The Project Gutenberg eBook of O culto do chá

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Title: O culto do chá

Author: Wenceslau de Moraes

Release date: October 29, 2011 [eBook #37879]
Most recently updated: January 8, 2021

Language: Portuguese

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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Outubro 2011)

















WENCESLAU DE MORAES




O CULTO DO CHÁ




(ILLUSTRAÇÕES DE YOSHIAKI)









KOBE Typographia do "Kobe Herald"


Gravuras de Gotô Seikôdô


1905













A
Vicente Almeida d'Eça,
Sebastiäo Peres Rodrigues,
Bento Carqueja,






isto é, á Trindade benevolente, que ainda ha pouco, de täo longe, me enviou dentro das folhas de um livro—as Cartas do Japäo,—o perfume ineffavel da sua amizade, offereço este outro livro, exotico pela forma, exotico pelo texto, mas näo pelo sentimento de profunda gratidäo, que inspirou esta primeira pagina.

Kobe, Junho de 1905.





Wenceslau de Moraes.



















O Culto do Chá




Falla-se do Japäo; nem, francamente, devera presumir-se que eu ia referir-me a um paiz qualquer occidental, onde a nossa raça branca floresce.

É no Oriente, e em especial no Extremo-Oriente, que as coisas communs da creaçäo ou os usos e costumes triviaes da vida säo susceptiveis de merecer um tal requinte de solemnidade sentimental e de praxes de rito, que constituam um verdadeiro culto. No espirito do europeu, despoetizado pela chateza dos ideas da epoca, atribulado pelas multiplices exigencias da vida, pervertido pela febre do negocio, näo medram de ha muito os [8] cultos. Especializando a observaçäo ao chá, havemos de convir que este artigo de commercio, que de täo longe nos vem, propositadamente adulterado conforme o nosso gosto, no fim de contas se resume n'uma detestavel infusäo que entrou em moda no sport social, simples pretexto para repastos pelintras, para reuniöes banaes, para palestras väs.

A Asia é outra coisa: a muitos propositos immersa ainda em barbarismo, se assim se quer dizer; com mil defeitos e mil erros, que a sabia Europa aponta a dedo e algumas vezes corrige, quando pode, com a logica dos seus conhoës de tiro rapido; o que ella retem ainda, indiscutivelmente, esta Asia, é o caracter ancestral, nada vulgar, nada rasteiro, palpitante de orgulhos de raça, aprazendo-se em sonhos e em chimeras, acariciando a lenda, divinizando as coisas, prodigalizando os cultos; o que é, em todo o caso, uma maneira amavel, de ir comprehendendo a vida.

*

Oh, fé dos velhos tempos!... Oh, santos patriarchas de täo varios paizes e täo differentes seitas, tenazes campeöes, que fostes incutindo nos simples a crença, a esperança, o amor,—balsamos consoladores das duras miserias d'este mundo,—como eu vos amo, a todos!...
[9] Meus piedosos pensamentos elevam-se n'este momento a Darumá. Segundo a tradiçäo da gente japoneza, Darumá, o grande apostolo indiano do buddhismo, veio á China ahi pelo começo do seculo VI da nossa era christä, e em terras chinezas prégou em honra da verdade, illuminando o espirito dos povos.

Consta que, por voluntaria desistencia das ephemeras alegrias terreaes, Darumá votou-se a passar a vida de joelhos sobre o solo pedregoso, absorto em contemplaçöes mysticas, sem mesmo permittir-se o simples regalo de dormir. Tantos annos permaneceu de tal maneira, que as pernas se lhe gastaram, claro está; e é assim, sem pernas, só com a cabeça e com o tronco, envolto n'um manto carmezim, que ainda hoje é figurado. A imagem tronou-se querida e popular entre esta boa gente japoneza; é mesmo um brinquedo corriqueiro entre as mäositas das creanças,—os santos e os meninos vivem sempre em boa companhia;—lembrando o tal brinquedo o nosso frade de sabugo, pela teima em voltar, por mais voltas que lhe dêem, á sua postura habitual. Deve ainda saber-se que Darumá tem dado assumpto, desde remotos tempos até hoje, a pintores da mais alta valia; Hokusai foi um d'elles, pintando um famoso Darumá sobre uma folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza, empregando oitenta litros de tinta no desenho e servindo-se de cinco vassouras á laia de pinceis; estendida a tela sobre o campo, [10] no telhado de um templo a turba admirava a obra e applaudia o mestre.

Mas voltêmos ao que aqui mais nos interessa, respeitante ao venerando vulto que invoquei, ajoelhado sobre as pedras. Consta mais que, em certa noite, as palpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhä. Entäo, pedindo a alguem uma tesoira ou instrumento parecido, cortou a si proprio as palpebras indignas e arremeçou-as ao solo, n'um gesto de despeito... As palpebras, por milagre, erraizaram, dando nascença o a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de prompto e cujas folhas, tratadas de infusäo pela agua quente, fôram um remedio precioso contra o somno e contra o cançaço das vigilias. Estava conhecido o chá; tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acava de provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi [11] escripto para os crentes.






*

Da China, veio o chá para as terras de Nippon, mas näo se sabe quando.

