Title: Orpheu Nº2
Editor: António Joaquim Tavares Ferro
Author: Alvaro de Campos
Violante Cisneiros
Eduardo Guimarães
Raul de Oliveira Sousa Leal
Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima
Luís de Montalvor
Fernando Pessoa
Mário de Sá-Carneiro
Illustrator: Guilherme Augusto Cau da Costa Santa-Rita
Release date: November 25, 2007 [eBook #23621]
Language: Portuguese
Original publication: Lisboa: Editor: Antonio Ferro Redacção: 190, Rua do Ouro--Livraria Brazileira Oficinas: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira, ao Carmo--Telefone 2724, 1935
Credits: Produced by Vasco Salgado
Produced by Vasco Salgado
*2*
Propriedade de: ORPHEU, L.^da
Editor: ANTONIO FERRO
*Fernando Pessôa*
*Mario de Sá-Carneiro*
*ANO I—1915* *N.^o 2* *Abril-Maio-Junho*
ANGELO DE LIMA Poemas Inéditos
MARIO DE SÁ-CARNEIRO Poemas sem Suporte
EDUARDO GUIMARAENS Poemas
RAUL LEAL Atelier (novela vertígica)
VIOLANTE DE CYSNEIROS (?) Poemas
ALVARO DE CAMPOS Ode Marítima
LUÍS DE MONTALVÔR Narciso (poema)
FERNANDO PESSÔA Chuva oblíqua (poemas interseccionistas)
*Colaboração especial do futurista*
*(4 hors-texte duplos)*
Redacção: 190, Rua do Ouro—Livraria Brazileira. Oficinas: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira, ao Carmo—Telefone 2724
"Orpheu" iniciará na rentrée uma longa série de conferencias de afirmação, sendo as primeiras as seguintes:
A Torre Eiffel e o Genio do Futurismo, por Santa Rita Pintor.
A Arte e a Heraldica, pelo pintor Manuel Jardim.
Teatro Futurista no Espaço, pelo Dr. Raul Leal.
As Esfinges e os Guindastes: estudo do bi-metalismo psicologico, por Mario de Sá-Carneiro.
Varias razões, tanto de ordem administrativa, como referentes á assunção de responsabilidades literarias perante o publico, levaram o comité redactorial de ORPHEU a achar preferivel que a direcção da revista fôsse assumida pelos actuais directores, não envolvendo tal determinação a minima discordancia com o nosso camarada Luís de Montalvôr, cuja colaboração, aliás, ilustra o presente numero.
De principio, concordara o comité redactorial de ORPHEU em não inserir colaboração artistica: por isso mesmo se adoptou uma capa que o era, brilhante composição do arquitecto José Pacheco. Posteriormente á saída do primeiro numero, julgou, porêm, o mesmo comité que seria interessante inserir em cada numero desenhos ou quadros de *um* colaborador, em vista do que decidiu *fixar* a capa, tirando-lhe o caracter artistico e dando-lhe um simples e normal aspecto tipografico. A realisação desta parte do nosso programa começa no numero actual com a inserção dos quatro definitivos trabalhos futuristas de Santa Rita Pintor.
O Manifesto da Nova Literatura, que havia sido anunciado como devendo fazer parte do n.^o 2 de ORPHEU, não é nêle inserto nem o acompanha. É motivo disto a circunstancia de que, envolvendo a confecção dêsse manifesto o desenvolvimento de principios de ordem altamente scientifica e abstracta, êle não pôde ficar concluido a tempo de ser inserto. Ou aparecerá com o 3.^o numero da revista, ou mesmo antes, talvez, em opusculo ou folheto separado.
O 3.^o numero de ORPHEU será publicado em outubro, com o atraso dum mês, portanto—para que a sua acção não seja prejudicada pela época-morta.
Os hors texte de Santa Rita Pintor insertos no presente numero foram fotogravados nos ateliers da *Ilustradora* segundo clichés de
*BARROS & GALAMAS* 146, Rua da Palma—LISBOA
Toda a correspondencia deve ser dirigida aos Directores.
Convidamos todos os Artistas cuja simpatia esteja com a indole desta Revista a enviarem-nos colaboração. No caso de não ser inserta devolveremos os originais.
São nossos depositarios em Portugal os srs. Monteiro & C.^a, Livraria
Brazileira—190 e 192, Rua Aurea, Lisboa.
ORPHEU publicará um numero incerto de paginas, nunca inferior a 72, ao preço invariavel de 30 centavos o numero avulso, em Portugal, e 1$500 réis fracos no Brazil.
(Ao ano—Série de 4 numeros)
Portugal, Espanha e Colonias portuguesas 1 escudo
Brazil 5$000 réis (moeda fraca)
União Postal 6 francos
*Livraria Brazileira de MONTEIRO & C.^ia—Editores* 190 e 192, RUA AUREA—LISBOA
Acaba de aparecer:
Preço 70 centavos
—Oh! Noute em Teu Amor Silenciosa!
—Oh! Estrellas na Noute, Scintillantes,
Como Ideaes e Virginaes Amantes!…
—Oh! Memoria de Amor Religiosa!…
—Já Fui… uma Creança Pubescente
Que des'brocha em Amor Inconsciente
Como n'um Vago Sonho… Commovente
Desabrocha uma Rosa Olorescente
—A Adolescente… Casta e Curiosa!
—E já Fui… a Galante com Requinte
Para dar-me, Esquivando-me em Acinte
De P'rigos da Ventura Cyspresinte
—Sensitiva… Ao Brisar, do Sol Orinte…
—A Nubente… Temente e Desejosa!
—E já Fui… a Noivada pelo Amante,
A Cingida de Abraço Palpitante,
Anxe do Sacrificio Inebriante!
—A Flôr que Quebra o Gyneceu… Hiante,
—A Desvirgada… Grata e Dolorosa!
—Oh! Memoria de Amor Religiosa!
—Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes…
—Oh! Noute em Teu Amor… Silenciosa!
Já Fui… como a Senhora, sim, durante
Uns Tempos de Ventura Confortante
Nos Confortos de um Lar… Hoje Distante…
—Como Dista, da Noute, um Paço Encante…
Já Fui… uma Matrona Virtuosa!…
E já Fui… a Devota pelo Amor,
A Adulterin… que Trahe o seu Senhor!…
E a que sentiu Doer o Coração
Ao Fim de Tanta e Cada uma Vez
Por cada Intento só Colhêr Revez
Nas Esp'ranças da Sua Devoção!…
Oh! Noute! em Teu Amor Silenciosa!
Oh! Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes…
Oh! Memoria de Amor Religiosa!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E se Ha de Amor, algum Amor Eleito,
Aquella Tambem Fui, que Ninguem Fôsse,
Que, n'um Mysterio, como o Inferno, Doce,
Amei a Minha Filha, no seu Leito…
Sim, se Ha de Amor algum Amor Eleito,
Minhas Irmãs, Cingi-me ao Vosso Peito
E Ouvi-Me esta Memoria Dolorosa…
Já Fui Aquella que Perdeu a Esp'rança,
E Errou Espasma Noutes sem Termino,
Entre a Treva das Selvas Pavorosa,
Anxe em busca de Amantes do Destino…
—E A que Lembrou os Tempos de Creança!…
—E já Fui como a Sombra da Saudade
Amando a Lua, pela Immensidade!
—Oh Noute! em Teu Amor, Silenciosa!
—Oh Estrellas, na Noute, Scintillantes
Como Ideaes e Virginaes Amantes!
—Oh Memoria de Amor, Religiosa!…
Ó Noute Immensa pela Immensidão!
Recebe em Ti a minha Confissão.
Eu Nunca disse ao Verdadeiro, Não!
Nem devoro em Remorso o Coração!…
Sou a Grande Rainha Neitha-Kri…
Sou Devota da Noute Pensadora…
E Neith é grande, pelos Ceus Senhora…
E Eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!…
Meu Irmão era o Rei Mentha-Suf'reh!…
—E Morreu Enlevado em Sonho Ideal
D'um Phyltro que Eu lhe dei para tomar!…
—Mentha-Suf'reh não Conheceu o Mal
—E o Destino Elegeu-me p'ra Reinar
Sobre os Milagres do Paiz d'Esneh!…
—Sou a Grande Rainha Neitha-Kri!
—Sou Devota da Noute Pensadora
—E Neith é Grande! pelos Ceus Senhora!
—Sou a Rainha!… Sou Nofrei-Ari!…
—No meu Corpo Divino e Perfumado
Tenho a Carne Côr Mate da Belleza
Que é Ammarella de Côr e Delicada,
Da Côr Loura da Chamma Incendiada…
—Tenho o Porte das Damas da Nobreza
Nas Formas do Meu Corpo Consagrado!…
—A Thiara Suprema que Investi
Coroa a Minha Fronte Sobranceira,
Real, Sagrada, Mystice, Altaneira…
—E Então—ó Neith—sou Divina em Ti!…
Na Sombra d'Esta C'roa dos Thanitas
Palpitam-me no Seio Delicado
Anceios de Desejos Escondidos,
Mysteriosos, quasi Indefinidos,
Mesmo ao Saber do Meu Olhar Velado
—Que tu, ó Noute! em Teu Amor Excitas…
O Peitoral Sagrado da Magia
Repousa nos seus Ouros Esmaltados,
Frio sobre os meus Seios Excitados,
Como tacite, Oraculo, do Dia…
—Sob o Pê-chênte Cintural Pendente
Sobre o Vigor suavemente Curvo
Das minhas Côxas no meu star de Hyerata
Que Antros Ardentes e que, Amor, Dilata
De um Ardor Fulguroso… porque Turvo…
De que Immanencia… de que Immanescente?…
—Ó Noute minha Mãe na Immensidão!
