fadario. Sempre com o mantinho aos hombros!… E Deus sabe o que durará!… E tudo em casa a derreter-se… Os meus cordões e arrecadas, foi tempo… Dois tóros de buxo, que elle tinha comprado pelo S. Miguel… sem um nó, que eram mesmo uma perfeição… e haviam de render bons vintens… já lá vão por dez réis de nada… Até uma grosa de piões, que estavam para a Senhora do Cabo… hade crer, tia Vicencia?… a quinze réis cada um, que a bem dizer mais custou o ferrão!… E ainda se não fosse o mestre José Gomes… Deus lh'o pague!… Sabe? O mestre José Gomes, cerieiro ás Trinas, que é juiz do povo!… Se não fosse elle nem resquicios havia já da loja. Agora venho eu do Terreirinho das Olarias, de casa do escrivão, e vou para o Poço dos Negros, a ver se fallo ao sr. juiz do crime do Mocambo.
Até hoje! Cuidei que andava a ver as ruas!
A ver as ruas, eu! Ai, santo Antonio e almas! Não faço senão correr de Herodes para Pilatos… E é duas peças a um, quatro moedas a outro… Que os leve a todos trezentos… Jesus, santo nome de Jesus! Nossa Senhora do Livramento me perdôe, que nem eu sei o que ia a dizer… Cruzes, inimigo!… Mas Paschoa do Espirito Santo não seja eu, se o Alcaide, e a beberrona da tal sobrinha, m'o não pagam mais duro que ossos… Pesquei hontem cá uma coisa… O que eu queria era fallar ao sr. Juiz… Dizem que ha ahi uma tal sr.^a morgada, de lá de cima… uma sr.^a D. Felicia, que dá assembléa todas as semanas, aonde vae o sr. Juiz…
Sei eu quem é… Móra ás Portas da Cruz… É minha fregueza, e por signal que me deve bons vintens. Vou lá muita vez.
Vae? Se me arranjasse modos de fallar á morgada, para ver se ella pedia…
Isso é fácil. Mas quer que lhe diga?… Se deseja que o Juiz lhe dê audiencia, e depressa, vá á Esteireira… aquella que representa no Salitre… passe por casa da madama Charles, e leve-lhe uma peça de esguião… se não póde chegar a um rosicler de pedras.
Ai! Senhor!… Coisas que custam os olhos da cara!…
Então é deitar o coração á larga… Deus ainda está onde estava, e atraz do tempo, tempo vem. Eu cá nas minhas afflicções pego-me com a Senhora da Purificação, rainha madrinha, que ainda me não faltou. Agora mesmo lhe vou levar á Boa Hora uma quarta de cera, que comprei alli em cima no Soccorro…
TIA PASCHOA (dispondo-se a acompanhal-a)
Vamos para a mesma banda.
Eu da Boa-Hora tenho de ir á botica das Portas de Santo Antão, que se vende lá uma agoa…
Tambem tenho de tornar ao Terreirinho. Em quanto fica na egreja, chego eu acima e volto por lá.—Teve novidade em casa?
Tive a minha Guiteria com umas terçãs, que não havia tirar-lh'as do corpo… Estava-me a enthisicar, a enthisicar todos os dias… na espinha mesmo… Assim Deus purifique a minha alma, em como não foi se não mal que lhe deu a Brites do Forno… Conhece?
Pois não conheço. Não fosse ella atravessada! O tição!… E então porquê?
Contos largos. Vamos andando. (Saindo juntas ao passo que entra da D. um transeunte.) E a respeito da sobrinha do Alcaide, não me disse…?
Paga-m'as todas, com certeza. O caso é fallar ao Juiz. Hontem ao escurecer, tinham dado trindades no convento, vinha eu… (desapparecem.)
BOCAGE, e o TRANSEUNTE
TRANSEUNTE (embuçado, observando, descendo a Bocage, que está de novo parado á esquina, e batendo-lhe no hombro)
Elmano, a lyra divina
Por que razão emmudece?
BOCAGE (voltando attonito, mas acudindo logo)
Porque mais cala no mundo
Quem mais o mundo conhece!
Que tens n'esse mundo achado
Que mais assombro te faça?
Um poeta com ventura,
Um tratante com desgraça.
(Entra da E. Gonçalo Mendo, de fumo no braço, e pára ao F. observando.)
Bem respondido, sr. Bocage.
Bem perguntado, sr. Tolentino.
(Nicolau Tolentino aperta-lhe a mão, e segue para a D. saindo.)
Quizera que tivesse mais testemunhas o encontro e o improviso.
BOCAGE (chegando-se)
Para que?… Riam… mofavam. Dois poetas que se cumprimentam em verso!
Effectivamente não são vulgares os cumprimentos entre poetas… e consta que não é prodigo d'elles o sr. Bocage.
Não sou, porque não me inclino senão ao merito verdadeiro e superior. A este qualquer póde inclinar-se. Raramente nos encontramos; fallamo-n'os ainda menos; mas admiro-o e respeito-o.
Desejara tambem que lhe ouvissem essas palavras.
Porquê?
Porque sou seu amigo. Correm por ahi, de mão em mão, copias d'alguns improvisos satyricos… seus decerto…—Deixa-me fallar-lhe com franqueza?
Tão custoso é o que me quer dizer!
A verdade amarga.
Trava menos na bocca da amizade, e eu creio na sua.
Encontro-o em occasião grave para mim. Talvez d'ahi venham estes desejos de o prevenir e aconselhar.
Ainda agora reparo. De luto?
Achei em Lisboa a noticia do fallecimento de meu irmão.
Sinto!… (apertando-lhe a mão.) Sinto-o.—Cheguei tambem ha oito dias do Alemtejo com licença. Não sabia ainda…
Tornou-se-me obrigação a sisudeza.—Tem um grande talento, sr. Bocage; não lhe faltam protecções… Empregando esse talento em proveito da patria, será grande em pouco, e dar-lhe-ha grandeza. Se tão altos dotes recebeu de Deus, foi para honra da sua terra. Dedicar-lh'os é dever; esperdiçal-os é sacrilegio. O engenho, o saber, o estro são instrumentos que valem segundo o uso que d'elles se faz. Não ha gloria maior quando bem dirigidos; não ha mais pesada responsabilidade quando mal aproveitados.
BOCAGE (um pouco resentido)
Porque me diz isso? Estou em crer que tenho aos pés um abysmo.
E tem talvez. As suas frechas epigrammaticas promovem-lhe odios tenazes e profundos. Quanto mais agudas forem, e mais acertarem no alvo, mais inimigos lhe hão de suscitar. E os perigosos não são os que lhe respondem como podem; são os que na perfidia dissimulam a vindicta; são os que no sorriso affectado encobrem a vaidade ulcerada, e o rancor que não perdôa.
Quer então que desça a humilhar-me em dissimulação egual? Quer que abata aos pés do vicio dourado, ou da ignorancia presumida, esses dons em que me falla? Quer que envileça a lyra fazendo-a servir aos festins dos poderosos, como accessorio apettitoso, ou como adorno comprado?
Quem lhe diz tal! Supõe-me capaz de lhe aconselhar baixezas? Consagre a lyra á patria, como os egregios poetas de todos os tempos, como Homero, como Virgilio, como o Dante, como Camões… como o nosso grande Camões… tão grande e tão nosso, que se tudo em Portugal acabasse, elle só bastara para dar a immortalidade ao nome portuguez!… Faça-o que pode. São largos trabalhos esses, são cruas batalhas tambem. No arduo trilho achará egualmente diante de si o erro, o vicio, a vulgaridade, a ignorancia!… mais ainda, a mediocridade!… peior ainda, a inveja! Terá de cingir o corpo como os peregrinos, terá de affrontar o martyrio como os apostolos. Não lhe faltarão obstaculos nem dissabores. Não lhe faltarão perigos nem trabalhos. Não lhe faltará a luta, a luta acerba, continua, ardente… Mas ao cabo está a gloria, a verdadeira gloria, a gloria infallivel ainda que tardia.—Hade seduzil-o esta!
E não será ainda servir a patria castigar os ridiculos? Não faltam ahi tambem em compensação de qualquer desgosto, os applausos para impellir, para embriagar, para exaltar, para inspirar a musa… E a minha musa… que lhe hei de fazer, sr. tenente?… a minha musa é toda isenções e aventuras. Não consente sujeição.
Os ridiculos d'estes! os applausos d'aquelles! Que applausos e que ridiculos? Não valerão tanto uns como outros? É para mais o seu engenho do que para servir de desafogo a rivalidades pequenas. E diga-me: tem certeza de ser sempre justo? Não o entristecem muitas vezes esses ruidosos applausos em recintos frequentados de ociosos? Não vê que muitos glorificam nos seus versos, menos a claridade que os illumina, do que o raio que vae ferir um émulo, ou um superior? «[1]Não vê que arrastando na ignominia os seus competidores, a si mesmo se apouca? Não repara que d'esse modo só favorece os baixos instinctos dos detractores sem alma?» É para isso a musa e a lyra? Applaudem-n'o! Applaudem. Mas como? Mas porquê? Mas quem? Ólhe em torno de si e medite. Applaudem-n'o enthusiasmos que depois o nauseam, applaudem-n'o paixões que depois o envergonham. O epigramma cortante, a hypérbole sarcastica, a imagem insultuosa, despertam na sua presença um delirio interessado, que lhe deixa após o vacuo e o pejo. Compare esse applauso suspeito com outros menos estrepitosos, mas selectos, que já lhe tem grangeado obras mais altas e mais dignas. Recorde a satisfação que lhe fica na consciencia, quando arremessa o vôo ás regiões luminosas onde fita os astros!—Falla-lhe pela minha bocca a sympathia, e a experiencia. Somos camaradas; sou seu amigo, repito-lhe… sou ainda mais amigo d'esta terra, de que deve ser, de que póde ser ornamento e brazão… e que o precisa, creia… que precisa de todos os grandes esforços para a levantar da ameaçadora decadencia.—Está nas primeiras impressões e nos primeiros annos. Tem aberta a carreira das armas. Com o seu nascimento, com a sua capacidade, com a instrucção e o estudo… qualquer outra que prefira se lhe póde abrir. É por isto, é para isto que o importuno… Nicolau Tolentino é official de secretaria… Manuel de Figueiredo tambem… Ahi em dois poetas!…
BOCAGE (interrompendo arrebatado)
Manuel de Figueiredo, poeta!… Um moralista seccante, que se julga innovador por imitar de longe os antigos!… O Tolentino, sim… esse ha de ficar para a posteridade!… (Pausa, longa reflexão. Gonçalo observa-o attentamente. Levanta depois o rosto e continúa com progressiva exaltação.) Ouça-me tambem, sr. Gonçalo Mendo. Verá que avalio os seus affectuosos conselhos… E se alguma vez lhe disserem que Bocage é uma indole pertinaz e intractavel, poderá affirmar como a austeridade e a razão o acharam docil.—Oiça-me. Não é novo para mim o que me diz…
Ahi verá!
Tem-m'o repetido a meudo a consciencia.
Oh! não mais que momentos inebria
O sordido clamor da turba sordida!…
Perdoe, involuntariamente se me formulou em, verso a idéa.
Prodigiosa faculdade! E quer desbaratal-a?
BOCAGE (proseguindo)
Não pense que estimo a plebe das admirações… tanto como admiro as magras rimas de ôccos versejadores!… No meio das mais estimulantes palestras, quando é maior o alarido e a matinada, quando egualmente espumam os copos e os labios, quando se condensa o vapor que tolda a casa e o cérebro, quando os motejos se crusam como settas, e os paradoxos refervem como vagas, que de vezes não fico eu mudo, absorto, sem escutar, sem perceber, sem discernir o que tenho diante!… É que se me desprende a alma para cima!… Tenho os olhos e o espirito nos espaços radiantes, d'onde se encara o infinito e o futuro!… Ouço o hymno triumphal na bocca dos povos reconhecidos!… Enfeixo nos braços as palmas das nações!… Cinjo na fronte os louros perpetuos!… Vejo as edades curvadas aos pés d'um monumento coroado de perennes resplendores!… Esta e só esta é a gloria, digo… esta e só esta… eterna primavera, eterna aurora… eterna recompensa!
GONÇALO (enthusiasmado)
E quem tal sabe conceber não ha de saber realisal-o!
BOCAGE (tristemente, estendendo-lhe a mão)
Dê-me que o mundo se povoe de juizos como o seu, de almas como a sua… e será possivel, e será facil… Como elle é, não sei se algum dia terei força para tanto… Por ora, não… Resgate a minha franqueza a minha fragilidade… O menor abalo que d'esse extasi me atire á realidade, mal acerto com a vista na nullidade soberba, na villeza prospera, na abjecção remunerada, na astucia triumphante, na hypocrisia omnipotente… n'esse ascoroso acervo das miserias humanas… todo se me revolve o coração… e sae-me pela bocca em strophes irritadas, que a amargura envenena, que a indignação inflamma! Quero, e não posso, conter esta furia, represar esta onda, que se entumece, e trasborda com o temporal de dentro!… Depois… Nenhuma fraqueza lhe dissimulo… Depois, as palmas, os bravos, as acclamações, o frémito das turbas, que pendem da minha voz e a minha voz avassalla, todo este rumor contagioso e irresistivel… é novo excitante á febre, é maior alimento ao incendio, que lavra, que lavra, que se desata em labaredas accumulando as cinzas… que investe ao acaso… que devora quanto encontra… que hade acabar por me devorar tambem!
Veia exuberante! Seiva excessiva! Torrente impetuosa!—Os annos o corrigirão.
Não sei… Nasci assim. Acho-me assim ao entrar no mundo. Corrige-se isto?
Quando se não corrige, mata. E o sr. Bocage ha de viver.—Desculpe se o turbei nas suas contemplações… Não pude resistir… posto saber o fito d'ellas.
BOCAGE (sorrindo)
Das minhas contemplações de agora? Duvido (passeiando com Gonçalo).
Quer que o vá perguntar ao honrado mercador Manuel Simões, que móra n'aquelle primeiro andar, para onde entrou haverá uma hora, com a sua interessante afilhada a sr.^a morgada D. Felicia? Bem se vê que está todo no seu enlevo… Tem por mysterio o que se passa nas ruas!… Presumo que não anda ahi por causa da morgada velha… (Bocage protesta) Logo vi.—E a viuva, diga-me? Quando ha quinze dias nos encontrámos na Torre da Palma parecia meio apaixonado.
Apaixonado de todo.
Que fez então a essa paixão subita?
BOCAGE (gracejando)
Foi como veio… subitamente. «Vê que não está na minha mão dissimular, e aproveita-se.»
«Se pensa…»
«Não: desculpe.—Sei que não é curiosidade indiscreta. E a quem melhor podia abrir o coração? Como hei de eu dizer-lh'o? A viuva é cheia de attractivos… merece todas as adorações… (malicioso) Não é esta a sua opinião, sr. tenente?»
«Ainda que o seja? Pouco vem ao caso.»
«Reservas commigo! Vamos, confidencia por confidencia. Confesse que não deita luto pela morte da minha paixão da Torre da Palma.»
GONÇALO (sériamente)
«A sr.^a D. Maria Joanna Galvão nunca me deu direito para me offender de qualquer preferencia sua.»
«Podia não se offender, e custar-lhe. E não seria da minha parte loucura constituir-me rival do unico amigo verdadeiro que ainda encontrei?… (Movimento de Gonçalo.) Oh! não, não cuide que lhe quero forçar os segredos… não pense que foi generosidade…» Já que me obriga, digo-lhe tudo. Peço-lhe só que não seja severo. Ou venha dos annos ou do temperamento, o amor em mim é egual á musa, compraz-se no improviso. Rebenta em chammas, mas a chamma fulge e esvae-se como relampago… Depois… outra fraqueza ainda… é tão superior ás damas que tenho conhecido, a sr.^a D. Maria Joanna Galvão!… tão superior pela graça senhoril, pelo tracto do mundo e cultura do espirito!… (Pausa.) Encontrei-a, logo que cheguei, n'uma assembléa, em casa de sua tia D. Felicia onde me apresentaram… Ferviam os motes, e eu calado. Passei quasi todo o tempo escutando-a e reflectindo.
Foi um estudo então?
Um exame de consciencia. Intimida aquella distincção, subjuga aquella formosura, ordena respeitos aquella voz. Revoltou-se-me o coração contra similhante imperio… Se abomino todo o captiveiro!… Estava alli tambem, como esquecida, uma flor modesta, a afilhada da sr.^a D. Felicia. Com ser mimosa sua, era visivel a inferioridade da condição. Como, porquê, não sei… Para essa me voou a alma… Admira-se?…. Não posso supportar a idéa da dependencia, nem sequer em amor. Á dama opulenta e festejada que podia dar o pobre cadete, o poeta noviço? Ainda que me correspondesse… esmola seria a sua mesma preferencia. Com a donzella humilde succede o contrario… é ella a favorecida, e eu o generoso.—Prefiro estes amores… não tolero outros!
GONÇALO (olhando para a E.)
Tem muito empenho em se encontrar com o mercador?
Porquê?
Porque se não tem, podemos ir aqui de roda dar uma volta até á esquina da Inquisição, e tornar depois.
BOCAGE (olhando tambem)
É elle, e não sei quem mais. (a Gonçalo) Com todo o gosto… (indicando a janella) Como vê, as minhas contemplações não eram bem succedidas… não tinham ainda objecto.
GONÇALO (andando)
Logo terão. As estrellas levantam-se com a noite!
BOCAGE (saindo com elle pela D., ao passo que entram da E. Manuel
Simões e Francisco)
Invade tambem os dominios da poesia, o sr. tenente! (Saem.)
MANUEL SIMÕES e FRANCISCO PEDRO SIMÕES
Que espantos que não vae agora fazer a sr.^a Monica!… Se nem me lembrou dizer-lhe nada!…
E está boa a minha tia Monica?
Toda em cuidados pelo seu menino, pelo seu Francisquinho, que has de ser sempre para ella o Francisquinho, como ha vinte e trez annos, quando o Sebastião foi para a Bahia, e tu ficaste tanto monta no berço… As raparigas e a caixeirada não te chamam já senão o sr. doutor… Ella… sim!… Nem annos nem Coimbras lhe persuadem que o seu Benjamim está um homem… (revendo-se n'elle) e d'aqui a pouco um sr. doutor devéras… não é assim?
Este anno ainda, espero.
Mas vê lá, rapaz… Não te sirva de atrazo esta vinda a Lisboa! Jornadas para cá, jornadas para lá… sempre é tempo perdido!…
Sendo por poucos dias…
Será. Pois que!… Não pensei n'isto quando te escrevi.—Recebeste a minha carta a tempo? Recebeste, está visto. Pui-te esperar á estalagem, por me parecer que não faltavas… mas como não respondeste…
Mandei logo buscar os machos, e puz-me a caminho. A resposta era obedecer. Que novidade foi esta, pae?
Estava tremendo não chegasses… (em voz baixa) Vem esta noite cá teu padrinho.
O sr. marquez!… a nossa casa!
Á nossa propria casa. Será o primeiro marquez que vem a casa de teu pae?
É verdade… o sr. marquez de Pombal era tambem padrinho de meu irmão, e tenho-lhe ouvido que…
Que me visitava em pessoa, elle mesmo… (olhando em redor) o grande marquez… E não foi só isso… De vez em quando mandava-me parar a sege á porta da loja… (esquecendo-se) É que tambem não torna cá homem como aquelle… (caindo em si e olhando em volta) que este não é somenos, em certas coisas! Vem, vem hoje… Podia lá deixar de lhe ter cá o afilhado! Vem hoje… hoje, em vespera de Corpo de Deus, faze idéa! E toda a gente pelas janellas!… E o que se hade fallar no arruamento!… E o que ahi não virá de encommendas!—Já mandei buscar mais um caixeiro.
Que não seja como o Zé Braga ou o Zeferino… Lembram-me ainda.
O Zé Braga estabeleceu-se na terra… e vamos, tem queda para o negocio… É nosso correspondente.
Ah!
O peralvilho do Zeferino… esse lá foi para esses Brazis… Não sae d'alli coisa de geito, verão… Confundia-me sempre o lemiste com os droguetes, e o panno jardo com as baetas!… Deu em fazer de faceira… já de chapeu á Anastacia… sempre em touros e presepios… Só lhe faltavam os polvilhos. Deixal-o. Cá me tenho remediado com outros dois novos, e marçanos não faltam.—Ai! nós aqui a fallar, a fallar, e lá em casa tudo cheio de gente!… A Monica estou que perde a cabeça!… Não me lembrava com o gosto de te ver, e de te fazer beijar a mão ao sr. marquez… que elle sempre hade puxar por ti!—Anda, rapaz, vamos… vamos!… (em acto de partir.)
Tudo cheio de gente lá em casa! É novidade… E quem está? Não me hei de apresentar n'este trajo de jornada, se são pessoas de respeito.
MANUEL (voltando)
Tens razão. Não vieras tu de Coimbra!… Com isto sempre me embalaram: «ou armas ou letras.» Quem está?… Has-de ir mudar de fato primeiro, has-de. Estão pessoas de consideração, e espero mais. Verás… Sujeitos de peso e de porte, que me honram com a sua amizade… (comsigo) e precisam do meu dinheiro… Pois n'um dia d'estes, e vindo cá teu padrinho!… Está a sr.^a morgada D. Felicia, que essa é já conhecimento velho… está…
FRANCISCO (alvoroçado, vivamente)
E a afilhada?
E a afilhada… bem sabes que nunca a larga… Está a afilhada, e vem tambem uma sobrinha, que chegou de França ha dias!
FRANCISCO (em acto de partir)
E nós aqui a perdermos tempo.
MANUEL (detendo-o)
Espera, espera. Que fogo te deu mal te fallei na morgada! Dar-se-ha caso… (severo.) Francisco?
FRANCISCO (timidamente)
Meu pae.
Esse alvoroço não é natural!
FRANCISCO (como acima)
Está fazendo falta de certo, pae.
Já vamos. (Comsigo.) A morgada não póde ser… a sobrinha não a viu ainda… Querem ver… (com inteireza) Sr. Francisco Pedro, forma-se este anno. D'aqui a tempos será juiz de fóra, desembargador, quem sabe?… Conversei já a seu respeito com o meu amigo João Pires… Conhece? O sr. João Pires, á Magdalena, que traz dois navios para a India, e tem uma filha que não anda por assembléas, mas leva quarenta mil cruzados de dote.—Quando pensar em casar, é a noiva que lhe convém.