Velhas chronicas mencionam (no dizer dos entendidos n'este caso melindroso), que em 729 da era Christä, durante uma festa religiosa de espavento, o imperador Shomu offerecia chá a bonzos de alta gerarchia; mas fica-se ignorando se já antes seria conhecido... Parece que um bom abbade buddista, Dengyo Daishi, foi o primeiro que obteve a planta em solo japonez, em 805; o chá era entäo já uma beberagem favorita entre os bonzos chinezes, que d'ella se serviam durante as vigilias prolongadas das suas praticas nocturnas. Mais recentemente, ainda outro, bonzo, Eisei, tendo ido á China, de lá voltou, trazendo as sementes preciosas, e no monte Sefuri, em Chikuzen, cuidou da sua sementeira. Pouco depois, ainda mais outro bonzo (sempre os bonzos!) de nome Mioyé, colhendo de Eisei os varios segredos de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o em Uji, [12] logares visinhos de Kyoto, attentamente se entreve em cultivar o chá; em Uji, de preferencia, fôram os resultados excellentes. Dois seculos depois, cerca de 1400, o shogun (generalissimo) Ashikawa Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso ás plantacôes de Uji, as quaes tanto fôram prosperando, mercê da riqueza do torräo, que de entäo até hoje o chá d'aquelle sitio tem sido celebrado como o melhor de todo o imperio; d'elle exclusivamente se serve o Imperador.

*

O Japäo é a terra das camelias: camelia japonica, lá diz o latinorio dos botanicos.





Quando, por fins de novembro, começam os frios e as geadas e pouco tarda que as neves alvejem nos dorsos das montanhas, quando cessam as ultimas florescencias dos jardins, é entäo que comecam ostentando-se as bellas flores d'esta esplendida familia das camelias. Véem primeiro as sazankas, umas brancas, cutras roseas, de mimosissimas petalas frisadas; seguem-se as camelias [13] simples, sanguineas, surdindo da rama espessa de arvores gigantes, espalhadas pelos campos; e após véem as flores cuidadas, de luxo, variando em innumeras formas, variando em innumeros tons, desde o branco de leite ate ao roseo quasi negro. Entäo igualmente desabrocha a pequenina flôr do chá, que tambem é uma camelia, subtilmente perfumada, composta de cinco petalasinhas alvas contornando e protegendo o feixe aureo dos estames.


*




Passando, em horas de ocio, junto dos campos de chá, dos quaes sinto prazer em acercar-me, palestro com os aldeöes e aprendo noçöes varias, respeitantes á delicada planta. Näo pode ser transplantada, nem se multiplica por estaca ou por enxerto, só por sementeira se propaga. Os paizes quentes, como os paizes frios, säo-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sitios lavados de ar e luz, visinhos dos cursos de agua, convindo um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos säo dispostos em renques parallelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata em cheio desde pela manhä até á noite; as plantas mais cuidadas [14] reclamam na primavera grandes toldos de palha, que abriguem das geadas as tenras folhas dos rebentos. Durante o primeiro anno, dispensam adubos, que depois se applicam em periodos frequentes. A guerra aos vermes, aos insectos, exige zelos incessantes. No fim de quatro annos, já o arbusto se presta á primeira colheita; mas säo as velhas plantas, de cem annos, de duzentos annos, as que melhor produzem.





*


Quem quizer tomar conhecimento com a planta de chá, nas melhores condiçoës de prosperidade e em mais bellas galas de aspecto pittoresco, tem de ir até Uji, distante quinze milhas de Kyoto; escolhendo de preferencia um dos primeiros dîas de maio, quando os rebentos novos começam vicejando, o que marca o inicio da faina da colheita. Faina e festa: a povoaçäo inteira acorda da sua modorra provinciana; desperta em esperanças, em jubilos, em actividades incançaveis, para votar-se aos cuidados da preciosa folha; deverá presumir-se, em bom criterio, que a [15] quadra remoçante da primavera em flores, com aromas nas brisas e quenturas creadoras, constitue tambem um forte estimulo para a alegria repentina que se pinta nos rostos de toda aquella gente.

O quadro é deveras aprazivel. Após uma banal estaçäo de linha ferrea, estende-se a cidadesinha garrida, com as suas viella muito limpas e a fila de lojinhas abarrotadas de varia mercancia. Depois segue-se o rio, de aguas limpidas e frescas, rico de tradiçöes de gloria; galga-se a ponte em arco, entra-se no bairro das chayas, dos hoteis, em tal quadra povoados de freguezes galhofeiros e de gentis mulheres, as gueishas, que cantam ou dedilham no inseparavel shamicen; e véem depois os campos, vastos campos de chá a succederem-se pelo horisonte fóra, cuidados como jardins, em longos alinhamentos de arbustos, copados, arredondados, lembrando enormes mangericos, de delicada rama de um verde esculro bronzeado; no azul distante, alguns famosos templos confusamente se recortam.




As moças de Uji estream kimonos novos para o caso, arregaçando [16] as mangas com fitas escarlates; amarram em turbante em volta dos cabellos toalhas de côr azul e branca; e assim, esbeltas, graciosissimas, em ranchos de dez, de doze companheiras, dirigem-se ao trabalho. É entäo um encanto para os olhos ir a gente surprehendel-as no afan do seu mister, dispersas pelas campinas fóra, como borboletas; indo de um ramo a outro ramo, de um arbusto a outro arbusto, por vezes occultando-se entre o verde mais denso da folhagem. Os dedos roseos, miudinhos, a escorrerem de orvalho e multiplicando-se em gestos delicados, väo colhendo os rebentos tenros do chá e atirando-os a grandes ceiras dispostas pelo chäo; as boccas väo sorrindo, patenteando as enfiadas alvas dos dentinhos; os olhos esbrazeam em juvenis amores inconfessados; as vozes unem-se ás vozes, em rythmos commoventes de velhas cançöes locaes:



[17]

"Quando nasce o sol radioso
Por cima d'aquelle oiteiro,
Todas as aguas do rio
Parecem memo um brazeiro!...