—Ó Noute Grande, pelos Céus Senhora…
—Scintil d'Estrellas n'Essa Solidão…
—Eu, Sobre a Terra, Sou a Vencedora!…
—Erguida nas Sandalias Encurvadas
Sou de Pé ante Ti, ó Verdadeira!
Dama da Vida, pelo Amor Ungida…
Senhora Principal… Dama da Vida!
Eu, Tua Padre-Mãe!—a Derradeira…
—Entre as Vagas de Incenso a Ti Votadas…
—Meu Olhar é Fulguro docemente,
Como se n'este Espelho da Verdade
Da minha Alma Polytica de Rei,
—N'Aquella Presciencia com que Sei
—Se Reflectisse a Minha Lealdade
—Ou a Luz d'Algum Astro Transcendente…
—E os meus Braços Frementes Alongados,
Cingidos nos Annilos Rictuaes,
Têem na Mão o Seter dos Grandes Paes
Como as Chaves dos Sellos Reservados…
Sou mais Sabia que os Sabios—Eu emfim
—Eu que Sei o Segredo Consagrado
Das Filtragens do Lotus Divinal
Que Floresce em o Rio de Occidente
E que Evoccam o Sonho Absorvente
Em que Esquecem—a par da Dor do Mal—
Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado…
—Que Encontram outro Lar juncto de Mim…
—Meu olhar é Fulguro docemente
Em Profunda Dulcissima Certeza
Como as Astres do Ceu Immanescente…
E Mãe—ó Neith-eu! ó mais que Pura!
—Como as Estrellas d'um Fulgor Fremente…
—Sou a Ventura Filha da Tristeza
D'Esse Teu Medictar Saudosamente…
—E assim como os Astros Fascinantes
Geram Fatas as Horas dos Instantes,
—Meu Amor—o Sem Fim—gera a Loucura!
—Alem Foi—a Ninive da Piedade,
A Cidade do Lucto Singular
E a Sepultura da Semi-Rami…
—E Hoje… stá por Ali, Vaga, a Saudade…
—E anda no Ceu Supremo a Eterna Istar…
—E… Passa, ás Vezes, a Serpente…—Ali!…
Na Camara Longinqua e Silenciosa
Da Sepultura da Semi-Rami…
—Relegada da Vida Gloriosa
—Na Paz Final da Morte Mysterosa
—Fria e Saudosa
—Dorme a Semi!…
—Morreu na Guerra em um Paiz Distante…
—Na Expedição Fatal em que Morreram
Trez Milhões de Soldados…—e ainda Mais…
—E os Guardas d'A Que Fôra a Triumphante
—Fieis…, os Seus Cem Guardas Immortaes…
Na Piedade Final do Ultimo Preito
Denotando os Seus Corpos Vigorosos
—Mantendo sobre os Hombros Pressurosos
O Feretro Sagrado da Semi…
—Por Caminhos Infindos Escabrosos
Em Terras de Inimigos… e Chacaes…
—Por Soes de Fogo…—Vastos Areaes…
—E Pavôres Sacros de Paiz Levante…
—Trouxeram Seu Cadaver do Distante
—E Inhumaram-A Alli…
—Fria e Saudosa!…
—Na Camara Longinqua e Silenciosa
Da Sepultura da Semi-Rami!…
*….?….*
—Eras… nos Tempos… Antes da Edade…
Teu Gesto Gloro Gerou a Vida!…
—E Apoz Teu Gesto…
—Supremo… Immesto…
—Grande e Tacida…
—Depoz… É a Noute na Immensidade!…
—E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso
Disse a Mu-Ang—Alguma Vez, Accaso…
—Olha a Nuvem no Céu… e como Corre!…
—Assim as Horas da Ventura Minha…
—Quem Tem Filhos na Terra—Esse Não Morre!…
—Despozae—Se Sois Rei—uma Rainha
—Que É Tanto como Vós Pela Grandeza…
—E… Depois… de Espozardes a Belleza
Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
—E o Rei Mu-An' disse á Rainha, Então…
—Junto de Vós… Enlevo-me de Encanto…
—Longe, Porém, do Meu Paiz—Ha tanto,—
Que Nem, Meus Reinos, Já Eu Sei se São…
—Volto ao Meu Reino… n'Esta Dôr Tamanha…
—Seja—A da Mãe do Rei—Esta Montanha
Onde Alastra Este Bosque de Arvoredo
Junto ao Lago… em que Estamos… em Adeus!…
—Ó Mãe do Rei… Vós M'Enlevaes nos Céus
—Mas o Meu Coração Soffre em Segrêdo!…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
—Quantos… desde Chu-Si a Kuan-Su
—Filhos do Céu nas Filhas do Kiang
—Consagraram no Throno dos Hoang
—Aureolados do Pavão Azu?…
—E Algum Dia… Encostaram-se Tranquilos
Sobre a Meza de Joias do Estar Manso
—E Cerraram os Olhos nos Seus Cilos…
—E Abateram Seu Gesto Socegado
De Imp'radores do Imperio Consagrado…
—No Gesto da Decencia e do Descanso!…
Aos meus amigos d'ORPPHEU
—Mia Soave…—Ave?!…—Alméa?!…
—Maripoza Azual…—Transe!…
Que d'Alado Lidar, Canse…
—Dorta em Paz…—Transpasse Idéa!…
—Do Occaso pela Epopéa…
Dorto… Stringe… o Corpo Elance…
Vae Á Campa…—Il C'or descanse…
—Mia Soave…—Ave!…—Alméa!…
—Não Doe Por Ti Meu Peito…
—Não Choro no Orar Cicio…
—Em Profano…—Edd'ora… Eleito!…
—Balsame—a Campa—o Rocío
Que Cahe sobre o Ultimo Leito!…
—Mi' Soave!… Edd'ora Addio!…
—Estes Versos Antigos Que Eu Dizia
Ao Compasso Que Marca o Coração
Lembram Ainda?…—Lembrarão um Dia…
—Nas Memorias Dispersas Recolhidas
Sequer, na Piedosa Devoção
D'Algum Livro de Cousas Esquecidas?…
—Accaso o Que Ora Canta… Vive… Existe
Nunca Mais Lembrará—Eternamente?…
—E, Vindo do Não-Ser, Vae, Finalmente,
Dormir no Nada… Magestoso e Triste?…
a Santa Rita Pintor.
Minha presença de setim,
Toda bordada a côr de rosa,
Que fôste sempre um adeus em mim
Por uma tarde silenciosa…
Ó dedos longos que toquei,
Mas se os toquei, desapareceram…
Ó minhas bôcas que esperei,
E nunca mais se me estenderam…
Meus Boulevards d'Europa e beijos
Onde fui só um espectador…
—Que sôno lasso, o meu amor;
—Que poeira d'ouro, os meus desejos…
Ha mãos pendidas de amuradas
No meu anseio a divagar…
Em mim findou todo o luar
Da lua dum conto de fadas…
Eu fui alguem que se enganou
E achou mais belo ter errado…
Mantenho o trôno mascarado
Aonde me sagrei Pierrot.
Minhas tristezas de cristal,
Meus débeis arrependimentos
São hoje os velhos paramentos
Duma pesada Catedral.
Pobres enleios de carmim
Que reservara pra algum dia…
A sombra loira, fugidia,
Jámais se abeirará de mim…
—Ó minhas cartas nunca escritas,
E os meus retratos que rasguei…
As orações que não rezei…
Madeixas falsas, flôres e fitas…
O «petit-bleu» que não chegou…
As horas vagas do jardim…
O anel de beijos e marfim
Que os seus dedos nunca anelou…
Convalescença afectuosa
Num hospital branco de paz…
A dôr magoada e duvidosa
Dum outro tempo mais lilaz…
Um braço que nos acalenta…
Livros de côr á cabeceira…
Minha ternura friorenta—
Ter amas pela vida inteira…
Ó grande Hotel universal
Dos meus frenéticos enganos,
Com aquecimento-central,
Escrocs, cocottes, tziganos…
Ó meus Cafés de grande vida
Com dançarinas multicolôres…
—Ai, não são mais as minhas dôres
Que a sua dança interrompida…
Lisboa—março de 1915.
Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Subita sensação inexplicavel de ternura,
Todo me incluo em Mim—piedosamente.
Emtanto eis-me sózinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas—ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Boçal, quadrangular e livre-pensadora…
Fóra: dia de Maio em luz
E sol—dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Não podem tolerar—e apenas forçados
Suportam em nauseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que ha de ter cantores
Entre os amigos com quem ando ás vezes—
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos—
Que escrevem, mas têem partido politico
E assistem a congressos republicanos,
Vão ás mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas…
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim…
Mil côres no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flexas, listas volúveis, discos flexiveis,
Chegam tenuemente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os scenarios que entretanto Fui…
Eis como, pouco a pouco, se me fóca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram…
Leve inflexão a sinusar…
Fino arrepio cristalisado…
Inatingivel deslocamento…
Veloz faúlha atmosférica…
E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por innumeras intersecções de planos
Multiplos, livres, resvalantes.