FRANCISCO (consternado)
Oh! meu pae! Por quem é não disponha assim do meu coração!
Do seu coração! A que proposito vem o seu coração? Quer dizer que olhou para a afilhada da sr.^a D. Felicia? Ignora que é filha d'uma criada?
Mas educada com tanta estimação! O amor não mede distancias.
Ensinaram-lhe isso em Coimbra?… Não o tirasse eu do balcão!… Felizmente seu pae não dorme. Perca d'ahi o sentido. Já lhe disse o que lhe convinha. Escusa de se cançar… não costumo repetir as coisas duas vezes!
Não me permitte uma supplica ao menos?
Com tanto que seja breve.
Morro por ella… (hesita).
Se me não diz mais…
E dei-lhe palavra de casamento.
Deu-lhe palavra… (furioso) Porquê? Para quê?… Sem me consultar… sem consultar seu pae!… sem saber se lhe fazia transtorno!… Viu-se já!… (fitando-o) Estes rapazes!… (mais brando) Com que então deste-lhe palavra? (Gesto affirmativo de Francisco.) Pois se lh'a déste, cumpre-a.—Um Simões nunca faltou a ella!
FRANCISCO (transportado)
Consente!… Consente?… Como lhe hei de agradecer, meu pae!
Não é o que eu queria, e custa-me… Não te mandei a Coimbra para te empregar na filha d'uma criada!… Mas na nossa casa a palavra é escriptura. Pagamos á vista… sempre, e tudo: é o nosso brazão!
OS DITOS e o MORGADO
Ora até que o encontrei, sr. Manuel Simões. Procurei-o hontem, antes de hontem, esta manhã…
MANUEL (interrompendo-o seccamente)
Sei, sei… Bem sei.
Se me désse licença logo…
Tenho gente em casa, tenho muita gente… Hade-me dar licença.—Vamos,
Francisco, vamos.
MORGADO pouco depois o COMMENDADOR
MORGADO (desesperado e ameaçador)
Se fôra da nobreza… e se não fôra a necessidade!…
COMMENDADOR (que tem entrado)
Que é isso, sr. Morgado? Quem o fez agastar?
(Durante esta scena os creados acendem de dentro as illuminações das janellas.)
Quem hade ser? Esta gente de negocio que na verdade…
Não tem uso do mundo, é sabido… cança-se de dar dinheiro, e nem sempre se lembra das jerarchias!… Que quer? Na opinião de Cicero o dinheiro faz todos eguaes… e lá resa o nosso rifão: «negro è o carvoeiro, branco é o seu dinheiro!!»
Mas quem lhe diz…
Que precisa de dinheiro? O sr. Morgado precisa sempre… Que o mercador lh'o recusa? Encontro Manuel Simões, e acho-o enfadado. Não é preciso ser astrologo para adivinhar. Excellentes astrologos são os olhos… que sabem ver. Bem o disse o poeta Manilio, e melhor o explica Julio Firmico Materno, contemporaneo de Constantino Magno, nos oito livros que escreveu sobre o assumpto.
MORGADO (meio aborrecido)
Oito? Admiro-lhe a paxorra.—Mas, vamos, sr. Commendador… Estão já accendendo as luminarias. D'aqui a pouco enche-se ahi tudo de gente.—Que noticias?—Sabe que morreu Salvador Teixeira, o irmão mais velho de Gonçalo Mendo? Ficou senhor da casa agora o tenente, e…
E… receia o competidor.
Receial-o! Porquê? Em quê? Um homem como eu não teme nenhum rival… Minha prima é senhora de gosto e de juizo… E em ultimo caso tenho modo infallivel de supplantar o tenente… (intencionalmente) ou qualquer outro.
COMMENDADOR (sorrindo)
Infallivel!
Infallivel.
Contra qualquer?
Contra qualquer.
No dizer de Plinio poucas coisas se pódem julgar infalliveis.—Tem estado com sua prima?
Todos os dias.—Ainda antes de hontem em casa da morgada da Torre da
Palma… ainda hontem a ver correr parelhas e alcanzias em Campolide.
Então para que pergunta noticias?
Para saber o que se diz.—Posso contar com a sua amizade?
Como eu com a sua.—Amizade de obras mais do que de palavras, como a quer Tito Livio.
Tambem… commigo póde o commendador contar para a vida e para a morte.
O braço e a espada do morgado da Gesteira estão sempre ao seu dispor.
Deseja saber o que ha?
Não se me dava… para afugentar de vez o primeiro que se atreva a galantear abertamente minha prima.
COMMENDADOR (malicioso)
Terá que fazer.—Veja o que Propercio diz da sua Cynthia… Póde fazer calar os requebros dos pintasilgos á aurora?
Pintasilgos, diz bem. Principalmente o cadetinho… o tal sr. poeta de loas, ou das duzias… Ia-me saindo das medidas na casa da Torre da Palma. Se não fosse a morte quasi repentina de Simôa!… Já o encontrei por ahi e não o perco de vista. Não que minha prima possa olhar para similhantes figuras…
Eu sei, morgado. Elle é de boa gente, e as damas… Emfim a respeito d'esse, descance… Traz o Sentido n'outra parte.
MORGADO (avidamente)
Em quem?
Ainda não reparou?… Na afilhada de D. Felicia.
MORGADO (desdenhoso)
Ah!… (como reflectindo.) Mas o filho do mercador? É correspondido, e está ahi.
COMMENDADOR (sorrindo)
Era correspondido… Verá como os dois se arrufam, como o poeta fica e é acceito, como… Isso corre por minha conta.
Por conta do commendador! (desconfiado.) E com que interesse?
Interesse? Nenhum… Amizade… Desejo de lhe ser util… Não queria afugentar os galanteadores de sua prima?… Para isso vale mais a astucia do que a força, creia. O mestre das rhetoricas ensinava a Herennio «que a verdadeira prudencia era a sagacidade,» e como diz Cornelio Nepote, «mais poude a destreza de Themistocles do que as armas da Grecia.»
MORGADO (pensativo)
Não é fóra de rasão… ainda que nada d'isso vale uma recarga a tempo como a ensina o alferes Theotonio Rodrigues, ou uma flanconada como as queria o grande Montenegro. (mirando-o de revez) Com que o poeta desistiu já de minha prima?
COMMENDADOR (sorrindo, e do mesmo modo)
Respondo-lhe por elle.
O tenente, esse…
Faz-se desistir.
MORGADO (como acima)
E depois?
Depois… não ha rivaes que affrontem o sr. morgado. (Cresce o numero dos passeiantes.—Ruido dentro.) Ahi vem já o rancho dos poetas. Conhece-se pela algazarra.
(Principiam a apparecer ás janellas algumas senhoras de gala, e toucadas.)
MORGADO (olhando para as janellas)
Já as madamas começam tambem a apparecer.
Vou n'um instante a casa do mercador para lhe fazer a vontade. Volto logo.
Encontra lá minha prima.
E não vem?
MORGADO (despeitado)
O sr. Manuel Simões não me fez a honra de me convidar.
Que dissabor lhe ha de ser ter sua prima alli e ficar de fóra! Que quer? Diogenes, de Synope, comparava as riquezas ás plantas… que nascem em despenhadeiros! (Sae tomando á esquina ao F.)
(Entram logo Bocage, 1.^o e 2.^o poetas, companheiros, e Gonçalo Mendo, da E.)
BOCAGE, GONÇALO MENDO, 1.^o e 2.^o POETAS
GONÇALO (a Bocage, despedindo-se e indicando as janellas de Manuel
Simões)
Boa sorte e propicios amores!… Da inspiração não lhe fallo: nunca lhe falta, e hoje menos lhe faltará.
BOCAGE (meio desconfiado)
Já não quiz entrar commigo um instante no Nicola, e agora deixa-me!
É noite de festas, e está ainda mal fechada a sepultura de meu irmão!
BOCAGE (caindo em si)
Tem rasão.
MORGADO (chegando-se)
Sube o desgosto que teve, sr. tenente Gonçalo Mendo… Muitos parabens… (corrigindo-se) dou-lhe os sentimentos, quero dizer… Seu irmão, tambem era doente… Quantos annos tinha?… Boa casa!… É uma boa casa, a casa de Mendél, dizem todos. E de mais a mais com os coutos de Sandim!… Deixou uma grande casa!… O sr. Gonçalo Mendo naturalmente larga a vida militar.—Com uma casa d'aquellas!
GONÇALO (com inteireza)
«Sr. morgado da Gesteira, a minha familia foi sempre uma familia de soldados. Alli cumprir a lei e servir a patria não é especulação, é preceito. Se meu irmão por fraco e enfermo não poude satisfazer a obrigação, por elle a satisfazia eu. Hoje, que me falta, essa obrigação fez-se duplicada: é a d'elle e a minha!»—Creio que o sr. Bartholmeu Tojo não vê no vinculo senão a renda. A mim ensinaram-me de pequeno a só considerar no patrimonio dos meus, como coisas superiores, o dever e o nome!—Adeus sr. Bocage! (Sae.)
E então! Dês que está senhor da casa parece que traz el-rei na barriga!
BOCAGE (fitando-o)
Engana-se. Tem o coração no seu logar… e não succede o mesmo a todos.
(Signaes de approvação nos circumstantes.)
MORGADO (ameaçador)
Isso entende-se commigo?
BOCAGE (com obsequioso sarcasmo)
De nenhum modo: era suppor-lhe coração!
(Riso nos circumstantes.)
MORGADO (com satisfação)
Logo vi que se não podia entender commigo.
(retira-se magestosamente, e sae pela E.)
BOCAGE 1.^o e 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, 1.^o e 2.^o MANCEBOS,
DAMAS, POVO
(Vão-se povoando mais e mais as janellas; augmenta na rua a concorrencia.)
1.^o MANCEBO
Sr. Bocage, sr. Bocage!
BOCAGE (ainda agastado da altercação com o morgado)
Que é?
1.^o MANCEBO
Fez-me o favor de limar aquellas decimas, que lhe entreguei o outro dia?
Pois não!
1.^o MANCEBO
Queria ver se as recitava esta noite… Tem-n'as ahi?
O que?
1.^o MANCEBO
As minhas decimas.
Como hei de ter, se nada sobrou d'ellas.
1.^o MANCEBO (pasmado)
Não sobrou nada?
Absolutamente nada. Ficou-me tudo na lima!
(Riso nos circumstantes; o 1.^o mancebo mette-se na turba corrido.)
2.^o MANCEBO
Sr. Bocage, um obsequio?
Que temos?
2.^o MANCEBO
Faz annos, depois d'amanhã, um tio que eu tenho…
A novidade seria fazer annos um tio que não tivesse.
2.^o MANCEBO
Compuz dois sonetos…
Dois d'uma assentada! Já vejo. Monta um Pegaso manhoso que lhe desandou uma parelha de…
2.^o MANCEBO (ingenuamente)
Isso. Estão aqui os sonetos. Só lhe peço que me diga qual é o melhor… para o offerecer ao tio…
Ao sr. seu tio… que vocemecê tem.—Deixe ver. (2.^o mancebo entrega-lhe um papel de dois que tem na mão.—Bocage chega-se á luz das luminarias, e lê attentamente. Em quanto lê, o 2.^o mancebo responde aos poetas que parecem divertir-se com elle. Depois de ler, restituindo-lhe o papel e em tom decidido.) Leve-lhe o outro.
2.^o MANCEBO
O outro! Mas ainda não viu o outro.
É o mesmo… leve.
2.^o MANCEBO
Porquê?
Porque não póde ser peior do que esse.
(Riso dos circiumstantes; o 2.^o mancebo sae tambem corrido.)
BOCAGE, 1.^o e 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, DAMAS, POVO
2.^o POETA
Está de veia hoje, o nosso cadete.
Menos isso.—O cadete ficou onde ficou a farda. Aqui está só o poeta.
1.^o POETA (ao 2.^o)
Condemnado como reu de lesa Arcadia. O Bocage tem razão. Será cadete no regimento; entre os pastores do Pindo é Elmano, o esperançoso Elmano, como tu és Alcino, como eu sou Lereno. A propósito, falta-nos Albano.
(Bocage parece cair em profunda meditação.)
2.^o POETA
Foi jantar a casa d'algum fidalgo. É o seu costume. Mas vem de certo.
Disse-me que vinha.—Agora nego que fosse reu de lesa Arcadia tratando
Elmano pelo grau militar.
1.^o POETA
Como provas essa?
2.^o POETA
Muito facilmente. Qual é n'este caso o distinctivo do vale e do soldado? Uma estrella. O mesmo em ambos. Cada qual tem a sua. Logo… (declamando)
O Appollo, e o Marte que zellas,
Não se afastam grande espaço:
Tem um a estrella no braço,
Outro o braço nas estrellas!
1.^o POETA
Fóra o seiscentisto. Sempre te achei queda para os conceitos alambicados e antitheses retorcidas! Essa vem na Phenix renascida, ou nos Desmaios de Maio, aposto!—Bocage… (reparando e tomando-lhe o braço.) Bocage!… Em que pensas?… Que fizeste á picante jovialidade tão bem estreada, e que tanto promettia para esta noite?
BOCAGE (como despertando)
Que?… Eu?… (comprehendendo.) Ah!… Jovialidade lhe chamas? Não era, não. Era raiva, era furia, era…
1.^o POETA
Contra uns pobres rapazes! Deixa versejar a vadiagem. Cançará depressa.
Não vale a indignação.
Isso dizem todos, e d'isso sobra forças á mediocridade e a vilania, que são gemeas. Uns pobres rapazes! Hoje nescias vaidades apenas… ámanhã calumniadores invejosos!… Deixae-os medrar, deixae; e queixae-vos depois dos damnos que vos fizerem! E ha peiores ainda… Peiores e mais nocivos são os desalmados, que nem adivinham a alma, e d'esse aleijão moral fazem a bitola de todos os caracteres!… Que me hão de apparecer por toda a parte vilezas!… Não reparem, amigos… São restos da cólera em que me deixou esse homem, que até na morte vê o interesse sem lhe ver as lagrimas!… Quando estas ignominias me surgem diante, sou como aquelle tyranno antigo, que desejava um só corpo á humanidade, para a degollar d'um golpe!… Quizera tel-as tambem todas congregadas e encorporadas debaixo da mão, para lhes arrancar a mascara hypocrita, para as retalhar com o látego justiceiro, para apresental-as como são, hediondas e infames, perante a sociedade que illudem ou pervertem.—Desculpem a rajada. Vamos ao que importa. (olhando para as janellas do mercador, ainda desertas) Ficamos aqui?
1.^o POETA
Alcino tem uma Anarda alli n'um segundo andar do quarteirão immediato, e ella provavelmente traz-lhe mote preparado. Queres vir?
BOCAGE (com os olhos nas janellas)
Com tanto que voltemos depressa!
2.^o POETA
Percebo. Temos tambem por cá pastora! Uma Armia, uma Isbella, uma
Anfrisa?
Melhor do que isso. Uma esperança!
(Gritos, tumulto fóra á E.)
2.^o POETA
Ha novidade, ao que parece.
(Grande tumulto á E. fóra. Gritos: Aqui d'el-rei! Agarra! O povo afllue áquelle lado.)
É desordem?
1.^o POETA
O costumado.
VOZES (no povo)
Arreda! arreda!
(Reflue tudo sobre a D.—Bocage, á frente dos companheiros, impellido pela turba, acha-se na extremidade D. quando entra, correndo d'este lado, Alcaide, e a ronda de quadrilheiros e paisanos.)
ALCAIDE, BOCAGE, 1.^o e 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, MORGADO (que entra esboforido da E.) DAMAS, POVO.
ALCAIDE (topando Bocage, e pondo-lhe uma pistola aos peitos)
Da parte da ronda—quem é? d'onde vem? para onde vae?
BOCACE (serenamente)
Sou o poeta Bocage,
Venho ha pouco do Nicola,
E vou para o outro mundo
Se me dispara a pistola!
POETAS e COMPANHEIROS
Bravo! Bravo, Bocage!
ALCAIDE (deixando-o)
Ah! é o Bocage! Que foi então? Quem gritou?
Foi um chibante de cigarro que deu tres facadas n'um moço das
carvoarias, que ia cantando a Fôfa alli para a banda da Bitesga!…
Ah! que se o apanho a geito!… (esquiva-se para a D. logo que o
Alcaide interroga.)
Quem fallou para ahi?… (á ronda) Depressa, anda… Venham as lanternas, que nas travessas está escuro como breu. (Os paisanos adiantam-se com as lanternas, mostrando certa repugnancia.) Mais depressa… (aos quadrilheiros) Para a frente vocês. (Estes obedecem com promptidão, e passam velozmente para a E.—O Alcaide continua para este lado como fallando a um dos quadrilheiros que passou.) Ó Gaiola, bota cordão lá para diante… agarra tudo!… O sr. Corregedor do Crime mora ahi para cima; elle que os joeire!… Vá, vá.
(Os grupos abrem vivamente passagem ao Alcaide e aos mais da ronda, que saem apressados pela E.)
OS DITOS, menos o ALCAIDE e RONDA, depois UM CEGO (que vende impressos)
(Apenas o Alcaide sae, ouve-se tambor e gaita de folles para a D.—O povo grupa-se para esse lado.)
2.^o POETA
Cirio agora, querem vêr!
1.^o POETA (observando)
Não. São os foliões do Espirito Santo com a bandeira, e o ermitão da
Senhora do Monte com o Embrechado. Metteram-se para a outra travessa.
Por isso estão todos nas janellas dos lados.
2.^o POETA
Com similhante inferneira, bem se ha de poetar agora.
O CEGO (passando ao F. e apregoando em cantilena)
Comprae, meninas comprae,
Por dez réis, ou meio tostão,
O Testamento da Velha
Ind'antes da serração;
Ou as obras afamadas,
Que ninguem comprou em vão,
Da Chrystaleira de Coimbra,
Coisa de satisfação.
BOCAGE (rindo e como terminando a trova do cego)
Temos rival pela prôa:
Vá, ao outro quarteirão
1.^o e 2.^o POETAS (galhofeiros)
Vá, vamos. (Saem os tres.)
O CEGO, logo depois TIA VICENCIA. e TIA PASCHOA, logo depois COMPADRE THEOTONIO e COMPADRE AMANCIO. (Movimento. Homens apregoando caramello. Pretas apregoando alcomonia, etc.)
Comprae, meninas, comprae,
Por dez réis ou meio tostão…
(Perde-se-lhe a voz na distancia.)
Bem lh'o cantava eu, tia Paschoa! Qual juiz, nem meio juiz! Não lhe poem a vista em cima! A Esteireira é que é de desengano. Que eu não lhe digo isto para me esquivar… Se quer que peça á morgada, appareça ámanhã… ámanhã não, é dia de festa… appareça depois de ámanhã, e lá iremos… Verá que me não diz que não…
Vou… Sempre vou… Se por ahi se arranja o negocio é uma boa dóse que poupo, e para quero está já tão arrastado…
COMPADRE AMANCIO (entre as dez e as onze, capote a um lado, entrando com compadre Theotonio)
Safa!… Cuidei que me filavam tambem!
Se não se fizer nada, então tomo o seu conselho, e vou á Esteireira… Por fim de contas são conhecimentos que se tomam… Ah! meu rico Santo Antonio! sou capaz de vender a camisa do corpo só para metter pelo chão abaixo aquelles marotos que nos desgraçaram… (Saem pela E. conversando.)
COMPADRE THEOTONIO, COMPADRE AMANCIO (observando para a E.) pouco depois MORGADO e COMMENDADOR. Grupos rareados.
COMPADRE THEOTONIO (tambem com um grão na aza, mas dando-lhe para taciturno, e preoccupado, e servindo-se com frequencia de um cheirador de simonte)
Prenderam o homem?
A ronda vae apanhando a torto e a direito, mas o homem, sim! Metteu-se para a rua das Hortas, salta n'um pulo a S. Roque, e de lá á Cotovia… Depois… boas noites… (puxando, endireitando o capote, e mirando-o) Por um triz se não vae d'esta feita, o meu cobre-miseria! E o seu não ficou tambem pouco derreado, compadre Theotonio!
Leve a fortuna os apertões, compadre Amancio.
Olhe se não vae na ronda o mestre Joaquim da Ferraria… (olhando em redor) Está isto por aqui só ainda! (Ouvem-se fóra á D. palmos e applausos.) Que é? (Vae vêr) Ah! são os poetas que andam pelo outro quarteirão… Vamos até lá, compadre?… Quero dar o meu voto a respeito do Bocage, que ainda não ouvi… Tem-me ido já umas poucas de vezes barbear-se á loja, e dizem que na versaria põe tudo a uma banda!
Cá por mim… o José Daniel!
Não digo que não, mas vista faz fé. Vem?
(Entram da D. o morgado e o commendador. Formam dois grupos distinctos.)
Onde ia tão assustado? Não me via?
Assustado eu!… Ia desesperado… O tal sr. cadete, o tal sr. poeta!…
Disse-lhe alguma?
A tanto não se atrevia elle… Ainda agora o fiz eu tornar atraz… Os modos… os modos é que me dão a perros… Tomára achar azo de lhe pregar uma boa vaia, ahi diante de toda a gente.
Havia de lhe doer… mas isso é antes desforra de mulher que de homem… A verdadeira vingança quer-se mais segura. No conceito de Seneca toda a soberba é injuria, e Plauto ensina como as injurias se pagam… (Ficam conversando.)
COMPADRE AMANCIO (do outro lado)
Não se mexe d'ahi, compadre? Parece-me jarra! Largue o cheirador, que é capaz de lhe subir o simonte ao miolo. Se não está para ouvir os poetas, venha até ao Talaveiras, que tem uma pinga do velho…
Cá por mim, o Petinga.
Não sae d'isto! Ó compadre Theotonio, você por mais que me digam já fez hoje mais de uma estação!… (Ouve-se campainha á E.) Será a Misericordia? (Indo verificar) Ora o que ha de ser!
O que é?
É o Bernardo atafoneiro, que vem ahi todo vestido de hollandilhas, com bordão de gancho e lanterna pendurada, a pedir para o Senhor Jesus dos Afflictos… Conheço-o pelo roliço. Aquillo faz dinheiro de tudo! Rendem-lhe mais as penitencias que o officio, e ainda em cima aluga a preta para andar a vender pelas ruas.
(Atravessa ao F. o penitente, como está descripto tocando a espaços a campainha; traz á cinta um mealheiro. Dão-lhe esmola.)
COMPADRE THEOTONIO (elevando a voz)
Ora se ha um birbas assim!