"N'estas aguas do rio d'Uji
—Taö milagrosas que säo!—
Lavam-se todos os males
De que soffre o coraçäo...




No campo, as raparigas. Nas casas, os homens, as velhas, as creanças. Será rara a familia que näo tenha interesses na labuta; as grandes fabricas constituem excepçäo, como em todas as primitivas industrias japonezas; em cada albergue se improvisa uma manufactura, modesta, familial, onde todos trabalham, risonhos, [18] palestrando. O chá é escolhido, escaldado, posto a seccar, grelhado em fornos, enroladas as folhas ou reduzido pó, depois empacotado, guardado em latas, em caixas, em boiöes; um melindroso amanho que requer mäos incançaveis, dedos prestimosos, cuidados inauditos, segredos de processo, meticulosidades devotas que espantam os profanos, nas quaes collabora a gente toda valida d'aquelles arredores.





*

Tal é a industria graciosa e tal é o chá que os japonezes bebem. Vêde agora como a civilizaçäo occidental contrasta com os usos d'estes asiaticos. Téem os japonezes, para lá do Pacifico, um grande consumidor do seu producto: é o Yankee. Tanto mimo e tanto esmero na apanha da folha e preparoçöes que se [19] succedem näo bastariam para o chá que os americanos väo beber. Vem de Uji e de outros pontos, tal como os japonezes o preparam, para as firmas estrangeiras de Kobe e de Yokohama; é entäo submetido a novas operaçöes, ao sabor do fino paladar de Nova-York e de Chicago. Näo säo agora as camponezas, esbeltas e trajando roupas novas, que acodem ao mister; trabalham machinas [20] a vopor, fumegam chaminés e guincham engrenagens; e occupa-se no preparo um mundo feminino inqualificavel, escoria das cidades, esfarrapado, piolhoso, horripilante, que a gente vê sahir das fabricas á tarde como uma leva de mendigas, cheias de pó, de pustulas, de miseria. O fabrico do chá ao gosto americano consiste n'um segundo aquecimento em grandes fornos e na addiçäo de varios productos, como o pó de uma certa pedra, soopstone, e o azul da Prussia. Assim é expedido.


*


A introducçäo e vulgarisaçäo do chá na terra japoneza deveu grande incremanto uma industria desde remotos tempos exercida, mas toscamente praticada,—a ceramica,—que havia de alcançar com o correr dos tempos um supremo grau de perfeiçäo como arte nacional. A conservaçäo da preciosa folha, exigindo escrupulos inauditos para reter o seu perfume, marcou o ponto de partida. Foi Toshiro, um oleiro da aldeia de Seto, na provincia de Owari, quem fabricou os primeiros boiöes para guardar o chá, empregando processos que aprendera na China, respeitantes á perfeiçäo da pasta e dos esmaltes. Passava-se isto ha sete seculos; e é curioso registar que seto-mono (objecto de Seto) é ainda hoje o nome consagrado para indicar qualquer artigo de ceramica.

Dos boiöes, passou-se gradualmente ás chavenas, aos bules, á gentil e complicada baixella que a infusäo foi reclamando e o [21] luxo pondo em moda; e ora aqui está como a ceramica no Japäo,—faiança ou porcellana,—que attingiu requintes de arte primorissima, deveu ao chá e á agua morna os seus melhores progressos.


*


Quando comecáram a tomar chá os japonezes, era este reduzido a um impalpavel pó e com elle se fazia a beberagem; depois veio o uso de empregar as folhas, apenas escolhidas e passadas pelos fornos; e é esta, ainda hoje, a maneira mais commum de preparal-o.




No Japäo, toda a gente toma chá,—ricos e pobres, nobres e plebeus:—bebe-se na occasiäo das refeiçöes e a toda a hora, a [22] pequeninos golos. No lar, quando entra o visitante, offerecese-lhe, após as reverencias, uma almofada de regalo e uma chavena de chá. O mercador, quando quer se amavel com o freguez, serve-lhe antes de tudo uma chavena de chá, palestra, falla da chuva e do bom tempo; só mais tarde se trata do negocio. Nos templos famosos, em Kyoto por exemplo, o bonzo offerece chá ao peregrino antes de lhe mostrar as reliquias e os museus. Pelos caminhos mais agrestes, que väo serpeando pelas collinas arriba, ha rusticos poisos espaçados aqui e acolá, onde o caminheiro descança alguns minutos, bebe uma chavena de chá, troca um sorriso, deixando em retorno um cobre sobre a esteira. Um restaurante, na pittoresca linguagem japoneza, diz-se uma chaya,—que quer dizer—casa de chá.—De sorte que a chavena de [23] chá, que acompanha os bons-dias dados a quem chega, näo constitue simplesmente uma norma rutineira, um habito banal, tornou-se como que o symbolo da doce hospitalidade japoneza, um rito da bonhomia d'esta gente, exercido religiosamente entre amigos, entre estranhos tambem, porque ao estranho, que larga á porta as sandalias, vem ao nosso lar e nos saúda, deve-se ja um sorriso e a sua parte de conforto.





