Title: Uma scena conjugal
Author: Luís Couceiro
Release date: May 11, 2008 [eBook #25436]
Most recently updated: January 3, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização disponibilizada pela bibRIA
Produced by Pedro Saborano. A partir da digitalização
disponibilizada pela bibRIA.
COMEDIA—lever de rideau
1905
COMEDIA—lever de rideau
TYP. MINERVA CENTRAL 1905
Reserva-se o direito de propriedade
Off.^e
O auctor.
Carlos e Bertha
Carlos está trabalhando á sua secretária.
Bertha lendo um romance junto d'elle.
Carlos (descansando do trabalho a que se entrega e preparando um cigarro)
Darei á penna um pouco de repouso
E descanço ao trabalho a que me prendo…
Bertha
N'esse caso estás hoje preguiçoso?
Carlos
Não; mas emquanto o meu cigarro accendo,
Vou desviar a tua vista immersa
No romance a que prestes attenção…
Bertha (interrompendo)
Dando-me alguns instantes de conversa?
Carlos
Se te apraz, se te agrada?
Bertha (fechando o livro)
E porque não!
Tambem fecho o meu livro por momentos
Carlos (interrompendo)
Cuja leitura acaso te aborrece
Penso eu?…
Bertha
Errados são taes pensamentos,
É bonita, e desperta algo interesse
Carlos
Ora adeus! Um romance trivial,
Muitas vezes de pura phantazia.
Mas que as mulheres acham principal
Possuir como bôa companhia,
Sim! romance d'amôr não é verdade?
Bertha
É d'amôr, com effeito; dizes bem,
E tanto assim, que na realidade,
«Meus Amores» é nome que elle tem
Carlos
«Meus Amores»!! Tem graça! Com tal titulo,
Faria eu um romance original
Bertha
Tu?!
Carlos
Eu, pois; e crê que em mais d'um capitulo…
Bertha (interrompendo)
Descrevias a vida conjugal?
Carlos
Tolinha!… sempre tens cada lembrança!
O casamento assumpto não daria
E nem com isso ingenua creança,
Vale a pena augmentar a livraria!
Bertha (admirada)
Então!?
Carlos
Então, buscava mui sómente
A historia de todo o meu passado,
Narrando o que a minha alma ainda sente…
Bertha (áparte)
Patife!! Todo o instante é bem azádo Para dizer-me só palavras duras! (alto) De fórma que passavas em revista?…
Carlos
Todas as minhas mil e uma aventuras,
Em que nunca deixou d'haver conquista
Nem falhou o mais duro coração…
Bertha (áparte)
É demais!!! Mas vingança vou jurar!
(alto) E no livro da sua confecção
Poderei eu tambem collaborar?
Carlos
Quem! tu? Da esposa, amôr e só constancia,
Tanto é o que poderás descrever.
Bertha (altiva)
Qual! Esse amôr jámais teve importancia,
Não acabaste ha pouco de o dizer!
Acredita meu caro, que ha de sobra
Elementos na minha mocidade,
Que possam reforçar a tua obra
E dar-lhe bem maior publicidade!…
Carlos (ironicamente)
Ah! eu creio. Acredito plenamente!
E pódes convencer-te que não peccas,
Se quizeres expôr sinceramente
O muito que adoravas as bonecas…
Bertha (irritada)
Senhor! Consentir, não posso que altere
A traducção das minhas expressões!
Saiba que me melindra e só me fére,
Suppondo que sentidas vibrações
A recordar um tempo bem feliz,
Se fundam em tão simples innocencia!…
Carlos (surprehendido)
Perdão se a offendi!
Bertha (continuando)
É como diz:
E repito com muita consciencia,
Ter os dados precizos e bastantes,
Para com elles dar mais um motivo
A que o seu livro tenha assignantes
E seja digno do melhor archivo…
Carlos (mais surprehendido)
O que!?… pensarás tu em desvendar
Um segredo, ou talvez, algum mysterio?!!…
Bertha
Não sei; apenas julgo acrescentar,
Que só digo a verdade e fallo a sério…
Carlos (surprezo)
Devo então suppôr n'essa affirmativa
Que fosses n'outro tempo aventuroza?!!