COMPADRE ANASTACIO (impondo-lhe silencio)
Mais devagar, compadre, mais devagar, que o Bernardo é familiar do Santo
Oficio… como alguns fidalgos!
MORGADO (do outro lado, ao commendador olhando para a janella dum 2.^o andar)
Lá está uma palmilhadeira do meu conhecimento, no 2.^o andar, mesmo por cima da casa do mercador… (depois de reflectir, como achando) Ah!
COMMENDADOR (ironico)
Teve alguma lembrança feliz?
Tive. (olhando para a D.) Cá vem o rancho outra vez! (D. Felicia e D. Maria Joanna apparecem a uma das janellas do 1.^o andar da esquina. Maria Gertrudes a outra. Enchem-se as janellas.—Affluem suecessivamente os grupos.) Verá Verá que vergonhaça!… Digam que não sei varar um gamo, nem pegar n'uma espada, nem determinar uma mesa, se o poeta não fica hoje corrido!… (Sae precipitadamente pela D. dobrando a esquina. O commendador vê-o sair, encolhe os hombros desdenhosamente, e mette-se por entre os grupos. Compadre Theotonio e compadre Amancio giram na turba. Entra Bocage e os poetas. O grupo d'estes fica sobresaindo.)
BOCAGE, 1.^o e 2.^o POETAS, COMPANHEIROS, COMMENDADOR, COMPADRE
AMANCIO, COMPADRE THEOTONIO, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA e MARIA
GERTRUDES, (nas janellas) DAMAS, POVO.—(Grande animação)
1.^o POETA
Oh! agora está já tudo pelas janellas. Vamos, quem rompe?
Eu não… Logo.
2.^o POETA
Rompo eu. (para as janellas) Mote… Venha mote, minhas senhoras!
(Grupam-se todos curiosamente para ouvir.)
Essas peraltas de agora,
Eu não sei d'onde lhes vem.
2.^o POETA (repetindo)
Essas peraltas de agora…
Eu não sei d'onde lhes vem.
(Fica por momentos pensativo.)
BOCAGE (ao 1.^o poeta)
Foi a morgada que deu o mote?
1.^o POETA
Foi. (ao 2.^o Poeta.) Glosa-lh'o ao geito, se queres que te applauda, a tartaruga!
2.^o POETA
Deixa. (batendo as palmas) Lá vae:
Cambrayas, sedas, matizes;
Vermelhas capas bem fartas
Forradas de pelles martas;
Bons vestidos de paizes;
Filós, rendas, pertiguizes;
Sécias tudo, e a toda a hora;
Sempre em visitas por fóra;
Conhecendo toda a gente:
Eis-aqui, succintamente,
«Essas peraltas de agora;»
1.^o POETA (interrompendo)
Bravo!
D. FELICIA (applaudindo)
Bravo! Bravo!
BOCAGE (de parte ao 1.^o poeta)
Não é glosa: é rol da roupa!
2.^o POETA (continuando)
No dia cinco e seis vezes
Correm, sem que isto as affronte,
Dos perfumes do Le-Conte
Ás lojas dos genovezes;
Não faltam nos entremezes;
De casa, nem um vintem;
Trazem fiado o que tem
E na roca não põem mão:
Ou é milagre, ou então
«Eu não sei d'onde lhes vem!»
D. FELICIA (debruçando-se encantada e applaudindo)
Bravo!… Lindo!… Bravissimo… Uma suspensão!… uma suspensão!
(Alguns applausos nos quaes se distingue Mestre Amancio.)
2.^o POETA (a Bocage rindo)
Que tal?
Um trocadilho de Luiz de Gongora!
COMPADRE AMANCIO (como consultando Compadre Theotonio)
Então?
COMPADRE THEOTONIO (cheirando)
Percebeu, compadre?
Isso é seca, homem! Se percebesse, porque havia de applaudir?
VOZES (no povo, que, olhando á E., se afasta como para dar logar)
Olha! Olha! É o volantim do nosso Marquez.
O volantim do Marquez… De qual Marquez?… (olhando) Ai! é o do sr. Marquez de Marialva! (o volantim, passa, e dirige-se rapidamente á casa da D., que dobra.) Lá vae… Como elle vae!… (a onda do povo dirige-se para aquelle lado, como para observar. Compadre Amancio precede-a.) Aonde irá? (Olhando para fora. Attonito.) A casa do mercador Manuel Simões!… Vae… Entrou… (Voltando ao Compadre.) Compadre Theotonio, compadre. Grande novidade!… Querem ver que o Marquez vem a casa do Manuel Simões!… (observando) Vem… Lá estão já os caixeiros com as tochas á porta, e o patrão no patim!
Nós que temos com isso?
OS DITOS e MORGADO (que se aproxima procurando o Commendador)
2.^o POETA
É feliz este Manuel Simões! Compadre do Marquez de Marialva!… e já o foi do outro… Por isso lhe chove a freguezia, que está podre de rico… (a Compadre Theotonio.)
COMPADRE THEOTONIO (a Compadre Amancio)
O Marquez de Pombal é que era o nosso!
COMPADRE AMANCIO (baixo e vivamente)
Cale-se! Quer que nos mettam na inquisição?
1.^o POETA (ao segundo)
Não ha nada como negociar!
2.^o POETA
O mau da poesia é não se medir aos covados.
Estás enganado. N'esse ponto a poesia é como as fazendas da loja. Medidos se querem tambem os versos… e quem peior os mede mais lucro tira.
Ahi vem o sr. Marquez de Marialva… ahi vem… Traz comsigo o Almeirão e o Gaeta. Olhe, compadre, o Gaeta, que em mettendo o rojão, deita sempre abaixo o toiro!
Cá por mim… o Fava-Secca!
Deixou a sege na travessa, para não atropellar ninguem… Elle sempre é bom de lei!… Viva o nosso Marquez, que é pae do povo!
(Entra o Marquez, 3.^o Poeta, o Gaeta, o Almeirão, sequito de picadores e escudeiros.)
Viva!
OS DITOS, o MARQUEZ, 3.^o POETA e sequito
Obrigado! Obrigado! (a um dos picadores) Toma cuidado, Gaeta. O teu cardão tem um gavarro no pé esquerdo. Sente-se do casco ao bater na calçada. Está em principio ainda, mas se lhe não acodes, vae-se-te o animal, e é pena! (aos poetas) Então, tem-se poetado muito?… (Olhando para as senhoras, que lhe fazem mesura.) Com taes musas, muito e bem decerto (a outro picador). Almeirão, anda-me com tento no tordilho. É um cavallo fino, mas tem pouca escola ainda. Tira pela mão, e não ganhou união nos movimentos. Para praça não está capaz. (olhando de novo para as janellas) Oh! lá vejo a Morgada da Torre da Palma, e mais a sobrinha que veiu de França. (Cumprimenta-as. Aos poetas) É formosa, e dizem que não menos discreta… (a Bocage) Oh!… Manuel Maria… Está em Lisboa com licença, sabia já… D'esta vez ainda não foi ver-me a Belem.
V. Ex.^a estava em Salvaterra.
Cheguei esta tarde, é verdade. Quero-o lá um dia cedo… Aqui lhes trago reforço. (indicando o 3.^o poeta) Foi esperar-me ao desembarque!
2.^o POETA
Tardava-nos o nosso pastor Albano!
Ahi está já o meu compadre Manuel Simões. Hãode me dar licença.—Manuel Maria, espero ter o gosto de ouvil-o hoje. (Sae com o sequito para o F. acompanhado do grupo dos poetas.—As senhoras das janellas do mercador desapparecem momentaneamente.)
OS DITOS menos MARQUEZ e sequito
Viva o nosso Marquez! Viva!
MORGADO (de parte ao Commendador)
Verá agora a camisa de onze varas em que eu metti o poeta!
Quem! o sr. Morgado? Hade permittir que duvide.
MORGADO (impondo-lhe silencio)
Pschiu!—Verá!
(O grupo dos poetas volta alvoroçado.)
3.^o POETA (para as janellas)
Mote, minhas senhoras.—Venha mote!
A PALMILHADEIRA (no 2.^o andar)
Sr. Bocage, sr. Bocage!
BOCAGE (levantando a cabeça)
Quem me honra?
«O meu amor foi para a India!»
1.^o POETA
India!—Mais parece peça que mote!
MORGADO (ao Commendador esfregando as mãos)
Olhe como ficou embuchado!
BOCAGE (comsigo, surprehendendo-lhe o movimento)
Já vejo d'onde vem a chufa. (aos poetas) Será peça, mas se é, tenho pena de quem a quiz pregar. Seja quem for, é ainda mais asno que tratante.
3.^o POETA
A rima é difficil.
BOCAGE (desdenhosamente)
Difficil! Com dois verbos que remedeiam.—Guindar, findar; guinde-a finde-a. (fitando o grupo do Morgado e do Commendador) Nem sabem inventar difficuldades! (Dá-lhes as costas e passa adiante.)
Sr. Bocage: «O meu amor foi para a India.»
BOCAGE (voltando a cabeça)
Sim? Pois quando vier… dê-lhe muitas saudades. (Segue.)
(Riso. Applauso.)
COMMENDADOR (ao Morgado)
Não lhe dizia eu?
(As senhoras voltam ás janellas do mercador.)
3.^o POETA
Mote, minhas senhoras… Mote.
«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
(Bocage aproxima-se; o 3.^o poeta fica meditando momentos.)
2.^o POETA
O mote é conceituoso.
É. Dá um banho de mar á formosura!
3.^o POETA (batendo as palmas)
«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
Cançada de esperar o terno amante,
Ero infeliz ao ceu se pranteava,
E como que o futuro adivinhava,
Aqui e alli corria delirante;
Da aurora em tanto a face radiante,
Nos mares pouco a pouco se espelhava,
E á frouxa luz ao longe se avistava
Sobre ellas um cadaver fluctuante:
A triste vacilava suspirando
Nos braços da incerteza suspeitosa,
Até que emfim se vae desenganando:
Então, desesperada e lacrimosa,
Do caro esposo os manes invocando.
«Ás ondas se lançou Ero formosa!»
(Alguns applausos.)
2.^o POETA
Bravo, Albano!… Descriptivo e sonoro!
1.^o POETA (a Bocage)
Correcto, não?
Correcto, mas frio. Não admira. Uma paixão que vae por agua abaixo!
2.^o POETA
Mote. Venha mote.
«Os roubos que me fez a má ventura!»
BOCAGE (vivamente aos poetas)
Este para mim. (repetindo immediatamente)
«Os roubos que me fez a má ventura!»
Eu deliro, Gertruria, eu desespero
No inferno de incertezas e temores,
Eu da morte as angustias e os terrores
Por ti mil vezes sem morrer tolero!
Pelo céo, por teus olhos te assevero
Que ferve esta alma em candidos amores:
Longe a riqueza, e os seus vãos favores,
Quero o teu coração, mais nada quero.
VOZES (diversas)
Bravo! Bravo!
BOCAGE (continuando arrebatado)
Ah! não sejas tambem qual é commigo
A cega divindade, a sorte dura,
A varia deusa, que me nega abrigo!
Tudo perdi; mas valha-me a ternura;
Amor me valha, e pague-me comtigo
«Os roubos que me fez a má ventura!»
(Grande explosão de applausos.)
2.^o E 3.^o POETAS
Bravo! bravo, Bocage.
1.^o POETA
Inimitavel!
3.^o POETA
Uma copia!
DIFFERENTES VOZES (em torno de Bocage)
Uma copia! uma copia.
COMMENDADOR (junto a Compadre Amancio)
Gertruria! Gertrudes!—Dava uma moeda de oiro só por uma copia d'este soneto.
Uma moeda!… É devéras?
Devéras.
Aonde lh'a heide levar? (Commendador diz-lh'o ao ouvido.—Misturam-se os grupos, continuando todos a felicitar Bocage.)
MORGADO (ao Commendador)
Quer dar uma moeda de ouro por uma copia d'aquillo! Para quê?
O sr. Morgado tem os seus segredos… Eu tenho os meus!
1.^o POETA (a Bocage)
Está aqui um amigo que nos convida a todos para o Izidro á meia noite.
BOCAGE (rindo)
Vem a proposito a ceia… para servir de jantar!
(Ouvem-se á E. os clarins e tambores dos pretos, que logo se afastam.)
As charamellas! As charamellas!
(Corre tudo á E.—N'este movimento Bocage fica um pouco isolado. Compadre Amancio aproveita a occasião e aproxima-se-lhe.)
COMPADRE AMANCIO (tomando-o de parte)
Sr. Bocage!
BOCAGE (satisfeito do triumpho)
Tambem por cá, mestre?
Venho aqui pedir-lhe um favor, que é quasi uma esmola… O sr. Bocage bem me podia remediar a minha necessidade!
Diga, mestre!
Um ginja quer copia d'aquelles versos que recitou ainda agora, e dá por ella uma moeda d'ouro… (instando) Podiamos repartir ao meio…
BOCAGE (atalhando)
Fique-se ahi, ou estraga o negocio.—Ámanhã lhe dou a copia… se me lembrar ainda. E guarde para si o que lhe offereceram. O sr. mestre póde vender barbas e sonetos, se quizer… (Compadre Amancio desfaz-se em agradecimentos.) A lyra de Bocage ninguem a paga!
(Repiques, foguetes ao longe. Afflue o povo. Está a festa no auge da animação.)
Mote, mote… Minhas senhoras, venha mote!
(Cae o panno)
*Em janeiro de 1786*
Sala em casa de Manuel Simões. Mobilia dos meiados do seculo XVIII.—Porta ao F.—Á D., no 1.^o plano, porta do escriptorio; no 2.^o plano, porta que leva ao interior da casa.—Á E. janellas de sacada.
D. FELICIA, D. MARIA JOANNA e MARIA GERTRUDES
(em trajo de passeio)
D. FELICIA (a D. Maria Joanna)
Pois muito bem, sobrinha. Truxe já o meu escudeiro de proposito.—Aproveito a occasião para ir á festa de S. Domingos. Préga hoje o Padre Mestre fr. Joaquim do Rosario… Sabe? o Padre Mestre fr. Joaquim, que vae ás nossas assembléas, e canta á viola franceza «De saudades morrerei,» com tantos requebros, que é mesmo uma suspensão?
Sei. Póde ir descançada á sua festa.—Provavelmente preciso demorar-me com o sr. Manuel Simões, visto que em resulado de conselho seu lhe entreguei por uns mezes, como precisava, a administração da minha casa.
Não se arrependa. Honrado até alli. Depois que elle me administra… por obsequio, já se vê… é outra coisa. A minha pena é não lhe ter pedido ha mais tempo. Sermões não faltam, é verdade… o dinheiro espremido, que nem que fosse d'elle… mas prompto sempre, e incapaz de arredar um fio!
Acredito.—Tinha necessidade de descanço. Passei o verão no campo, e nada examinei ainda… Parece-me que é tempo.—Já lhe mandou recado?
Está lá em baixo nos armazens. Não tarda.—E foi só por isso que veiu?… Ai! sobrinha! não faz idéa que mal me sinto dos meus hystericos vendo tratar com tanto afinco d'essas coisas uma pessoa da sua edade, e no seu caso… com tantos vinculos… com…
Por isso mesmo!
Emfim, a sobrinha gosta de se entreter em negocios!… Cá por mim… abrenuntio!… Negocios, deixo-os a quem toca. Não são para senhoras da nossa jerarchia!… (movimento de D. Maria Joanna) Não digo nada, não digo nada… A sobrinha é senhora das sua acções.—É uma conferencia então? E hade ser longa!
Não se apresse, minha tia. Tem tempo para tudo, já vê.
Deixo-lhe a afilhada para a acompanhar. Venho logo buscal-a, e de caminho darei tambem duas palavras ao sr. Manuel Simões.
D. MARIA JOANNA (sorrindo-se e ameigando-a)
E dizia que era inimiga de negocios!
Jesus! Deus me defenda!… Ai! eu, são duas palavras só. Até logo. (para sair, e voltando á afilhada.) È verdade, Maria Gertrudes. Trazes-me ahi a minha agua da Rainha d'Hungria?
MARIA GERTRUDES (dando-lhe um pequeno frasco)
Aqui está, madrinha!
D. FELICIA (recebendo-o, cheirando-o, e depois arrecadando-o)
Não posso andar sem isto… por causa dos hystericos… Até logo, sobrinha.
D. MARIA JOANNA e MARIA GERTRUDES
D. MARIA JOANNA (voltando, e olhando meio impaciente para as portas da
D.)
Demora-se!… (pausa.) Está triste, Maria?
Eu, minha senhora! Triste! Porque?
Não tem razão, decerto. Minha tia não a póde trazer mais estimada, e merece-lh'o.
A minha rica madrinha! Não sei como lhe hei de agradecer a creação que me deu… e o muito que me quer!…
Querendo lhe tambem, como faz.—Vamos, d'ahi não procede o mal. Do que de ordinario mais inquieta na sua edade menos ainda.—Se não me engano, está em Lisboa um certo cadete… já poeta de fama… cada dia de maior fama, que… É certo?
MARIA GERTRUDES (atalhando, envergonhada)
Oh! minha senhora!
Então que tem? Uma inclinação não está mal… Em se não faltando ao recato!… E elle mostra-se respeitoso, que é sempre bom indicio… Todos os casamentos por ahi principiam, e estou que não quer professar.—Que lhe diz o coração?
MARIA GERTRUDES (olhando receiosa em redor)
Nunca fallei n'isto, nem a minha madrinha!
Pudéra! Fallo-lhe eu, porque tambem lhe sou afeiçoada. Provavelmente não se entendia tão bem com minha tia.
O coração… Nem, eu sei.—O sr. Bocage diz-me coisas como ninguem… (inadvertidamente) mas o outro…
Ah!… Ah! temos outro!…
MARIA GERTRUDES (toda balbuciante)
Eu disse outro? (animando-se.) Disse. Disse, porque é verdade… (acudindo.) A culpa não é minha!
Está visto. Pois nós temos culpa nunca d'essas… complicações!—E o outro?
MARIA GERTRUDES (quasi chorando)
Foi um ingrato! Não posso, não devo mais lembrar-me d'elle…
Então d'ahi estamos desenganadas. Naturalmente fica preferido o poeta.
MARIA GERTRUDES (hesitando)
Ai! agora fica… (mais decidida.) Fica… mas…
Mas?… Suspeito d'esse mas.
MARIA GERTRUDES (meio impaciente)
Tomára quem me ensinasse como se conhece um amor verdadeiro. (achando uma idéa.) Ah!… A sr.^a D. Maria Joanna hade saber… É viuva, sabe… Diz-m'o?
Eu!… (enleiada.) Devia saber, devia… mas… (comsigo.) Aqui estou eu tambem a cair nos mas…
MANUEL SIMÕES (dentro)
Ainda agora m'o dizem!
D. MARIA JOANNA (comsigo)
Vem muito a proposito o sr. Manuel Simões.
AS DITAS, MANUEL SIMÕES (da porta, 2.^o plano, á D.)
Que vergonha!… que vergonha para esta casa!…
Que é isso, sr. Manuel Simões?
Fazerem esperar tanto tempo s. s.^a!… N'este instante me deram o recado, aquelles brutos… Que hade dizer?… Hade dizer que nem sei tratar com pessoas de condição, eu, Manuel Simões, que toda a minha vida… com bem o digamos… fui favorecido da grandeza!… eu, um compadre de dois marquezes!… (corrigindo-se) De dois… de um, que o outro…
O outro já lá vae.—Não se afflija com isso. Esperei, mas não me enfastiei. E bem era que esperasse, que o negocio é meu…
Negocios!—É verdade… a sr.^a morgada? Em seu nome me levaram o recado.
Vim com ella. Foi á festa a S. Domingos. Volta logo.
MANUEL SIMÕES (admirado)
Negocios! V. S.^a! Commigo!
Pois não me tomou a administração?
Por pouco tempo, disse-lh'o logo… Estou já tão sobrecarregado!…
Depois, estas administrações… afastam-me do meu giro.
Justamente. Ahi verá se precisamos fallar. Para não o incommodar mais, e tomar a direcção da casa, preciso examinar, preciso esclarecer-me… e agora ninguem melhor do que o sr. Manuel Simões.
MANUEL SIMÕES (attonito)
Ah!
Admira-se?
Admiro, porque não é o costume. Admiro, mas approvo. Quando quererá sua tia D. Felicia fazer o mesmo, ou pelo menos ouvir-me? Pois devia… devia, que se continua como vae, não sei como hade ser… Por mais que lhe peça, por mais que lhe diga, nada. Não quer saber senão de dinheiro… Como se o dinheiro se cavasse!… Quando lhe fallo em contas, dão-lhe os seus hystericos, e… acabou-se, não é possivel.—Os papeis estão todos em ordem no meu escriptorio (indica a porta respectiva). Não é casa costumada a donaires, mas se não a assusta…
D. MARIA JOANNA (dirigindo-se á porta indicada)
Pois a que vim eu?
MANUEL SIMÕES (reparando em Maria Gertrudes e com certo affecto)
Ai! a menina Maria Gertrudes! Já aqui lhe mando minha irmã Monica para lhe fazer companhia.
Não é preciso… Vou eu mesmo procural-a, se me dá licença.
MANUEL SIMÕES (como acima)
Bem sabe que é de casa! (encaminha-se ao escriptorio.—Como lembrando-se de repente) Oh!… (Novamente ás senhoras) Permittem? (indo á porta da D., 2.^o plano) Levem lá para baixo essas peças de saragoça, que hão de ir ámanhã para Abrantes… e arêjem-me as baetas, não se esqueçam… (voltando) Isto, se eu não determinar tudo!… (inclinando-se e esperando á porta do escriptorio que D. Maria Joanna passe.—Sae D. Maria Joanna e Manuel Simões.)
MARIA GERTRUDES, pouco depois FRANCISCO
Hade ser grande a demora e a espera. (indo á janella) Não são como as nossas estas ruas da baixa. É um borburinho de gente sempre! (Chega-se á janella.—Entra Francisco do F. Vê-a e não póde reprimir um movimento de involuntario alvoroço.)
Ah!
MARIA GERTRUDES (voltando vivamente, vendo-o)
Ah!
FRANCISCO (constrangido)
Desculpe… Não a esperava aqui… Já me retiro.
MARIA GERTRUDES (do mesmo modo)
Póde ter que fazer… Sou eu que vou procurar sua tia.
(Dão alguns passos; elle dirigindo-se ao F.; ella passando á D.—Quando vão a affastar-se, param e voltam-se quasi simultaneamente.)