É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação—
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nêle se incrusta,
Varar a sua Beleza—sem suporte, emfim!—
Cantar o que êle revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilisado, sucessivo—perpétuo ao Infinito!…
Que calótes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triangulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum vôo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténnis!—
Que loiras oscilações se ri a bôca da jogadora…
Que grinaldas vermelhas, que léques, se a dançarina russa,
Meia-nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Ouro!
—Que rendas outros bailados!
Ah! mas que inflexões de precipicio, estridentes, cegantes,
Que vertices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias…
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos—pêle-mêle…
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por êle, separado por êle
Em multiplos intersticios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!…
—Ó beleza futurista das mercadorias!
—Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
—Madeira dos caixotes,
Como eu anseara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros…—
Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos—
Negras, vermelhas, azuis ou verdes—
Gritos de actual e Comercio & Industria
Em transito cosmopolita:
Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosferica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
Á minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco—célere,
Imponderável, esbelto, leviano…
—Olha as mesas… Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar ás cabriolas,
Em séries instantaneas de quadrados
Ali—mas já, mais longe, em lozangos desviados…
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se ás mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café…
E, mais alto, em planos obliquos,
Simbolismos aereos de heraldicas ténues
Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sôno horisontal,
Vá lá, se erguem tambem na sarabanda…
Meus olhos ungidos de Novo,
Sim!—meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variavel sempre
E livre—em mutações continuas,
Em insondáveis divergencias…
—Quanto á minha chávena banal de porcelana?
Ah, essa esgota-se em curvas gregas de anfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a ouro emite…
É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!…
… Dos longos vidros polidos que deitam sôbre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalisações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, azes—na poeira multicolor—.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que faltava na paisagem…
As ondas acusticas ainda mais a subtilisam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas côrsas d'Alma…
Pede uma voz um numero ao telefone:
Norte—2, 0, 5, 7…
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA!
[Nota do Transcritor: Aqui surge a composição com números.]
Mais longe um criado deixa cair uma bandeja…
Não tem fim a maravilha!
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em écos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente…
—Meus olhos extenuaram de Beleza!
Inefavel devaneio penumbroso—
Descem-me as palpebras vislumbradamente…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
… Começam-me a lembrar aneis de jade
De certas mãos que um dia possuí—
E ei-los, de sortílégio, já enroscando o Ar…
Lembram-me beijos—e sobem
Marchetações a carmim…
Divergem hélices lantejoulares…
Abrem-se cristas, fendem-se gumes…
Pequenos timbres d'ouro se enclavinham…
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas…
Quebram-se estrelas, sossobram plumas…
Dorido, para roubar meus olhos á riqueza,
Fincadamente os cerro…
Embalde! Não ha defesa:
Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão—
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives…
—Ó mágica teatral da atmosfera,
—Ó mágica contemporanea—pois só nós,
Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a exgotar-se em ritmos iriados!
Eu proprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!…
(Como tudo é diferente
Irrealisado a gás:
De livres pensadoras, as mesas fluidicas,
Diluidas,
São já como eu catolicas, e são como eu monarquicas!…)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sereno.
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o «Matin».
Meus olhos, já tranquilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipografica.
Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crónicas diarias!
Corpo-12 romano, instalado, burguez e confortavel!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anuncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!…
E os ornamentos tipograficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os «puzzle» frivolos da pontuação,
Os asteriscos—e as aspas… os acentos…
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!…
[Nota do Transcritor: Aqui surge uma composição com caracteres.]
—Abecedarios antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Slavos, arabes, latinos—,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!…
(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomotopaica,
Rescendente da beleza alfabetica pura:
Uu-um… kess-kresss… vliiim… tlin… blong… flong… flak…
Pâ-am-pam! Pam… pam… pum… pum… Hurrah!)
Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da Ultima-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!
—Hurrah! por vós, industria tipografica!
—Hurrah! por vós, empresas jornalisticas!
Por ultimo desdobra-se a folha dos anuncios…
—Ó emotividade zebrante do Reclamo,
Ó estética futurista—up-to-date das marcas comerciais,
Das firmas e das taboletas!…
*LE BOUILLON KUB*
*VIN DÉSILES* *PASTILLES VALDA*
*BELLE JARDINIÈRE*
*FONSECAS, SANTOS & VIANNA* HUNTLEY & PALMERS *"RODDY"*
*Joseph Paquin, Bertholle & C.^ie*
*LES PARFUMS DE* *COTY*
*SOCIÉTÉ GÉNÉRALE*
*CRÉDIT LYONNAIS*
*BOOTH LINE* *NORDDEUTSCHER LLOYD*
*COMPAGNE INTERNATIONAL DES WAGONS LITS
ET DES GRANDS EXPRESS EUROPÉENS*
E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Tudo isto, porêm, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá tambem:
Numeros e letras, firmas e cartazes—
Altos-relêvos, ornamentação!…—
Palavras em liberdade, sons sem-fio,
MARINETTI + PICASSO = PARIS < *SANTA RITA PIN-
TOR + FERNANDO PESSOA
ALVARO DE CAMPOS
!!!*
Antes de me erguer lembra-me ainda,
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares… não sei porquê…
—Un vermouth cassis… Un Pernod à l'eau… Un amer-citron… une grenadine…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Levanto-me…
—Derrota!
Ao fundo, em maior excesso, ha espelhos que reflectem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através dêles,
A mais subtil destaque…
—Ó sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como anseara, até ao espasmo e ao Oiro,
Toda essa Beleza inatingivel,
Essa Beleza pura!
Rólo de mim por uma escada abaixo…
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava…
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
—Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!…
Tum… tum… tum… tum tum tum tum…
Lisboa—Maio de 1915.
[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de Hors Texte de Santa Rita Pintor.]
Compenetração estática interior de uma cabeça—complementarismo congénito absoluto.
Um sonho existe em nós como um cysne num lago de agua profunda e clara e em cujo fundo existe um outro cysne branco e ainda mais branco e triste que a sua fórma real de um tom dolente e vago.
Nada: e os gestos que tem, de caricia e de afago, lembram da imagem tenue, onde a tristeza insiste em ser mais alva, a graça inversa que consiste a dolente mudez de um espelho presago.
Um Cysne existe em nós como um sonho de calma, placido, um Cysne branco e triste, longo e lasso e puro, sobre a face occulta de nossa alma.
E a sua imagem lembra a imagem de um destino de pureza e de amôr que segue, passo a passo, este Sonho immortal como um Cysne divino.
Dêste relogio belga, enorme, branco e triste,
tombam as horas como folhas mortas.
Por uma tarde outomnal, triste de spleen e folhas mortas:
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste.
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste e as horas tombam como folhas mortas. Porque não nasci eu um lirio nobre e triste, pétala sem perfume entre essas folhas mortas?
Um Versalhes fulgura em cada illusão triste, um Versalhes de outomno atapetado de folhas mortas! Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste e as horas tombam como folhas mortas…
Ah! não dirás por certo que não te amei, que não soffri! —Foi-me a tua alma assim como um salão deserto onde, uma noite, me perdi.
Um ramo de violetas fenecia em cada movel amortalhado pelo pó; a purpura das cortinas, rubra, estremecia presa a cada janella. Eu hesitava, só.
—E era meu coração, por ti quasi ferido, á duvida infantil que o emmudecera já, um velho piano adormecido que ninguem mais acordará.
*Atelier*
Em ondas de perfúme estranho as convulsivas exalações do Sonho iluminam vágamente o lár sombrio do artista que outra luz quasi não possue. A poucos pássos duma téla, profunda como a dor que ela evoca, o modelo por entre as vibrações duma alucinação sinistra todo vigorosamente contórce a alma, pelo semblante derramando a tortúra que a alma cava. Compreende a árte, no seu espirito sente a expressão do belo que todo o arrasta e anciósamente procurando ao artista transmitir a sublime inspiração da dôr, fórte, arrebatadora, na própria fisionomia a idialisa torturando o espirito que só assim, no semblante se concretisa… pela dôr! É gigantesca a sua personalidade que ao bélo tudo sacrifica, que só do bélo sábe vivér!…
Envolvido nas trevas convulsivas que o seu espirito concebe, Luar ardentemente transpira o delirio da morte, o espasmo eterno da Existencia que só ele póde sentir, e é nesse ambiente de horror vigorósamente concentrado nele, sintese suprema do Universo, é nesse ambiente, forte e sublime, que Luar, o modelo idial, procura eternamente arrastar a vida!… E o horror em que a sua alma se torna, ele domina e… vigorisa…!
Cresce nesse momento duma arte tragica que a matéria mal toca e em que só o espirito vibra em vibrações transcendentes que mal se concretisam pela sensação, cresce nesses instantes, apagados para a vida vulgar que o intimo das cousas não concebe, que o espiritualismo convulsivo da Existencia totalmente desconhece numa inconsciencia estranha, cresce na alma de Luar a loucura sublime de espirito que a tenebrosa, a imaterial vertigem do Universo, da Vida delirantemente acentua numa tragedia divina, que o transcendentalismo ardente da Ancia todo dolorosamente exprime pelo espasmódico histerismo que a Existencia forma, pelo arrebatamento convulsivo do Sonho Universal!… E nesses instantes tudo nele vibra, tudo que é nele o Espirito… Da sua concepção trágica se alimenta, alimentando-se, assim, da sua alma, da sua alma que se torna a alma da Existencia!