Bertha
Se fui!… e como tenho inda bem viva
A recordação da vida amorosa,
Tão cheia de prazer, de tanto gôzo!…
Carlos (irritado)
Senhora! não graceje! e se é sincera,
Explique e narre tudo a seu espozo?…
Bertha
Ceus! Não queira avivar a primavera
Das minhas aventuras; por Deus peço?
Carlos (admiradissimo)
Das suas aventuras?! Todavia,
O fim de taes palavras eu não meço,
E desejo saber o que existia,
Que advinhal-o, não posso, nem eu sei!
Bertha
Que havia de existir? O que? Senhor?
Digo-lhe só, que muito, muito amei
E gosei as delicias do amor!…
Carlos
Comtudo, diga de que fórma e como?!
Bertha
Contar-lho, era fazer um bom romance
Que ao certo não cabia n'um só tômo!…
Carlos (impaciente)
Lembro que em desespero não me lance!
Exigindo me conte a sua historia!
Bertha
Ah! quer? pois bem; e visto que me obriga
A dizer-lhe o que tenho de memoria,
Vou tudo já contar
Escute…
Carlos
Diga?
Bertha
Recorda-me que outr'ora, não sei quando,
D'intenso amor minha alma despertava,
E o coração dizia palpitando,
Que d'amor, uma outra alma se aliava:
E acode-me senhor ao pensamento,
Que nunca tornará a reviver,
Nem tão incomparavel sentimento,
Nem hora que assimille esse prazer.
Era bem nova ainda, era creança,
Mas dentro em pouco, eu já comprehendia,
Que a minha vida até ahi tão mansa,
Da mais louca paixão em febre ardia
E d'outros mil affectos era preza…
Carlos (interrompendo)
E não ousaes Senhora vêr-me rude?!
Bertha
Não. Se d'amor é feita a Natureza,
Amar, não é peccado, mas virtude!
Carlos
Se ás vezes não reverte em sacrilegio
Findae a narrativa por quem sões!
Bertha
Ah! sim! dar-lhe-hei esse previlegio,
Eu proseguirei…
Carlos (altivo)
Vamos, e depois?
Bertha
Depois, senhor, se o tempo bem corria,
Bem mais depressa o meu amor galgava,
Até que em sorridente e lindo dia.
Qual vulcão, chamma intensa o inflamava.
Estavam satisfeitos os desejos
Da mulher, que contente e delirante,
Se deixou cahir sofrega de beijos,
Nos braços d'um querido e terno amante…
Carlos (surprehendidissimo)
Nos braços d'um amante hein!… hein! Senhora?!
E então, com que coragem inaudita,
Faz tal revelação sómente agora,
A esposa indigna, mil vezes maldicta!
……………………………….
Nos braços d'um amante, não é assim?!!
E com que arrojo, com que atrevimento,
Procura descobrir perante mim
O seu infame e vil procedimento!
Bertha (interrompendo)
Chame-lhe tudo quanto bem quizer,
Se pequei, se cahi, porém, no abysmo,
A eito n'elle cahe muita mulher.
Carlos
Mas, meu Deus! É demais tanto cynismo!!
…………………………………
De forma, que a mulher por mim sonhada,
E que eu ardentemente possui,
Denuncia, confessa, exclama e brada.
Que m'enganou?!…
Bertha
E que inda ri de si!
Carlos
Senhora! Que medonha crueldade!!…
Bertha
Que quer?! é um engano natural…
Suppoz, julgou que eu era uma beldade,
Conquistou-me como um grande ideal
Emanado dos Ceus, ente divino,
Mulher de formosura incomparavel,
De olhar meigo, suave e rosto fino,
Imagem linda, santa e adoravel,
Nympha, que a muza canta em dôce estylo,
Em poema sublime, em verso bello,
O quadro mais perfeito de Murillo,
E da sculptura, a estatua modello.
Sonhou-me assim, porém foi sonho erróneo
Hoje, eis apenas o ente que não passa
D'um objecto preciso ao matrimonio,
Sem que tenha sequer uma só graça
D'aquellas que o Senhor imaginou.