FRANCISCO (com vivacidade)
Chamou?
MARIA GERTRUDES (de olhos no chão)
Chamou?
FRANCISCO (depois de pausa)
Nada.
MARIA GERTRUDES (idem)
Nada.
Adeus, menina Gertrudes!
Adeus, sr. doutor.
(A ponto de retirar-se, ella pela D., 2.^o plano, elle pelo F., Francisco torna atraz)
Quer-me ouvir um instante?
O sr. doutor está em sua casa! (de olhos baixos.)
FRANCISCO (picado)
Ah! é só por isso? E porque me não chama Francisco como d'antes?
Um doutor, já formado!—E porque me trata por menina? Não era o seu costume.
São preceitos do seu poeta?
Receia que o vão dizer á sua apaixonada?
Uma apaixonada, eu!
MARIA GERTRUDES (com impeto)
Hade negar que teve o outro dia uma briga por causa da Esteireira que representa no Salitre?
Ia passando… É mulher… Insultavam-n'a… defendi-a.
MARIA GERTRUDES (com ressentida ironia)
Deu agora em defender todas as mulheres! até mulheres que representam no theatro!… E o que ella lhe está obrigada… E o que falla no senhor!… no sr. Doutor!… E o que…
Mas se lhe digo…
MARIA GERTRUDES (atalhando)
Não negue… sei tudo… Contou-me tudo a mulher de um torneiro, que tem o marido na cadêa, e vae lá ás vezes ás Portas da Cruz, fallar á madrinha para peditorios… (elle quer atalhar; ella não o deixa.) Conhece tambem a tal creatura, a mulher do torneiro… ouviu-lh'o mesmo da sua bocca… (como acima) Veja se é verdade, ou não!
FRANCISCO (desesperado)
Pois é verdade… será verdade… Porque não hei de estar apaixonado de uma comica, se a menina não vê senão o seu novo arrojado.
MARIA GERTRUDES (quasi chorando)
Ólhe? Confessa!
Nem se atreve a dizer que não!
Depois do que me tinha promettido!
Depois do que me tinha protestado!—E eu que voltei ainda tão descançado para Coimbra, depois d'aquella vespera do Corpo de Deus o anno passado!… Estava entretido a responder a meu padrinho quando por alli andavam os poetas a versar… Nem dei por cousa nenhuma… Parti logo no dia seguinte de madrugada, e demorei-me depois até me doutorar… Andava cego… Mas apenas cheguei ultimamente a Lisboa, tive logo quem me abrisse os olhos.
MARIA GERTRUDES (vivamente)
Quem?
Quem? É verdade, já vê.—Quem? Uma pessoa de porte e de respeito… uma pessoa que não mente!… (mostrando um papel) Lembra-se do soneto que fez o Bocage ao mote que lhe deu n'essa noite? (lendo.)
«Eu deliro, Gertruria, eu desespero.»
Gertruria, Gertrudes! É evidente. (lendo)
«Pelo ceu, por teus olhos te assevero
Que ferve est'alma em candidos amores.»
Ferve-lhe a alma em amores… Escreve-se isto!… Querem-n'o mais claro?
MARIA GERTRUDES (picada)
Porque me não hade o sr. Bocage fazer versos, se o sr. Doutor tem a sua apaixonada!
Outra vez a apaixonada! Sim? Não tem mais que me dizer? (suffocado) Pois eu estava morto por encontral-a em liberdade, para lhe declarar… que está tudo acabado…
Isso esperava eu!…
FRANCISCO (continuando)
E para lhe jurar, por alma de quem Deus tem, que haja o que houver…
Não jure, sr. Doutor, não se cance… Não é preciso… (com dignidade) Sua tia está lá dentro, não? Sou pobre, sou humilde, mas não obrigo ninguem. Faço-lhe a vontade. (Sae.)
FRANCISCO, só
Viu-se nunca uma coisa assim! Ainda em cima! É ella que me faz a vontade!… (passeiando agitado.) Quem me havia de dizer?… Com aquelles modos innocentes… Ah! mulheres, mulheres! O que são as mulheres!… Que heide agora fazer? Queria-lhe mais que á vida, mas humilhar-me, não… Embarco… é o verdadeiro… Embarco… vou para longe. Tomára eu uma vida em que nem ouvisse fallar de mulheres… Meu pae não consente de certo… Ah!… Meu padrinho… Vou hoje mesmo fallar a meu padrinho para que me alcance…
FRANCISCO e MANUEL SIMÕES
MANUEL SIMÕES (á porta do escriptorio)
Falta a escriptura do arrendamento da Carvoíça. Tenho-a na carteira do armazem… Trago-a já.
FRANCISCO (correndo ao pae)
Meu pae, quer-me ouvir.
MANUEL SIMÕES (complacente)
Ai! é o sr. doutor… Deixa-me que estou com pressa.
São duas palavras. Pensei melhor. Escusa de fallar á sr.^a D. Felicia…
Não caso já com a afilhada.
MANUEL SIMÕES (indignado e attonito)
Que é isto! Então assim se fazem e se desfazem essas coisas! «Dei-lhe palavra!… Já não caso!…» Assim zomba de seu pae, sr. Francisco Pedro!… Cuida que por ter o grau, já não sou quem sou?… Desembargador do paço que fosses, não consentia que me faltasses ao respeito… Já não casas!… Agora?… Depois de te formares, que era só o que faltava!… Tinha que ver!… Costumei me a considerar a pequena como filha!… E não sabes tambem que já dei uns longes á morgada?… (Entra o commendador.) Queres que passe por um catavento n'aquella casa, que por fim de contas é uma casa honrada!… Pensasses antes.—O dito, dito: casas… Queiras ou não queiras, has de casar!
OS DITOS e o COMMENDADOR
COMMENDADOR (intervindo a Manuel Simões)
Faça a vontade a seu filho. (a Francisco) Descance que não casa.
MANUEL SIMÕES (furioso)
Quem diz que não casa?… (vendo o commendador, e moderando-se.) Ah! é o sr. commendador… Se fosse outro!… Isto são coisas de familia… V. s.^a não sabe…
Sei… e hade chegar-se á razão.
Pois eu na minha casa, não posso…
COMMENDADOR (tomando-o de parte.—Francisco affasta-se)
O padre Ignacio deseja que se não faça este casamento.
MANUEL SIMÕES (respeitosamente)
O padre Ignacio!
Bem sabe o que lhe deve, e o que deve aos padres da Companhia!… O irmão Simões não quer desobedecer decerto… e fazia mal se desobedecesse, que o nome acabou, mas o poder hoje revive!
MANUEL SIMÕES (fitando-o aterrado)
O sr. commendador tambem é?… (o commendador faz-lhe signal de silencio: a meia voz.) Os padres sabem que nunca desobedeço… Mas que interesse pódem ter…
Não é preciso que o saiba.
E quem me assegura…
Que o não engano? Veja este bilhete. (dá-lh'o.)
MANUEL SIMÕES (lendo)
«Faça quanto lhe disser o sr. commendador de Monsarás.—Padre Ignacio!» (resignado.) Não casará.
Agradeça a seu pae, que por minha intercessão lhe faz o gosto.
MANUEL SIMÕES (comsigo)
Com esta gente nem pae se póde ser!…
FRANCISCO (humilde e tristemente)
Meu pae…
Está bom, está bom… O sr. commendador deseja mais alguma coisa?
Tenho ainda que lhe fallar a respeito do negocio de um amigo meu, que hade aqui vir ter commigo.—Está occupado agora?
Estava ajustando umas contas, e confesso que muito desejo concluir.
Conclua, conclua. Não tenho pressa, e o meu amigo ainda não chegou.
Esperarei, se m'o permitte.
Está em sua casa. Dando-me licença, vou acabar. (comsigo.) E o tempo que já tenho perdido!… (como occorrendo-lhe.) Olha, Francisco… Vae lá abaixo ao armazem… abre a carteira… aqui tens a chave… (dá-lha) hasde achar ao canto da direita um masso pequeno, atado com um nastro encarnado. Manda-m'o aqui ao escriptorio, e a chave tambem… Pódem vir de roda para não incommodar o sr. commendador e o seu amigo, se já tiver chegado. (Francisco sae. Para o commendador.) Aproveito o obsequio, e abreviarei o que poder.
COMMENDADOR só, pouco depois MORGADO
COMMENDADOR (saboreando uma pitada)
Bem diziam os escriptores da gentilidade: estavam fóra de si os deuses quando inventaram o homem, e mal recobraram o tino desataram a rir pondo os olhos na sua obra. Tudo n'elle é vão. Vana mortalitas, como lhe chamava Plinio, o Historiador. Movem-se por um fio… (sentando-se) Tudo está em saber-lho atar. (Entra o morgado esboforido e derreado.) Chega a proposito, morgado… ia-me tardando… Que é isso?… Teve alguma coisa?… Aposto que fez das suas… Não quer domar esse genio!…
MORGADO (lisongeàdo)
Não posso. Muitas vezes quero ter mão em mim… mas qual… todo eu sou fogo.
Deixe, deixe. «Casarás, amansarás!»—Foi briga, pendencia, rixa, desafio?… Pois nem pensando em sua prima, deixa descançar a espada! Quer ser como Lucio Licinio Dentato, que oito vezes em repto singular saiu vencedor á vista de dois exercitos?…
MORGADO (mais lisongeado)
Cada vez o vejo mais: o commendador é um amigo devéras… um amigo como ha poucos…
COMMENDADOR (sorrindo)
Ainda agora dá por isso!—Homem, é boa a fama de valente para captivar as damas, mas nem tanto que assuste. Brigou?
Nada. (com fatua arrogancia.) Não acho já quem queira.
COMMENDADOR (comsigo)
Miles gloriosus!
Quê?
Estou morto por saber o que teve… que o morgado não vinha no seu natural.
Que havia de ser?—Esta manhã, para matar o tempo, fui até á feira das cavalgaduras… alli pela banda do nascente do passeio… Bem sabe o meu fraco. Estava na barraca dos juizes, segundo o costume… Tudo entendedores de mão cheia… Não sei como se passou o tempo… o caso é que deram dez horas… Era a hora a que tinhamos ajustado o nosso encontro aqui… Despedi-me á pressa… instaram-me que ficasse… Se elles não pódem passar sem mim! Foi preciso dizer-lhes que tinha que fazer na baixa, e era tarde já… O Domingos Sanches… aquelle polvorista rico… Decerto conhece… (gesto negativo do commendador.) Ora, não conhece outra coisa!… O Domingos Sanches quiz por força que viesse no seu lasão… um lasão melado… bonito animal… mas de maus signaes… gazio dos olhos, e bebendo em branco… «Não és boa peça, não,» disse eu logo commigo… «esperem que vão ver o que é o morgado da Gesteira a cavallo!…» (enthusiasmando-se.) Estava tudo attento… Monto… como eu costumo montar… O cavallo, apenas me sente, começa a defender-se, e a negar-se… Eu aperto-lhe as esporas… Elle atira dois saltos encabritados… Eu cozo-me com a sella… Elle furta-me o corpo…
COMMENDADOR (depois de breve pausa)
E depois?
Depois… caí!
COMMENDADOR (erguendo-se, sem poder suster o riso)
Caiu?… Cuidei… Caiu!…
MORGADO (mais enthusiasmado)
Mas como eu cai!… com todos os preceitos… Ficou tudo pasmado!
Creio, creio… E o cavallo?
Fugiu.—Para não perder tempo, vim ás carreiras… Ahi tem a razão da demora.
Bem empregada foi, visto que lhe proporcionou triumpho similhante.—Tacito conta que Julio Cesar, o fundador do imperio, tambem caiu d'um cavallo… Provavelmente caiu assim.
Favores, favores.—E a respeito do meu negocio? Fallou já a Manuel
Simões?
A respeito do seu negocio ainda não. Está ajustando umas contas, não tarda. E primeiro temos nós que fallar, porque emfim… (Sussurro na rua.—applicando o ouvido.) Espere. Não ouve?
Oiço. Parecem gritos de agarra! (Chegam ambos á janella do 2.^o plano, e debruçam-se para ver.)
OS DITOS, MANUEL SIMÕES, e D. MARIA JOANNA (á porta do escriptorio)
Enganou-se o Francisco. Não era aquelle o arrendamento… (vae a avançar, e detem-se vendo os dois) Ai! que já me não lembrava.
D. MARIA JOANNA (rapidamente)
É o commendador Louzéllos, e o morgado da Gesteira?
São.
Quizera esquivar-me ás suas importunidades.
Não a viram. Póde esperar no escriptorio… O peior é que talvez tenha de me demorar um pouco. São horas de enfardar as fazendas, e…
Vá, vá… Não tenho pressa. Espero.
MORGADO (attento para fóra)
Vê o que é?
São os rapazes a correr… Ah! agora… É um cavallo solto… e é lasão… Será o tal?
MORGADO (affirmando-se)
É, é!
MANUEL SIMÕES (rapidamente a Maria Joanna)
Se lhes não quer fallar…
D. MARIA JOANNA (fechando a porta)
Até logo. (fecha vivamente a porta.)
OS DITOS, menos D. MARIA JOANNA
E como elle se leva! Não o apanham, não.—Já se não vê.
COMMENDADOR (voltando tambem e rindo)
Em vez de vir o Morgado atraz do cavallo, veiu o cavallo atraz do Morgado. (vendo Manuel Simões) Ah! Sr. Manuel Simões! Acabou já as suas contas?
Ainda não. São horas de carregar as fazendas que hão de embarcar ao meio dia, e se eu não assisto… Não tendo v. s.^a coisa de maior urgencia… Na minha vida não se póde perder um instante!…
Já lhe disse que o não quero estorvar.—Sei o que é a lida de uma casa, no ponto a que chegou a sua… (intencionalmente) Vamos, que lhe não tem corrido mal… Passei ainda agora pela loja, e vi a azafama que por lá ia… Uma fileira de carros á porta, e um deitar abaixo de fazendas das prateleiras, que era um terramoto!
MANUEL SIMÕES (cobrindo o rosto com as mãos)
Um terramoto!… Jesus! Santo nome de Jesus, sr. Commendador! Pelo amor de Deus, não diga essa palavra diante de mim! Já lá vão trinta annos, e ainda me parece ver as torres da Sé a dançar!… E a minha casa!… E a minha pobre mulher, a primeira, que alli ficou!… E toda essa ira de Deus!… (benzendo-se) Em nome do Padre, do Filho, e do Espirito Santo!… Todo eu me arripio ainda.
Tem razão… não direi mais… Mas o que lá vae, lá vae! E dê graça a
Deus (intencionalmente) pelas boas protecções que tem tido!
MORGADO (cumprimentando obsequiosamente)
Sr. Manuel Simões!
MANUEL SIMÕES (seccamente)
Viva, sr. Morgado! (ao Commendador) É o amigo que esperava?
Em pessoa.
MANUEL SIMÕES (ao Commendador)
D'aqui a meia hora, o mais, estou ás suas ordens.
Não se apresse… Temos tempo.
MORGADO e COMMENDADOR
Vê como elle me trata? Oh! que se não fosse…
Quando estiver de posse da casa de Carregueiros, faça-lhe o mesmo.
Oh! isso!… E ha-de ser quanto antes. Estou resolvido a acabar de vez com estas incertezas e duvidas de minha prima. Tenho o remedio na mão.
COMMENDADOR (com o seu sorriso)
Tem?… (indo examinar a porta do F. e a da D., 2.^o plano, e depois voltando.) Ninguem na casa de fóra, nem no corredor… Estamos sós e á vontade… Podemos conversar um pedaço.—Com quê… resolveu casar com sua prima quanto antes? Faz muito bem. Casar, e casar rico, era já conselho de Plauto. Nubere in divitias!
Faço muito bem? É devéras a sua opinião, Commendador?
Pois porque não há de ser?
Quer que lhe diga uma coisa?
Diga.
Andei muito tempo desconfiado… Loucuras minhas, agora vejo!… Uma pessoa prudente e de juizo, como o commendador?…
Diga sempre. De que andou desconfiado?
Tinha-me querido parecer que se inclinava a galantear tambem minha prima.
COMMENDADOR (tranquillamente)
Não se enganou.
MORGADO (sobresaltado)
Não me enganei?
Socegue. Passou-me isso pela cabeça na jornada em que a acompanhei de Paris… Mas reflecti depois.—Socegue. Já lá vae.—Escreveu-me um antigo conhecimento de Santa Clara.
MORGADO (malicioso)
Ah! chegaram-lhe lembranças dos doces e da grade!
Reflecti… dês que o encontrei.
MORGADO (lisongeado)
Dês que me encontrou?
E principalmente quando o conheci a fundo. Cada vez tenho por mais seguro que ninguem convem tanto a sua prima… nem a mim.
MORGADO (admirado)
Nem ao Commendador?
Reflecti muito.—Sua prima está ainda no calor da mocidade, não lhe ficaram as melhores impressões do primeiro matrimonio, e ha-de querer indemnisar-se… O segundo marido leva grande responsabilidade e grandes trabalhos!… Eu, o que preciso é descanço… Mesa substancial, o meu copo do Porto velho, os meus livros… e uma boa sege á bolea. A doirada mediania, de que falla Horacio Flacco, o Venusino.—N'isto assentei… e veja como o tenho ajudado.
MORGADO (convencido)
Assim é, assim é. Realmente, não sei como lhe hei de pagar tantas obrigações!
COMMENDADOR (sorrindo)
Ah! isso não lhe dê cuidado.—O Bocage não o affronta já: está todo captivo da afilhada de D. Felicia… E a afilhada de D. Felicia… não lh'o prognostiquei?… deu já de mão ao filho do mercador. O tenente, de um momento para o outro… D'esse depois se tratará, sendo preciso.—Bem vê como lhe abro praça, e o deixo só em campo tornando-lhe facil a victoria. (vae sentar-se á E.)
MORGADO (recuando com uma especie de terror)
E tudo por amizade!
A amizade é o meu fraco. Chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa. (O morgado senta-se-lhe ao pé.) Manuel Simões não parece muito disposto a dar-lhe ao cincoenta moedas de que me disse precisava infallivelmente.
E preciso. Que faria eu diante de minha prima sem real?
COMMENDADOR (preparando a caixa para tomar uma pitada)
Mau era na verdade… Mas a Gésteira, que nunca chegou para muito, já não dá para mais… As vinte moedas, qne lhe arranjei o anno passado, foram-se n'um instante á banca, e ao loto de Génova… Manuel Simões sabe tudo isto perfeitamente, vê-o afogado n'um diluvio de hypothecas, e não é homem que deite o seu dinheiro pela janella fóra… (offerecendo-lhe a caixa) Toma?
MORGADO (erguendo-se consternado)
Mas então como ha de ser? Se me mandou vir aqui só para me dizer isso!…
Hade ter as cincoenta moedas; abono-o eu.
MORGADO (sentando se e abraçando-o)
Isto é que é um amigo.
COMMENDADOR (saboreando a pitada)
Que rendimento terá a sr.^a D. Maria Joanna? Já averiguou?… Hade ter averiguado.
Só da casa de Val-Moreno, que recebeu pela mãe, anda por cinco mil cruzados.
COMMENDADOR (offerecendo-lhe tabaco)
Serve-se? (Morgado tira machinalmente uma pitada.) É isso.—Quanto aos vinculos de Fresnos e Carregueiros… que lhe tocaram por parte do pae, e que o pae tinha herdado de seu irmão o Capitão-mór, marido de D. Felicia, que morreu sem filhos… quanto aos vinculos de Fresnos e de Carregueiros, deve andar cada um para mais ainda… principalmente o de Carregueiros.
Não tem menos de quinze a dezeseis mil cruzados ao todo. Mas a que proposito…
Calculos necessarios. Vinte moedas em junho passado, cincoenta agora, fazem setenta… que o morgado vem a dever-me.
MORGADO (como protestando)
Devo, devo… Heide dever, e heide pagar… juro-lhe. Juro por… pela cruz da minha espada.
Se podesse jurar por outra coisa!
MORGADO (offendido)
Duvída?
Ha viver e morrer.—Homem, a commenda, bem sabe, apenas me chega para viver com decencia… e parcimonia.—Suetonio, e outros auctores, louvam a parcimonia como virtude; mas Terencio tem que a dureza da vida não é para gente adiantada… e eu sou da opinião de Terencio!—O morgado não ha-de querer que perca assim setenta moedas!
MORGADO (desconfiado)
Deseja alguma segurança?
COMMENDADOR (saboreando a pitada)
Quasi nada. O morgado faz-me uma escriptura de divida de trinta mil cruzados!… e sou eu que lhe hei-de pôr a data!
MORGADO (erguendo-se de subito e exclamando furioso)
Trinta mil cruzados! Dois annos de rendimento da casa de minha prima!…
COMMENDADOR (tranquillamente)
Não grite.—Ólhe se estivesse ahi alguem perto?
MORGADO (contendo mais a indignação)
Trinta mil cruzados para pagar setenta moedas!
Quem lhe diz isso? Para deitar sege, e ter honradamente as commodidades que me faltam.—Oiça, e entre na razão. Desistindo de aspirar á mão de sua prima, renuncio áquella riqueza toda. Não tem valor isto? E faço mais; trabalho para desafogal-o de rivaes perigosos… perigosos, podemos dizel-o entre nós. Não merecerão estes serviços trinta mil cruzados? Contou bem. São dois annos do rendimento de sua prima. Póde pagar em quatro. Fica-lhe ainda metade. Veja quem lh'o fazia por menos.—Não recuse, ou ponho-lhe quarenta por condição.
Por condição?
Por condição. E hei-de obtel-a.—Ha condições de muitas especies. No codigo de Justiniano, e nos cincoenta livros dos Pandectas, que lhe servem de commentario…
MORIGADO (atalhando-o desesperado)
Quaes Pandectas nem qual Justiniano! Esse pinhal de auctores e de latins, é um pinhal da Azambuja. (passeiando agitado) Trinta mil cruzados!… Nada, não me deixo roubar… Tão tolo era eu que assinasse similhante escriptura!… Poem-me condições!… a mim!… Sempre quero vêr!…
COMMENDADOR (cruzando a perna tranquillamente e tirando um papel do bolso)
Hade ver.
Poem-me condições!… E d'essas!… É muito caro o seu auxilio, commendador. Dispenso-o. Tenho outro modo de convencer minha prima, mais seguro e mais barato.
Mais barato, duvido.
Verá.
O seu famoso segredo?
Verá.