No atelier do pintor Luar vigorosamente assim prepara a alma, preparando assim, a expressão do semblante. E torna-se sublime, atinge a vertigem do Infinito… Através do seu delirio, do sonho convulsivo que todo o arrebata, ele desperta o artista que assim, todo se sublima tambem! É Luar a própria inspiração que o artista eterisa…
Num crescendo impetuoso o sonho em que Luar todo se torna, no génio do pintor se evóla todo e, assim, o artista em que o sonho vágamente se esbáte perdendo-se por fim, na mesma diáfana atmosféra idial se eléva, trágicamente divinisando a alma!… Tudo é etéreo e profundamente convulsivo; uma alucinação vibrante tudo transforma, tudo arrebata no seu turbilhão genial…! Uma poderósa acção mediumnica a levitação total das cousas, assim eterisadas, provoca então… E é Luar o fóco tenebroso da alucinação sinistra que em redór se esbáte, vagificando-se mais!…
No arrebatamento vibrante em que a alma de Luar, em que Luar consigo arrasta tudo, uma paixão crescente fortemente se esboça e ela que a personalidade genial do modelo agita toda, nas convulsões da carne toda se exprimindo, em ondas soluçantes d'ancia se espraia impetuosamente através do éter nebuloso que todo se perde na mansão do artista!… Formidavel se torna a paixão crescente que tudo arrebata e tudo quer arrebatar… Como duendes infernaes que mal se esbocem, a concepção doentia de Luar sombras efémeras vertiginosamente gera e tudo que os sentidos ainda pode ferir, num paroxismo de loucura se debate convulsivamente em estertôr qual caterva turbilhonaria de todas as expressões da dôr que só uma alma vigorosa conceber póde! Sim, tudo na alma de Luar se transforma e tudo ardentemente êle quer transformar…! Ele quer transformar, tudo no seu espirito arrebatando!…
É para o artista que a sua alma trabalha, é pois, o artista que na sua concepção mais se divinisa…! É êle o reflexo vibrante do seu sonho, do sonho que o forma, em que convulsamente todo se eterisa…! Suprema emanação se torna da sua alma!… Só a inspiração o sublima, o personalisa—e a inspiração é Luar!
Esse ser estranho que ele próprio criou e que na tela genialmente lhe derrama a alma, Luar, cheio d'ancia, conservar quer no seu espirito e transformando-se, então, em ondas de volúpia a sua paixão ardente, a paixão da dôr, como laços infernais as lança ao artista que num turbilhão de fôgo, o fogo da sua paixão, todo arrebatar quer para a sua alma!… Uma luta intima, obscura se gera! Impetuosas são as convulsões de espirito que, emanadas de Luar, a personalidade do artista sacodem toda mas, como resplendor diáfano duma luz infinita, no artista surgem esbatidas, perdendo-se através do espaço!… E Luar isto pressente e o seu próprio sonho, na imaginação do pintor rialisado, ele quasi deixa desprender… pelo temor duma vitória alheia! A sua própria fôrça inspiradora o aterrorisa. Se rialmente o artista se não deixasse enlevar no sonho de Luar, acaso na vaga eterisação espiritual encontrar-se-hia?… Não e, assim, qualquer fôrça esmagadora, de Luar mal vinda, abruptamente o não faria despenhar-se na matéria em que já permaneceria e que o hábito tornaria então, quasi insentivel. Luar teme ser incompreendido. Se toda a sua paixão sobre o artista desencadear num deboche supremo, paroxismo da arte, o artista que, simples reflexo do foco inspirador, o não atingiu ainda, e nubelosa instável, simples irradiação do sonho em que vagamente se banha, toda poderá romper, perdendo-se para sempre da alma de Luar numa queda fatal. Mas a ancia é igualmente forte, a ancia em completar a evolução do artista no foco tenebroso da sua alma!… Porém, a fôrça infinita Luar não possue ainda, a sua fôrça esbate-se, a continuidade do Infinito não contém… A arte, em seu luxurioso paroxismo espasmo da dôr, ainda na alma do artista se define, se concretisa em imagens, só a imagem ele concebe, não concebe o Espirito, o Absoluto Indefinido que num deboche de espirito vertiginosamente se desencadearia!… E acaso o vigôr duma luxúria transcendente e a selvática brutalidade material o artista não poderá confundir, despenhando-se do sonho diáfano que, emanado de Luar, nele se esboça, apenas?…
Luar quer o artista arrebatar emfim, por totalmente o interiorisar em si através dum deboche convulsivo—ardentemente anceia mas o temor hesitante o torna, o temor de ser incompreendido, de como simples animal, cheio de cio, ser considerado, emfim, de perder para sempre a alma a que tanto aspira!… Teme a sua fôrça e a sua fraqueza, a sua fôrça que, por uma ilusão cruel, o horror da matéria pode desenrolar perante o artista, erguido acima dela que, assim, desprezivel se mostra, a sua fraqueza que mais não pode elevar o artista, mais, até ao paroxismo da arte que é o paroxismo do deboche e… da dôr!… E o artista admira Luar, não o sente, nas convulsões da sua alma não se quer fundir… Não admiramos o que a nós é estranho, sentindo então, o que já não admiramos?…
E é horrivel a angústia em que Luar se debate, ele jámais sonhou uma dôr assim! Como farrapos de nuvens tenebrosas numa dança macabra, figuras vagas e obscuras da alma de Luar se erguem, dolorosamente se contorcendo todas e todas vertiginosamente se debatendo numa loucura genial, a loucura da Existencia, do Espirito…, e nessa vertigem suprema em que a tortura e a convulsão doidamente se misturam, se confundem, um ponto de luz sinistra, numa expressão vaga de sonho, ao fundo se esboça através da lividez da morte e como que indiferente ao turbilhão lúgubre de dôr que só a alma de Luar soube criar!… É o artista que, espiritualisado na concepção sublime do modêlo, na alucinação tenebrosa da sua alma estranha, ao longe vagueia a alma perdidamente, num cinismo de estéta friamente admirando a dôr que, num debate prodigioso, o espasmo da morte intensifica através dum cáos infinito, duma vertigem convulsiva…! Sôfregos turbilhões a alma de Luar do seu próprio âmago tenebroso arranca mas, quais vagas impetuosas que todas se despedacem, se percam de encontro ao trágico granito, as torrentes tempestuosas dêsse feérico oceano espiritual todas aterrorisadoramente se quebram por entre as rígidas malhas impenetráveis da alma do artista!
Todo êsse convulsionismo gigantêsco que sublima Luar, essa ancia invencivel, ardente de, por um deboche estulto, dominar o artista, o modêlo mais não pode suportar e, caindo, então, numa prostração infinda em que toda a sua alma se dissolve, como que um campo noturno se torna duma batalha passada o qual uma luz pálida, sombria de lua vagamente ilumine, a luz vaga que o artista da sua alma toda, então, exála!… Foi o artista a luz vaga do ultimo quadrante quando, num delirio de morte, numa cavalgada inconsciente, nuvens tenebrosas em convulsões a envolvem sem a arrebatar, e agora, sempre sereno, frio, lúgubre, a sua pálida luz derrama na alma do modêlo através duma vaga neblina silenciosa, da névoa melancólica em que a alma de Luar toda se exála, se esvai…!
Mas uma torrente de fôgo Luar novamente abraza e do seu repouso instantâneo, súbito, se erguendo, numa arrancada formidável sôbre o artista se lança, cravando-o de beijos em que lhe quer arrebatar a alma! Em convulsões que o repouso alimentou, todo o seu espirito se põe, torna-se indomável, gigantêsco, impetuoso qual vaga rancorosa que um vulcão eleve, qual torrente devastadora de Apocalypse Fatal!…
O artista cheio de pasmo o olha, e naquela arrancada impetuosa ambos na terra se despenham, esquecendo o sonho, a alucinação… A paz volta aos espiritos, uma paz lúgubre, cheia de preságios sinistros! O paroxismo da dôr não poude ser atingido, para ambos se perdeu…! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Passaram-se já alguns dias. O artista uma comoção profunda no seu espirito sofre, sob um novo aspecto olha o modelo, já quási lhe sente a alma… Encarna-se na tenebrosa escabrosidade do seu espírito trágico, sente-o mais belo, mais profundo, sublime…! Os transes variados em que bruscamente se lançára Luar naquela tarde tragica, essa variedade de transes que o modelo tão vigorosamente suportára, entontece-lhe a alma, já não o admira apenas, deseja-o e cheio de ardor, de ancia!…
Procura-o em toda a parte e, por fim, encontrando-o, repleto duma luxuria de espirito lhe diz: «Jámais te compreendi, Luar, como agora te compreendo. Talvez te não compreendesse ainda se logo tivesse cedido ao teu desejo. Mas o tempo tive de refletir, de sonhar em ti. A tua nobreza estranha que, após o meu pasmo, subitamente te acalmou os nervos, fundamente me impressionou, os contrastes da tua alma são maravilhosos e só a tua personalidade sublime, genial… a oscilações bruscas de caráter poderia resistir! Quero-te pois, a tua ancia é, hoje, a minha; sem os teus beijos profundos não posso passar, a minha carne na tua se entranhará para que na tua alma se espiritualise toda!…» E procura-lhe a boca. Luar suávemente o afasta, dizendo-lhe, apenas: «Refleti tambem, sonhei… Amanhã conhecerás o meu sonho.»
