The Project Gutenberg eBook of Memorial de Ayres This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Memorial de Ayres Author: Machado de Assis Release date: October 23, 2017 [eBook #55797] Most recently updated: October 23, 2024 Language: Portuguese Credits: Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version, also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) (Images generously made available by the Internet Archive.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAL DE AYRES *** MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRAZILEIRA MEMORIAL DE AYRES H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR 7, RUA DO OUVIDOR, 7 RIO DE JANEIRO 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 PARIS Em Lixboa, sobre lo mar, Barcas novas mandey lavrar... _Cantiga_ de Joham Zorro. Para veer meu amigo Que talhou preyto comigo, Alá vou, madre. Para veer meu amado Que mig'a preyto talhado, Alá vou, madre. _Cantiga d'el-rei_ Dom Denis. 1888 9 de Janeiro. Ora bem, faz hoje um anno que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: «Vae vassouras! vae espanadores!» Costumo ouvil-o outras manhãs, mas desta vez trouxe-me á memória o dia do desembarque, quando cheguei apozentado á minha terra, ao meu Cattete, á minha lingua. Era o mesmo que ouvi ha um anno, em 1887, e talvez fosse a mesma boca. Durante os meus trinta e tantos annos de diplomacia algumas vezes vim ao Brazil, com licença. O mais do tempo vivi fóra, em varias partes, e não foi pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a esta outra vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas e pessoas de longe, diversões, paizagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei. * * * * * Cinco horas da tarde. Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vae colado: 9 de Janeiro. «Mano, «Só agora me lembrou que faz hoje um anno que você voltou da Europa apozentado. Já é tarde para ir ao cemiterio de S. João Baptista, em visita ao jazigo da familia, dar graças pelo seu regresso; irei amanhã de manhã, e peço a você que me espere para ir commigo. Saudades da «Velha mana, «Rita.» Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim. * * * * * 10 de Janeiro. Fomos ao cemiterio. Rita, apezar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lagrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pae e minha mãe. Ella ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos annos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, emquanto os mais delles ficaram a embranquecer cá fóra. Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples,--a inscrição e uma cruz,-mas o que está é bem feito. Achei-o novo de mais, isso sim. Rita fal-o lavar todos os mezes, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho tumulo dá melhor impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrario parece sempre da vespera. Rita orou deante delle alguns minutos, emquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas proximas. Em quasi todas havia a mesma antiga suplica da nossa: «Orai por elle! Orai por ella!» Rita me disse depois, em caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos os que alli estão. Talvez seja a unica. A mana é boa creatura, não menos que alegre. A impressão que me dava o total do cemiterio é a que me deram sempre outros; tudo alli estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas immoveis. Só alguns passaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorgeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores. Já perto do portão, á saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, em quanto ella rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar tambem, com as mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era extranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilissima, como ouvi dizer de outras em Roma. --Onde está? Disse-lhe onde estava. Quiz ver quem era. Rita, alem de boa pessoa, é curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperassemos alli mesmo, ao portão. --Não! pode não vir tão cedo, vamos espial-a de longe. É assim bonita? --Pareceu-me. Entrámos e enfiámos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distancia, Rita deteve-se. --Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, ha dias. --Quem é? --É a viuva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja. Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá apareceu em Andarahy, a quem Rita me aprezentou e com quem falei alguns minutos. --Viuva de um medico, não é? -Isso; filha de um fazendeiro da Parahyba do Sul, o barão de Santa-Pia. Nesse momento, a viuva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quizesse beijar a sepultura, o proprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquella manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: «Eras capaz de levar um daquelles ao morro? Só se fossem quatro como tu.» Tratavam de caixão pezado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viuva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para traz. Encoberto por um mausoleu, não a pude ver mais nem melhor que a principio. Ella foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos depois e viemos no outro. Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade grande que tivera com o marido, alli sepultado ha mais de dous annos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta reflexão: --Não quer dizer que não venha a cazar outra vez. --Aquella não caza. --Quem lhe diz que não? --Não caza; basta saber as circumstancias do cazamento, a vida que tiveram e a dor que ella sentiu quando enviuvou. --Não quer dizer nada, pode cazar; para cazar basta estar viuva. --Mas eu não cazei. --Você é outra cousa, você é unica. Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como se me chamasse «peralta». Logo ficou seria, porque a lembrança do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso á bulha; ella, depois de aceitar uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viuva Noronha cazava commigo; apostava que não. --Com os meus sessenta e dous annos? --Oh! não os parece: tem a verdura dos trinta. Pouco depois chegámos a casa e Rita almoçou commigo. Antes do almoço, tornámos a falar da viuva e do cazamento, e ella repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe: --Mana, você está a querer fazer commigo a aposta de Deus e de Mephistopheles; não conhece? --Não conheço. Fui á minha pequena estante e tirei o volume do _Fausto_, abri a pagina do prologo no ceu, e li-lh'a, resumindo como pude. Rita escutou atenta o desafio de Deus e do Diabo, a proposito do velho Fausto, o servo do Senhor, e da perda infalivel que faria delle o astuto. Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquella ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo: --Vamos almoçar. Não quero saber desses prologos nem de outros; repito o que disse, e veja você se refaz o que lá vae desfeito. Vamos almoçar. Fomos almoçar; ás duas, horas Rita voltou para Andarahy, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade. * * * * * 12 de Janeiro. Na conversa de ante-hontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que lá está enterrada em Vienna. Pela segunda vez falou-me em transportal-a para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto della, mas que, em minha opinião, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus. --Quando eu morrer, irei para onde ella estiver, no outro mundo, e ella virá ao meu encontro, disse eu. Sorriu, e citou o exemplo da viuva Noronha que fez transportar o marido de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ella conta acabar. Não disse mais sobre este assunto, mas provavalmente tornará a elle, até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado dizia que era seu costume della, quando queria alguma cousa. Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ella fez á gente Aguiar, um cazal que conheci a ultima vez que vim, com licença, ao Rio de Janeiro, e agora encontrei. São amigos della e da viuva, e celebram daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei duas vezes e o marido a mim. Rita falou-me delles com simpatia e aconselhou-me a ir comprimental-os por ocasião das festas anniversarias. --Lá encontrará Fidelia. --Que Fidelia? --A viuva Noronha. --Chama-se Fidelia? --Chama-se. --O nome não basta para não cazar. --Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará cazando com a viuva. Mas eu repito que não caza. * * * * * 14 de Janeiro. A unica particularidade da biografia de Fidelia é que o pae e o sogro eram inimigos politicos, chefes de partido na Parahyba do Sul. Inimizade de familias não tem impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as familias de Romeo e de Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; tambem dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare. Nos nossos municipios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não ha caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raizes, e cada arvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterilisando-lhe o terreno, se pode. Eu, se fosse capaz de odio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguem,-_perdono a tutti_, como na opera. Agora, como foi que elles se amaram,-os namorados da Parayba do Sul,-é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeo e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia,-porque o pae do nosso Romeo era advogado na cidade da Parahyba,-é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, heide pedir-lh'os. Talvez ella os recuse imaginando que começo deveras a morrer pela dama. * * * * * 16 de Janeiro. Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente delle, que para lá ia. Comprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me noticias de Rita, e falámos durante alguns minutos sobre cousas geraes. Isto foi hontem. Hoje de manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome da mulher e delle, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata. «Jantar simples e de poucos amigos» escreveu elle. Soube depois que é festa recolhida. Rita vae tambem. Resolvi aceitar, e vou. * * * * * 20 de Janeiro. Tres dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre. Hoje estou bom, e segundo o medico, posso ja sair amanhã; mas poderei ir ás bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me aconselhou que não vá; mana Rita que tratou de mim dous dias, é da mesma opinião. Eu não a tenho contraria, mas se me achar lepido e robusto, como é possivel, custar-me-ha não ir. Veremos; tres dias passam depressa. * * * * * Seis horas da tarde. Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shellev e tambem de Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me d'aquelle; é assim que o engenho completa o engenho, e o espirito aprende as linguas do espirito. * * * * * Nove horas da noite. Rita jantou commigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças para ir ás bodas de prata. Ella, depois de me aconselhar prudencia, concordou que, se não tiver mais nada, e fôr comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que os meus olhos terão lá dieta absoluta. --Creio que Fidelia não vae, explicou. --Não vae? --Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando ellas lhe aparecem é por dias, e não vão sem muito remedio e muita paciencia. Talvez vá visital-a amanhã ou depois. Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com ella, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, elles a ella, e ella a elles, e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser o meu. --Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Tambem a mim parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos? --Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você não imagina como são amigos um do outro. Eu não os frequento muito, porque vivo metida commigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ella principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos annos, pode dizer-lhe o que elles são. --Haverá muita gente ao jantar? --Não, creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Elles são modestos, o jantar é só dos mais intimos, e por isso o convite que fizeram a você mostra grande simpatia pessoal. --Já senti isso, quando me apresentaram a elles, ha sete annos, mas então supuz que era mais por causa do ministro que do homem. Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou não haja Fidelia. * * * * * 25 de Janeiro. Lá fui hontem ás bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas impressões da noite. Não podiam ser melhores. A primeira dellas foi a união do casal. Sei que não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memoria dos tempos passados, e a affeição dos outros como que ajuda a duplicar a propria. Mas não é isso. Ha nelles alguma cousa superior á oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os annos tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma só e unica. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite. Aguiar veiu receber-me á porta da sala,-eu diria que com uma intenção de abraço, se pudesse havel-a entre nós e em tal logar; mas a mão fez esse oficio, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta annos feitos (ella tem cincoenta), corpo antes cheio que magro, agil, ameno e risonho. Levou-me á mulher, a um lado da sala, onde ella conversava com duas amigas. Não era nova para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu comprimento davam-lhe á expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance para o marido. Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim; vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra inesperada a uma senhora, que dizia a outra: --Não vá Fidelia ter ficado peor. --Ella vem? perguntou a outra. --Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal. O mais que as duas disseram, relativamente á viuva, foi bem. O que me dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar atenção maior que o assunto nem perder as aparencias della. Pela hora proxima do jantar supuz que Fidelia não viesse. Supuz errado. Fidelia e o tio foram os ultimos chegados, mas chegaram. O alvoroço com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas convalecida, e apezar do risco de voltar á noite. O prazer de ambas foi grande. Fidelia não deixou inteiramente o luto; trazia ás orelhas dous coraes, e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno escuro. As joias e um raminho de myosotis á cinta vinham talvez em homenagem á amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete de comprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um movel com outros presentinhos anniversarios. Ao vel-a agora, não a achei menos saborosa que no cemiterio, e ha tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa tambem. Parece feita ao torno, sem que este vocabulo dê nenhuma ideia de rigidez; ao contrario, é flexivel. Quero aludir somente á correção das linhas,-falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pelle macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal á viuvez. Foi o que vi logo á chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veiu vindo pela noite adiante, até que ella se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em caza, como lá ficou dito atraz, e tirado de uma das suas estancias de 1821: _I can give not what men call love._ Assim disse commigo em inglez, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: «Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!» Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veiu tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de nupcias. Aguiar deu o braço a Fidelia, e sentou-se entre ella e a mulher. Escrevo estas indicações sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous conjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidelia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dous,-hiperbole permitida para dizer que em ambos nós, em mim, ao menos, repercutia a felicidade daquelles vinte e cinco annos de paz e consolação. A dona da casa, afavel, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquella data; não menos o marido. Talvez elle fosse ainda mais feliz que ella, mas não saberia mostral-o tanto. D. Carmo possue o dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto dão á velhice um relevo particular, e fazem cazar nella todas as idades. Não, sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitario. De quando em quando, ella e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que tambem com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancolica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas,-sempre ha indiscretos,-no brinde que lhes fez aludiu á falta de filhos, dizendo «que Deus lh'os negara para que elles se amassem melhor entre si.» Não falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; orçava agora pelos