COMMENDADOR (socegadamente)
Pois então experimente. (O morgado pára e fita-o.) Vá dizer a sua prima: «Prima, tenho aqui uma declaração, que me entregou nos ultimos momentos a Simôa da Torre da Palma…» É provavel que a traga no bolso… (O morgado leva vivamente a mão ao bolso, como para verificar se lá está o papel indicado.) Traz, descance!…
MORGADO (mais tranquillo)
Conjecturas para pescar verdades… O ardil é velho.
Quer saber o que diz a declaração? (desdobra o papel que tem na mão. Estão ambos attentissimos um para o outro. Descerra-se mansamente a porta do escriptorio, e D. Maria Joanna apparece alli, a rapidos intervallos, observando.)
OS DITOS e D. MARIA JOANNA (meia occulta)
COMMENDADOR (lendo)
—«Por temor de Deus, e amor da verdade, eu Joaquina Simôa, familiar da casa da Torre da Palma, tendo presentimento de que me chegará breve a hora de dar contas, e não querendo condemnar a minha alma, declaro o seguinte, que n'esta hora confirmo com juramento aos Santos Evangelhos, em presença do reverendo padre cura de Vayamonte, e por sua exhortação e conselho…» (O morgado, primeiro attonito, depois aterrado, tem tirado do bolso a outra declaração, como para comparar com o que ouve, e parecendo duvidar ainda.) É exactamente isto?
Ou o commendador tem parte com Satanaz… ou é verdade o que dizem!
COMMENDADOR (negligentemente)
Então que dizem?
Dizem que é um jesuita… dos que não trazem roupeta.
COMMENDADOR (severamente)
Sr. morgado, não repita levianamente as maledicencias do vulgo, que se póde arrepender!—Quer verificar o resto da declaração? Conta n'ella a Simôa:—como estando já separada do marido a morgada da Torre da Palma, a filha della Simôa adoecéra;—como o capitão mór, em casa de quem a mesma Simôa nascêra e se criára, a reduzira a prometter-lhe que, se a creança morresse, lhe substituiria a filha d'elle e de D. Felicia, e faria passar por morta a herdeira, tudo isto para que os bens de Carregueiros passassem a varão;—como o escudeiro Luiz Manuel fôra mandado administrar uma herdade da casa ao pé de Olivença, até á morte do Capitão-mór, para que nem elle soubesse do segredo, de que a mulher ficava unica depositaria;—finalmente como a Simôa, levada das obrigações que devia á casa do Capitão-mór, tivera a fraqueza de ceder, e criára como sua a filha de D. Felicia, até que esta a mandou buscar já crescida cuidando ser a afilhada.—Está tudo claramente explicado, e devidamente datado e assignado.
MORGADO (subjugado)
Essa declaração passou das mãos da Simôa ás minhas… nunca a mostrei… nunca a larguei… Como é possível sem ser por artes sobrenaturaes…
Tem innocencias!—Dei uma volta a Vayamonte. O cura é… É meu amigo. Não me podia negar a minuta do papel que elle mesmo escrevêra. (sentando-se de novo) Como iamos dizendo… O morgado vae a sua prima… mostra-lhe esse documento, e diz-lhe: «a supposta afilhada de sua tia D. Felicia é sua prima direita, e herdeira da casa de seu tio Capitão-mór. Este papel e este segredo valem dois terços da sua riqueza. É a unica prova. Se quizer que tal prova desappareça, case commigo. Nada tenho de Adonis; sou um tanto nescio; fallador insoffrivel e farfante rematado.» (Movimento do morgado) É tudo isto, é, morgado… e mais alguma coisa. (Como se proseguisse o discurso do morgado.) «Mas,—continuará,—rasgando este papel é como se lhe trouxesse em dote os vinculos de Fresnos e de Carregueiros.» O argumento conclue. Entra na ordem d'aquelles a que Cicero chamava: argumento premente. Ora como o tenente Gonçalo Mendo não é ainda coisa certa, e como ninguem perde de vontade dez mil cruzados de renda, sua prima fecha os olhos, convence-se, e o morgado casa. Com isso conta, e faz bem em contar. Nada mais solido, mais engenhoso e brilhante. Que pena, se apparecesse esta minuta, e pela data se visse que o sr. morgado tem ha oito mezes em seu poder a declaração, sem a entregar!… Era deitar tudo a perder!—Verdade, verdade; não vale quarenta mil cruzados?
Quarenta agora!…Trinta!…Tinha dito trinta!…
COMMENDADOR (abrindo a caixa)
Tinha? Enganei-me. Quem se não engana? Lucio Floro, da nobre familia dos Anneanos, conta que um engano decidiu uma batalha, e Seneca chama-lhe allucinatio para mostrar a perturbação mental que o determina (voltando-se mesmo sentado, inclinando-se sobre a esquerda, como para evitar que a pitada que vae sorver lhe macule a tira.) Foram quarenta, nem menos um real… E se hesita…
MORGADO (acudindo)
Não hesito… Assigno-lhe a escriptura.
D. MARIA JOANNA (que se adiantára sem que os dois, absorvidos na conversação a presentissem, apresentando-se entre ambos com jovial placidez)
E eu sirvo de testemunha!
COMMENDADOR (erguendo-se sobresaltado)
A sr.^a D. Maria Joanna Galvão aqui!
D. MARIA JOANNA (com o mesmo modo prazenteiro)
Porquê? Não sou interessada?
MORGADO (enleiado)
A prima, naturalmente, não sabe ainda…
D. MARIA JOANNA (atalhando como transfigurada, com grave altivez o severa dignidade)
Sei… Sei que o sr. morgado da Gésteira me entrega immediatamente esse papel… e o sr. commendador esse tambem!
OS DITOS, BOCAGE e GONÇALO MENDO, (apparecendo ao F. e detendo-se a observar)
Ha de perdoar, prima. Este papel foi-me confiado.
D. MARIA JOANNA (como acima)
De que modo correspondeu á confiança?—Esse papel é o allivio d'uma saudade, a consolação de uma familia, a restituição d'um patrimonio… Esse papel é a consciencia e o dever. Tem direito de o conservar nas suas mãos?
COMMENDADOR (de parte ao morgado)
Não ceda. Se fica ella com a prova, fica o morgado sem o casamento!
D. MARIA JOANNA (sem os perder de vista)
Sr. commendador, não se envileça mais… nem faça envilecer mais o sr. morgado! A cegueira de um homem, que já não vive, privou sua propria filha do nome e dos bens que lhe pertenciam… O temor da hora extrema corrigiu essa injustiça… (crescendo em indignação) Sobre este erro, que é para chorar, sobre este remorso, que devia ser sagrado, ajusta-se um pacto infame… (Movimento dos dois.) Infame, repito!… Um mercadeja a honra, outro a consciencia!… Um sacrifica a natureza, outro o decóro!… Isso tudo que é senão valor para traficar, fazenda para vender?… Que importa a filha desherdada? Que importa a mulher offendida? A mulher ha-de calar-se e consentir. É o seu interesse… Pensaram isso?… Pensaram, e nem lhes passou pelo rosto o pejo de o pensarem! É o mal das indoles corrompidas não admittirem sequer a existencia de corações sãos e inteiros, para quem a satisfação do dever seja a primeira riqueza! Fizeram-me o ultrage de me julgar por si. Não o podiam imaginar maior!—Sr. morgado, esse papel!… Sr. commendador, esse papel!
Se outra pessoa que não fosse a prima se atrevesse a dizer-me similhantes coisas!…
(Bocage quer adiantar se; Gonçalo detem-n'o.)
Estes papeis pertencem-n'os!
D. MARIA JOANNA (mais exaltada)
É a minha tia que pertencem. Sou eu que lh'os quero entregar!… Sou eu que devo entregar-lh'os!… Não me obriguem a…
GONÇALO (adiantando-se e interpondo-se com respeitosa serenidade)
Perdôe, sr.^a D. Maria Joanna Galvão… Uma senhora da sua qualidade não póde entender-se com estes senhores.
BOCAGE (com ironia mal dissimulada)
Estes senhores vão pôr já nas suas mãos os papeis que lhes não pertencem.
GONÇALO (com terrivel frieza, crescendo contra o morgado, que recua na sua presença)
O sr. morgado não ha-de querer desattender sua prima!—O papel?
BOCAGE (do mesmo modo ao commendador)
O sr. commendador de certo não falta ao respeito a uma dama.—O papel?
(O Morgado e o Commendador, tranzidos e suffocados, entregam os papeis aos homens que teem diante.)
GONÇALO (entregando reverentemente o papel a D. Maria Joanna)
Aqui está.
BOCAGE (idem)
Aqui está.
OS DITOS e D. FELICIA, entrando do F. pelo braço de MANUEL SIMÕES, que vem sem chapeu
Isto é coisa que se creia! Obrigar-me a sair assim pela rua fóra, eu, um compadre dos dois marquezes!
Queria que entrasse pelos armazens, ou désse o braço ao escudeiro? Viu-o na loja… chamei-o para me acompanhar. Vinha com o meu hysterico, e já não podia…
D. MARIA JOANNA (correndo a ella e atirando-se-lhe ao pescoço)
Minha tia! minha tia! Mal sabe…
Credo, sobrinha! Olhe que me desmancha o penteado. Isso são modos de uma senhora?—A afilhada não está na sua companhia?
Está lá dentro com a mana Monica.
D. MARIA JOANNA (alvoroçada)
A sua… a minha… (dando-lhe o braço do outro lado e levando-a comsigo.) Venha, venha, que a espera uma grande alegria.
D. FELICIA (toda turbada)
Que dia de juizo é este!—Não me largue o braço que não estou boa, sr.
Manuel Simões.
(Saem pela porta do 2.^o plano da D.—D. Maria Joanna puxando por D. Felicia, D. Felicia puxando por Manuel Simões.)
BOCAGE, GONÇALO, COMMENDADOR e MORGADO
(Pausa em que os quatro se medem reciprocamente.)
GONÇALO (rindo, para Bocage)
Conhece alguma coisa mais horrenda do que o sr. morgado quando se faz amarello?
Conheço: é o sr. commendador quando se faz verde.
Oh! que se eu me não contivesse… Mas contenho-me.
COMMENDADOR (com o seu sorriso)
Motejos sempre, sr. Bocage! Plinio, o moço, celebra como coisa de muito apreço a graça das palavras!
BOCAGE (a Gonçalo)
Está mais verde ainda… Foi a peçonha que se lhe derramou!
Oh! que se eu me não contivesse!…
Já disse isso!
Que lhe parece, sr. Gonçalo Mendo! Acabamos com esta raça damninha? (indo á janella.) A altura é soffrivel. Dêmos um exemplo.—Deitemos isto á rua. (indica os dois.) Limpamos a cidade.
(Morgado recua aterrado.)
COMMENDADOR (sorrindo mais)
Tem graça o sr. Bocage, tem muita graça!
GONÇALO (fitando o commendador)
É a praga de todos os tempos!… Deixe… Espera-os a publica justiça, que hade chegar… Em gente d'essa não põem mão homens de bem. As viboras esmagam-se com o pé! (Indicando-lhes a porta, com um gesto a que os dois logo obedecem.) Temos que fallar com o dono da casa!
(Cae o pano)
Em casa da morgada D. Felicia, ás Portas da Cruz.—Sala de visitas dando para outra.—Ao F. a porta que abre sobre esta.—Á E. a porta da ante-sala, fechada com reposteiro de pano azul, orlado de amarello, com as armas da casa ao meio.—Á D. duas portas. Para o F., á E. da porta de communicação com a outra sala, um bufete com tinteiro, etc.—Trumeaux, cadeiras o canapés; a mobilia branca e dourada de meias canas.
(Ao levantar do panno, um grupo de homens á porta do F. como vendo e admirando o que se passa na outra sala.—Ouve-se n'esta uma rebeca terminando o minuete da côrte.—Apenas acaba, muitas palmas em que toma parte o grupo da porta. Logo depois entram os personagens da scena seguinte, e a sala toma o aspecto de uma reunião ou assembléa do tempo.—As damas vêem successivamente sentar-se na ordem adiante designada.—Os homens ficam pela maior parte em pé diversamente grupados.)
D. FELICIA pelo braço do COMMENDADOR; successivamente D. MARIA
JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MORGADO, GONÇALO MENDO, DAMAS e
CAVALHEIROS CONVIDADOS
D. FELICIA (para fóra)
Não o faz melhor o proprio Dupré!… Admiravel!… Divino!… Uma suspensão!… (ao commendador.) Ninguem dança o minuete da côrte como o sr. Thomaz Xavier… Uma gravidade… um garbo!… Viu, aquelle rasgado das cortezias?
E a sr.^a D. Angelica?… Uma magestade… um donaire!
É o par mais completo!… (procurando com os olhos em redor.)
Maria?… A minha filha?…
Estou aqui, minha mãe!
D. FELICIA (sentando-se)
Isso… Bem ao pé de mim, filha. (ao commendador) Não repare… Não me canço de repetir este nome de filha… Tinha-o quasi desaprendido!… Ainda o não creio… Ainda me parece tudo um sonho… Foi milagre, sr. commendador, não foi?
Com razão symbolisaram os doutos e discretos o maternal affecto na ave chamada pelicano, figurando-a o dar-se a morte para dar vida aos filhos. (continúa como conversando.)
GONÇALO (dando o braço a D. Maria Joanna)
Se sua tia soubesse com quem desafoga aquelles enlevos!
E para que o ha de saber? Mais lhe vale ignorar sempre similhantes vilanias. (sentando-se.) Foi meu cumplice no cumprimento do dever. Seja-o no segredo d'essas iniquidades.—É dever tambem.
A que não me obrigará com a perspectiva de tal cumplicidade?—Cumplice!… Mediu bem a palavra?
D. MARIA JOANNA (graciosamente)
Medi. (continuam conversando.)
(Entra Francisco, como procurando alguem. Vê D. Maria Gertrudes, e vae tristemente encostar-se ao trumeau fronteiro.)
OS DITOS e FRANCISCO
D. FELICIA (beijando D. Maria)
A minha filha!… Bem parecia que me adivinhava o coração!… (vendo Francisco.) Sr. dr. Francisco Pedro, seu pae está na roda do isque?… Estas modas novas de Inglaterra fazem os homens bem pouco sociaveis!
FRANCISCO (com melancolica resignação)
Não, minha senhora… Não é homem de modas, meu pae.—Creio que o vi ao pé do padre procurador de S. Vicente.
Ai! se elle se fica a ouvir as historias que o sr. D. frei Caetano conta ás meninas, não sae de lá tão depressa… (abanando-se.) Porque não nos tem apparecido, sr. morgado da Gesteira?
(Acham-se todos dispostos como segue: D. Felicia n'um canapé á E., tendo ao lado D. Maria Gertrudes em cadeira.—N'outro canapé, defronte, D. Maria Joanna, e Gonçalo Mendo proximo, em pé.—O Commendador, que passou á extremidade D., sentado conversando com uma dama. Junto d'este o morgado em pé.—Do mesmo lado, encostado ao trumeau, Francisco Pedro extatico para D. Maria Gertrudes, que não ousa levantar os olhos para elle.)
Não tenho tido mãos a medir, sr.^a D. Felicia, não tenho tido mãos a medir… Fui passar quatro dias ao pé da Arrabida… Não me deixava um amigo, homem poderoso, que tenho para aquelles sitios… Tudo por causa d'uma caçada de javardos… Sem mim não se podia fazer… Fui eu que dispuz os emprazadores. Fui eu que dirigi os couteiros. Fui eu que fiz chapear os cavallos por causa dos estrépes, e metter-lhes as çapatilhas e peitoraes de matto como é indispensavel. Fui eu que determinei a calcada… Finalmente, bateram-se duas moitas, e trouxemos nem menos de seis rezes grandes, uma cerva, dois vareiros e trez javardos… Só eu á minha parte, a tiro e á faca, matei sete.
COMMENDADOR (sorrindo)
Trouxeram seis, e matou sete!
É verdade. Perdeu-se um bique enorme… Sumiu-se no brejo que não foi possivel achal-o.
Fez tudo o morgado. E os outros caçadores?
MORGADO (ao commendador)
Admiraram. (a D. Felicia) Antes de hontem passei a tarde n'uma academia de espada… (ao commendador) em casa de mestre Estevão da rua das Hortas… (á companhia) Ia lá um genovez de quem se diziam maravilhas. E com effeito é homem desembaraçado na arte. Tirou a melhor de quantos contenderam. Eu estava alli a vêr, e não queria assim sem mais nem menos entrar em assalto com um estrangeiro, que não sabe a gente quem é… Mas os amigos, que me tinham levado alli… provavelmente já de proposito… começam a dizer-me: «Sr. morgado, isto é uma vergonha para o reino!… Sr. morgado, só v. s.^a póde desaffrontar a nação!… Sr. morgado, isto são pontos d'honra!…» Atacaram-me pelo meu fraco… Não pude resistir… (fazendo menção de despir) Largo o josésinho… pego na espada… colloco-me no recto… Ao terceiro passe, o genovez tira-me de quarta a fundo… Paro de forte contra forte!… Faço um prendimento rapido… Estava desarmado o homem! (Gonçalo sorri.) Não é por me gabar: confessou elle mesmo que nunca vira pulso tão rijo, nem uma agilidade assim!
GONÇALO (com obsequiosidade ironica)
Estava em boas mãos… a honra nacional!
MORGADO (seccamente)
Favores! (continuando.) Hontem fui a uma corrida de pombos a Carnide. (negligentemente) Não enfiei senão cinco. Deram-me para correr um cavallo quasi serril… E era á gineta, que se fosse á brida!… Hoje estava convidado para jantar em casa d'um desembargador da Casa da Supplicação, meu amigo de tu. Chegou-lhe um cosinheiro de França, que faz na perfeição a sopa de natas e as tortas de espargos.—O meu amigo, sabendo como sou entendedor, fazia empenho no meu voto.—É tambem tarde de opera na Rua dos Condes. Representam uma coisa italiana que se chama… que se chama…
Il Mercato di Malmantile… Uma opera nova.
Creio que sim. A estas primeiras representações nunca falto.
E não foi? Um peralta de quarto voto, como o sr. morgado!
Não fui… só para não faltar aqui logo no principio, e vir aos pés da sr.^a morgada!
Já vejo que me queixei sem razão. Uma pessoa como o sr. morgado nunca é senhora de si. (ao commendador.) E que tal é a opera?
Não são para mim similhantes futilidades. Em coisas de theatro só acho sabor aos gregos e romanos.—Sabia o titulo da opera nova, porque o vi na Gazeta de terça feira. Aqui a trago eu. (tira do bolso uma folha impressa, em papel pardo, em quarto pequeno.)
A opera nova?
Não, minha senhora… a Gazeta. Já se sabe a razão por que o eleitor de Saxonia toma parte tão activa na liga germanica. Eu prophetisei-o sempre!
Não gosta do nosso theatro? Não tem razão. Queria que visse aquella peça intitulada… As lagrimas da bellesa são as armas que mais vencem… que se representou o anno passado no Bairro Alto… Faz chorar as pedras… E já não é o que era, aquella casa. Viu, sobrinha?
D. MARIA JOANNA (que conversava com Gonçalo)
Não vi, minha tia.
Em França tambem ha theatros e peças bonitas? Se hade haver! Tem gracioso em todas, como cá? E magicas?
Ha de tudo, e com abundancia.—Para mim nunca achei auctor que me deleitasse como um chamado Molière. Não é dos modernos, nem está agora em voga; mas escreveu comedias, que ainda não li outras de egual verdade… duas sobre tudo… o Tartufo… Não conhece o Tartufo sr. commendador?
COMMENDADOR (um pouco turbado)
Não conheço senão os antigos… Terencio, Plauto, Aristóphanes…
Que pena! Pois é excellente comedia o Tartufo… E acho tambem um sainete particular ao Importuno… O sr. morgado da Gesteira devia dar uns annos de folga á monteria, ou á esgrima, ou á gastronomia, e aprender o francez… só para ler o Importuno!… Estou que havia de gostar.
(D. FELICIA que a ouvia admirada)
Vês, filha, que de coisas se sabem lá por fóra?
MORGADO (a D. Maria Joanna)
Os homens da minha condição não perdem o seu tempo com…
D. MARIA JOANNA (atalhando ironicamente)
Com um insignificante como Molière. Acho-lhe razão.
Em operas, vi eu já o que se póde ver. Quem assistiu em Queluz á opera da Galathea!… Eram os annos do principe D. José, e estavam para se ajustar as pazes com a Hespanha… Quem assistiu a uma coisa d'aquellas…
Ah! esteve no theatro da côrte?
D. FELICIA (hesitando um pouco)
Estive… alguma coisa de longe… Não era onde devia estar… mas estive… Alcancei entrada pelo sr. marquez de Marialva, que esse sabe dar estimação a quem a merece… Estive… Por signal fui achar entre as açafatas a mulher d'aquelle da alfandega… que se não sabe d'onde lhe veiu o dom… Não tem senão um criado d'almofada… e quando lhe vão visitas, chama pelo nome e sobrenome o criado de porta abaixo, que não ha outro na casa, para figurar de escudeiro… Estava lá, estava alli, ella, em quanto pessoas que sempre se trataram á lei da nobreza… Açafata aquillo!… Não foi senão por empenho do Estacio, o bobo do paço, algum dia que teve a fortuna de fazer rir Suas Magestades… Aquillo açafata!… Ai!… Ai!… Maria, filha… a agua de Melissa… depressa!…
D. MARIA JOANNA E D. MARIA GERTRUDES (erguendo-se como para socorrel-a)
Tem alguma coisa?
Não é nada… o meu hysterico!…
D. MARIA JOANNA (ameigando-a)
Passou?… Passou… (voltando a sentar-se.) E a Galathea?
Isso sim!—A Galathéa, de Metastario, com musica do Antonio da Silva… a orchestra dirigida pelo João Cordeiro… tudo professores da real capella!… Pois os cantores!… Vindos de Italia de proposito… o Romanini, o Violani… o Violani principalmente… Umas volatas… uns gorgeios… uma… uma suspensão!… Não espero tornar a ouvir cantar assim… E depois o baile d'Alberti!—E as pessoas reaes!… E toda aquella côrte… Não se via senão sedas, veludos e oiro!… E que tellas, que pinturas, que lustres!… Theatro aquelle! Opera aquillo!… o mais…
(Entra um escudeiro velho e dirige-se respeitosamente a D. Felicia.)
Que quer, João Rodrigues? (a D. Maria Gertrudes)—São já sete horas?