No dia seguinte, o artista recebe uma carta que os seguintes termos contém:
Meu querido amigo
Estranharás talvez que só agora te exponha o meu sonho derradeiro mas preciso de toda a minha alma e, só quando escrevo, aos borbulhões caudalosamente a broto de mim. Sem a pena, mantenho-me numa concentração trágica, mal mostro aos outros o meu espirito. É que o derramamento da alma no papel é ainda quási espiritual, a alma em excesso se não exteriorisa, impuramente se não materialisando.
Diz-me, se num drama, se numa tragédia vigorosa uma tempestade formidavel, num paroxismo fatal, se desencadeasse toda, atingindo, por fim, um limite definido que a banalisasse, acaso admirarias esse drama, essa tragedia?… Pois bem, o indefinido a que na arte nós aspiramos, essa ancia de idial que mais do que o idial para nós vale, essa ancia, esse desejo infinito e jámais satisfeito deve encher a nossa vida que a mais alta expressão se tornará assim, da arte pura!…
É vertiginosa a Existencia e espiritual, transcendente é a vertigem dela! Jámais a extensão conhece, no Espirito Puro que a extensão transcende, a vertigem se personalisa, se consubstancia, se acentua toda, não se espalha numa actividade mecanica, é a actividade espiritual, o dinamismo puro!… Está nisso a sua beleza, a sua propria existencia que, só assim, toda confundida num Todo, no Infinitesimal, na Mónada, que só assim se acentua toda, só assim se dá!… É sublime o convulsionismo espiritual e só ele é sublime! De que deriva a sua sublimidade? Da sua energia que só no Espirito, na Mónada se acentua toda!…
Ha pois, na vertigem convulsiva da Existencia uma expansão tenebrosa. Toda a actividade, a energia toda que a forma, no espaço e no tempo não se expande, mantem-se torturada no Infinitesimal. É infinita, eternamente tudo alcança, infinitesimalisa-se, espiritualisa-se pois…
Só no transcendental existe, só nele eternamente se debate!
Tem uma expansão, uma liberdade infinita que, como infinita, tudo atinge eternamente, como que eternamente se autodestruindo assim!… Se só no Transcendental existe, se é transcendente, se no mesmo ponto infinitesimal, na Mónada, eternamente se debate é que a si própria se contorce toda numa tortura infinita!… E não exprime a dôr e sobretudo a ancia o convulsionismo transcendente, torturado, contorcido da actividade pura, espiritual?… não é ela a expressão sublime da Vertigem?… Na dôr, na ancia devemos viver!
A transcendentalisação suprêma da energia pura, espiritualisando-a, em absoluto a indefine, o Infinitesimal em que a energia eternamente se debate, o indefinismo absoluto contêm. E ela propria, a própria atividade em si não exprime já o Indefinido?… Quando transcendente, é o indefinismo dela absoluto, ela torna-se a Vertigem! E que cousa é a ancia, a ancia em si, senão o limiar privilegiado dessa Vertigem Pura, o seu sintoma magnifico, a sua acentuação humana?… Ao indefinido na arte aspiramos pois, a um indefinido cheio de tortura, «rafiné» como o que o génio de Baudelaire compreendeu e quando essa tortura do Indefinido enche o intimo da nossa alma, então, cheia d'ancia—e, assim, Nietzsche quasi a desejou—ela quasi atinge o paroxismo eterno da Existencia que toda se debate na Vertigem Infinita! E não só na arte deve existir a ancia mas tambem na vida, a ancia dolorosa do Indefinido!…
A ancia não é só a dôr, não é qualquer dôr. Pode esta ser deprimente, humilhante: e sempre o é quando não compreendida, quando em sua beleza suprema sentida não pode ser!… A dôr forte, virilisadora, a dôr profunda e amoral, a dôr em que o eu domine, dôr de espirito… é que é a dôr suprema, a dôr estética! Dominar na dôr, sentir a fôrça de viver nela, prazer infindo…! E a tortura transcendental da Existencia em que a Vertigem toda se acentua, se impõe, se personalisa, a dôr suprema, a dôr personalisadora não exprime toda?…
Afastemos pois, a nossa carne. Se a satisfizéssemos, não, se satisfizéssemos o espirito que, só êle, através da carne atua, banalisar-nos-íamos, ao nosso drama daríamos um final burguez! Ele teria um fim, um limite determinado de que, em breve, as nossas almas se enfartariam decerto. Sejamos estétas, vivamos eternamente do desejo que, só êle, personalisa a alma, para a nossa vista espiritual gigantesca tornando-a!… É estranho o meu pedido mas, acaso, estranha não é a Vertigem da Existencia?…
Adeus!…
Luar.
Janeiro de 1913.
(Do livro inédito Devaneios e Alucinações.)
*N. B.*—Apareceram-nos na Redacção estes belos poemas, que um anónimo engenho doente realisou. Publicamo-los, porque disso são dignos, importando-nos pouco a personalidade vital de que possam emanar. Toda a obra de arte é a justificação de si-propria.
Orpheu.
Na noite negra e antiga
Ha só a luz do Pharol:
Ora loira, côr do sol,
Ora vermelha, inimiga.
No seio negro e profundo
Da noite em treva dormindo
O Pharol é Outro Mundo,
Ora chorando, ora rindo.
Na noite negra, afinal,
Tudo a elle se limita:
Só o pharol é real!
A treva nunca tem fim,
Ó sensação infinita,
—Sou já só Pharol de Mim!
Junho, 1915.
* * * * *
Toda a minh'Alma se prende
Naquella forma de graça;
Mas não é na forma viva
Mas sim na Linha que passa.
Toda a minh'Alma se prende,
Bate as Asas—esvoaça…
E é como a sombra distante
D'aquella Linha que passa.
A vida é só o Espaço
Que vai da propria Linha
Á sombra d'ella num traço.
Quando a Morte fôr vizinha,
Fundidas no mesmo Espaço
Será tudo a mesma Linha.
Junho, 1915.
Para Além d'aquelles montes
Não ha aves, nem ha fontes,
Nem ribeiros, nem campinas,
Nem casaes pelas collinas.
Para Além d'aquelles montes
Não ha segredos de fontes,
Nem Sombras nas Alamedas,
Nem hervas, passos ou sedas.
Para Além d'aquelles montes
Já não ha arcos de pontes,
Nem mãos finas de donzellas,
Nem lagos, barcos ou vellas.
Para Além d'aquelles montes
Existe apenas Espaço!
Espaço e tempo são Pontes
Que Deus tem no seu regaço.
Pontes que ligam de Auzente
Infinito e Eternidade.
Só sensações são Presente,
Só nellas vive a Verdade.
Passado nunca passou,
Futuro não o terei:
Pois sempre Presente sou
No que Fui, Sou e Serei.
Junho, 1915.
Ha pouco quando bordava
Picou-me a ponta dos dedos
A agulha com que bordava…
E a seda toda de branca,
Branca da côr dos meus dedos,
Essa seda que era branca
Ficou com papoulas rubras…
Que o sangue das minhas veias
Já creou papoulas rubras…
Mas tão sós e tão alheias!
Junho, 1915.
Nada em Mim é necessario
Nem mesmo o que foi sonhado,
Ó contas do meu rosario
D'um sonho nunca acabado.
Tudo tão feito de Mim…
Só meu longe de passado
É como um sonho sem fim
Que o Outro tenha sonhado.
Cruso os meus braços. Não fallo.
Ouço uma voz dolorida
Dentro de Mim evoca-lo.
Marinheiro! Ilha Perdida!
E o meu sentido a sonha-lo
É a verdade da vida.
Junho, 1915.
Sobre misterios já idos
Ergui-me em curva e de pé
Do meu corpo fiz sentidos
Num sonho de Salomé.
Curvos os olhos doridos…
Curvas as mãos e os braços…
Todo o meu corpo pedaços
Dos espelhos dos sentidos…
Dancei… Dancei… E o Ver-Me
Toda de curva e de pé
Era o sentido de Ser-Me.
Presente no meu olhar,
Eu fui Outra Salomé
Feita de Mim a dançar.
Junho, 1915.
Passo no mundo a vivê-lo,
Passo no mundo a senti-lo,
E esta côr do meu cabello
É o vê-lo e o possuí-lo.
Passo no mundo a sonhá-lo,
Numa forma de vivê-lo,
E o meu sentido d'olhá-lo
É o sentido de vê-lo.
Só em Mim me concretiso,
E o Sonho da minha vida
Nesse Sonho o realiso.
E sempre de Mim Presente,
Todo o Meu Ser se limita
Em Eu Me Ser Realmente.
Junho, 1915.
As minhas mãos são esguias,
São fusos brancos d'arminho,
Onde fiaste e não fias
O Sonho do teu carinho.
As minhas mãos são esguias,
Côr de rosa são as unhas,
E nellas todos os dias
Ponho a pomada que punhas.
Quando Eu as fico polindo
Perpassa nellas em ancia
A tua boca sorrindo…
Mas os meus dedos em i
Dizem a longa distancia
Que vae de Mim para Ti.
Junho, 1915.
a Santa Rita Pintor.
*Ode marítima*
Sózinho, no cais deserto, a esta manhã de verão,
Ólho pró lado da barra, ólho pró Indefinido,
Ólho e contenta-me vêr,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com êle, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Ha uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque êle está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Ólho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos comsigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É—sinto-o em mim como o meu sangue—
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessôa
Que fôsse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,
Real, visível como cais, cais realmente,
O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,
Insensívelmente evocado,
Nós os homens construímos
Os nossos cais nos nossos portos,
Os nossos cais de pedra actual sôbre ágoa verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere,
Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que ágoas? E porque, penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único.