*




Na casa, nua de moveis, porem mimosa de aceios requintados, figura sempre o brazeiro sobre a esteira, enas brazas vae fervilhando a chaleira de ferro cheia de agua; o bon (uma bandeja) está cerca, contendo o bule, as cinco chavenas (cinco, porque? talvez por serem cinco os dedos em cada mäosinha japoneza), os [24] cinco pires de madeira ou de metal, o cofre de estanho contendo o chá em folhas e ainda o pequenino recipiente em porcellana chamado yuzamashi, cuja ordinaria serventia vae muito em breve conhecer-se. O sentimento artistico japonez deprava-se naturalmente na industria de hoje, em grande parte com destino á exportaçäo para a Europa e para a America; é nos utensilios communs de uso indigena, onde näo intervem o modernismo, que ainda reside o gosto esthetico, puro e inconfundivel, da gente japoneza, revelando por si o complicado conjuncto de esmeros, de elegancias, de chimeras, em que a alma d'este povo se deleita. No que respeita o serviço de chá, é innarravel a gentileza de todo este arsenal de bagatelas, minusculas, dando a impressäo de serem destinadas a um banquete de bonecas!...




A agua passa da chaleira para o yuzamashi, onde arrefece, pois é preceito fazer-se o chá com agua que ferveu, mas ja näo ferve; prepara-se depois no bule a infusäo, que é offerecida aos hospedes nas pequeninas taças de fina porcellana.

Eis a singela practica e eis a modesta offerta, actos da vida intima näo poucas vizes repetidos durante cada dia, desde pela manhä até á noite. Poderiam julgar-se sem meritos que valessem [24] do estranho um instante de attençäo e um commentario; mas näo succede assim. Para a alegria dos olhos, a simples preparaçäo do chá imprime um relevo delicioso á graciosidade innata na musumé, na attitude que lhe é mais habitual, de joelhos sobre a esteira, junto do seu brazeiro. A mimica é impressiva, unica; privilegio d'aquella figurinha meiga e ondulante e d'aquella buliçosa mäo, de finissimos contornos, da japoneza, que é, em summa, a Eva mais gentilmente pueril, mais captivantemente chimerica, mais feminina emfim, de todas as Evas d'este mundo. Parece certo que jamais o japonez, que ignora o beijo, haja poisado a bocca n'aquella mäo que exhibe esplendores de graça para servir-lhe o chá; o forasteiro, em intimidade serena, pode ensaiar o galenteio se a phantasia o tenta; e entäo verá talvez, que a mäosita da musumé, reconhecida ao afago, se conchega de encontro aos labios, se demora, como uma rola [26] docil gulosa de carinhos.






*




O chá japonez, servido invariamente sem leite e sem assucar, que lhe prejudicariam o aroma, é a bebida mais suavemente agradavel que possa offerecer-se ao nosso paladar (näo de todos porem, ams um paladar sentimental, um tanto sonhador... que n'isto dos nossos orgäos de sentir ha temperamentos, aptidöes affectivas caracteristicas...). O guyokuró, por exemplo, que é o mais celebrado chá de Uji e de todo o Japäo, instilla taes subtilezas balsamicas de sabor, que mais parece um perfume; poderia dizer-se que uma maravilhosa alchimia conseguiu liquifazer os aromas de flores—flores dos jardins, flores silvestres,—transferido do olphato ao paladar a impressäo do goso. Assim é o guyokuró; claro está que as palavras näo podem traduzir senäo por comparaçäo as emoçöes sentidas; e esta, a do agradoce deliciosissimo que nos fica nos labios, persistindo, como na memoria persiste uma reminiscencia, uma saudade, é imcomparavel...

[27] O chá joponez tem a virtude de mitigar a sêde. Assi se explica o habito dos japonezes näo beberem agua; mesmo na força dos calores, em pleno agosto, a chavena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros condöes: excita ligeiramente o organismo, combate o cançaço das vigilias, predispöe ao bem estar, infiltra no cerebro näo sei que subtil embriaguez, lucida todavia, que nos torna mais affectivos ás sensaçöes de agrado e mais aptos ás elaboraçöes do pensamento

*



A maneira de preparar a infusäo do chá em pó e a arte de servil-o constituem a täo famosa cerimonia chamada do chá-no-yu. Foi assim que o uso do chá se introduzio no Japäo, como uma pratica liturgica dos frades buddhistas da seita de Daisu, exercida no proposito de prolongares as mysticas vigilhas preceituadas; servia ao mesmo tempo de pretexto para reuniöes intimas, que eram, imagina-se, um aprazivel desenfado á proverbial monotonia do convento; sendo um meio efficaz de estreitar laços [28] de estima, pelas confidencias segredadas, pelos sorrisos beatificos que se cruzavam, em quanto que a unica taça ia passando, de mäo em mäo, de bocca em bocca, fraternalmente, até a esvaziar.




Mais tarde adoptou-se entre o povo o uso das folhas; mas o chá-no-yu persistiu nas bonzarias, propagando-se tambem nos costumes profanos, entäo com um exuberante luxo de apparato, que muito apaixonou a alta nobreza. Pelos dias que correm, ainda está em moda, sem distincçäo de classes; é um habito gentil que ficou dos velhos tempos e a que todos podem entregar-se, tido em valia pela delicadeza esthetica do scenario e ainda näo despido do prestigio ortodoxo que lhe vem da remota tradiçäo.