D. MARIA GERTRUDES (distraida, e sem levantar os olhos)
São.—Hão de ser.
D. FELICIA (vivamente)
Que tens?… Triste agora!
D. MARIA GERTRUDES (constrangendo-se)
Triste, eu?—Nunca estive tão alegre!…
(O escudeiro diz algumas palavras em voz baixa a D. Felicia.)
D. FELICIA (ao escudeiro)
Já sei, já sei. Ponha a banca e as urnas na outra sala. (Levanta-se, e todos. Aos circumstantes.) São horas do nosso chá. (indo a uma das damas presentes.) A menina Escolastica hade-nos cantar depois aquella modinha brazileira com primeiras e segundas… tão linda, tão linda… uma suspensão mesmo!… Aquella… Recorda-se?… (achando.) Ah! «Os Melindres da Sinhá!» Canta, riquinha, sim?
D. MARIA JOANNA (a Gonçalo)
Se não estiver com a rouquidão do costume.
Está decerto, em quanto não chegar o seu tudo.
D FELICIA (a outra)
A sr.^a D. Euphrasia das Neves faz a segunda e o sr. D. frei Caetano acompanha-as ao cravo… (a uma dama.) Alli onde o vê, o meu cravo foi o primeiro cravo de martellos que veiu a Lisboa… já depois da guerra de 62, creio… Mandou-o vir Sua Alteza o sr. conde de Lippe, que era grande tocador, e muito divertido, (a Gonçalo Mendo.) Lembra-se da guerra de 62?…
Uma guerra que não passou do principio?
Desculpe… Não póde lembrar-se… Tive um primo nos reaes voluntarios… foi morrer á India. A proposito, o nosso cadete? O seu amigo Bocage demora-se… Estou vendo que nos falta hoje!… Logo hoje que não veiu outro, e estão cá tantas pessoas para o ouvir!…
Não falta. (em voz baixa) Mas pelo amor de Deus, sr.^a morgada, não lhe diga isso…
Isso o quê?
Que lhe faz falta por não ter outro. É capaz de se declarar mudo… se não fizer peior!
Sempre lhe digo que tem um tal genio, o cadetinho!
Desculpe-o. Não é poeta como os outros.
Fazem-se sempre assim. Em ganhando fama!… (como em confidencia ao commendador, que veiu dar-lhe o braço) É a novidade, que eu cá para mim acho mais chiste ao padre Braz… e mesmo ao Caldas.
Pois tem dúvida!—Chamarem áquillo poeta!…
Ai! nem tanto!… (Saem.)
(Vão saindo todos. Fica em ultimo logar Gonçalo Mendo com D. Maria Joanna pelo braço.)
GONÇALO (em quanto os outros saem)
Que me diz ás nossas assembléas? Francamente, lembra-se com pena do seu
Paris?
Pensa que não há ridiculos tambem? Não tenho pena! Vaidades? Ólhe a lucta de Marmontel e do abbade Arnaud por causa de Gluck e do Orlando. Vicios? Ólhe o processo do cardeal de Rohan o anno passado, a prisão da condessa de la Mothe, e as negras machinações de Cagliostro!… Se visse o que de lá me escrevem!
Devéras; não lhe dão saudades?
D. MARIA JOANNA (gentilmente)
Cada vez menos.
GONÇALO (transportado)
Oh!… Quando poderei eu ter esperanças?
D. MARIA JOANNA (como acima)
Não começou já?
OS DITOS, BOCAGE (da E.)
GONÇALO (vendo Bocage)
Ah!… Ahi chega o nosso poeta. Permitte-me que lhe falle em quanto vão ao seu chá? (conduzindo-a á porta da outra sala.)
Permitto que vá da minha parte agradecer-lhe.
GONÇALO e BOCAGE
Pelo que vejo parece-me que lhe posso dar os parabens.—Pois dou, e de todo o coração. É mais do que formosa a sr.^a D. Maria Joanna… é mais do que discreta… é uma alma grande, d'essas que é fortuna encontrar. Como ella se despojou facilmente e alegremente da maior parte dos bens, que desde pequena tinha como seus!
É o menos, isso. Era dever: bastava. Tem raras qualidades em tudo… por isso a adorava já de longe…
Ah! confessa?
Posso confessal-o… agora.
Porque a adora… de perto. Foram então a proposito os parabens!
Os parabens, ainda não.
Mas não podem tardar.
Mais caso de parabens é o seu. A transformação da menina da casa engrandece o objecto das suas predilecções. Em vez da humilde afilhada, pobre e dependente, acha uma boa familia e uma rica herdeira!
BOCAGE (despedidamente)
Por causa d'isso estive para não vir!
Porquê? Não lhe tem já amor? Bem me dizia então…
Dizia mal… O que lhe dizia não se entendia com esta!… Não lhe tenho já amor? Tenho. E bem devéras, e bem de dentro… De certo o primeiro da minha vida… e… quem sabe?… talvez o ultimo! Mas o que provocou este amor desappareceu. Foi-se o que lh'o fazia grato, o que m'o fazia generoso. Foi-se-lhe com a condição, foi-se-lhe com a orphandade.
Se tem esse modo de encarar as coisas…
Poucos me hão-de entender. Poucos me entendem com effeito. Mas entende-me o sr. Gonçalo Mendo… Sei já que entende.—Rica! Rica? E eu que lhe levo em troca?… Dirão que lhe procuro a riqueza!… Dirão que fiz do affecto um pretexto, do carinho um degrau, da paixão uma usura!… «A poesia áquelle serviu», repetirá contente por ahi a turba vilan dos malevolos e dos zoilos… Arrendou-a por contrato… poz a lyra a juros… vende mais caro o coração que as obras.»—Dirão isto, dirão… e Deus sabe o que mais… E o grande numero crê… e não poucos applaudem…—Vender-me, eu!… Eu, Bocage!… Vender o coração! vender a musa!… esta musa indomita e indomavel!… Oh! basta que o suspeitem!
GONÇALO (calorosamente)
Pois a taes considerações sacrifica a felicidade? Pois…
A felicidade?… Seria… Aqui presinto que era… Mas o orgulho a sublevar-se-me de continuo!—Resistiria a felicidade a similhante procella?—Podia a donzellinha modesta ser a estrella pollar do poeta sem graus nem haveres… Podia em quanto era o infortunio… Deixou de ser a constellação melancholica das noites saudosas; fez-se o astro d'oiro dos dias refulgentes!… Era… era a felicidade no amor casto, no puro enlevo… Veiu a fatalidade, e levantou em seu logar o idolo das multidões.—Esse não póde ser o idolo de Bocage!
Tudo exagera… tudo leva ao extremo. É de condição distincta. Casando com a herdeira, póde desafogadamente cultivar o talento, aproveitar o estro, e servir a patria… O que recebe em fortuna, paga-o em gloria!
Bocage casar! Casar eu!… Curvar o collo a esse jugo!… roxear os pulsos com esses grilhões! Sujeitar-me a esse perenne captiveiro!… Eu!… Que mal me conhece!—É pouco para mim o ar e o espaço… Toda a idéa de sujeição me opprime como as grades de um carcere… Alexandre de Macedonia, no auge do poder, visitou em Corintho o philosopho que da miseria extrema fazia officio e gala.—«Pede sem receio. Que queres de mim?» disse o grande conquistador.—«Que te affastes d'ahi, para me não tirar o sol,» respondeu o festivo indigente. Tenho alguma coisa do espirito d'esse philosopho… Acima de todas as venturas ponho uma… a verdadeira, a maior, a superior, a unica… a minha independencia!
GONÇALO (severamente)
Que quer então fazer? Desvalida ou abastada, a menina da Torre da Palma é uma flor de candura.—Quer-lhe inutilisar sem fito os breves annos juvenis?… Quer-lhe immolar a mocidade?… A quê?… Ainda ha pouco estava ahi um pobre moço, penando por ella que fazia dó… penando uma paixão sincera e sem egoismo. Sabe quaes são os intentos d'esse mancebo? Deixar o lar e a patria… só para não vêl-a indifferente!…
BOCAGE (arrebatado)
Quem é?
Conhece-o já… É o filho de Manuel Simões, que se doutorou ultimamente.—É um rapaz honrado… é rico tambem… e começa uma carreira estimada. Podia fazel-a feliz… e fazia de certo. Com que direito a priva se não póde compensal-a? Julgaria elle destino invejavel o que o sr. Bocage reputa insupportavel prisão!
BOCAGE (pensativo)
E ella?
Ella, a pobre innocente, sabe lá!—Diga-me, o que quer fazer?
BOCAGE (pensativo)
Não sei. (reparando para dentro) É o morgado da Gesteira, e o commendador de Monsarás, que vejo na outra sala?
São.
Aqui? ambos!
Ambos.—A sr.^a D. Maria Joanna deseja formalmente que se não falle do que se passou com elles em casa do mercador. E tem rasão. Impõe-lhe este dever a delicadeza. Não podemos publicar a parte vergonhosa, que tiveram no caso, sem dar occasião a divulgarem elles a fraqueza do capitão-mór.—Isso quer evitar a sr.^a D. Maria Joanna por attenção á memoria de seu tio. Calando nós, calam-se forçosamente os dois. Que estamos todos na resolução de nos calar, já o Commendador percebeu, e d'ahi tiram ambos a audacia.—Comprehende agora o nobre silencio da sr.^a D. Maria Joanna, e a presença do Commendador e do Morgado?
Comprehendo o silencio: não comprehendo a impudencia. Esses homens não teem sentimentos!
Se tivessem sentimentos não faziam o que fazem. Eil-os ahi.
Vamo-n'os então, nós. Custa-me a conter.
OS DITOS, COMMENDADOR e MORGADO
(Gonçalo e Bocage vão a sair. Os dois veem entrando. Encontram-se.)
COMMENDADOR (indo prazenteiramente a Bocage, e offerecendo-lhe a mão)
Oh! sr. Bocage! Como vae?
BOCAGE (sem lhe dar a mão, passando)
Vou para diante! (Sae com Gonçalo para a outra sala.)
COMMENDADOR e o MORGADO
COMMENDADOR (tirando a caixa e encolhendo os hombros)
Mocidade imprudente!
Vê, commendador? Não temesse eu que fallassem, e saberiam…
Não fallam. Se o podessem fazer, já o tinham feito.
O que lhe invejo é o socego.
Claudiano diz: «O espirito do sabio é similhante ao cume do Olympo; fica tão superior aos ventos e ás nuvens, que nunca as tempestades o inquietam.»
Mas eu que não sou sabio… nem tenho pena… aqui estou agora… (olhando em redor) Ninguem nos ouve… Aqui estou agora sem dinheiro, sem casamento, e sem esperanças.
COMMENDADOR (saboreando a pitada)
Sem esperanças!… Porquê?—Sua prima tem ainda a casa de Val-moreo. Cinco mil cruzados de renda, creio que me disse… Não é o mesmo, seguramente… um terço apenas do que era… mas nas suas circumstancias actuaes… Pela minha parte sou justo. (olhando em redor, em voz baixa) A escriptura de divida, não será já de trinta, será de dez mil cruzados. Dispenso a sege.
Pois teima ainda! Não se desenganou com o desastre do outro dia?
O outro dia… veja o que tirou das suas duvidas e espalhafatos! Quintilliano tem por vergonha desesperar do possivel. Eu nunca me desengano em quanto vejo remedio.
Remedio! Mas que remedio? Não vê como o tenente anda todo derretido para minha prima? Não vê como ella o attende? E agora, de mais a mais, que está senhor de uma boa casa.
Extranho-o. Pois é possivel imaginar que póde alguem competir com o
Morgado?
Não digo isso…
O tenente fica por minha conta. Tenho que lhe pagar uma divida… e ao Bocage tambem. Nós sabemos esperar… e nada esquecemos. Não ha inimigo peior do que o inimigo que espera e não se espera. Inexpectatus hostis, lhe chama Ovidio, Sulmonense.—Sua prima está já casada, porventura?
Mas aquelle ajuste que ella ouviu! a impressão que lhe ficou!
Empregue tambem pela sua parte algum esforço. Não sejam tudo vozes vãs.—Se estivesse no seu logar, d'isso mesmo faria um merecimento mais. Attribua-me toda a culpa. Indigne-se bem contra mim: não tem duvida. Diga-lhe que foi a desesperação, o amor, o desejo de alcançar a sua mão. As damas raramente deixam de se convencer d'isso. Affirme-lhe que vive no meio de um incendio… como a salamandra… Ainda que Gesnéro assevera que a cinza de salamandra é remedio soberano, e d'ahi se deva concluir que mal poderá viver no fogo o que se reduz a cinzas… Em fim pinte-lhe ao vivo as chammas em que se abraza… (enfastiado) Isso é com o Morgado, não é commigo.—Convem-lhe ou não lhe convem ainda o casamento?
Se convem! O que eu não sei é como se ha de agora estorvar o tenente!
Sei eu (olhando para dentro). Acabou o chá. Ahi vem todos outra vez. (Vae ao F. dar o braço a D. Felicia para a conduzir para o seu logar)
OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, BOCAGE,
GONÇALO, FRANCISCO e CONVIDADOS
Que pena ter enrouquecido a menina Escholastica! Tambem, havia de ir logo sentar-se ao pé do corredor… Não foi senão o ar da porta com o calor do chá… (á Dama) Quer a sua pelicia, minha joia? (gesto negativo) Tomára que ouvissem!… Canta as modinhas brazileiras como ninguem… Tem uma graça n'aquelles tons menores!… É mesmo…
COMMENDADOR (atalhando)
Uma suspensão.—E é, na verdade, é.
GONÇALO (a D. Maria Joanna)
Não lhe dizia eu? Faltou-lhe o seu tudo.
Faltando-lhe… tudo, como havia de ter voz!
São os namorados mais extremosos! Ella, sangrou-se ha tempos. Elle, foi logo procurar o cirurgião, e deu-lhe cinco moedas pela lanceta!
Felizmente veio o sr. Bocage. Não imagina como estamos impacientes por ouvil-o. (Sentam-se. Tomam todos os seus anteriores logares. Unicamente D. Maria Gertrudes passa á E. de sua mãe. Bocage fica em pé junto a D. Felicia na extremidade E. e o Commendador em pé ao lado do Morgado, defronte.) Aqui é melhor, não? O padre procurador não acaba com as suas historias!…
Pedi já desculpa, sr.^a morgada. Fui passar o dia ao Lumiar. Na volta demorei-me mais do que desejava no Campo Pequeno. Ha toiros ámanhã.
No Campo Pequeno? Tinham-me dado idéas. É cavalleiro o Manuel dos
Santos, não?
É. E o Romão a pé.
MORGADO (intromettendo-se)
Tem disposições o Manuel dos Santos. Chama bem á estribeira; mas não tem pulso para o rojão, e á espada é fraco. O Romão com as farpas não vae mal. Se um dia me resolver…
BOCAGE (cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna)
A sr.^a D. Maria Joanna vae?
D. MARIA JOANNA (que estava entretida)
Como, sr. Bocage? (percebendo) Não vou. Confesso que não é dos divertimentos mais do meu gosto.
Ouvi que se não correm touros em França. Naturalmente hão de dizer mal de nós por isso.
Nem todos. Ao conde de Saint-Germain, que os tinha visto em Hespanha no tempo de Filippe V, ouvi eu que era apaixonadissimo.
No tempo de Filippe V! Quantos annos tem hoje esse conde de
Saint-Germain, e quantos tinha quando esteve em Hespanha?
Esteve em Hespanha e percorreu o mundo. O conde de Saint-Germain é um viajante como não ha outro. Beijou a mão a Francisco I na vespera da batalha de Pavia; conheceu El-Rei D. Sebastião quando se preparava a expedição d'Africa; e teve em Cuba amisade com Fernando Cortez antes de este ir conquistar o Mexico.
BOCAGE (rindo)
Parece tão convencida! Ninguem dirá que está gracejando.
Mas não estou.
BOCAGE (rindo)
Ha então em França Mathusalens ainda? Julgava perdida a especie.
Um Mathusalem! Na apparencia não. Quem o vir dirá que tem a edade do sr. Morgado, pouco mais ou menos… (maliciosa) antes para menos que para mais.
E conheceu El-Rei D. Sebastião! Essa agora!…
Diz elle. Pergunte ao sr. Commendador, que o viu na embaixada, e lhe fallou nas salas do meu contra-parente D. Vicente de Sousa. É verdade, sr. Commendador?
É verdade. E viu-o toda a gente em Paris. O conde affirma que possue o elixir da immortalidade. Só assim.—O grande Raymundo Lullio refere…
BOCAGE (cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joanna)
E os parisienses acreditam isso?
Acreditam.
Fallem-me então na credulidade portugueza.
Duvidaram ao principio. Agora vão-lh'o negar! O conde sabia os segredos de todos… Não admira, tendo vivido e viajado tanto!… Está lá, ainda creio… Se acaso se lembra de dar uma volta por Lisboa… Ha de ser incommodo, um homem que está senhor dos segredos de toda a gente… Não lhe parece, sr. Morgado?
MORGADO (balbuciante)
Por mim…
Coisas de estrangeiros! Eu, se tal visse, tinha o meu hysterico, por força. Nome da Benta Hora! Credo!
E eu quizera encontral-o, para satisfazer uma curiosidade. Desejava perguntar-lhe… visto que tanto andou e tanto sabe… se alguma vez, nas suas longas peregrinações, encontrou figurão mais sem pejo… do que dois sujeitos do meu conhecimento.
COMMENDADOR (baixo ao Morgado)
Estão apostados a molestal-o. Não succumba.
MORGADO (idem)
Vae vêr. Deixe… Deixe que vae vêr.
D. FELICIA (a Bocage)
Queria encontral-o? Não diga isso.—N'estas conversas se vae o tempo, e nada se faz.—Sr. Bocage… Um improviso dos seus… Quem dá mote?… Dê mote, sobrinha!
Versos a motes quem quer faz… Não tenho eu querido, senão… Versos a motes!… Sempre ouvi dizer que era o A B C… e está claro que é (sem achar saída), porque os versos com os motes e os motes com os versos… ou para fallar mais claro, os versos sem os motes e os motes sem os versos…
COMMENDADOR (sugerindo-lhe indirectamente a idéa)
O mote com effeito é uma sentença, que serve de assumpto, e põe a caminho o engenho. O principal está feito. O mais é ajustar palavras e combinar as rimas. Com algum exercicio não é difficil!
BOCAGE (medindo-os admirado e retraido)
Ah!
COMMENDADOR (continuando)
Mote querem alguns que venha do latim motus, que significa movimento. E bem se póde ter que assim é, porque do mote em verdade nasce o impulso que faz mover o estro…
MORGADO (atalhando)
É o que eu queria dizer. O mote vem a ser tudo… Mais por aqui, mais por alli, é tudo o mote.—O mote é o assumpto; não havendo mote não ha assumpto; e ahi é que está! (satisfeito de si e com extrema volubilidade) Fazer versos sem assumpto não é para qualquer: tem de se tirar tudo da cabeça, assim de repente, do pé para a mão, sem mais nem mais. Tambem não sei porque se ha de pedir mote. Quando uma pessoa monta a cavallo não precisa de mote para fazer os piafés, e as curvetas, e as balotadas, e as garupadas; nem tão pouco se dá mote quando qualquer mette mão á espada, e entra a executar batiduras, ligamentos, juntamentos, cambiamentos, tentamentos, e esquivamentos. Eis ahi. Isto é que eu queria… Chegar um homem, não esperar por mais, nem esfregar a testa, nem pôr os olhos em alvo, bater as palmas e logo alli, zás… como quem deita um foguete de sete respostas!…
BOCAGE (atalhando e batendo as palmas)
Lá vae!
COMMENDADOR (sorrindo)
Sem assumpto?
Está ahi defronte, o assumpto.
Famosa geração de falladores
Consta que foi, Morgado, a origem tua,
Que nem todos os cães, ladrando á lua,
Tiveram que fazer com teus maiores:
Um a lingua ensinou dos palradores;
Outro, o motu continuo achou na sua;
Outro, além de encovar toda uma rua,
Açaimou n'uma junta a cem doutores:
Teu avô, santanario venerando,
Soube mais orações que mil beatas,
Com reza impertinente os ceus zangando:
Teu pae foi um trovão de pataratas:
Teu tio, o bacharel, morreu fallando;
Tu, fallando sem tom, não morres—*matas*!
TODOS (applaudindo)
Bravo! bravo!
MORGADO (engasgado de raiva)
Sr. Bocage!… Sr. Bocage!…
BOCAGE (fitando-o serenamente)
Que é?…
COMMENDADOR (com o seu sorriso, ao Morgado)
Agasta-se? De quê? Não tem rasão… São facecias innocentes, e muito graciosas na verdade!… (Gonçalo passa disfarçadamente para o lado de Bocage) Mais picantes ainda as fez Juvenal!… Se fosse verdadeiramente improviso, era deveras um primor… E não digo que não seja… Mas é facil trazer estas coisas estudadas já… (Bocage estremece de indignação ante a contradictoria perfidia.—Gonçalo que lhe está ao pé detem-o.)
GONÇALO (baixo)
Querem fazel-o sair de si. Com algum fito é. Modere-se.
COMMENDADOR (observando)
Depois, os conceitos naturalmente andam preparados com antecedencia.
BOCAGE (sem poder ter-se, batendo as palmas)
Lá vae!—Sr. Commendador, permitta-me descrever-lhe um certo individuo… do nosso conhecimento… á moda de Juvenal!
Do Sena, que foi ver por seu desdouro,
Um pedante voltou, de escassa fama,
Que os livros cata, os cartapacios ama,
E n'elles julga os annos um thesouro:
Traz laivos de francez, arranha o mouro,
Sabe que Deus em turco Allah se chama,
Que no grego alphabeto o G é gamma,
Que taurus em latim quer dizer touro:
Tem de velhos canhenhos chocho extracto;
Abocanha talentos que não gosa;
Se rosna, prega unhadas como um gato:
Achareis na pintura rigorosa
Um fofo sabichão, posto em retrato,
Que é nada em verso, quasi nada é prosa!
(Impressão de assombramento. Ninguem ousa applaudir. Segredam todos mutuamente.)
COMMENDADOR (parecendo satisfeitissimo)
Muito bem, muito bem, sr. Bocage. Esse sim. A isso é que se chama responder apposité. (O escudeiro, vem apressadamente a D. Felicia, e falla-lhe em voz baixa) Retrato lhe chama, não? Vê-se que é: ha de mostrar-me o original. Mas cuidado, não o saiba elle!…
D. FELICIA (ao escudeiro)
Que me diz! (erguendo-se alvoroçada) Meus senhores, o sr. marquez de
Marialva está ahi. (levantam-se todos.)