Cheio como êles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes
E chegadas de comboios de mercadorias,
E sob a nuvem negra e ocasional e leve
Do fumo das chaminés das fábricas próximas
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,
Como se fôsse a sombra duma nuvem que passasse sôbre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentidos parados
Em divino extase revelador
Ás horas côr de silêncios e angústias
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente reflectido nas águas paradas,
Bulício a bordo dos navios,
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Ha sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos de vagar nas ágoas,
Quando o navio larga do porto!
Fluctuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa,
Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar,
Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas…
Ah, as praias longinqùas, os cais vistos de longe,
E depois as praias proximas, os cais vistos de perto.
O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Dêste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sôbre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
Sôbre as ilhas longinqùas das costas deixadas passar,
Sôbre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,
Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um mêdo
—O mêdo ancestral de se afastar e partir,
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo—
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fôsse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer cousa,
Uma perturbação de afeições a que vaga patria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento,
E só fica um grande vácuo dentro de nós,
Uma ôca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dôr
Se soubesse como sê-lo…
A manhã de verão está, ainda assim, um pouco fresca.
Um leve torpôr de noite anda ainda no ar sacudido.
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação êle está já perto e é visível
Em toda a extensão das linhas das suas vigias,
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado obliqùo.
Os navios que entram a barra,
Os navios que sáem dos portos,
Os navios que passam ao longe
(Supônho-me vendo-os duma praia deserta)—
Todos êstes navios abstractos quasi na sua ida,
Todos êstes navios assim comóvem-me como se fôssem outra cousa
E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar nêles,
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das dispensas,
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo—
Os navios vistos de perto são outra cousa e a mesma cousa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu scismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei porque sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sôbre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabôr das cousas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, dôce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,
Queria apertá-los ao peito, sentí-los bem e morrer!
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!
Sôa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava comnosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
Nós que andámos com êle vamos falar nisso a todos,
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto
Que apenas o ter-se perdido o barco onde êle ia
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado ágoa prós pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!
Vão rareando—ai de mim!—os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilisação moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilisado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual…
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Êsses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Êsses mares, misteriosos, porque se sabia menos dêles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horisonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,
Da época lenta e veleira das navegações perigosas,
Da época de madeira e lona das viagens que duravam mêses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das cousas marítimas,
Penetram-me físicamente o cais e a sua atmosfera,
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das ágoas,
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma
E a aceleração do volante sacode-me nítidamente.
Chamam por mim as ágoas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, fôste tu
Que me ensinaste êsse grito antiqùíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das ágoas,
A voz inédita e implícita de todas as cousas do mar,
Dos naufrágios, das viagens longinqùas, das travessias perigosas.
Êsse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,
Êsse grito tremendo que parece soar
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu
E parece narrar todas as sinistras cousas
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite…
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da bôca,
Fazendo porta-voz das grandes mãos cortidas e escuras:
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò—yyyy…
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò—yyyy…)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer cousa.
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.
Sinto corarem-me as faces.
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O extase em mim levanta-se, cresce, avança,
E com um ruído cego de arruaça acentua-se
O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!…
Apêlo lançado ao meu sangue
Dum amôr passado, não sei onde, que volve
E ainda tem fôrça para me atraír e puxar,
Que ainda tem fôrça para me fazer odiar esta vida
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica
Da gente real com que vivo!
Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar,
Ir para Longe, ir para Fóra, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prá frente!
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!
Atropelo-me, rujo, precipito-me!…
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!
Pensando nisto—ó raiva! pensando nisto—ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Súbitamente, trémulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gageiros! eh tripulantes, pilotos!
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!
Homens que dormem em beliches rudes!
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias!
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro!
Homens que teem tombadilhos, que teem pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso!
Eh manipuladores dos guindastes de carga!
Eh amainadores de velas, fogueiros, criados de bordo!
Homens que metem a carga nos porões!
Homens que enrolam cabos no convez!
Homens que limpam os metais das escotilhas!
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Gente de bonet de pala! Gente de camisola de malha!
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,
Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que vistes a Patagonia!
Homens que passastes pela Austrália!
Que enchestes o vosso olhar de costas que nunca verei!
Que fôstes a terra em terras onde nunca descerei!
Que comprastes artigos tôscos em colónias à prôa de sertões!
E fizestes tudo isso como se não fôsse nada,
Como se isso fôsse natural,
Como se a vida fôsse isso,
Como nem sequer cumprindo um destino!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens do mar actual! homens do mar passado!
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!
Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossivel!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranqùílas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa,
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh-eh-eh!
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,
A vós todos misturados, entrecruzados,
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Quero ir comvôsco, quero ir comvôsco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fôstes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, emfim, a extraordinários portos!
Fugir comvôsco à civilisação!
Perder comvôsco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber comvôsco em mares do sul
Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir comvôsco, despir de mim—ah! põe-te daqui pra fora!—
O meu traje de civilisado, a minha brandura de acções,
Meu mêdo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar,
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,
A minha vida!
Salgar de espuma arremessada pelos ventos
Meu paladar das grandes viagens.
Fustigar de ágoa chicoteante as carnes da minha aventura,
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de soes,
Meu ser ciclónico e atlântico,
Meus nervos postos como enxárcias,
Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim… Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gosarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,
Sôbre convezes, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar prá Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a caír das cousas marítimas,
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,
Tanto das costas longinqùas como do ruído dos ventos,
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios
Como dos tranqùílos comércios,
Tanto dos mastros como das vagas,
Levar prá Morte com dôr, voluptuosamente,
Um corpo cheio de sanguesugas, a sugar, a sugar,
De estranhas verdes absurdas sanguesugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias!
Amarras dos meus músculos!
Arranquem-me a pele, préguem-a às quilhas.
E possa eu sentir a dôr dos pregos e nunca deixar de sentir!
Façam do meu coração uma flâmula de almirante
Na hora de guerra dos velhos navios!
Cálquem aos pés nos convezes meus olhos arrancados!
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!
Fustíguem-me atado aos mastros, fustíguem-me!
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes
Derramem meu sangue sôbre as ágoas arremessadas
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,
Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas!
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram
Enforcaram o capitão numa vêrga.
Desembarcaram um outro numa ilha deserta.
Marooned!
O sol dos trópicos poz a febre da pirataria antiga
Nas minhas veias intensivas.
Os ventos da Patagonia tatuaram a minha imaginação
De imagens trágicas e obscenas.
Fôgo, fôgo, fôgo, dentro de mim!
Sangue! sangue! sangue! sangue!
Explode todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
Estoiram-me com o som de amarras as veias!
E estala em mim, feroz, voraz,
A canção do Grande Pirata,
A morte berrada do Grande Pirata a cantar
Até meter pavôr plas espinhas dos seus homens abaixo.
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum!
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw! Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw! Fetch a-a-aft the ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby!
Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-lahô-lahô-laHO-lahá-á-á-à-à!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares!
Convezes cheios de sangue, fragmentos de corpos!
Dedos decepados sôbre amuradas!
Cabeças de creanças, aqui, acolá!
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Embrulho-me em tudo isto como numa capa no frio!
Roço-me por tudo isto como um gata com cio por um muro!
Rujo como um leão faminto para tudo isto!
Arremeto como um touro louco sôbre tudo isto!
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sôbre isto!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sôbre os ouvidos
Como um clarim a meu lado,
O velho grito, mas agora irado, metálico,
Chamando a presa que se avista,
A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó—yyyy…
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó—yyyy…
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!
Rujo na fúria da abordagem!
Pirata-mór! César-Pirata!
Pilho, mato, esfacelo, rasgo!
Só sinto o mar, a presa, o saque!
Só sinto em mim bater, baterem-me
As veias das minhas fontes!
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas!
Piratas, amai-me e odiai-me!
Misturai-me comvôsco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas,
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos convezes,
Trincasse velas, remos, cordâme e poleâme,
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E ha uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,
Ha uma orquestração no meu sangue de balbúrdias de crimes,
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,
Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,
Núvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apresados foge prá loucura—essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, núvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fôsse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fôsse meu corpo e meu sangue, compozesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e ôsso, de todos os piratas do mundo!
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que fôram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser dêles!
E sentir tudo isso—todas estas cousas duma só vez—pela espinha!
Ó meus peludos e rudes herois da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!
Amantes casuais da obliqùídade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!
Porque ela teria comvôsco, mas só em espírito, raivado
Sôbre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amôr todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha femininidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das creanças
E leváveis as mãis às amuradas para vêrem o que lhes acontecia!
Estar comvôsco na carnágem, na pilhágem!
Estar orquestrado comvôsco na sinfonia dos saques!
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!
Não era só sêr-vos a fêmea, sêr-vos as fêmeas, sêr-vos as vítimas,
Sêr-vos as vítimas—homens, mulheres, creanças, navios—,
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,
Não era só ser concretamente vosso acto abstrato de orgia,
Não era só isto que eu queria ser—era mais que isto, o Deus-isto!
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes!
Minha carne—fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam
Antes de caírem sôbre as cabeças e os ombros!
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!
Minha inteligência o convez onde estais de pé matando!