O chá-do-yu, se pode definir-se, é a arte de preparar a infusäo do chá em pó, com esses escrupulos de limpeza, com esses requintes de elegancia de que só é capaz o japonez; sendo a bebida offerecida a alguns amigos de eleiçäo, a drede reunidos n'um recinto disposto para a paz do pensamento e para o agrado dos sentidos.

[29] Bom é dizer agora que os codigos referenets a materia täo grave säo innumeros, diversas as escolas; e os grandes profissionaes, chájin (homens do chá), de celebridade immoredoira, centenas de volumes escreveram sobre o assumpto.

Tudo foi regulamentado e comporta um preceito, que näo é licito esquecer. Non tempos aureos do chá-no-yu o pavilhäo que recebia os hospedes era construido n'um jardin e obedecia a uma architectura inconfundivel. No seu arranjo interno, para a côr das paredes, para a disposiçäo de luz, para o numero das esteiras, para a jarra com flores ou com um ramo de arvore, havia praxes a seguir; o kakemono (quadro suspenso da parede) devia representar uma paizagem que fôsse impressionar a pupilla com carinho; ou antes uma simples sentença escripta por um pincel de mestre calligraphico, pois nada commove tanto a aguda sensibilidate d'esta gente como os seus caractéres de estranha construcçäo, cada um equivalendo já a uma synthese de ideas e predispondo, pela sentida contemplaçäo—ora por uma desenvoltura de traço, ora por uma ondulaçäo de curva,—ao vago discorrer da alma sonhadora... [30]


O plano do jardin submettia-se a regras determinadas, pelas quaes o engenho indigena se revelava em graças prodigiosas, aqui pelos contornos do lago e pelas pontesinhas que o cruzavam, alem pela escolha dos arbustos e das pedras, na intençäo ingenua e amorosa de impôr á vista a illusäo de uma paizagem rustica, reduzida a proporçöes minusculas. Mais do que isto: a alma das coisas, o que de inexplicavel e de subtil parece emanar de um conjuncto qualquer onde os olhos se poisem,—tranquillidade das sombras, arrogancia de um tronco, ternura das relvas...—devia resaltar suggestivamente do jardinsinho japonez, imprimir-lhe um caracter, uma philosophia, acordando na mentalidade dos visitantes um sentimento de paz, de triumpho, de saudade... Claro está que as flores de luxo, como as rosas, como as camelias, como as peonias, eram excluidas, por improprias da intençäo de quadro agreste dada á scena.



Éra de estylo a monumental lanterna, tal como se encontra nos templos, de pedra, tanto mais valiora quanto mais esverdeada e roida de vetustos musgos, e espalhando pela noite vagas claridades coadas [31] pelas suas frestasinhas cobertas de papel; os japonezes deleitam-se em contemplar, após uma nevada, as amplas cupulas em unbella d'estas lanternas de templos e de jardins, receptaculos onde a neve poisa e se demora, em fofos vello de formas extravagantes, de deslumbrante alvura. Um outro accessorio se encontrava, cerca do pavilhäo: o pedaço de rocha bruta com uma pequena cavidade cheia de agua, onde os hospedes iam lavar as mäos antes de entrarem, como em purificaçäo liturgica.

Até a linguagem empregada entre os convivas obedecia a regras de pragmatica: os assumptos de religiäo ou de politica eram banidos; a phrase devia modelar-se n'um agradavel discorrer, sem ferir melindres de ninguem. A cortezia impunha-se: preceituava-se que o hospede proferisse palavras de louvor pelo que via,—alfaias de serviço, arranjo do aposento, horisontes em volta,—mas sem insistencia em demasia, que poderia parecer pouco sincera ou pelo menos importuna.

Variadissimos objectos devem encontrar-se no aposento, como o brazeiro, o carväo de reserva contido n'um cestinho, a chaleira, o abano de pennas, o cachimbo, o tabaco, o pincel, o papel e a escrevaninha. Os artigos destinados particularmente ao chá, muitas vezes contidos n'um estojo especial, säo os seguintes: [32] a boceta com perfumes, que antes de tudo se lançam sobre as brazas e embalsamam o ambiente; a jarra com agua fria e a competente colher feita de um pedaço de bambu; o chá em pó n'am cofresinho de charäo e a colherinha adjunta; duas taças, de barro ou de porcellana, uma usada no veräo, de côr clara, e outra escura, usada no inverno; um curioso utensilio feito de finas lascas de bambu reunidas em feixe, com que se agita na chavena a mistura do chá em pó com a agua morna; finalmente a tigela onde se lavam e o pedaço de seda de finissimo tecido, com que se enxugam, as peças empregadas.

É o dono da casa quem deve preparar o chá, solemnemente, prescindindo do mais ligeiro auxilio dos criados; é elle que o offerece aos convidados. A mäo executa setenta e cinco movimentos, n'um chá-no-yu havido por singelo... e trezentos, quandorequeridas todas as formalidade ortodoxas.





*


No tempo do generalismo do Imperio, chamado Toyotomi Hideyoshi, mais conhecido na historia pelo grande Taiko-sama, quasi todos os genesaes eram chajin, isto é, ferventes apaixonados da ceremonia do chá-no-yu. Em 1585, o proprio Taiko-sama [33] organisou um chá-no-yu colossal nas visinhanças de Kyoto, ainda hoje memorado como festa de inigualavel esplendor: uma extensäo de quinze kilometros quadrados era occupada por innumeros kiosques, aonde os generaes preparavam o chá; todos, nobreza e plebe, os ricos e os mendigos,—um enxame humano!—tinham entrada; Hideyoshi visitou todos os poisos e por suas proprias mäos proparou chä, que offereceo aos chefes favoritos.