cincoenta annos, e tinha um filho. Ouvindo aquella referencia, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a unica ferida do cazal. Creio que Fidelia percebeu tambem a expressão de tristeza dos dous, porque eu a vi inclinar-se para ella com um gesto do calis e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura: --Á sua felicidade. A esposa Aguiar, comovida, apenas pode responder logo com o gesto; só instantes depois de levar o calis á boca, acrescentou, em voz meia surda, como se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento: --Obrigada. Tudo foi assim segredado, quasi calado. O marido aceitou a sua parte do brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia. De noite vieram mais visitas; tocou-se, tres ou quatro pessoas jogaram cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquella porção de homens alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto particular da velhice D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de Fidelia; mas a graça desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás de dous annos. Shelley continuava a murmurar ao meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: _I can give not what men call love._ Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ella que eram desculpas de mau pagador, isto é que eu, temendo não vencer a resistencia da moça, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paixão conjugal de Fidelia. --Todas as pessoas daqui e de fora que os viram,-continuou,-podem dizer a você o que foi aquelle cazal. Basta saber que se uniram, como já lhe disse, contra a vontade dos dous paes, e amaldiçoados por ambos. D. Carmo tem sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve por discreta, resume só o que pode, com palavras de afirmação e de admiração. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidelia conta alguma cousa. Converse com o tio... Olhe, elle que lhe diga tambem da gente Aguiar... Neste ponto interrompi: --Pelo que ouço, emquanto eu andava lá fóra, a reprezentar o Brazil, o Brazil fazia-se o seio de Abrahão. Você, o cazal Aguiar, o cazal Noronha, todos os cazaes, em suma, faziam-se modelos de felicidade perpetua. --Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo. --Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas, a casada e a viuva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade? --Creio que sim. --A viuva tambem não tem filhos? --Tambem não. É um ponto de contacto. --Ha um ponto de desvio; é a viuvez de Fidelia. --Isso não; a viuvez de Fidelia está com a velhice de D. Carmo; mas se você acha que é desvio tem nas suas mãos concertal-o, é arrancar a viuva á viuvez, se puder; mas não pode, repito. A mana não costuma dizer pilherias, mas quando lhe sae alguma tem pico. Foi o que eu lhe disse então, ao metel-a no carro que a levou a Andarahy, em quanto eu vim a pé para o Cattete. Esqueceu-me dizer que a casa do Aguiar é na praia do Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim, casa velha mas solida. —-—-— Sabado. Hontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomatico e prometi ir jantar com elle amanhã em Petropolis. Subo hoje e volto segunda-feira. O peor é que accordei de mau humor, e antes quizera ficar que subir. E dahi pode ser que a mudança de ar e de espectaculo altere a disposição do meu espirito. A vida, mormente nos velhos, é um oficio cançativo. * * * * * Segunda-Feira. Desci hoje de Petropolis. Sabado, ao sair a barca da Prainha, dei com o desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque dahi a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na estação de Petropolis estava restabelecido inteiramente. Não me lembra se ja escrevi neste _Memorial_ que o Campos foi meu colega de anno em S. Paulo. Com o tempo e a ausencia perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o anno passado, apezar das recordações escolásticas que surgiram entre nós, eramos estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passámos uma noite no Flamengo; mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausencia. Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar e por terra, eram de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar. Bastante foi; acabámos lavados da velhice. Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava grande prazer na viagem que iamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe que tivera maior gosto quando alli ia em caleças tiradas a burros, umas atraz das outras, não pelo vehiculo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá em baixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pintorescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até á propria estação de Petropolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, alli para beber agua na fonte celebre, e finalmente avistado alto da serra, onde os elegantes de Petropolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até á cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam alli mesmo para os carros onde as familias esperavam por elles. Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma especie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, elle tambem, e chegamos satisfeitos á cidade da serra. Os dous fomos para o mesmo hotel (Bragança). Depois de jantar saimos em passeio de digestão, ao longo do rio. Então, a proposito dos tempos passados, falei do cazal Aguiar e do conhecimento que Rita me disse que elle tinha da vida e da mocidade dos dous conjuges. Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha intenção secreta fosse passar dalli ao cazamento da propria sobrinha delle, suas condições e circumstancias, cousa dificil pela curiosidade que podia exprimir, e aliás não está nos meus habitos, mas elle não me deu azo nem tempo. Todo este foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com paciencia, porque o assunto entrou a interessar-me depois das primeiras palavras, e tambem porque o desembargador fala mui agradavelmente. Mas agora é tarde para transcrever o que elle disse; fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memoria o que valer a pena guardar. * * * * * 4 de Fevereiro. Eia, resumamos hoje o que ouvi ao desembargador em Petropolis ácerca do cazal Aguiar. Não ponho os incidentes, nem as anedotas soltas, e até excluo os adjectivos que tinham mais interesse na boca delle do que lhes poderia dar a minha penna; vão só os precisos á comprehensão de cousas e pessoas. A razão que me leva a escrever isto é a que entende com a situação moral dos dous, e prende um tanto com a viuva Fidelia. Quanto á vida delles eil-a aqui em termos secos, curtos e apenas biograficos. Aguiar cazou guarda-livros. D. Carmo vivia então com a mãe, que era de Nova-Friburgo, e o pae, um relojoeiro suisso daquella cidade. Cazamento a grado de todos. Aguiar continuou guarda-livros, e passou de uma caza a outra e mais outra, fez-se socio da ultima, até ser gerente de banco, e chegaram á velhice sem filhos. É só isto, nada mais que isto. Viveram até hoje sem bulha nem matinada. Queriam-se, sempre se quizeram muito, apezar dos ciumes que tinham um do outro, ou por isso mesmo. Desde namorada, ella exerceu sobre elle a influencia de todas as namoradas deste mundo, e acaso do outro, se as ha tão longe. Aguiar contára uma vez ao desembargador os tempos amargos em que, ajustado o cazamento, perdeu o emprego por falencia do patrão. Teve de procurar outro; a demora não foi grande, mas o novo logar não lhe permitiu cazar logo, era-lhe preciso assentar a mão, ganhar confiança, dar tempo ao tempo. Ora, a alma delle era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naquelles dias de crise. Copio esta imagem que ouvi ao Campos, e que elle me disse ser do proprio Aguiar. Cal e cimento valeram-lhe logo em todos os casos de pedras desconjuntadas. Elle via as cousas pelos seus proprios olhos, mas se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remedio ao mal fisico ou moral era ella. A pobreza foi o lote dos primeiros tempos de cazados. Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos á escassez dos vencimentos. D. Carmo guiava o serviço domestico ajudando o pessoal deste e dando aos arranjos da casa o conforto que não poderia vir por dinheiro. Sabia conservar o bastante e o simples; mas tão ordenadas as cousas, tão completadas pelo trabalho das mãos da dona que captavam os olhos ao marido e ás visitas. Todas ellas traziam uma alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro, unindo o gracioso ao precizo. Tapetes de meza e de pés, cortinas de janelas e outros mais trabalhos que vieram com os annos, tudo trazia a marca da sua fabrica, a nota intima da sua pessoa. Teria inventado, se fosse preciso, a pobreza elegante. Criaram relações variadas, modestas como elles e de boa camaradagem. Neste capitulo a parte de D. Carmo é maior que a de Aguiar. Já em menina era o que foi depois. Havendo estudado em um colegio do Engenho Velho, a moça acabou sendo considerada a primeira alumna do estabelecimento, não só sem desgosto, tacito ou expresso, de nenhuma companheira, mas com prazer manifesto e grande de todas, recentes ou antigas. A cada uma pareceu que se tratava de si mesma. Era então algum prodigio de talento? Não, não era; tinha a inteligencia fina, superior ao comum das outras, mas não tal que as reduzisse a nada. Tudo provinha da indole afetuosa daquella creatura. Dava-lhe esta o poder de atrair e conchegar. Uma cousa me disse Campos que eu havia observado de relance naquella noite das bodas de prata, é que D. Carmo agrada igualmente a velhas e a moças. Ha velhas que não sabem fazer-se entender de moças, assim como ha moças fechadas ás velhas. A senhora de Aguiar penetra e se deixa penetrar de todas; assim foi joven, assim é madura. Campos não os acompanhou sempre, nem desde os primeiros tempos; mas quando entrou a frequental-os, viu nella o desenvolvimento da noiva e da recem-casada, e comprehendeu a adoração do marido. Este era feliz, e para socegar das inquietações e tedios de fóra, não achava melhor respiro que a conversação da espoza, nem mais doce lição que a de seus olhos. Era della a arte fina que podia restituil-o ao equilibrio e á paz. Um dia, em casa delles, abrindo urna coleção de versos italianos, Campos achou entre as folhas um papelinho velho com algumas estrofes escritas. Soube que eram do livro, copiadas por ella nos dias de noiva, segundo ambos lhe disseram, vexados; restituiu o papel á pagina, e o volume á estante. Um e outro gostavam de versos, e talvez ella tivesse feito alguns, que deitou fóra com os últimos solecismos de familia. Ao que parece, traziam ambos em si um germen de poesia instintiva, a que faltára expressão adequada para sair ca fóra. A ultima reflexão é minha, não do desembargador Campos, e leva o unico fim de completar o retrato deste casal. Não é que a poesia seja necessaria aos costumes, mas pode dar-lhes graça. O que eu fiz então foi perguntar ao desembargador se taes creaturas tiveram algum resentimento da vida. Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram filhos. --Mana Rita disse-me isso mesmo. --Não tiveram filhos, repetiu Campos. Ambos queriam um filho, um só que fosse, ella ainda mais que elle. D. Carmo possuia todas as especies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal. Campos ainda lhe conheceu a mãe, cujo retrato, encaixilhado com o do pae, figurava na sala, e falava de ambos com saudades longas e suspiradas. Não teve irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluida na amical, em que se dividia tambem. Quanto aos filhos, se os não teve, é certo que punha muito de mãe nos seus carinhos de amiga e de esposa. Não menos certo é que para essa especie de orfandade ás avessas, tem agora um paliativo. --D. Fidelia? --Sim, Fidelia e teve ainda outro que acabou. Aqui referiu-me uma historia que apenas levará meia duzia de linhas, e não é pouco para a tarde que vae baixando; digamol-a depressa. Uma das suas amigas tivera um filho, quando D. Carmo ia em vinte e tantos annos. Sucessos que o desembargador contou por alto e não valia a pena instar por elles, trouxeram a mãe e o filho para a casa Aguiar durante algum tempo. Ao cabo da primeira semana tinha o pequeno duas mães. A mãe real precisou ir a Minas, onde estava o marido; viagem de poucos dias. D. Carmo alcançou que a amiga lhe deixasse o filho e a ama. Taes foram os primeiros liames da afeição que cresceu com o tempo e o costume. O pae era comerciante de café,-comissario,-e andava então a negocios por Minas, a mãe era filha de Taubaté, S. Paulo, amiga de viajar a cavalo. Quando veiu o tempo de batizar o pequeno, Luiza Guimarães convidou a amiga para madrinha delle. Era justamente o que a outra queria; aceitou com alvoroço, o marido com prazer, e o batizado se fez como uma festa da familia Aguiar. A meninice de Tristão,-era o nome de afilhado,-foi dividida entre as duas mães, entre as duas cazas. Os annos vieram, o menino crescia, as esperanças maternas de D. Carmo iam morrendo. Este era o filho abençoado que o acaso lhes deparára, disse um dia o marido; e a mulher, catolica tambem na linguagem, emendou que a Providencia, e toda se entregou ao afilhado. A opinião que o desembargador achou em algumas pessoas, e creio justa, é que D. Carmo parecia mais verdadeira mãe que a mãe de verdade. O menino repartia-se bem com ambas, preferindo um pouco mais a mãe postiça. A razão podiam ser os carinhos maiores, mais continuados, as vontades mais satisfeitas e finalmente os doces, que tambem são motivos para o infante, como para o adulto. Veiu o tempo da escola, e ficando mais perto da caza Aguiar, o menino ia jantar alli, e seguia depois para as Laranjeiras, onde morava Guimarães. Algumas vezes a própria madrinha o levava. Nas duas ou tres molestias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo foi enorme. Uso o proprio adjetivo que ouvi ao Campos, com quanto me pareça enfatico, e eu não amo a enfasis. Confesso aqui uma cousa. D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são «doudas por morangos», nem que «morrem por ouvir Mozart.» Nella a intensidade parece estar mais no sentimento que na expressão. Mas, emfim, o desembargador assistiu á ultima das molestias do menino, que foi em casa da madrinha, e pôde ver a aflição de D. Carmo, os seus afagos e sustos, alguns minutos de desespero e de lagrimas, e finalmente a alegria de restabelecimento. A mãe era mãe, e sentiu de certo, e muito, mas diz elle que não tanto; é que haverá ternuras atadas, ou ainda moderadas, que se não mostram inteiramente a todos. Doenças, alegrias, esperanças, todo o repertorio daquella primeira quadra da vida de Tristão foi visto, ouvido e sentido pelos dous padrinhos, e mais pela madrinha, como se fora do seu proprio sangue. Era um filho que alli estava, que fez dez annos, fez onze, fez doze, crescendo em altura e graça. Aos treze annos, sabendo que o pae o destinava ao comercio, foi ter com a madrinha e confiou-lhe que não tinha gosto para tal carreira. --Porque, meu filho? D. Carmo usava este modo de falar, que a idade e o parentesco espiritual lhe permitiam, sem usurpação de ninguem. Tristão confessou-lhe que a sua vocação era outra. Queria ser bacharel em direito. A madrinha defendeu a intenção do pae, mas com ella Tristão era ainda mais voluntarioso que com elle e a mãe, e teimou em estudar direito e ser doutor. Se não havia propriamente vocação, era este titulo que o atraía. --Quero ser doutor! quero ser doutor! A madrinha acabou achando que era bom, e foi defender a causa do afilhado. O pae deste relutou muito. «Que havia no comercio que não fosse honrado, além de lucrativo? Demais, elle não ia começar sem nada, como sucedia a outros e sucedeu ao proprio pae, mas já amparado por este.» Deu-lhe outras mais razões, que D. Carmo ouviu sem negar, alegando sempre que o importante era ter gosto, e se o rapaz não tinha gosto, melhor era ceder ao que lhe aprazia. Ao cabo de alguns dias o pae de Tristão cedeu, e D. Carmo quiz ser a primeira que désse ao rapaz a boa nova. Ella propria sentia-se feliz. Cinco ou seis mezes depois, o pae de Tristão resolveu ir com a mulher cumprir uma viagem marcada para o anno seguinte,-visitar a familia delle; a mãe de Guimarães estava doente. Tristão, que se preparava para os estudos, tão depressa viu apressar a viagem dos paes, quiz ir com elles. Era o gosto da novidade, a curiosidade da Europa, algo diverso das ruas do Rio de Janeiro, tão vistas e tão cançadas. Pae e mãe recusaram leval-o; elle insistiu. D. Carmo, a quem elle recorreu outra vez, recusou-se agora, porque seria afastal-o de si, ainda que temporariamente; juntou-se aos paes do mocinho para conserval-o aqui. Aguiar desta vez tomou parte ativa na luta; mas não houve luta que valesse. Tristão queria á fina força embarcar para Lisboa. --Papae volta daqui a seis mezes; eu volto com elle. Que são seis mezes? --Mas os estudos? dizia-lhe Aguiar. Você vae