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,
O grande organismo de que cada acto de pirataria que se cometeu
Fôsse uma célula consciente—e todo eu turbilhonasse
Como uma imensa podridão ondeando, e fôsse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa,
A máquina de febre das minhas visões transbordantes
Gira agora que a minha consciência, volante,
É apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
Fifteen men on the Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO—lahá-á-ááá—ààà…
Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, prático à forca, sensível a tudo,
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Gloria,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir d'acôrdo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Môços de esquina—todos nós o sômos—do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz
A ância das cousas absolutamente crueis e abomináveis,
Que roe como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vasios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!
Desabai sôbre mim, como grandes muros pesados,
Ó bárbaros do antigo mar!
Rasgai-me e feri-me!
De leste a oeste do meu corpo
Riscai de sangue a minha carne!
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva
O meu alegre terror carnal de vos pertencer,
A minha ância masóquista em me dar à vossa fúria,
Em ser objecto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!
Ah, torturai-me,
Rasgai-me e abri-me!
Desfeito em pedaços conscientes
Entornai-me sôbre os convezes,
Espalhai-me nos mares, deixai-me
Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sôbre mim todo o meu misticismo de vós!
Cinzelai a sangue a minh'alma!
Cortai, riscai!
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!
Esfoladores amados da minha carnal submissão!
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!
Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!
Fazei de mim as vossas vítimas todas!
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados
Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer cousa como se eu fôsse
Arrastado—ó prazer, ó beijada dôr!—
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós…
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no *MA-A-A-AR!*
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! *EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!*
Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,
Mares, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Hé-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á-á—ààà!
*AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó—yyy!…*
*SCHOONER AHÓ-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó-Ó——yyyy!…*
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw!
DARBY M'GRAW-AW-AW-AW-AW-AW-AW!
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!
*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
*EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!*
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim.
Decresce sensívelmente a velocidade do volante.
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.
Dentro de mim ha só um vácuo, um deserto, um mar nocturno.
E logo que sinto que ha um mar nocturno dentro de mim,
Sobe dos longes dêle, nasce do seu silêncio,
Outra vez, outra vez, o vasto grito antiqùíssimo.
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Súbitamente abrangendo todo o horizonte marítimo
Húmido e sombrio marulho humano nocturno,
Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dêle, como algas, boiam meus sonhos desfeitos…
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò—yy…
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò——yy……
Ah, o orvalho sobre a minha excitação!
O frescôr nocturno no meu oceano interior!
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
Cheia do enorme misterio humanissimo das ondas nocturnas.
A lua sobe no horizonte
E a minha infancia feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fôsse um arôma, uma voz, o eco duma canção
Que fôsse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa socegada, ao pé do rio…
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar tambem,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo,
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo…
Se eu agora chegasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas.
Aquêle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto…)
Uma inexplicavel ternura,
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquélas victimas—principalmente as crianças—
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas fôram minhas victimas;
Terna e suave, porque não o fôram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui ha uns momentos!
Histería das sensações—ora estas, ora as apostas!
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe
As cousas de acôrdo com esta emoção—o marulho das ágoas,
O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais…,
A vela passando perto do outro lado do rio,
Os montes longinquos, dum azul japonez,
As casas de Almada,
E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina!…
Uma gaivota que passa,
E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma caricia.
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,
Da minha casa ao pé do rio,
Da minha infancia ao pé do rio,
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,
E a paz do luar esparso nas ágoas!…
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu…,
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(Se bem que eu fôsse já crescido de mais para isso)…
Lembro-me e as lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida,
E ergue-se uma leve brisa maritima dentro de mim.
Ás vezes ela cantava a «Nau Catrinêta»:
Lá vai a Nau Catrinêta
Por sobre as ágoas do mar…
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»… Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato para ela—e afinal que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»… Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada…
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta No seu jardim assentada, Seu pente de ouro na mão, Seus cabelos penteava…
Ó meu passado de infancia, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem tenue de confusas causas na alma!
Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inuteis,
Leves brisas de contradicção roçando pela face a alma…
Evoco, por um esforço voluntario, para sahir desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, sêco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on The Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim…
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas atravez duma imaginação quasi literaria,
A furia da pirataria, da chacina, o apetite, quasi do paladar, do saque,
Da chacina inutil de mulheres e de crianças,
Da tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um mêdo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos á vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para vêrem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa).
Aguilhôo uma ansia fria dos crimes maritimos,
Duma inquisição sem a desculpa da Fé,
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,
Como quem faz paciencias a uma mesa de jantar de provincia com a toalha atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,
Só pelo suave gosto de cometer crimes abominaveis e não os achar grande cousa,
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dôr mas nunca deixar chegar lá…
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.
Um calafrio arrepia-me.
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,
De repente—oh pavor por todas as minhas veias!—,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglez Jim Barns, com quem eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas cousas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das cousas,
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Bôca,
Vinda de sobre e de dentro da solidão nocturna dos mares,
Chama por mim, chama por mim, chama por mim…
Vem surdamente, como se fôsse suprimida e se ouvisse,
Longinquamente, como se estivesse soando noutro logar e aqui não se pudesse ouvir,
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um halito silencioso,
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e noturno, o sôpro fundo e confuso:
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô—yyy……
Ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô——yyy……
Schooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô———yyy………
Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de saír dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nêrvos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquêtes que chegam cêdo.
Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe.
Só o que está perto agora me lava a alma.
A minha imaginação higienica, forte, prática,
Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,
Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida maritima moderna,
Toda limpeza, maquinas e saúde!
Tudo tão bem arranjado, tão expontaneamente ajustado,
Todas as peças das maquinas, todos os navios pelos mares,
Todos os elementos da actividade comercial de exportação e importação
Tão maravilhosamente combinando-se
Que corre tudo como se fôsse por leis naturais,
Nenhuma cousa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora ha a mais as maquinas
Com a sua poesia tambem, e todo o novo genero de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das maquinas veiu trazer para as almas.
As viagens agora são tão belas como eram dantes
E um navio será sempre belo, só porque é um navio.
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve—
Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas especies!
Pequenos, grandes, de varias côres, com varias disposições de vigias,
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!
Vapôres nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!
Tão prasenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,
No velho mar sempre o homerico, ó Ulisses!
O olhar humanitario dos faróis na distância da noite,
Ou o subito farol proximo na noite muito escura
(«Que perto da terra que estavamos passando!» E o som da agua canta-nos ao ouvido)!…
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas ha o comercio;
E o destino comercial dos grandes vapôres
Envaidece-me da minha epoca!
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros
Dá-me o orgulho moderno de viver numa epoca onde é tão facil
Misturarem-se as raças, transpôrem-se os espaços, vêr com facilidade todas as cousas,
E gosar a vida realisando um grande numero de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em rêdes de arame amarelo,
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como gentlemen,
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,
Como gente perfeitamente consciente de como é higienico respirar o ar do mar.
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.
Começa tudo a movimentar-se, a regularisar-se.
Com um grande prazer natural e directo percorro com a alma
Todas as operações comerciaes necessarias a um embarque de mercadorias.
A minha época é o carimbo que levam todas as facturas,
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios
Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!
Rigôr comercial do principio e do fim das cartas:
Dear Sirs—Messieurs—Amigos e Snrs,
Yours faithfully—… nos salutations empressées…
Tudo isto é não só humano e limpo, mas tambêm belo,
E tem ao fim um destino maritimo, um vapôr onde embarquem
As mercadorias de que as cartas e as facturas tratam.
Complexidade da vida! As facturas são feitas por gente
Que tem amores, odios, paixões politicas, ás vezes crimes—
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!
Ha quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesario Verde, o sentias.
Eu é até ás lagrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não ha poesia no comercio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os póros… Neste ar maritimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a proposito dos vapôres, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciaes são o principio da historia
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um misterio maritimo
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento
Patriotas transitorios duma mesma patria incerta,
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das ágoas!
Grandes hoteis do Infinito, oh transatlanticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto
E conterem todas as especies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes—tantas especies dêles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!
Tanto destino diverso que se póde dar á vida,
Á vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.
A fraternidade afinal não é uma idéa revolucionaria.
É uma cousa que a gente aprende pela vida fóra, onde tem que tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quasi a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burguezes,
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.
Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai agora saíndo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpatico de proletario dos mares,
E sem duvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapôr, tão humilde vai êle e tão natural.
Parece ter um certo escrupulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer especie de deveres.
Lá vai êle deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai êle tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora…
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importancia.
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!
Boa viagem! Boa viagem!
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favôr
De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,
E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar.
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto…
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso…
Por isso quê? Sei lá o que é!… Vai… Passa…
Com um ligeiro estremecimento,
(T-t—t—-t——t——-t…)
O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapôr, passa e não fiques…
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me…
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edificios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha…
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nitido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angustia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte…,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,
Traça um semicirculo de não sei que emoção
No silencio comovido da minh'alma…
Engenheiro.
[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de Hors Texte de Santa Rita Pintor.]
Syntese geometral de uma cabeça—infinito plastico de ambiente— transcendentalismo phisico.
a Fernando Pessôa.
Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!
E até onde irá o aroma dos seus gestos que sei tentam prender meus olhos que, funestos, sonham um esplendor fatal de pedrarias?
Tarde de tentação! Que estranhas melodias inquietam o ceo de um rumor ignorado? Seringe! Tua flauta arrosa de encantado e sangue de Ilusão esta tarde em demencia que a legenda recorda; e da immortal essencia do sonho esta hora antiga exhuma o velho idilio.
Ha mãos de festa e sonho em meu deserto exilio!