Relembrando o passado, justamente n'um periodo de effervescencias guerreiras culminantes no Japäo, talvez pareça estranho, talvez pareça comico, que esses rudes heróis de täo grandes façanhas, os indomaveis veteranos das guerras na China e na Coréa, despissem armaduras, tirassem os dois sabres da cintura, para virem votar horas chimericas a aquecer a agua sobre brazas e a preparar o chä... Mas o contraste, por si, explica o facto: era precisamente essa dura existencia de batalhas e de lances sangrentos, de inclemencias de vida nomada, de longo cogitar em extratagemas e em argucias, que impunha aos homens dirigentes a doce tregua do chá-no-yu. O convivio com os partidarios e os amigos, o desfilas do povo alegre a reverente, [34] a verde paizagem de repoiso, a solemnidade hypnotica dos gestos, tudo contribuia para offerecer um curto aprazimento áquella gente, que assim ia apagando da memoria os amorgores soffridos, estretando sympathias, retemperando forças para as proximas luctas.


*




O chá-no-yu attingiu depois, durante a longa paz da dynastia shogunal dos Tokugawa, uma epocha de exaggeros faustuosos, de dissipaçöes paradoxaes. Escolhiam-se as baixellas de entre objectos muitos antigos e firmados por um nome de fabricante prestigioso, e por isso rarissimos, preciosissimos; e estava entäo em moda offerecel-os, no momento das ruidosas despedidas, ás bellas companheiras do festim, que haviam com as suas guitarras, com as suas cançöes, com as suas graças profissionaes, enfeitiçando os hospedes... Sorveram-se fortunas n'este abysmo.

É de entäo que se conta que um amador empregou n'um chá-no-yu utensilios no valor de trinta e oito mil yens, o que [35] passa de quatro mil libras esterlinas; um outro adquiria por trinta mil yens um só boiäo de chá!...

Ha cerca de tres ou quatro annos, em um leiläo de Tokyo, um japonez comprou por tres mil yens uma chavena de chá-no-yu; prova isto que ainda ha devotos chajin presentemente. Com effeito, se o luxo sem limites que caracterizou o chá-no-yu dos bons tempos feudaes desappareceu para sempre com a mudança de regimen e com a mudança de costumes, continuou todovia esta elegante pratica merecendo uma alta estima. Hoje, os dois sexos a ella se dedicam, e pode affirmar-se que faz parte da boa educaçäo de uma menina, exigindo uns seis ou sete annos a sua aprendizagem. As gueishas tambem se instruem em tal culto; as celebres danças primaveraes da cidade de Kyoto, conhecidas pela denominaçäo de Miyako-odori, säo sempre precedidas do chá-no-yu, em que é officiante uma das mais gentil gueishas do logar; e a multidäo acode, com devota deligencia, a saborear o perfumado chá.


*


Näo me peçam agora, a mim, profano na materia e viageiro fatigado de täo multiplices impressöes que tenho vindo colhendo [36] por este mundo fóra, uma opiniäo pessoal sobre o chá-no-yu. Estive uma vez, é certo, com dois ou tres amigos, em uma das chayas de mais fama da cidade de Kobe; e Tama-Guiku (o Malmequer-Precioso) era a esplendida sacerdotiza da cerimonia. A impressäo que d'aquella noite guardo é indefinida, fugidia, como de um vago sonho que tivesse. Ficaram-me reminiscencias indecisas do luxo sombrio e harmonioso e do aceio extremo das coisas impregnadas de exotismo onde poisou o meu olhar. Na meia luz do placido aposento, amplo e silencioso como um templo, contornava-se, distante, um vulto de mulher, de joelhos, envolta em sedas magnificas. As attencöes fixavam-se especialmente, como que por attracçäo hypnotica, nas suas mäos finissimas, alvejando no espaço como se fossem de marfim, tomando de estranhos utensilios, preparando näo sei que filtro de magia, poisando [37] em mimicas hieraticas, quaes mäos de mystica officiante de uma religiäo desconhecida. Por fim, convidado a partilhar no sacrificio, acceitava uma taça com chá que me era offerecida e levava-a aos labios commovido, com näo sei que subitos escrupulos de apostata mal firme...

Tama-Guiku concluira. Ergueu-se, deslumbrante de graças, de atavios, de magestade. O seu rostinho meigo illuminava-se entäo da exaltaçäo beatifica que lhe electrizava o espirito; dirigiu sobre nós a ardencia negra dos seus olhos, saudou-nos reverente... reverente, näo porque uma imfima cortezia sequer lhe merecessemos,—pobres occidentais ignaros!—mas em estricta abediencia aos preceitos rituaes; e desappareceu da scena.


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A proposito d'estas divagaçöes respeitantes ao chá e ao seu culto, vem-me agora ao pensamento e ainda me compunge um dramatico episodio da existencia intima japoneza, que contado me foi ha cerca de tres annos. Vou tentar descrevel-o.