perder um anno... --Pois que se perca um anno. Que é um anno que não valha a pena sacrifical-o ao gosto de ir ver a Europa? Aqui D. Carmo teve uma inspiração; prometeu-lhe que, tão depressa elle se formasse, ella iria com elle viajar, não seis mezes, mas um anno ou mais; elle teria tempo de ver tudo, o velho e o novo, terras, mares, costumes... Estudasse primeiro. Tristão não quiz. A viagem se fez, a despeito das lagrimas que custou. Não ponho aqui taes lagrimas, nem as promessas feitas, as lembranças dadas, os retratos trocados entre o afilhado e os padrinhos. Tudo se afirmou de parte a parte, mas nem tudo se cumpriu; e, se de lá vieram cartas, saudades e noticias, quem não veiu foi elle. Os paes foram ficando muito mais tempo que o marcado, e Tristão começou o curso da Escola Medica de Lisboa. Nem comercio nem jurisprudencia. Aguiar escondeu quanto pôde a noticia á mulher, a ver se tentava alguma cousa que trocasse as mãos á sorte, e restituisse o rapaz ao Brazil; não alcançou nada, e elle proprio não podia já disfarçar a tristeza. Deu a dura novidade á mulher, sem lhe acrescentar remedio nem consolação; ella chorou longamente. Tristão escreveu comunicando a mudança de carreira e prometendo vir para o Brazil, apenas formado; mas dahi a algum tempo eram as cartas que escasseavam e acabaram inteiramente, ellas e os retratos, e as lembranças; provavelmente não ficaram lá saudades. Guimarães aqui veiu, sosinho, com o unico fim de liquidar o negocio, e embarcou outra vez para nunca mais. * * * * * 5 de Fevereiro. Relendo o que escrevi hontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente não lhe pôr tantas lagrimas. Não gosto dellas, nem sei se as verti algum dia, salvo por mama, em menino; mas lá vão. Pois vão tambem essas que ahi deixei, e mais a figura de Tristão, a que cuidei dar meia duzia de linhas e levou a maior parte dellas. Nada ha peor que gente vadia,-ou apozentada, que é a mesma cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não ha papel que baste. Entretanto, não disse tudo. Verifico que me faltou um ponto da narração do Campos. Não falei das ações do Banco do Sul, nem das apolices, nem das cazas que o Aguiar possue, alem dos honorarios de gerente; terá uns duzentos e poucos contos. Tal foi a afirmação do Campos, á beira do rio, em Petropolis. Campos é homem interessante, posto que sem variedade de espirito; não importa, uma vez que sabe despender o que tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a aceitar toda casta de insipidos. Elle não é destes. * * * * * 6 de Fevereiro. Outra cousa que tambem não escrevi no dia 4, mas essa não entrou na narração do Campos. Foi ao despedir-me delle, que lá ficou em Petropolis tres ou quatro dias. Como eu lhe deixasse recomendações para a sobrinha, ouvi-lhe que me respondeu: --Está em casa da gente Aguiar; passou lá a tarde e a noite de hontem, e conta ficar até que eu desça. * * * * * 6 de Fevereiro, á noite. Diferença de vocações: o cazal Aguiar morre por filhos, eu nunca pensei nelles, nem lhes sinto a falta, apezar de só. Alguns ha que os quizeram, que os tiveram e não souberam guardal-os. * * * * * 10 de Fevereiro. Hontem, indo jantar a Andarahy, contei a mana Rita o que ouvi ao desembargador. --Elle não disse nada da sobrinha? --Todo o tempo foi pouco para falar da gente Aguiar. --Pois eu soube o que me faltava de Fidelia; foi a propria D. Carmo que me contou. --Se a historia é tão longa como a della... --Não, é muito mais curta; diz-se em cinco minutos. Tirei o relogio para ver a hora exata, e marcar o tempo da narração. Rita começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro. Mas o assunto era curioso, trata-se do cazamento, e a viuva interessa-me. --Conheceram-se aqui na Corte, disse Rita; na roça nunca se viram. Fidelia passava uns tempos em casa do desembargador (a tia ainda era viva), e o rapaz. Eduardo, estudava na Escola de Medicina. A primeira vez que elle a viu foi das _torrinhas_ do Teatro Lirico, onde estava com outros estudantes; viu-a á frente de um camarote, ao pé da tia. Tornou a vel-a, foi visto por ella, e acabaram namorados um do outro. Quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se faria, ainda que o soubessem desde principio, porque a paixão foi repentina. O pae de Fidelia, vindo á Corte, teve noticia do caso pelo proprio irmão, que cautelosamente lhe disse o que desconfiava, e insinuou que era boa ocasião de fazerem as pazes as duas familias. O barão ficou furioso, pegou da moça e levou-a para a fazenda. Você não imagina o que lá se passou. --Imagino, imagino. --Não imagina. --Pôl-a no tronco? --Não, protestou Rita; não fez mais que ameaçal-a com palavras, mas palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa, se continuasse a pensar em tal atrevimento. Fidelia jurou uma e muitas vezes que tinha um noivo no coração e cazaria com elle, custasse o que custasse. A mãe estava do lado do marido, e opoz-se tambem. Fidelia resistiu e recolheu-se ao silencio, passava os dias no quarto, chorando. As mucamas viam as lagrimas e os sinaes dellas, e desconfiavam de amores, até que adivinharam a pessoa, se não foi palavra que ouviram aos proprios senhores. Emfim, a moça entrou a não querer comer. Vendo isto, a mãe, com receio de algum acesso de molestia, começou a pedir por ella, mas o marido declarou que não lhe importava vel-a morta ou até douda; antes isso que consentir na mistura do seu sangue com o da gente Noronha. A oposição da gente Noronha não foi menor. Ao saber da paixão do filho pela filha do fazendeiro, o pae de Eduardo mandou-lhe dizer que o deixaria na rua, se teimasse em semelhante afronta. --Como inimigos eram dignos um do outro, observei. --Eram, concordou Rita. O desembargador soube o que se passava e foi á fazenda, onde viu tudo confirmado, e disse ao irmão que não valia opor-se, porque a filha, chegada á maioridade, podia arrancar-se de caza. Ninguem obrigava a humilhar-se deante da gente Noronha, nem a fazer as pazes com ella; bastava que os filhos cazassem e fossem para onde quizessem. O barão recusou a pés juntos, e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte, sem continuar a comissão que se dera a si mesmo, quando Fidelia adoeceu deveras. A doença foi grave, a cura dificil pela recusa dos remedios e alimentos... Que sorriso é esse? Não acredita? --Acredito, acredito; acho romanesco. Em todo caso, essa moça interessa-me. A cura, dizia você, foi dificil? --Foi; a mãe resolveu pedir ao marido que cedesse, o marido concedeu finalmente, impondo a condição de nunca mais receber a filha nem lhe falar; não assistiria ao cazamento, não queria saber della. Restabelecida, Fidelia veiu com o tio, e no anno seguinte cazou. O pae do noivo tambem declarou que os não queria ver. --Tanta luta para não serem felizes por muito tempo. --É verdade. A felicidade foi grande mas curta. Um dia resolveram ir á Europa, e foram, até que se deu a morte inesperada do marido, em Lisboa, donde Fidelia fez transportar o corpo para aqui. Você lá a viu ao pé da sepultura; lá vae muitas vezes. Pois nem assim o pae, que tambem já é viuvo, nem assim quiz receber a filha. Quando veiu á Corte a primeira vez, Fidelia foi ter com elle, sosinha, depois com o tio; todas as tentativas foram inuteis. Nunca mais a viu nem lhe falou. Eu, mais ou menos, já contei isto a você; só não conhecia bem as particularidades da resistencia na fazenda, mas ahi está. Agora diga se ella é viuva que se caze. --Com qualquer, não; pelo menos, é dificil; mas, um sujeito fresco,-continuei enfunando-me e rindo. --Você ainda pensa...? --Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que hade estar delicioso. O que me fica da historia é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua sopa vale para mim todas as noções esteticas e moraes deste mundo e do outro. Ao jantar, contei a Rita o que me dissera o desembargador sobre haver ido a sobrinha passar alguns dias ao Flamengo, e perguntei-lhe se era assim a intimidade na casa. --Certamente que é. Já uma vez Fidelia adoeceu no Flamengo e lá se tratou. Tendo perdido a esperança do filho postiço, o Tristão, que os esqueceu inteiramente, ficaram cada vez mais ligados á viuva. D. Carmo é toda ternura para ella. Você lembra-se das bodas de prata, não? Aguiar não lhe chama filha para não parecer que usurpa esse titulo ao pae verdadeiro; mas a mulher, não tendo ella mãe, é o nome que lhe dá. Nem Fidelia parece querer outra mãe. * * * * * 11 de Fevereiro. Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que ás creanças só se punham nomes de santos ou santas. Mas Fidelia...? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado á filha do barão, como a fórma feminina de _Fidelio_, em homenagem a Beethoven? Pode ser; mas eu não sei se elle teria dessas inspirações e reminiscencias artisticas. Verdade é que o nome da familia, que serve ao titulo nobiliario, Santa-Pia, tambem não o acho na lista dos canonisados, e a unica pessoa que conheço, assim chamada, é a de Dante: _Ricorditi di me, chi son la Pia._ Parece que já não queremos Annas nem Marias, Catarinas nem Joannas, e vamos entrando em outra onomastica, para variar o aspeto ás pessoas. Tudo serão modas neste mundo, excepto as estrelas e eu, que sou o mesmo antigo sujeito, salvo o trabalho das notas diplomaticas, agora nenhum. * * * * * 18 de Fevereiro. Campos disse-me hoje que o irmão lhe escrevera, em segredo, ter ouvido na roça o boato de uma lei proxima de abolição. Elle, Campos, não crê que este ministerio a faça, e não se espera outro. * * * * * 24 de Fevereiro. A data de hoje (revolução de 1848) lembra-me a festa de rapazes que tivemos em S. Paulo, e um brinde que eu fiz ao grande Lamartine. Ai, viçosos tempos! Eu estava no meu primeiro anno de direito. Como falasse disso ao desembargador, disse-me este: --Meu irmão crê que tambem aqui a revolução está proxima, e com ella a Republica. * * * * * 2 de Março. Venho da casa do Aguiar. Lá achei Fidelia, um primo desta, filho do desembargador, alumno da Escola de Marinha (16 annos) e um empregado do Banco do Brazil. Passei uma boa hora ou mais. A velha esteve encantadora, a moça tambem, e a conversação evitou tudo o que pudesse lembrar a ambas a respetiva perda, uma do esposo, outra do filho postiço. Contavam-se historias de sociedade, que eu ouvi sorrindo, quando era preciso, ou consternado nas ocasiões pertinentes. Tambem eu contei uma, de sociedade alheia e remota, mas o receio de lembrar á viuva Noronha alguma terra por onde houvesse andado com o marido me fez encurtar a narração e não começar segunda. Entretanto, ella referiu duas ou tres reminiscencias de viagem, impressões do que vira em muzeus da Italia e da Allemanha. Da nossa terra dissemos cousas agradaveis e sempre de acordo. A mesma torre da matriz da Gloria, que alguns defenderam como necessaria, deixou-nos a nós, a ella e a mim, concordes no desacordo, sem que aliás eu combatesse ninguem. O cazal Aguiar ouviu-nos sorrindo; o moço da Escola de Marinha tentou, em vão, suscitar a questão militar. Com isso e o mais enchemos a noite. Ninguem pediu a Fidelia que tocasse, embora me digam que é admiravel ao piano. Em compensação, ouvimos-lhe dizer alguma cousa de mestres e de paginas celebres, mas isso mesmo foi breve e interrompido, pode ser que lhe lembrasse o finado. Saí antes della. Ouvi ao Aguiar que daqui a dous mezes, começará as suas reuniões semanaes. * * * * * 10 de Março. Afinal houve sempre mudança de gabinete. O conselheiro João Alfredo organizou hoje outro. Daqui a tres ou quatro dias irei aprezentar as minhas felicitações ao novo ministro dos negocios estranjeiros. * * * * * 20 do Março. Ao desembargador Campos parece que alguma cousa se fará no sentido da emancipação dos escravos,-um passo adiante, ao menos. Aguiar, que estava presente, disse que nada corre na praça nem lhe chegou ao Banco do Sul. * * * * * 27 de Março. Santa-Pia chegou da fazenda, e não foi para a casa do irmão; foi para o Hotel da America. É claro que não quer ver a filha. Não ha nada mais tenaz que um bom odio. Parece que elle veiu por causa do boato que corre na Parahyba do Sul acerca da emancipação dos escravos. * * * * * 4 de Abril. Ouvi que o barão caiu doente, e que o irmão conseguiu trazel-o para casa. Eis aqui como. Não lhe pediu logo que viesse; achou meio de lhe dizer que Fidelia estava em casa da amiga, donde não viria tão cedo, e acabou propondo-lhe tratar-se em casa delle. Santa-Pia recusou, depois aceitou. Tudo isso foi planeado com ella. Fidelia está effetivamente no Flamengo com a gente Aguiar. Deste modo a caza do Campos ficou livre ao pae irritado e enfermo. A opinião do Campos e do Aguiar é que o fazendeiro, mais tarde ou mais cedo, acabará perdoando a filha. Em todo caso, não se encontram agora, com pezar della. Ora, pergunto eu, valia, a pena ter bridado com o pae, em troca de um marido que mal começou a lição do amor, logo se apozentou na morte? Certo que não. Se eu propuzesse concluir-lhe o curso, o pae faria as pazes com ella; ai, era preciso não haver esquecido o que aprendi, mas esqueci,-tudo ou quasi tudo. _I can not_ etc. (Shelley). * * * * * 7 de Abril. A distração faz das suas. Hoje, vindo da cidade para caza, passei por esta, e dei commigo no largo do Machado, quando o bonde parou. Apeei-me, e antes de arrepiar caminho, a pé, detive-me alguns instantes, e enfiei pelo jardim, em direção á matriz da Gloria, a olhar para a fachada do templo com a torre por cima. Fiz isto porque me lembrou a conversação da outra noite no Flamengo. A poucos passos, duas senhoras pareciam fazer a mesma cousa. Voltaram-se, eram nada menos que Fidelia e D. Carmo; estavam sem chapeo, tinham vindo a pé de caza. Viram-me, fui ter com ellas. Pouco dissémos: noticias do barão, que está melhor, e do Aguiar, que está bom, e despedimo-nos. Vim para o lado do Cattete, ellas continuaram para o da matriz. A pequena distancia, lembrou-me olhar para traz. Poderia fazer outra cousa? É aqui que eu quizera possuir tudo o que a filosofia tem dito e redito do livre arbitrio, afim de o negar ainda uma vez, antes de cair onde elle perde a mesma aparencia de realidade; acabaria esta pagina por outra maneira. Mas não posso; digo só que não pude reter a cabeça nem os olhos, e vi as duas damas, com os braços cingidos á cintura uma da outra, vagarosas e visivelmente queridas. * * * * * 8 de Abril. Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta penna vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa do setimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor. Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha meza, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o ceu, e alli ou acolá acharás descanço. Commigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que elle chegue, virá a troça dos malevolos ou simplesmente vadios. Escuta, papel. O que naquella dama Fidelia me attrae é principalmente certa feição de espirito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudal-a se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e quê,-e pouco mais. * * * * * 10 Abril. Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e immediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabel-o, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do acto. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia a isso, uma vez que condenava a ideia atribuida ao governo de decretar a abolição, e obteve esta resposta, não sei se subtil, se profunda, se ambas as cousas ou nada: --Quero deixar provado que julgo o acto do governo uma expoliação, por intervir no exercicio de um direito que só pertence ao proprietario, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso. Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse acto, anterior de algumas semanas ou mezes ao outro? A alguem que lhe fez tal pergunta respondeu Campos que não. «Não, disse elle, meu irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelo que vae lançar ás fazendas. O acto que elle resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu genio violento. Elle é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazel-o por lei.» Campos teve uma ideia. Lembrou ao irmão que, com a alforria immediata, elle prejudica a filha, herdeira sua. Santa-Pia franziu o sobrolho. Não era a ideia de negar o direito eventual da filha aos escravos; podia ser o desgosto de ver que, ainda em tal situação, e com todo o poder que tinha de dispor dos seus bens, vinha Fidelia perturbar-lhe a ação. Depois de alguns instantes respirou largo, e respondeu que, antes de morto, o que era seu era somente seu. Não podendo dissuadil-o, o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram ambos a carta de alforria. Retendo o papel, Santa-Pia disse: --Estou certo que poucos delles deixarão a fazenda; a maior parte ficará commigo, ganhando o salario que lhes vou marcar, e alguns até sem nada,-pelo gosto de morrer onde nasceram. * * * * * 11 de Abril. Fidelia, quando soube do acto do pae, teve vontade de ir ter com elle, não para invetival-o, mas para abraçal-o; não lhe importam perdas futuras. O tio é que a dissuadiu dizendo-lhe que o barão ainda está muito zangado com ella. * * * * * 12 de Abril. Santa-Pia não é feio velho, nem muito velho; terá menos idade que eu. Arqueja um pouco, ás vezes, mas pode ser da bronquite. É meio calvo, largo de espaduas, as mãos asperas, cheio de corpo. Conhecemo-nos um ao outro, eu primeiro que elle, talvez porque a Europa me haja mudado mais. Elle lembra-se do tempo em que eu, colega do irmão, jantei com elle aqui na Corte. Já o irmão lhe havia falado de mim, recordando as relações antigas. Disse-me que daqui a tres dias volta para a fazenda, onde me dará hospedagem, se quizer honral-o com a minha pessoa. Agradeci e prometi, sem prazo nem ideia da lá ir. Custa muito sair do Cattete. Já é demais Petropolis. Está claro que lhe não falei da filha, mas confesso que se pudesse diria mal della, com o fim secreto de acender mais o odio-e tornar impossivel a reconciliação. Deste modo ella não iria daqui para a fazenda, e eu não perderia o meu objeto de estudo. Isto, sim, papel amigo, isto podes aceitar, porque é a verdade intima e pura e ninguem nos lê. Se alguem lesse achar-me-ía mau, e não se perde nada em parecer mau; ganha-se quasi tanto como em sel-o. * * * * * 13 de Abril. Hontem com o pae, hoje com a filha. Com esta tive vontade de dizer mal do pae, tanto foi o bem que ella disse delle, a proposito da alforria dos escravos. Vontade sem ação, veleidade pura; antes me vi obrigado a louval-o tambem, o que lhe deu azo a estender o panegirico. Disse-me que elle é bom senhor, elles bons escravos, contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão, e, em sinal de aplauso, beijar-lha. Vontade sem ação. Tudo sem ação esta tarde. * * * * * 19 de Abril. Lá se foi o barão com a alforria dos escravos na mala. Talvez tenha ouvido alguma cousa da resolução do governo; dizem que, abertas as camaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fóra, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: «Eu, Abrahão Lincoln, presidente dos Estados-Unidos da America...» Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brazil, dizendo que restava agora que um povo christão e ultimo imitasse aquelle e acabasse tambem com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes. * * * * * 7 de maio. O ministério apresentou hoje á camara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei. * * * * * 13 de Maio. Emfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me a li offereceu-me logar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organisado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação á Regente. Estive quasi, quasi a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus habitos quietos, os costumes diplomaticos, a propria indole e a idade me retiveram melhor que as redeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a elle e aos outros, que se ajuntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam tambem todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos. Ainda bem que acabámos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os actos particulares, escrituras e inventarios, nem apagar a instituição da historia, ou até da poesia. A poesia falará della, particularmente naquelles versos de Heine, em que o nosso nome está perpetuo. Nelles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde «a casa Gonçalves Pereira» lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronuncia que o levou a isso. Tambem não temos ducados, mas ahi foi o vendedor que trocou na sua lingua o dinheiro do comprador. * * * * * 14 de Maio, _meia noite._ Não ha alegria publica que valha uma boa alegria particular. Saí agora do Flamengo, fazendo esta reflexão, e vim escrevel-a, e mais o que lhe deu origem. Era a primeira reunião do Aguiar; havia alguma gente e bastante animação. Rita não foi; fica-lhe longe e não dá para isto, mandou-me dizer. A alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribui somente ao facto dos amigos juntos, mas tambem ao grande acontecimento do dia. Assim o disse por esta unica palavra, que me pareceu expressiva, dita a brazileiros: --Felicito-os. --Já sabia? perguntaram ambos. Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já, para os felicitar, se não era o facto publico? Chamei o melhor dos meus sorrisos de acordo e complacencia, elle veiu, espraiou-se, e esperei. Velho e velha disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-lhes grande prazer. Não sabendo que carta era nem de que pessoa, limitei-me a concordar: --Naturalmente. --Tristão está em Lisboa, concluiu Aguiar, tendo voltado ha pouco da Italia; está bem, muito bem. Comprehendi. Eis ahi como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominal-o. Não me enfadei com isso; ao contrario, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho postiço viesse após annos de silencio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo. * * * * * 16 de Maio. Fidelia voltou para casa, levando e deixando saudades. Os tres estão muito amigos, e os dous parecem paes de verdade; ella tambem parece filha verdadeira. O desembargador, que me contou isto, referiu-me algumas palavras da sobrinha ácerca da gente Aguiar, principalmente da velha, e acrescentou: --Não é dessas afeições chamadas fogo de palha; nella, como nelles, tudo tem sido lento e radicado. São capazes de me roubarem a sobrinha, e ella de se deixar roubar por elles. Tambem se não forem elles, será o pae. Creio que meu irmão já vae amansando. A ultima vez que me escreveu, depois de falar muito mal do imperador e da princeza, não lhe esqueceu dizer que «agradecia as lembranças mandadas.» Fidelia não lhe mandára lembranças, estava ainda no Flamengo; eu é que as inventei na minha carta para ver o efeito que produziriam nelle. Hade amansar; isto de filhos, conselheiro, não imagina, é o diabo; eu, se perdesse o meu Carlos, creio que me ia logo desta vida. * * * * * 17 de Maio Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descançar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguem, a não ser o meu creado José. Este mesmo, se cumprir, mandal-o-hei á Tijuca, a ver se eu lá estou. Já acho mais quem me aborreça do que quem me agrade, e creio que esta proporção não é obra dos outros, e só minha exclusivamente. Velhice esfalfa. * * * * * 18 de Maio. Rita escreveu-me pedindo informações de um leiloeiro. Parece-me caçoada. Que sei eu de leiloeiros nem de leilões? Quando eu morrer podem vender em particular o pouco que deixo, com abatimento ou sem elle, e a minha pelle com o resto; não é nova, não é bella, não é fina, mas sempre dará para algum tambor ou pandeiro rustico. Não é preciso chamar um leiloeiro. Vou responder isto mesmo á mana Rita, acrescentando algumas noticias que trouxe da rua,-a carta do Tristão, por exemplo, os agradecimentos do barão á filha, e esta grande peta: que a viuva resolveu casar commigo... Mas não; se lhe digo isto, ella não me crê, ri, e vem cá logo. Justamente o que eu não desejo. Preciso de me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo della, apezar de gostar della. Mando-lhe só dizer que o leiloeiro morreu; provavelmente ainda vive, mas hade morrer algum dia. * * * * * 21 de Maio. Hontem escrevi á mana Rita anunciando-lhe a morte do homem, e hoje de manhã abrindo os jornaes, dei com a noticia de haver falecido hontem o leiloeiro Fernandes. Chamava-se Fernandes. Sucumbiu a não sei que molestia grega ou latina. Parece que era bom chefe de familia, honrado e laborioso, e excelente cidadão; a _Vida Nova_ chama-lhe grande, mas talvez elle votasse com os liberaes. Mana Rita, já pela minha carta, já pelas noticias de hoje, correu a ter commigo. Senhoras não deviam escrever cartas; raras dizem tudo e claro; muitas tem a linguagem escassa ou escura. Rita pedira-me noticias do leiloeiro, por lhe dizerem que elle morava no Cattete, e adoecera gravemente ha dias. Como era meu visinho, podia ser que eu soubesse delle: foi o motivo da pergunta, mas esqueceu dizel-o. Hesitei entre confessar a minha invenção ou deixal-a encoberta pela coincidencia, mas foi só um minuto, nem isso, foi um instante. Rita é minha irmã, não me ficaria querendo mal e acabaria rindo tambem. Ouviu a minha verdade, sem zanga, mas tambem sem riso. A razão disto é um pormenor, que não vale a pena dizer miudamente e só o bastante para