A Beleza é pra mim, ó ninfas! o segredo com que Deus me vestiu de Lindo!… Ai, tenho medo de morrer o que sou ás mãos desse desejo das ninfas; mas está a sombra que não vejo depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ancia de me ver, só me vejo ao collo da Distancia! Deixai dormir um pouco o ceo nos olhos meus, eu não os quero abrir antes que os feche,—Deus!—
Ninfas! vós penteais o pavor á janella da minha alma atravez a hora sombria e bella. Corôas não serão sobre mim as de flôres que desfolhais, mas brancos braços de amôres que abrem nocturnamente e num paiz sem dia…
Sois o sonho de mim ao collo da Alegria!
Vossa presença põe o medo em meu destino.
As taças que entornais do aroma sibillino da seducção, de tédio enchem o que me déste, ó Deus! Gela meu ser ao sorriso terrest'e das virgens, que reflecte a tarde a rescender do olor de Pan! … E o olhar dóe por no o esconder do ceo; pois para toda a alma dormir, do bello, o serafico azul é como um pezadêlo!
Porêm como fugir ao sonho que me faz como estrangeiro em mim; do bello azul, voraz a bôca triste, sem côr e de humanas dôres— como se triunfal e de palidas flôres da noite, fôssem de um sonho, na hora escultado?
Captivo em mim sou como o dragão que, inviolado, bebe a scintillação da s'nora claridade do cabello sinistro, onde a luz arde e invade de metalico hallor o nixo onde se acoite…
Vossos cabellos ai! chovem como oiro, á noite! como fios de horror da teia do mistério…
Do cabello, o esplendor do oiro esteril, é aério c'mo de arachnideo sonho ou de siderio tecto cinzelado no olhar—um reflexo de insecto— no frio vôo num ar de somno e oiro e luto…
Avalanches de tédio em seu cabello escuto!…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fixo a carne, spectral, como ante inerte frizo de sombras, a nudez, linha esquecida em riso sobre chammas, cruel,—Joia dos calafrios!— Um horror de ónix néva entre os meus dedos frios!
Contemplo o meu destino em mim.
Ninfas, adeus!
Meus gestos irreaes tem seculos de Deus!
Na paisagem do ser corre um rio sem fim:
Os meus gestos são como a outra margem de mim…
Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.
É sempre noite lá no fundo dos meus gestos
onde espreita Deus: ha luar nas minhas mãos…
As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,
—mundos de sonolencia ardendo em reliquarios:
Joias celestes, vós, meus gestos solitarios!
Por mim divaga o ceo. E morre um diadêma á minha fronte triste e pensativa, emblêma da alma palida como um velho pálio ou ouro… Comtudo que torpor me encosta ao sorvedouro c'mo esfinge que se inclina ao abysmo e debruça, a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça? É que um gesto sem nome em minha alma se aclara, e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!
Meus gestos vão como esta agua sempre correndo pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo, á voz da agua—cristal sonoro do alhear-me!—
No novelo de mim a minha ancia a enredar-me.
Ó agua sempre triste em seu ir pela parte da terra que é livida e c'mo alma que se farte de sonhos! Não será a minha sombra ausente um ar vosso—ou serei a imagem da corrente?
Quem descesse o mistério e visse a semelhança nesse intimo torpor das cousas, onde cansa essa fuga do tempo em sombra reflectida… Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida, e se olhasse pra traz t'ria medo de mim… (Inter-lunio de nós no sonho d'alêm-fim…)
O que me reflectir roubará meu segredo.
O tempo escorre por nós como alguem com medo
por sobre um muro… Crio olhos de ser distante…
Na alma porei as mãos como por um quadrante…
As mãos são tempo… e tudo é um somno de si…
Miro-me, e não serei a sombra onde me ví?…
Ó espelho sem hora! Ó agua em somno, lustral, —espelho horizontal de tédio c'mo um canal sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dôr! Só me reflicto e não me vejo no torpor da agua que abana o tempo… ai, o tempo é a voz com que se acorda o medo—escultura de nós na distancia… Em rumor, na agua, vago demencia e durmo de Beleza ao collo da Aparencia, que foge como esta agua e este tempo a correr… Marulhar de mim no fundo do meu ser… Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contin'os…
Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos
como arabescos…
Abro os braços, mas em vão,
e ergo-me de mim com vestes de comoção!
Resta-me contemplar pela noite que inundo de mim, pendido sobre a aparencia do mundo. Minha sombra exilada esculto-a na doçura!
Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!
Sinto que a minha voz já atravessou Deus!…
Cresço sobre mim, ó noite em delirio!
Adeus!
Imagem de ser bello ás mãos da minha infancia.
Sou echo de rumor quebrado na distancia.
Alma da noite antiga incendiada a lavores!
[Nota do Transcritor: Aqui surge a fotogravação de Hors Texte de Santa Rita Pintor.]
Decomposição dynamica de uma mesa—estylo do movimento.
*Chuva obliqua*
Atravessa esta paysagem o meu sonho d'um porto infinito
E a côr das flôres é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do caes arrastando nas aguas por sombra
Os vultos ao sol d'aquellas arvores antigas…
O porto que sonho é sombrio e pallido
E esta paysagem é cheia de sol d'este lado…
Mas no meu espirito o sol d'este dia é porto sombrio
E os navios que sahem do porto são estas arvores ao sol…
Liberto em duplo, abandonei-me da paysagem abaixo…
O vulto do caes é a estrada nitida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das arvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cahir amarras na agua pelas folhas uma a uma dentro…
Não sei quem me sonho…
Súbito toda a agua do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paysagem toda, renque de arvores, estrada a arder em aquelle porto,
E a sombra d'uma náu mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu vêr esta paysagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma…
Illumina-se a egreja por dentro da chuva d'este dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…
Alegra-me ouvir a chuva porque ella é o templo estar acceso,
E as vidraças da egreja vistas de fóra são o som da chuva ouvido por dentro…
O esplendôr do altar-mór é o eu não poder quasi vêr os montes
Atravez da chuva que é ouro tão solemne na toalha do altar…
Sôa o canto do côro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a agua no facto de haver côro…
A missa é um automovel que passa
Atravez dos fieis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Subito vento sacode em esplendôr maior
A festa da cathedral e o ruido da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre agua perder-se ao longe
Com o som de rodas de automovel…
E apagam-se as luzes da egreja
Na chuva que cessa…
A Grande Esphynge do Egypto sonha por este papel dentro…
Escrevo—e ella apparece-me atravez da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pyramides…
Escrevo—perturbo-me de vêr o bico da minha penna
Ser o perfil do rei Cheops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abysmo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pyramides a escrever versos á luz clara d'este candieiro
E todo o Egypto me esmaga de alto atravez dos traços que faço com a penna…
Ouço a Esphynge rir por dentro
O som da minha penna a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vel-a uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detraz de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre elle e a penna que escreve
Jaz o cadaver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal diffusa
Entre mim e o que eu penso…
Funeraes do rei Cheops em ouro velho e Mim!…
Que pandeiretas o silencio d'este quarto!…
As paredes estão na Andaluzia…
Ha danças sensuaes no brilho fixo da luz…
De repente todo o espaço pára…,
Pára, escorrega, desembrulha-se…,
E num canto do tecto, muito mais longe do que elle está,
Abrem mãos brancas janellas secretas
E ha ramos de violetas cahindo
De haver uma noite de primavera lá fóra
Sobre o eu estar de olhos fechados…
Lá fora vae um redemoinho de sol os cavallos do carroussel…
Arvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim…
Noite absoluta na feira illuminada, luar no dia de sol lá fóra,
E as luzes todas da feira fazem ruido dos muros do quintal…
Ranchos de raparigas de bilha á cabeça
Que passam lá fóra, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois…
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das arvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Apparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam á cabeça,
E toda esta paysagem de primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruidos e luzes é o chão d'este dia de sol…
De repente alguem sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cahe
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar…
Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos…
As minhas mãos são os passos d'aquella rapariga que abandona a feira,
Sósinha e contente como o dia de hoje…
O maestro sacode a batuta,
E languida e triste a musica rompe…
Lembra-me a minha infancia, aquelle dia
Em que eu brincava ao pé d'um muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha d'um lado
O deslisar d'um cão verde, e do outro lado
Um cavallo azul a correr com um jockey amarello…
Prosegue a musica, e eis na minha infancia
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vae e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavallo azul com um jockey amarello…
Todo o theatro é o meu quintal, a minha infancia
Está em todos os logares, e a bola vem a tocar musica
Uma musica triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarello.
(Tão rapida gira a bola entre mim e os musicos…)
Atiro-a de encontro á minha infancia e ella
Atravessa o theatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarello e um cão verde
E um cavallo azul que apparece por cima do muro
Do meu quintal… E a musica atira com bolas
Á minha infancia… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavallos azues e jockeys amarellos…
Todo o theatro é um muro branco de musica
Por onde um cão verde corre atraz da minha saudade
Da minha infancia, cavallo azul com um jockey amarello…
E d'um lado para o outro, da direita para a esquerda,
D'onde ha arvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orchestras a tocar musica,
Para onde ha filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memorias da minha infancia…
E a musica cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavallo azul, o maestro, jockey amarello tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga d'um muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desapparece pelas costas abaixo…
8 de Março de 1914.
Preço 30 centavos
TIPOGRAPHIA DO COMERCIO
Rua da Oliveira, ao Carmo, 10