OS DITOS e MANUEL SIMÕES
MANUEL SIMÕES (alvoroçado)
O meu compadre! Está ahi o meu compadre? (a Francisco.) Olha que é o teu padrinho, Francisco.
Valha-me Deus! Sem estar nada prevenido… Mande abrir já o portão, João Rodrigues. (O escudeiro sae vivamente para a E.) Querem fazer-me o favor de me acompanhar?…
Vamos esperal-o todos!
Vamos receber sua excellencia.
(Saem todos. Fica só o morgado passeiando agitado, e o commendador observando-o.)
COMMENDADOR e MORGADO
MORGADO (depois de os ver sair)
Ter a confiança de me tratar por tu!… D'esta vez faço uma fallada!… Ambos… hão de ser ambos!… Fizeram bem em aproveitar a occasião de se esgueirar…. Não podia já conter-me!… E agora…
COMMENDADOR (tomando-lhe o braço)
Deixe-se d'isso.
MORGADO (forcejando para se desembaraçar, e mais agitado)
Não me sustenha, commendador, não me sustenha!
COMMENDADOR (largando-o)
Aonde quer ir?
Aonde quero ir? Boa pergunta! Aonde quero ir!… (forcejando como antes.) Não me sustenha… (vendo que o não sustem, e hesitando.) Quê?… (em grandes passos.) Não me sustenha… Quero dizer, sustenha-me, sustenha-me, senão vou fazer uma grande desgraça!…
Accommode-se. Não ouviu quem vem ahi?
MORGADO (estacando transido.)
São elles?
Não, homem. Não sabe que é o marquez?
Não são elles? (recomeçando as bravatas.) Podéra! Olhem se nos apparecem agora! Olhe lá se voltam senão no meio de toda essa gente!… Cobardes!
Esteja quieto. Estamos aqui sós… e já nos conhecemos!
Então isto hade ficar assim?—Não é senão o tenente que mette a caminho o Bocage para nos chasquear. Não o viu ha pouco ir ter com elle?—Isto hade ficar assim!…
COMMENDADOR (com o seu sorriso)
Não lhe disse já que não… Andam a semear!… Deixe, que hão de colher!… Ouve? O marquez subiu já. Vamos tambem. (Dirigem-se á porta da E.. Entra o escudeiro, corre o reposteiro, e colloca-se á humbreira. Os dois tomam tambem de uma e outra parte logar á porta.—Entra o marquez, ao lado de D. Felicia, e seguido de toda a companhia anterior.)
MARQUEZ, D. FELICIA, D. MARIA JOANNA, D. MARIA GERTRUDES, MANUEL SIMÕES,
FRANCISCO, GONÇALO, BOCAGE, COMMENDADOR, MORGADO e CONVIDADOS
Se soubesse que vinha incommodal-a, sr.^a morgada…
Incommodar-nos, v. ex.^a! Estava bem longe de esperar tamanha honra, e por isso…
Cheguei ha pouco de Cintra, e achei em Belem uma carta de Martinho de Mello, que me obrigou a vir logo aqui.—Passei por sua casa, Simões… Disseram lá ao meu volantim, que tinha ido com seu filho de visita á sr.^a morgada.—(a D. Felicia.) Vim assim mesmo, com as minhas saragoças… Não esperava encontrar tão luzida companhia.—Como é caso de pressa não queria perder a occasião.
MANUEL SIMÕES (sem perceber)
V. ex.^a dignou-se passar por minha casa… é negocio de pressa…
Um negocio com o meu afilhado… Onde está elle?
FRANCISCO (apresentando-se respeitoso)
Meu padrinho!
MARQUEZ (em confidencia)
Teu pae sempre o hade saber… e mais vale que seja agora, diante de mim. (alto.) A nau de viagem sae para a semana. Já vês que se não póde perder tempo.
MANUEL SIMÕES (attonito)
A nau de viagem… o Francisco!…
O sr. marquez de pé! (offerecendo-lhe o canapé.) Sr. marquez…
Não me demoro… (indicando a cadeira junto ao bufete.) Prefiro aquella cadeira. Está alli um tinteiro, e hade ser preciso… (a Francisco.) Fui eu mesmo fallar a Martinho de Mello. Achei-o em boa occasião. Serviu-me logo, sem objecções… que é raridade. Pediu-me só que lhe mandasse o nome por escripto… Não sei como… as minhas distracções do costume… passou-me de todo. Agora, á volta de Cintra, recebo uma carta d'elle, e dentro o decreto já assignado, dizendo-me que fôra expedido com o nome em branco para não causar atrazo, vista a proximidade da partida… Venho remediar o esquecimento. (Dirige-se á cadeira indicada, e senta-se. Sentam-se as damas.)
Mas, meu senhor… V. ex.^a foi fallar ao ministro da marinha? Por causa de meu filho?… Traz-lhe um decreto!… Sou pae, sr. marquez… não se hade estranhar… Um decreto de quê?
De guarda marinha para Gôa.
MANUEL SIMÕES (atterrado)
Guarda marinha!… Para Gôa!… quando eu pensava… quando esperava… E pediu meu filho similhante coisa a v. ex.^a… pediu-lh'o sem me dizer nada!
Ponderei-lhe isso mesmo… aconselhei-o… Deu-me razões que me convenceram. Entendo que faz bem… As viagens são distracções poderosas… são convenientes á mocidade… Voltará quando fôr tempo… e espero que será breve… Se lhe não convier a vida do mar, dará baixa… Agora é bem que vá.—Simões seu filho está formado, não se lhe póde oppôr… Dê-lhe o seu consentimento. Peço-lhe que dê, e digo-lhe que o deve dar… (a Francisco.) Aprompta-te quanto antes. Embarcas para a semana.
D. MARIA GERTRUDES (sem poder já, levando a mão ao coração.)
Ai! Jesus!
Que tens… que tens, Maria?… (vendo-a debulhada em lagrimas.) Ai! a minha filha… A agua de Melissa… a agua da Rainha d'Hungria!… (acodem todas as damas a soccorrel-a.) Não repare v. ex.^a, sr. marquez… é minha filha!
MARQUEZ (erguendo-se)
Sei… sei já… É coisa de cuidado?
Não é nada. Um pequeno espasmo. Passa já.
GONÇALO (de parte a Bocage, indicando D. Maria Gertrudes)
Vê?
(Bocage contempla-a meditativo.)
D. MARIA GERTRUDES (com esforço)
Não foi nada… Um affrontamento.
O melhor é recolheres-te ao teu quarto. Queres?
D. MARIA GERTRUDES (vivamente)
Não, não, minha mãe… Não é nada.
(Retomam todos os seus logares. O marquez senta-se de novo.)
MARQUEZ (a Manuel Simões)
Então, Manuel Simões, consente?
Que remedio… É desejo d'elle… e v. ex.^a approva.
MARQUEZ (tirando o decreto, desdobrando-o sobre a meza, e tomando a penna.)
Vamos… é pôr o nome, e podemos dar os parabens ao novo guarda marinha.
(Bocage passa lentamente por detraz de todos dirigindo-se ao bufete.)
MANUEL SIMÕES (tristemente, ao filho)
Sempre cuidei que te acharia ao pé de mim… para me fechar os olhos.
FRANCISCO (lançando-se-lhe commovido nos braços)
Meu pae!
MARQUEZ (acabando de ler o decreto)
«Samora Correia, em 31 de janeiro de 1786. Com a rubrica de Sua
Magestade.»—Está em ordem. (Sem levantar os olhos.) O nome todo?
BOCAGE (atraz do marquez)
Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage!
(Espanto nos circunstantes.)
MARQUEZ (erguendo attonito o rosto, e depondo a a penna)
Quê?
BOCAGE (mostrando Francisco nos braços do pae)
Será elle que deva partir?
Mas sabe porque o meu afilhado quer embarcar?
V. ex.^a deseja-o feliz?… Deseja… é o seu coração, e o seu costume.
Permitta-me que faça por um momento as suas vezes, e verá… (indo ao
grupo do pae e do filho.) Desculpe, sr. Manuel Simões. (tomando
Francisco pela mão, em voz baixa.) Não viu já que o ama? (indo a D.
Maria Gertrudes, em voz baixa e rapida, indicando-lhe Francisco.)
Quer-lhe como ninguem. (alto a D. Felicia.) Sr.^a morgada da Torre da
Palma, estou auctorisado a pedir a mão de sua filha para o sr. dr.
Francisco Pedro Simões. (Attenção geral.)
D. FELICIA (assombrada)
A mão de minha filha… Se não fosse o respeito do sr. marquez, tinha o meu hystérico!… A mão de minha filha!… D'esse modo!… tão de repente!… (depois de breve pausa) O sr. Manuel Simões é um homem honrado; estimo-o; sou-lhe obrigada, não nego… mas… mas elle bem sabe que a nossa jerarchia… (O marquez ergue-se. Erguem-se todos.)
MARQUEZ (intervindo)
Perdoe, sr.^a morgada… O meu afilhado segue uma profissão nobre… Doutorou-se… poderá em breve alcançar algum despacho de Juiz de fóra… Como seu padrinho tenho obrigação de lhe dar um presente de noivado. (baixo) Fallei já á rainha, minha senhora, a respeito da sr.^a D. Felicia.—O presente que destino ao meu afilhado é um alvará de açafata para sua sogra.
D. FELICIA (encantada)
Ai! sr. marquez! Devéras? Filha, filha, a minha agua da rainha d'Hungria!…
MANUEL SIMÕES (baixo ao commendador em tom supplicante)
Sr. commendador, posso dizer que sim ao casamento?
Embarca o Bocage? (Gesto affirmativo de Manuel Simões) Póde.
MARQUEZ (proseguindo a D. Felicia, mais baixo)
Depois, Manuel Simões dá ao doutor quarenta mil cruzados. Excellente occasião de restaurar a Torre da Palma, que o precisa. (a Manuel Simões) Não dá quarenta mil cruzados a seu filho, Simões?
MANUEL SIMÕES (no auge de alegria)
Não, meu senhor. Dou sessenta.
MARQUEZ (baixo a D. Felicia)
Por causa de sua filha, queria o meu afilhado embarcar! (indicando Francisco e D. Maria Gertrudes.) E veja… Terá coração para fazer dois desgraçados? (alto.) A sr.^a morgada diz que sim.
Basta ser vontade do sr. marquez. (comsigo) Açafata do paço!
MARQUEZ (que passou a Bocage, em jovial confidencia)
Acertou, sr. Manuel Maria.
Então ganhei o meu decreto.
Insiste?
Espero só que v. ex.^a me faça a honra de escrever o meu nome.
MARQUEZ (indo sentar-se ao bufete)
Veja bem. Pensou?
Pensei. Meu pae deixou-me a vocação livre. O mar é a minha vocação. (dolorosamente) Se tivesse aqui um affecto, se podesse haver esperança que me prendesse… Não tenho. Não ha. E é justo. (com profunda amargura) Nós os poetas cantamos tanto o amor, que o amor todo nos vôa no canto!
MORGADO (baixo ao commendador)
Que lhe parece? Vae para Goa..
Em Goa temos gente tambem.
E se voltar?
Está cá o Santo Officio.
MARQUEZ (dispondo-se a escrever)
Repita-me o nome por inteiro… Bem sabe a triste memoria que tenho…
Está a tempo ainda. Considere.
BOCAGE (decidido)
Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage. (Marquez escreve lentamente) Meu avô, Gil de Bocage, foi coronel do mar. Herdei talvez a inclinação com o sangue.
FRANCISCO (indo a Bocage)
Não o conhecia ainda… (intencionalmente) Ninguem agora o admira mais.
GONÇALO (apertando-lhe a mão)
Regosije-se. Felicito-o. É uma nobre acção.
Começo outra vida, rude vida de ancias e trabalhos, mas vida explendida de alvoroços e promessas. (inebriando-se das proprias palavras) Oh! quem me déra já nas solidões do oceano, entre os dois abysmos, para não ver mais do que o eterno lampadario dos astros, para não ouvir mais do que o magestoso hymno das vagas!… (como vendo o que repete) Ondeante á pôpa a bandeira que recorda as margens distantes… a melancolia da saudade!… Diante de mim os horisontes infinitos… a incerteza do futuro!… Aos meus pés a voragem tumultuosa… a advertencia dos desenganos!… E além… lá bem ao longe, a nossa India… a India que démos de presente ao mundo!… o recesso dos mysterios… a terra dos prodigios… crivada dos nossos padrões, povoada das nossas memorias, cheia ainda do nosso passado, repetindo de todos os angulos a maravilhosa historia que os povos decoraram em todas as linguas!… além as grandes recordações dos grandes feitos… os grandes éccos dos grandes nomes… as grandes imagens das grandes edades!… além emfim a perenne e inflammada visão, que acima da escuridão dos tempos e do luto das catastrophes, como um pharol no meio das trevas, ergue rutilante do berço do sol a gloria da patria!
D. MARIA JOANNA (fervorosamente)
Tem a India inspirado os nossos grandes poetas! Começou já a inspiral-o!
MARQUEZ (erguendo-se e dando-lhe o decreto)
Aqui tem sr. guarda marinha. (a D. Felicia) Está tudo justo, não? As escripturas do casamento assignam-se em Belem d'hoje a oito dias!
Pois v. ex.^a quer fazer tamanha fineza a minha filha!…
MANUEL SIMÕES (promptamente)
Que honra!… Que honra para o afilhado!…
Justo é que sejam testemunhas todos os que presenciaram este feliz accordo. Ficam prevenidos. (inclinando-se) Terei occasião de dizer á sr.^a D. Maria Joanna Galvão o muito que a estimo e respeito. (D. Maria Joanna faz mesura.—O marquez dirige-se á porta da E.—Dispõem se todos a seguil-o.) Sr.^a morgada, dispenso etiquetas… não consinto…
Seria privar-nos da maior satisfação!
MARQUEZ (a Bocage)
Não nos falte, Manuel Maria. Quero vêl-o com o seu novo uniforme! (Sae com D. Felicia.—Acompanham-n'o todos. Ficam successivamente em ultimo logar, Francisco que dá o braço a D. Maria Gertrudes, Gonçalo ao lado de D. Maria Joanna, o commendador e o morgado da parte opposta, Bocage.)
OS DITOS, menos MARQUEZ, D. FELICIA e os CONVIDADOS
GONÇALO (a D. Maria Joanna, indicando D. Maria Gertrudes)
Não lhe diz nada a vista d'aquelle par?
Diz-me que preciso um protector… e que já o aceitei!
GONÇALO (transportado)
É definitivamente uma esperança?
D. MARIA JOANNA (dando-lhe a mão)
É mais… é uma certeza.
(O morgado mostra ao commendador esta acção.—D. Maria Joanna esquiva-se como envergonhada, e mette-se no sequito.)
MORGADO (consternado ao commendador)
Viu?
COMMENDADOR (saboreando a pitada)
Vi… Não estão ainda casados.
GONÇALO (que seguiu um instante D. Maria Joanna, volta a Bocage, e mostra-lhe D. Maria Gertrudes e Francisco que de embevecidos se deixaram ficar atraz de todos.)
Repare… O amor e a mocidade, coroados pela ventura!… Alli tem o seu melhor poema!
Creio que sim… (dolorosamente) porque nenhum ainda me custou tanto!
(Cae o panno)
*No palacio dos Marialvas, em Belem*
Sala forrada de damasco, severamente sumptuosa, abrindo sobre um terrasso que dá para o Tejo. Em perspectiva os montes da Outra-Banda.—Explendido dia de inverno. Amplas colguduras de seda. Cadeiras de damasco egual ao do forro da casa. Altos contadores marchetados, cobertos de preciosas curiosidades. Á D. a mesa preparada para a assignatura das escripturas. Portas á D. e E.
GONÇALO, (esperando) o MARQUEZ, um CAVALHEIRO, um MOURO
(O Cavalheiro, que mostra mais de trinta annos, entra da D., de botas e esporas, seguido do Mouro. Este vestido a uso marroquino, botas escarlates, zorame, etc. O mouro traz-lhe a vara de marmelleiro. Ao mesmo tempo entra do F. o Marquez. O Mouro fica immovel onde está. O Cavalheiro vae com profundo acatamento ao Marquez, ajoelha e beija-lhe a mão.)
MARQUEZ (com magestosa simplicidade)
Deus o abençoe, D. José! Já sei que o murzello começa a executar soffrivelmente a lição dos quatro circulos para a esquerda… É preciso trabalhal-o… É rijo dos rins, convem-lhe o trote avançado. Está ainda desigual dos travadouros.—Póde recolher-se agora aos seus quartos, filho… Hade precisar descanço… Oiça… recommende ao Mouro que vá ver como atam o murzello… e se lhe estendem bem as coberturas.—Se quizer escrever para Cintra a suas irmãs, e ao Marquez D. Diogo, tenha tudo prompto. Ámanhã de madrugada partimos para Samora. Acompanha-n'os o conde de Villa-Verde. (O Cavalheiro sae. O Mouro segue-o.)
MARQUEZ (comsigo)
Estes rapazes precisam dirigidos! (vendo Gonçalo, que se conserva respeitosamente de parte, e indo a elle) Desculpe que o não via. Chegou ha muito?
Entrei ha pouco, sr. Marquez.
Tenho pena de o não ter apresentado a meu filho.
Tive já a honra de fallar ao sr. D. José de Menezes! Encontrei-o varias vezes no quartel de Lippe e na academia de Antonio Diniz.
Ah! conhecia-o?… Não lhe dá ares do Conde dos Arcos, que tão desgraçadamente… (suffoca-se, e desvia o rosto para limpar escondidamente as lagrimas; pequena pausa; mais senhor de si) É tristeza que me não deixa, e é paixão que nunca me hade passar! Não posso ver qualquer dos meus filhos que me não lembre aquella fatalidade!… Ha quem murmure de me não ter deixado d'estes exercicios… Não pensam que assim se fazem homens para as armas, e soldados para a patria… Na minha casa os costumes transmittem-se intactos como a honra. Deixal-os murmurar.
Quem se atreveria a murmurar do venerando patriarcha dos Marialvas, tão respeitado e tão querido na côrte e no povo!
Deixal-os. Não sei que façam mais do que nós; com as suas modas de hoje!—Deixal-os, e deixemos tambem o que não vem para aqui.—O dia é de alegrias, e creio que tem bom quinhão n'ellas. Cumprimentei já a sr.^a D. Maria Joanna Galvão. Uma dama completa. Não podia escolher melhor… nem ella tambem. Supponho não ser indiscreto.
A sr.^a D. Maria Joanna já me permittiu confessar francamente o que era ha muito a minha secreta esperança, o que hoje se me fez inapreciavel realidade.
Estimo… estimo-o devéras.—Uma dama prendada, um valente soldado… boas familias… elevados sentimentos… Vae tudo de accordo.—É assim que se perpetuam as casas honradas… Hade, prevenir-me quando fôr o casamento.—Não andará longe, não?—É festa de que tambem me não dispenso. O regosijo dos velhos é casar os moços… (com os olhos no terrasso) A sua familia nova já ahi anda… O meu afilhado, esse madrugou, como é natural… Estão todos, creio… É cedo… ainda me não deram parte de ter chegado o tabellião.—E o nosso poeta?… o nosso novo guarda-marinha?… Vem de certo.
Não o tenho visto. Disse-me que ia a Setubal despedir-se dos paes.
Voltou ha tres dias… D'onde procederia aquella resolução repentina!…
Do mais generoso impulso!
Quiz-me parecer…—Que logo de cabeça! Vae em tudo aos extremos.—Ou hade subir muito alto, ou fazer-se muito infeliz!
O mesmo diz a sr.^a D. Maria Joanna.
É ella que o Hade saber avaliar!… Do espirito e do coração da sua… da sua noiva… vamos, póde-se já dizer.
Póde.
Do seu espirito e coração tinha ouvido muito Hontem porém fui ainda mais informado. Esteve aqui o Juiz do Civel da Côrte, que se não cançou de me gabar a nobreza e desinteresse que provou com a restituição dos vinculos á prima. Ella mesma desfez todas as difficuldades… e com tal zelo, com tal contentamento!… A proposito, deu-me tambem a entender coisas um pouco desagradaveis a respeito do Morgado da Gésteira, e do Commendador de Monsarás… Quasi que me arrependi de lhes ter aberto as minhas portas… Sabe se com effeito…
GONÇALO (constrangido, e volvendo os olhos com frequencia para o terrasso)
Que heide eu saber, sr. Marquez?
MARQUEZ (reparando)
Fiz a pergunta sem reflexão. Contaram-me tambem que se mostram seus inimigos declarados… e os homens como o sr. Gonçalo Mendo nunca fallam de um inimigo pelas costas… Essa mesma resposta confirma o que me disseram… Que o Morgado, fraco inimigo póde ser… Mais de temer é o Commendador… (movimento de Gonçalo) de acautelar, quero dizer… tem relações que… (notando como elle olha para o terrasso) Não o preoccupam agora os inimigos, vejo… e tem razão… (sorrindo) Hade querer cumprimentar as senhoras. Na minha edade já se esquecem facilmente essas impaciencias.
Sr. Marquez!… Não pense v. ex.^a…
MARQUEZ (festivamente)
Não pensava, não pensava… Acompanho-o tambem.
(Vae a sair; D. Maria Joanna vem a entrar, seguida do Morgado, que se retira logo vendo o Marquez e Gonçalo.)
MARQUEZ (inclinando-se affavelmente)
Minha senhora! Não lhe queira mal pela demora. O culpado fui eu: faltei-lhe a seu respeito. (reparando para fóra) É sua tia que está alli?
É, sr. Marquez,—encantada do palacio, da vista, do dia, do Tejo… e principalmente de v. ex.^a!…
E eu que tão mal lhe pago, que ainda quasi lhe não fiz as honras da casa, nem lhe cumpri a palavra. (Desapparece no terrasso. D. Maria Joanna vae a seguil-o. Gonçalo detem-a.)
Esquivava-se ao Morgado, pareceu-me. Esse homem atreve-se ainda a perseguil-a?
O Morgado?… O Morgado não póde perseguir ninguem! Cuido que tentava não sei que justificação… Nem eu percebi… Andava passeiando no terrasso. Ao passar, ouvi a sua voz aqui: entrei… para o não ouvir, a elle.