Hoje eis a mulher simples e vulgar,
Sem os dons d'outro tempo que passou,
E que ao vêr-me, pensára architetar.
Emfim: Mulher inutil, sem valor…
Carlos
E que ora transforma em atroz calvario
A vida do hymineu!…
Bertha
Oh! meu Senhôr:
Isso é tão futil, é tão secundario,
Que de f'rido, mostrar-se-me aparente,
Creia, revela em bôa consciencia,
Nem sêr constante, nem sêr coherente…
Carlos (desesperado)
Basta senhora, se é muita a prudencia
Minha, maior é inda a gran cordura
Com que ouço semilhante confissão,
De deshonra, de vergonha e amargura!…
Bertha (áparte)
E para mim, de tanta inspiração!
Carlos (continuando)
Basta, sim! E nem mais uma palavra
Que aggrave tão fataes desenganos,
Nem augmente a dôr que em minha alma lavra,
Sabendo que motivos bem profanos
Ao meu lár desventura agora traz:
Ao lár onde até aqui sómente via,
Ninho feito de amôr, feito de páz,
Na mais leal e santa companhia;
Ninho feito de bençãos infinitas,
Canto da mais risonha f'licidade
Por Deus enviada em graças bemdictas,
Berço de sã virtude e honestidade…
………………………………
E só agora, só n'este momento,
De tão louca illusão tenho o alcance!
Bertha (áparte)
Graças! e parabens ao meu talento,
Que já encontra assumpto p'ra um romance!
Carlos (continuando)
E só agora, apenas n'este instante,
Vem dizer, revelar, esta Senhora,
Que ousou cahir nos braços d'um amante!!
Bertha
E que a partir d'então, desde essa hora,
Sem que á minha mente outra ideia assome,
Eu nunca deixarei de bemdizer
O seu amor, a vida e o seu nome!…
Carlos (com rancor)
Nome que eu desejara conhecer,
Para em sangue vingar o atroz insulto
Hoje lançado ao rosto d'um marido
Cuja honra, lhe devera ser um culto!
Ah! Senhora, depois de ter ouvido
Revelações fataes e tão extranhas.
Depois de supportar tantas surprezas,
Indique-me o auctor d'essas façanhas
O seu cumplice para taes proezas?!
Bertha
Pensa então n'uma breve desaffronta?
Carlos
Nem mais, senhora, e bem depressa,
Que é esse o sentimento que desponta
N'um peito que á loucura se arremeça!
Bertha
E afinal, o que lucra, não me diz?
Carlos (estupefacto)
Que lucro!? Dar da minha honra um exemplo…
Bertha
Mas olhe, que o que fui, gosei e fiz
Em nada altera a paz do nosso templo!…
Carlos
Surprehende-nos a fórma audaciosa
Como allude á baixeza do seu feito!!…
Bertha
Ouça!… A avivar a data venturoza
Do que acabo d'expôr, pende ao meu peito
Um retrato: Quer vêr Vossa Excellencia?…
Carlos
Que a tanto não avance, eu a aconselho!!
Bertha (mostrando o retrato)
Pois meu amigo, tenha paciencia,
Já agora ha-de vêr-se n'este espelho…
Carlos (surprehendido)
An??!… Eu?!!… o seu marido?!!
Bertha
Sim, pois quem?
Quem a não ser o meu real senhôr,
Se eu nunca, nunca amei a mais ninguem!
Se eu jámais conheci um outro amôr?!…
Carlos (sem comprehender)
Mas?!!…
Bertha (interrompendo)
Diga-me, se em vista d'esta scena,
De tanta sensação e sentimento,
Em verdade, lhe vale, ou não, a pena
Dar apreço e valôr ao casamento?…
Carlos (com doçura)
Eu comprehendo esposa da minha alma!
É dos Deuses o gosto da vingança?!
Bertha
Que espero e creio tenha a palma,
De mais firmar o bem d'esta aliança!
Carlos (abraçando Bertha)
Oh! sim, minha querida, ente adorado!
Aproveito a lição de ensino duro;
E crê, que de falar-te no passado,
Nunca mais:
Eu prometo
Bertha
Juras?
Carlos (afirmativamente)
Juro.