Éra no fim de maio. Eu achava-me em Kobe. Um meu amigo japonez, chajin apaixonado, partira para Uji, onde devia assistir a umas costumadas reuniöes votadas ao chá-no-yu, em casa de um parente, cuja filha, a gentilissima O-Hana, era eximia na arte; entre nós ficára combinado que eu iria encontral-o, passadas tres semanas, em Nara, a cujos velhos monumentos queriamos votar horas de estudo.

Haviam decorrido apenas uns tres dias, quando do tal sujeito recebi um bilhete, pouco mais ou menos n'estes termos:—"Pode seguir para Nara, onde me encontrará. Falhou o chá-no-yu. O-Hana suicidou-se. Pesava sobre ella uma desdita igual [38] á pobre Hichi da lenda..."—

Ora, eu conhecia O-Hana; e a lenda, que por signal constitue o thema de uma notavel peça de theatro, näo me era de todo estranha.


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Vamos por partes. A lenda é como segue.

Näo sei ha quantos seculos e nem sei em que logar,—nem importa sabel-o,—havia em certa rua dois estabelecimentos de negocio, dos que se chamam Yaoya em lingua do paiz, onde se vemdem variadas provisöes,—fructos, legumes, hortaliças, ovos, peixe e muitas coisas mais.—Defrontavam um com o outro. N'um, habitava certo casal com uma filha unica, O-Hichi; n'outro, um outro casal com um só filho, Kichisa. Quiz a mofina sorte que se enamorassem um do outro.

Mofina sorte? Sim, embora, á primeira vista, näo seja o caso concebivel, quando se saiba que ambos eram jovens, gentis e animados de doces enternecimentos amorosos. Eu me explico todavia. Os velhos codigos nipponicos, ainda hoje respeitados, impöem aos filhos o preceito de herdarem o appellido de seus paes; o filho mais velho herda a mais o encargo de chefe de familia, com a administraçäo dos bens e a superintendencia no culto piedoso devido aos parentes fallecidos. É por este processo que as genealogias näo offerecem mysterios e as familias se eternizam, conservando religiosamente o mesmo appellido durante seculos sem conto; cessando apenas no caso excepcional de todos os descendentes acabarem, consanguineos ou näo, pois é de uso corrente chamar ao lar, por adopçäo, filhos alheios. O filho unico pode certamente casar, e a esposa recebe o appellido do marido. A filha unica pode igualmente casar e entäo o esposo [39] recebe o appellido da mulher. Está-se agora percebendo como para O-Hichi e Kichisa o problema se complicava em demazia, por serem ambos filhos unicos. Um meio só se apresentava, o de uma das familias adoptar um filho estranho, sobre quem recahissem os encargos de uma supposta primogenitude. Mas o alvitre era quasi impraticavel, por aquelles tempos feudaes que iam correndo, dependendo da sancçäo suprema do daimyô, que a negaria, por ser o caso novo; sem já contar com o orgulho revoltado dos paes da noiva, ou dos paes do noivo, da familia emfim que, para evitar de ser extincta, tivesse de investir um filho alheio nos deveres que competem ao legitimo.




É certo que as duas familias se oppozeram com toda a vehemencia a taes amores, e a casa se transformou para O-Hichi em duro encerro e a estima dos seus em aggressöes continuas. Foi entäo que a pobre musumé, captiva n'uma alcova, desesperada, louca de amores, meditou em pôr fogo ao seu lar de tormentos, na crença de que as chammas lhe trariam a liberdade e o ensejo de reunir-se áquelle a quem votara todo o seu affecto. Errou porem nos calculos, como succede tantas vezes quando se tem quinze annos e o pensamento voêja no mundo das chimeras: descoberto o seu crime apenas posto em pratica, foi trazida á justiça da [40] cidade e condemnada á morte.




Vem agora a proposito narrar um pormenor curioso, que é de toda a tragedia o que mais me enternece. A misera seguia, conforme o estylo, pelas ruas populosas, amarrada ao dorso de uma besta, para ignominia propria e para licçäo do povo; mais tarde seria executada. A meio da jornada expiatoria, os seus longos cabellos soltos, como até entäo eram usados, cahiam-lhe em desalinho sobre a fronte, cheios da poeira dos caminhos, escorrendo de suor, fustigando-lhe as faces. Entäo, ou porque quizesse poupar-se a um tormento a mais, ou—quem sabe?—por um resto de garridice deminia, viram-n'a rasgar com [41] os bellos dedos tremulos um pedaço da seda carmezim do forro do vestido, com quem amarrou junto á nuca, erguendo os braços, esses pobres cabellos... A idea pareceu graciosa ás raparigas, que se iam juntando em grupos curiosos para observarem o cortejo; e desde entäo as japonezas começaram de usar aquelle enfeite, que persiste até hoje e a que chamam kikidashi—litteralmente: farrapo—em memoria de O-Hichi, a triste namorada de Kichisa...





*


Mas vamos depressa ao fim da historia.

Quando em Nara deparei com o meu amigo japonez, o triste fim de O-Hana esclareceu-se em breve.

Havia em Uji duas familias abastadas, Fukumoto e Yamaguchi, possuindo as mais bellas culturas de chá d'aquelles campos. Os Fukumoto juravam que o seu chá éra o melhor de todo o Imperio, e os Yamaguchi diziam do seu chá a mesma coisa; eram no fim de contas uns caturras, professando um supino [42] orgulho do seu nome e um culto pelo mister a que se davam; alem d'isto, ou por isto, pouco affeiçoados entre si, confirmando a justiça d'aquelle ditado portuguez, com curso em todas as longitudes do planeta... dos officiaes do mesmo officio.