GONÇALO (contendo a colera)
Tenho agora direitos sagrados. Se o Morgado ousou…
Ousou… evaporar-se apenas o viu. Ora, vamos… é homem que inquiete alguem, o Morgado?… Começa a fazer de marido cioso?… Previno-o de uma coisa… tenho horror aos ciosos! (gracejando) Se não póde conter-se, estamos a tempo ainda!…
Não me contive eu tres annos… padecendo a ausencia… sem uma palavra de esperança ou de conforto… vendo-a repartir sem differença graças que só para mim cubiçava, agrados pelos quaes dera a vida?
Não verão o avarento!… Ahi está o que estes senhores querem… e ahi está porque eu fugia de prender-me!… Se não fazemos differença nos agrados, um côro de suspiros, uma circular de queixumes… todos a mesma coisa… Apenas temos a fraqueza de mostrar uma preferencia, o favorecido converte-se em tyranno, e pede-nos conta… até dos sorrisos passados.—Bem me dizia em Paris o cavalheiro de Florian… um moço de gosto e saber.
Que lhe dizia?
Que para uma dama era inestimavel presente de Deus a mocidade e a independencia.
GONÇALO (picado)
Ah!… (tristemente) Repito-lhe então as suas mesmas palavras:—estamos a tempo ainda!…
Eil-o ahi já todo serio e enfadado! Valha-me Deus!… não vê que estou gracejando?—A independencia… a nossa independencia!… Muito é para invejar, na verdade!… Parece á primeira vista que nos festejam e nos adoram. Examinando bem… não ha mais duro captiveiro do que similhante liberdade… Os galanteadores são sentinellas, os lisongeiros espias.—Não foi tão vigiada a nympha da fabula. Ao menos os cem olhos de Argos fecharam-se uma hora…
GONÇALO (sorrindo)
E não foi preciso mais!
Malicioso! (em tom mais jovial) Estes Argos interesseiros não os fecham nem de dia nem de noite. Não sei como fazem, que se fortalecem da vigilia, como os outros do repouso. Para qualquer lado que nos voltemos, lá estão elles com os madrigaes assestados. Cada protesto de respeito é uma atalaya dissimulada. Cada cumprimento é uma bayoneta posta ao peito para nos tomar o passo… E que severa inquisição!… Se olhamos, é leviandade; se rimos, inconstancia; se nos desviamos, desdem… se baixamos os olhos, é disfarce; se choramos, é fingimento; se estamos sisudas, é reserva… Até se nos encerramos, nos poem á porta a suspeita!… As mesmas illusões de uns, se fazem nos outros furibundas indignações. Suffoca-n'os um circulo insuperavel de cortezias insidiosas, de reverencias desconfiadas, e de homenagens hostis… (seriamente) e quando menos o pensamos, achamo-n'os envolvidas pela astucia, pela cubiça, pela perfidia… não poucas vezes pela calumnia!—Eis aqui a nossa independencia!… (no tom anterior) O cavalheiro de Florian ainda não conhecia o mundo!
GONÇALO (gracejando tambem)
Dês de quando faz essa idéa da independencia feminina?
D. MARIA JOANNA (gravemente)
Dês que uma protecção opportuna me libertou d'esse ambito oppressivo… cheio de laços e de perigos… e me fez respirar os ares limpos e sãos de um nobre e generoso affecto!… (com gentileza) Não sei se vacillava ainda… (dando-lhe a mão com meiga dignidade) Sei que d'esse instante para diante não vacillei mais.
GONÇALO (beijando-lhe a mão, e conservando-lh'a nas suas)
Desculpa um momento de irreflexão?
D. MARIA JOANNA (esquecendo a mão nas de Gonçalo)
Ninguem é perfeito n'este mundo.
OS DITOS, e BOCAGE da D.
(Bocage entrando, vendo-os, e detendo-se.)
Ah!… O sr. Bocage? (retira vivamente a mão.)
O anão da casa encaminhou-me para aqui. Se sou importuno… (como para sair por onde entrou.)
GONÇALO (indo a Bocage e detendo-o)
Era esperado, e desejado… venha. (descendo com elle) Ninguem aceitaria com mais satisfação para confidente dos meus alvoroços.
Não é já o sr. Bocage da nossa intimidade? Não me esqueceu ainda!
BOCAGE (com forçada jovialidade)
Filho de Marte e de Venus pintaram o Amor. É indispensavel corrigir a mythologia… O Amor, de menino fez-se homem; de azougado cordato; de despido composto; de vendado attento… abjurou por fim a gentilidade, e até de pagão se converteu a bom catholico… para santamente unir e abençoar, como o pediam os seus merecimentos, um novo Marte e uma Venus melhor!
GONÇALO (fitando-o)
Porque violenta o espirito?… Esse tom festivo tem o que quer que seja de febril… não vem do coração.
BOCAGE (naturalmente)
Não vem, não; diz bem. No coração… tenho uma tristeza profunda… uma dôr que eu desconhecia.
GONÇALO (apertando-lhe a mão)
Comprehendo. Sente agora o sacrificio!
Não a merecia!… Deus não quiz!
Arrepende-se?
Não, minha senhora, não me arrependo. Fiz o que devia fazer…
O que poucos saberiam fazer tão bem!
Mas a impressão não se apaga assim!… (a Gonçalo) Confessei-lhe a minha natural inconstancia… Conhecia mal esta grave e sincera affeição, que podia emendar-me… que outro me tornaria talvez!… Que lhe heide fazer? Bem certo é, que só se dá valor ao bem quando se perde!…
Hade encontrar um coração que o aprecie… Com o seu merito!… A felicidadade, que hoje cuida perdida, facil lhe será restaural-a.
Duvido, minha senhora. Ama-se uma só vez assim… quando se ama. Está em mim mesmo, está na minha indole, o germe do infortunio. Se o podia atalhar alguma coisa, era isto… (resignando-se) Enfim não estava para mim!… (abatido) A imprudencia foi prometter que viria aqui hoje… Vinte vezes tive tentações de voltar para traz… Faltava-me o animo!
Isso não. Tempera-se a alma nos lances difficeis. E na vida que vae seguir é preciso ter coração para tudo.
BOCAGE (recobrando impetuosamente a resolução)
É.—Isso pensei; por isso vim… e verá!—Era fraqueza: não lhe quiz ceder. Seria encetar mal uma carreira, em que o sacrificio é condição de todas as horas, em que o esforço é necessidade de todos os momentos! N'estas procellas d'alma quero dispor-me para as tempestades temerosas que resolvem os céos e os mares. O espirito sacudido de embates angustiosos, que em si mesmo lutou e venceu, está preparado para se não assombrar nem desmaiar, quando os horisontes se condensam… e os ventos se desencadeiam… e os abysmos se rasgam… e a crista das vagas, empinadas como serras, se cruza com a fita do raio, livido como espectro… quando os silvos do vendaval na enxarcia parecem ais de agonisante… quando, n'esse tumulto, n'esse horror, n'esse cahos, o baixel que o valor sustenta, que a intelligencia dirige, que salva a pericia, range até ás profundezas com o stertor do moribundo!… Attrae-me, convida-me a perspectiva… E quasi me esqueço do mais… e todo me ufano revendo-me n'este uniforme, que significa a honra o dever, o patriotismo, a abnegação… contemplando aquelle glorioso estandarte, que se já não varre as aguas como conquistador, se já não as senhoreia como soberano, hade no mundo ser sempre venerado por acções egregias… hade em Portugal ser sempre saudado de legitimas esperanças!
Com esses sentimentos, sr. Bocage, não ha magoa que não se console… não ha grandeza a que se não aspire!
Os sentimentos… São, sim… estes são, estes devem ser.—(comsigo)
Mas o que faz d'elles muitas vezes o destino!
GONÇALO (olhando para o terrasso)
O marquez dirige-se para aqui, se não me engano.
D. MARIA JOANNA (olhando)
Veem todos.
BOCAGE (idem)
O commendador e o morgado são os primeiros! (a Gonçalo) Teem-me feito, pagar bem caro o peccado das más companhias, estes heroes.
OS DITOS, COMMENDADOR e MORGADO
MORGADO (ao commendador)
O que eu vejo, commendador, é que está tudo perdido!
COMMENDADOR (ao morgado)
Socegue.—A tempo chega quem sabe dispôr as coisas. «Hoje por vós, amanhã por nós.» Affirma Cicero que um dia basta para pôr termo aos triumphos.
BOCAGE (a Gonçalo)
Aves de ruim agouro!
Que hão de agourar-nos agora?
OS DITOS, MARQUEZ, (entrando sem dar attencção ao commendador e morgado, que se inclinam)—Depois Um ESCUDEIRO, de habito de Christo
Vão sendo horas. (a D. Maria Joanna) Manuel Simões não cabe em si de contente, e sua tia anda nos ares. (vendo o escudeiro) Creio que chegou o tabellião. (O escudeiro dirige-se respeitosamente ao marquez, e diz-lhe algumas palavras em voz baixa.) Está ahi com effeito. (ao escudeiro) Mande entrar, e mande pôr as cadeiras.
OS DITOS, D. FELICIA, D. MARIA GERTRUDES, FRANCISCO, MANUEL SIMÕES e
CONVIDADOS
D. FELICIA (vendo Gonçalo, jovialmente)
O sobrinho não tem pressa de cumprimentar a sua tia nova?… Não lhe chega o tempo, já vejo… Era bem feito que me oppozesse agora!
Para nos cobrir de tristeza!
Ai! não… não quero vêr ninguem triste… Sabe?… O sr. marquez!… Oh! grande marquez!… O sr. marquez entregou-me já o alvará de açafata.—Que dia!—que dia para a familia, sobrinha!… Estou curada dos meus hystericos!
Parabens, minha tia!
MANUEL SIMÕES (impaciente, ao marquez, mas sem nunca esquecer o usual acatamento)
O tabellião traz já as escripturas promptas, meu senhor.—É só assignar.
Ler e assignar.—Vejam como vem guapo o nosso guarda marinha!… (a
Bocage) Quando levanta ferro a nau?
Amanhã, sr. marquez.
MARQUEZ (aos circumstantes)
E de uniforme grande, em honra do dia. Não lh'o agradece, Manuel Simões?
Sou eu… (indicando D. Maria Gertrudes) somos nós dois… que principalmente lhe devemos agradecer. (indo a Bocage) Se os votos d'uma gratidão profunda pódem ser-lhe aceitos… asseguro-lhe que não os ha mais ardentes e sinceros.
Hão de acompanhal-o sempre as nossas orações!
BOCAGE (commovido)
As orações dos anjos são para os infelizes… (com esforço) e eu… sou apenas um desterrado voluntario!
Ahi vem o tabellião.—(comsigo) Meu filho doutor!… minha sogra açafata!… a minha nora morgada!… por compadre um marquez!—Está-me a cair o habito de Christo!…
OS DITOS, O ESCUDEIRO precedendo O TABELLIÃO, e seis ou oito criados
(O tabellião entra fazendo reverencia a todos, e inclina-se profundamente diante do marquez; sob indicação do escudeiro toma o seu logar á meza em pé, e desenrola as escripturas.—Os criados chegam ao marquez uma cadeira d'espaldas, e collocam em torno da meza mais algumas cadeiras communs. O marquez e as damas sentam-se. O escudeiro fica á frente dos criados, fazendo parede ao F.)
MARQUEZ (sentado, ao tabellião)
Póde começar a leitura. (O tabellião dispõe-se a ler.)
Ainda o não posso crêr!
GONÇALO (por detraz da cadeira de D. Maria Joanna, que fica na extremidade)
Chegará tambem brevemente o nosso dia!
OS DITOS e UM PAGEM
(O pagem entra apressadamente com uma bandeja de prata, e em cima um officio; dirige-se ao marquez, ao qual apresenta a bandeja com um joelho em terra.)
MARQUEZ (vendo o pagem, ao tabellião)
Queira esperar. (recebendo o officio) O que será? (O pagem retira-se para o lado.) É para o sr. Gonçalo Mendo… traz o sello da secretaria de estado… Provavelmente não o achou em casa o correio, e disseram-lhe que estava aqui. (O pagem vae receber o officio da mão do marquez, leva-o a Gonçalo Mendo, e sae.)
Para mim… Da secretaria?—(recebe o officio, abre, e lê, com visivel gitacão.)
COMMENDADOR (de parte, ao morgado, tirando a caixa)
Quer apostar que se não faz o casamento de sua prima!
(O marquez observa-os. Bocage não tira os olhos d'elles.)
MARQUEZ (inquieto)
Que é?
GONÇALO (consternado)
A nomeação de capitão de Sofála… e ordem terminante de partir na nau de viagem, que sae amanhã!
D. MARIA JOANNA (erguendo-se com um grito angustioso)
Jesus! (Soccorrem-n'a D. Felicia e D. Maria Gertrudes.—Erguem-se todos, e affluem em roda de Gonçalo. Mostras de pezar na familia. O morgado não póde conter o alvoroço. Bocage continúa a observar os dois, refreado unicamente pelo respeito da casa.)
MARQUEZ (admirado)
Tinha requerido?
Eu, sr. marquez!—N'esta occasião!…
COMMENDADOR (saboreando a pitada hypocritamente)
Que transtorno!… No livro 5.^o da Eneida ha…
BOCAGE (prorompendo)
Sei eu… vejo eu d'onde vem o tiro…
GONÇALO (dolorosamente)
Acertaram-m'o no coração!… (Breve pausa.—A Bocage, com animo inteiro) Somos companheiros de viagem.
(D. Maria Joanna soluça, com o lenço nos olhos, nos braços de D. Felicia, e sua prima.)
BOCAGE (impetuosamente)
Não póde ser… não deve ser… O ministro foi enganado!
MANUEL SIMÕES (insinuando)
Uma palavra que o sr. marquez diga a Sua Magestade!…
Parto d'aqui a um instante para Samora. Vou fallar á rainha, minha senhora. Ha tempo ainda.—Não embarca, sr. Gonçalo Mendo. (ao escudeiro) Que apromptem o meu escaler. (O escudeiro vae a sair, e detem-se á voz de Gonçalo.)
Peço perdão, sr. marquez: embarco.—Sei o que v. ex.^a póde… mas sei tambem o que devo.—(grave e solemne) Quando ultimamente fui tomar posse do meu solar de Mendel, aonde não voltara dês que entrei no collegio dos Nobres, a primeira coisa que me deu nos olhos, na sala de respeito, foi a longa fileira dos retratos de meus avós… um morto na defeza de Ceuta… outro espedaçado nos bastiões de Diu… outro mal-ferido na batalha de Montes Claros!… Todos com o arnez no peito e a espada no cinto… todos soldados desde Aljubarrota!… Parei a contemplal-os na vasta quadra, triste e deserta, que novamente a morte visitava.—Do alto das sombrias paredes pareciam dizer-me aquelles vultos severos: «por servir a patria, e para servir a patria, nos foi dado o patrimonio que te deixamos, com as obrigações do nosso nome, com as tradicções do nosso sangue. De ferro eram os nossos corações, como eram de ferro as nossas armaduras… nunca tremeram nos riscos mais affrontosos… nunca vacillaram nos mais apertados transes!… Esta immaculada austeridade nos fez estimados e honrados… Tal é o deposito de virtudes hereditarias que te confiamos… Recebe-o para o transmittir como o recebes.»—Isto julguei ouvir… isto se me gravou n'alma.—Podia esquecel-o agora?
Mas essa nomeação foi solicitada pela perfidia… essa ordem…
GONÇALO (atalhando)
É da patria. Não a examino; obedeço-lhe. Foi o que prometti quando jurei bandeiras.—O primeiro predicado militar é a obediencia: o valor é apenas o segundo. (vehemente) O soldado que se nega a obedecer é como um desertor em dia de batalha,—atraiçôa egualmente o juramento! Ninguem ousaria aconselhar-m'o… ninguem espera tal de mim! (D. Maria Joanna alça o rosto, e escuta-o attenta, enxugando os olhos.)
Não, o esquecimento do dever ninguem lh'o poderia aconselhar… Mas o estado que vae tomar, mas a familia que lhe abre os braços, não lhe dita deveres tambem?
A patria é a familia das familias!—Se uma veneranda mãe chama por seus filhos em nome da honra commum, qual póde recusar-se? com que pretexto hade eximir-se?—Os affectos de familia! Quem é o desamparado que não tem alguma familia? Se essa razão prevalece, ninguem servirá. Mais que para qualquer, para nós, os que seguimos a profissão das armas, e a patria mãe rigida e imperiosa, mas amada sobre tudo. Ainda mais sua do que nossa é aquella honra que entregaram á nossa guarda. Que filho consente que a honra de sua mãe possa entrar em duvida?—Sr. Bocage, o pundonor do soldado não exige menos que a isenção do poeta. Um passo para ficar… (com os olhos no Commendador e Morgado) e não faltará quem diga que eu… eu, um militar, um portuguez, um neto de veteranos!… recuei diante dos perigos do clima, ou da azagaya dos cafres… A calumnia é a espada da hypocrisia… não tem outra. Haviam de dizel-o. (com resolução enthusiasta) Não o dirão… Podem os meus inimigos triumphar com o meu supplicio; não triumpharão com as minhas fraquezas. Ninguem dirá nunca de Gonçalo Mendo, que o viu hesitar… nem diante da catastrophe subita das mais justas esperanças!
BOCAGE (desesperado)
Não tenho palavras que o convençam? (indicando-lhe D. Maria Joanna) Veja se resiste áquelle rosto, áquella dôr, ás supplicas alli estampadas, á voz e ás lagrimas que mais do que eu o persuadirão.
D. MARIA JOANNA (descendo, triste e gravemente)
O que existe no mundo mais santo do que o amor puro de duas almas, que uma da outra vivem, que uma para a outra só querem viver? Ha distancia que lhes desate os laços? (crescendo em vehemente sensibilidade) Haverá golpe que lhes corte os vinculos? Não lhes são communs as alegrias? Não lhes são communs as penas? Não lhes é tudo commum? Póde alguem separal-as em sentimentos, quando foi o sentimento que as uniu, que das duas fez uma, quer para viver, quer para pensar, quer para soffrer? (Pausa. Com ponderativa energia.) É a mulher de um soldado a companheira de todos os seus perigos, de todos os seus trabalhos… e de todos os seus deveres. A gloria d'elle é unico desvelo, unico fito, unico enlevo d'ella. A obediencia, que é n'elle empenho, n'ella é culto… Cumpre que seja em ambos a resolução egualmente heroica. Se não póde acompanhal-o nos dias de batalha… póde esconder-lhe o pranto nos dias de provação!… (Pausa meditativa. Com subito e convulso esforço.) Vá, sr. Gonçalo Mendo… vá que eu espero-o!
Não, sr.^a D. Maria Joanna. Admiro a nobreza do seu animo… para mais sentir o que n'elle perco… mas o sacrificio da sua mocidade pesaria eternamente sobre a minha consciencia.—Restituo-lhe a palavra que me deu. É livre.
D. MARIA JOANNA (solemne e decidida)
Sr. Gonçalo Mendo, se na sua familia o juramento é timbre que a tudo sobreleva, na minha casa dão-se juntamente o coração e a palavra, e a palavra só deixa de obrigar quando o coração deixa de bater. Póde julgar-se livre; eu não. Se tiveramos tempo de consagrar a nossa alliança, podia negar-me o favor de acompanhal-o? Se estivessemos já unidos á face do altar, teria acaso direito de dizer-me: «restituo-lhe a palavra e a liberdade?» Considero-me ligada perante Deus: só Deus me póde desligar. Ámanhã recolho-me ao convento de Santos. Unicamente a sua mão me abrirá aquellas grades!
Quem se não deixará vencer?—Á volta irei dedicar-lhe esta vida, que já toda lhe pertence. Hade permittil-o Deus!
MARQUEZ (intervindo)
Fizeram todos o seu dever. Tenho tambem um para cumprir… (para o Commendador e Morgado) Ás pessoas, que eu protejo, nem o proprio Marquez de Pombal se atreveu nunca! (fulminando-os de desdem) Sr. Morgado da Gésteira, precisa sair de Lisboa e tornar quanto antes para a sua terra… (O Morgado fica attonito.—Com intimativa.) Precisa.—Hade ter disposições que fazer. Não o quero demorar… (O Morgado percebe e encaminha-se todo encolhido e confuso á porta da D.) Espere… o seu amigo Commendador deseja acompanhal-o.—Sr. Commendador, é provavel que a Meza da Consciencia lhe queira tomar contas do modo por que tem cumprido os encargos da sua commenda. (O Commendador, que ao principio ouvia altivo, resigna-se tambem o segue o Morgado.)
OS DITOS, menos COMMENDADOR e MORGADO
BOCAGE (vendo-os sair)
A vilania e a jactancia… a cobiça e a hypocrisia!… Ahi estão os homens, ahi estão os vicios, que me ensopam a satyra em fel… que me inflammam de raios a musa!… Bem o prevejo, bem o presinto… Contribuirão elles para me abreviar a vida… pagar-lhes-hei eu com a immortalidade do ridiculo!…
Guarde para mais a lyra, Manuel Maria. Não vê como os castiga o despreso da gente de bem?—(a Gonçalo) Hade voltar… e hade voltar breve.
D. FELICIA (consolada)
Hade… hade… que m'o diz o coração!
MANUEL SIMÕES (sempre impaciente)
Ainda bem! (ao Marquez insinuante e respeitoso) Então agora… as escripturas…
Podem ler-se e assignar-se.
(O Tabellião torna a pegar nas escripturas. O Marquez, D. Felicia e Manuel Simões voltam aos seus logares, mas sem se sentarem.—Francisco e D. Maria Gertrudes estão á E.; Gonçalo e D. Maria Joanna á D.; Bocage na extremidade da D.)
FRANCISCO (a D. Maria Gertrudes)
Finalmente… vou firmar a minha ventura!
GONÇALO (a D. Maria Joanna)
Ao menos… levo a esperança!
BOCAGE (pensativo e com os olhos nos dois pares)
E a mim… (comsigo, dolorosamente, em quanto D. Maria Joanna que o observa, se lhe aproxima com Gonçalo Mendo, cuja attenção chama pelo gesto) a mim… que me fica?
Fica-lhe… a posteridade!
(cae o panno)
* * * * *
A propriedade d'esta peça no imperio do Brazil pertence a Francisco
Pereira da Cunha Novaes.
Rio de Janeiro, 1865.
*Notas:*
[1] Este periodo, e os seguintes, marcados com commas, supprimem-se na representação para abreviar as respectivas scenas.