O casal Fukumoto tinha um filha unica, O-Hana; o casal Yamaguchi tinha um unico filho, Naotarô. Este era um perfeito rapazola, amavel, intelligente, segundo affirma quem o viu. O-Hana era uma musumé em plena flôr da vida, educada em todos as gentis prendas do seu sexo. Ninguem como ella desprendia suavissimos sons do koto, a harpa nacional; nenhumas mäos se mostravam täo habeis de pinheiro ou de lirios floridos trazidos do jardim; no chá-no-yu era incomparavel.



[43]




Eu vi O-Hana uma só vez, nos parques de Kyoto, quando em peregrinaçäo primaveral se vae contemplar, á luz da lua, a celebre cerejeira de Guion, toda vestida de pequeninas petalas.

O-Hana éra uma d'essas japonezinhas embebidas de enlevo e de exotismo, taes como vós as conheceis dos leques, dos biombos. Isto basta, á falta de melhor, para definir-lhe o vulto em miniatura, esguio e ondulante, coberto de sedas preciosas; e para imaginar-lhe o rosto pallido em forma de pevide de meläo, os olhinhos cerrados, os finos traços das sobrancelhas em viez, a boquinha sorridente, rubra, lembrando uma cereja, e o penteado... o penteado colossal como uma enorme borboleta de azeviche, que lhe houvesse pousado, de azas abertas, sobre a nuca. Ria, curvava-se em mesuras, em meneios, agitando no ar as descommunaes mangas do kimono; e lá ia seguindo o seu caminho entre um bando de amigas, antes ziquezagueando, a passos miudinhos, indécisos, sem intuito. E eu ia pensando que alli estava, em carne e osso, a companheira deliciosissima, anjo de graças e fada de sorrisos, para quem podesse offerecer-lhe—japonez claramente,—uma [44] casinha de papel em extremos de limpeza, com duas esteiras sobre o chäo, um bule com chá, um prato com confeitos, uma jarra com ramos vicejantes; e á frente o jadinsinho,—bambus tufados, azaleas em flor, pedras musgosas, o pequinono lago, onde peixes vermelhos nadassem pachorrentos e räs coaxassem em noites estivaes...—




O-Hana e Naotarô amaram-se.. Näo se sabe porque. Porque eram ambos jovens, visinhos, conhecidos; e em circunstancias semelhantes a juventude attrahe a juventude...

Quando esta inclinaçäo foi conhecida, as duas familias irromperam em näo dissimulados azedumes. O casamento era impossivel. Se a adopçäo de um filho alheio podia resolver em theoria o problema, quem vinha sujeitar-se ao sacrificio? Os Yamaguchi? Os Fukumoto? Mas nem uns nem outros, com os diabos!... Os nomes das duas familias, procedentes de uma linhagem täo remota que em väo se tentaria investigar-lhes [45] a origem, gosavam em todo o Imperio de um prestigo inconfundivel, conquistado durante annos sem conto pela pobidade mercantil dos seus negocios, pela excellencia do chá da sua lavra, pela nobre chientela nos castelos; podendo apenas pôr-se em duvida, se o chá dos Yamaguchi preferival ao chá dos Fukumoto. Ora,—mercê de um capricho de estouvados,—investir, por uma adopçäo do acaso, um estranho na posse de tal nome, e ungil-o dos nobres encargos que competem a um futuro chefe de familia—Fukumoto ou Yamaguchi,—nem por brincadeira se propunha!... Que O-Hana e Naotarô se casassem, intendia-se; era esse mesmo o seu dever, de perpetuar pela prole os nomes dos avós; mas confiassem no bom tacto dos paes, que saberiam escolher-lhes noivos do seu agrado e em condiçöes de näo virem parturbar a paz das familias e ferir o amor das tradiçöes.




Muito bem. Quando os dois namorados se convenceram da impossibilidade de viverem um para outro, tiveram certa noite uma furtiva entrevista á beira do Ujigawa, a pittoresca ribeira, que entäo serpeava em grande cheia de aguas, resultado das ultimas chuvas copiosas. Deram-se as mäos, parece; sorriam-se um para o outro; näo se sabe o que segredaram entre si, porque [46] ninguem esta alli para os ouvir...

Quando, ao romper do dia, as moças de Uji seguiam para a apanha do chá, em ranchos galhofeiros, quedaram-se de repente junto ao rio, cheias do espanto, de pavor, vendo a boiar dois corpos detidos na maranha dos juncos, rigidos, lividos, mortos, porem sorrindo ainda e dando-se ainda as mäos...


*


"N'estas aguas do rio d'Uji,
—Täo milagrosas que säo!—
Lavam-se todos os males
De que soffre o coraçäo...












Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 19 do outros ... de outros
#pág. 23 ama norma ... uma norma
#pág. 24 ua industria ... na industria
#pág. 24 a modernismo ... o modernismo
#pág. 26 da flores ... de flores
#pág. 33 exteusäo ... extensäo
#pág. 33 homeus ... homens
#pág. 37 desappaeceu ... desappareceu
#pág. 38 appelldo ... appellido
#pág. 39 dos familias ... das familias
#pág. 39 umo supposta ... uma supposta
#pág. 45 pela excellencias ... pela excellencia
#pág. 45 nobre encargos ... nobres encargos