explicar a carta e a seriedade. Trata-se de contas entre ella e o finado, objetos que ella mandou vender, e não sabe se elle vendeu ou não, nem como havel-os ou o dinheiro; bastará ir ao armazem. Hade haver escrituração donde conste tudo; prometi acompanhal-a amanhã. Ficou satisfeita, começou então a sorrir, depois disse-me os objetos que eram, quadros velhos, romances lidos. Jantou commigo. Antes de irmos para a meza, vimos passar o enterro do Fernandos. Teve a pachorra de contar os carros; ai de mim, tambem eu os contava em pequeno; ella é que parece não haver perdido esse costume estatistico. O Fernandes levava trinta e sete ou trinta e oito carros. Deixo aqui esta pagina com o fim unico de me lembrar que o acaso tambem é corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero. * * * * * 22 de Maio. Em caminho, mana Rita contou-me o que já sabe da carta de Tristão e da resposta que D. Carmo lhe mandou. Sabe mais que eu. D. Carmo leu-lhe as duas cartas. Tristão pede mil desculpas do longo silencio de annos e lança-o á conta de tarefas e distrações. Ultimamente, já formado em medicina, foi em viagem a varias terras, onde viu e estudou muito. Não podendo escrever as viagens, contar-lh'as-ha um dia, se cá vier. Pede noticias della e do padrinho, pede-lhes os retratos, e manda-lhes pelo correio umas gravuras; assim tambem lembranças do pae e da mãe que estão em Lisboa. A carta é longa, cheia de ternuras e saudades. A resposta, disse-me mana Rita que é em tom verdadeiramente maternal. Não sabe mostrar-se magoada; é toda perdão e carinho. Só lhe faz uma queixa; é que, pedindo os retratos della e do marido, não lhe mandasse logo o seu, o ultimo dos seus, porque os antigos cá estão. Diz muitas cousas longas, lembra os tempos de infancia e de estudo, e no fim insinua-lhe que venha contar-lhe as viagens. As gravuras são da casa Goupil. Rita esteve com ella no dia 15, entre uma e duas horas da tarde, depois que a viuva saiu de lá para a casa do tio desembargador. Apezar da separação desta e suas saudades, sentia-se alegre com a afeição que cresce entre ambas, e igualmente alegre com a resurreição do afilhado. Chama-lhe resurreição por imaginar que o moço inteiramente os esquecera. Via agora que não, e parecia-lhe a mesma alma daqui saída. Falando ou calando, tinha intervalos de melancolia, e, de uma vez, acha mana Rita que lhe viu apontar uma lagrima, uma pequenina lagrima de nada... * * * * * 23 de Maio. _Les morts vont vite._ Tão depressa enterrei o leiloeiro como o esqueci. Assim foi que escrevendo o dia de hontem, deixei de dizer que no armazem do Fernandes achámos todos os objetos de mana Rita notados e vendidos, e o dinheiro á espera da dona. Pouco é; recebel-o-ha oportunamente. Talvez não houvesse necessidade de escrever isto; fica servindo á reputação do finado. Outra cousa que me ia esquecendo tambem, e mais principal, porque o oficio dos leilões pode acabar algum dia, mas o de amar não cança nem morre. A culpa foi de mana Rita que, em vez de começar por ahi, só me deu a noticia no largo de S. Francisco, indo a entrar no bonde. Parece que Fidelia mordeu uma pessoa; foram as proprias palavras della. --Mordeu? perguntei sem entender logo. --Sim, ha alguem que anda mordido por ella. --Isso hade haver muitos, retorqui. Não teve tempo de me dizer nada, trepára ao bonde e o bonde ia sair; apertou-me a mão sorrindo, e disse adeus com os dedos. * * * * * 24 de Maio, ao meio dia. Esta manhã, como eu pensasse na pessoa que terá sido mordida pela viuva, veiu a propria viuva ter commigo, consultar-me se devia cural-a ou não. Achei-a na sala com o seu vestido preto do costume e enfeites brancos, fil-a sentar no canapé, sentei-me na cadeira ao lado e esperei que falasse. --Conselheiro, disse ella entre graciosa e séria, que acha que faça? Que caze ou fique viuva? --Nem uma cousa nem outra. --Não zombe, conselheiro. --Não zombo, minha senhora. Viuva não lhe convem, assim tão verde; cazada, sim, mas com quem, a não ser commigo? --Tinha justamente pensado no senhor. Peguei-lhe nas mãos, e enfiamos os olhos um no outro, os meus a tal ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram pousar no rosto do meu criado, unica pessoa existente no quarto, onde eu estava na cama. Na rua apregoava a voz de quasi todas as manhãs: «Vae... vassouras! vae espanadores!» Comprehendi que era sonho e achei-lhe graça. Os pregões foram andando, emquanto o meu José pedia desculpa de haver entrado, mas eram nove horas passadas, perto de dez. Fui ás minhas abluções, ao meu café, aos meus jornaes. Alguns destes celebram o anniversario da batalha de Tuyuty. Isto me lembra que, em plena diplomacia, quando lá chegou a noticia daquella victoria nossa, tive de dar esclarecimentos a alguns jornalistas estranjeiros sequiosos de verdade. Vinte annos mais, não estarei aqui para repetir esta lembrança; outros vinte, e não haverá sobrevivente dos jornalistas nem dos diplomatas, ou raro, muito raro; ainda vinte, e ninguem. E a terra continuará a girar em volta do sol com a mesma fidelidade ás leis que os regem, e a batalha de Tuyuty, como a das Thermopylas, como a de Iena, bradará do fundo do abismo aquella palavra da prece de Renan: «Ó abismo! tu és o deus unico!» Ahi fica um desconcerto acabando em desconsolo,-tudo para annotar pouco mais que nada. Posso dizer com D. Francisco Manuel: «Eu de meu natural sou miudo e prolixo; o estar só e a melancolia, que de si é cuidadosa...» Ahi deixo uma pagina feita de duas, ambas contrarias e filhas da mesma alma de sexagenario desenganado e guloso. Ao cabo, nem tão guloso nem tão desenganado. Conversações do papel e para o papel. * * * * * 26 de Maio. Aqui ficam os sinaes do sujeito mordido pela viuva Noronha. Vinte e oito annos, solteiro, advogado do Banco do Sul, donde lhe vieram as relações com o gerente Aguiar; boa feição, boas maneiras, acaso timido. É filho de um antigo lavrador do Norte, que rezide agora no Recife. Dizem que tem muito talento e grande futuro. Chama-se Osorio. Esteve no Flamengo, na noite de 14, primeira reunião do Aguiar. Não vi nada que fizesse suspeitar a inclinação que se lhe atribue, mas parece que já então lhe queria, e a paixão é crescente. Continua a vel-a em casa do desembargador, onde a conheceu. Quem sabe se não sae dalli um noivo, e mana Rita perde a aposta que fez commigo? Fidelia pode muito bem casar sem esquecer o primeiro marido, nem desmentir a afeição que lhe teve. * * * * * 29 de Maio. Hontem, na reunião do Aguiar, pude verificar que o joven advogado está mordido pela viuva. Não tem outra explicação os olhos que lhe deita; são daquelles que nunca mais acabam. Realmente, é timido, mas de uma timidez que se confunde com respeito e adoração. Se houvesse dança, elle apenas lhe pediria uma quadrilha; duvido que a convidasse a valsar. Conversaram alguns minutos largos, e por duas vezes, e ainda assim foi ella que principalmente falou. Osorio gastou o mais do tempo em miral-a, e fazia bem, porque o gesto da dama era cheio de graça, sem perder a tristeza do estado. Tambem eu lhe falei o meu pouco, á janella. Ambos eramos de acordo que não ha bahia no mundo que vença a do nosso Rio de Janeiro. --Não vi muitas, disse ella, mas nenhuma achei que se aproxime desta. Sobre isto dissemos cousas interessantes,-ella, ao menos,-mas estou que tambem eu. Quiz perguntar-lhe se nos mares que percorreu viu algum peixe semelhante áquelle que anda agora em volta della, mas não ha intimidade para tanto, e a cortezia opunha-se. Conversámos da cidade e suas diversões. Não vae a teatro, qualquer que seja, nada sabe de dramas nem de operas; não insisti no assunto. Apenas me servi da segunda parte, a parte lirica, para lhe falar dos seus talentos de pianista, que ouvira gabar muito. --São impressões de amigos, respondeu sorrindo. Depois confessou-me que ha muito não toca, e provavelmente esquecerá o que sabe. Talvez não fosse sincera nesta conjetura, mas tudo se hade perdoar ao oficio da modestia, e ella parece modesta. Guiei a conversação de modo que mais ouvisse que falasse, e Fidelia não se recusou a essa distribuição de papeis. Disse pouco de si e muito da gente Aguiar. Neste ponto falou com algum calor; não me deu cousas novas, mas o que sentia dos dous foi expresso com alma. Contou-me até que entre D. Carmo e a mãe della achava semelhanças que lhe faziam lembrar alguma vez a finada,-ou seria simplesmente a afeição que aquella lhe tem. Emfim, separámo-nos quasi amigos. Não repeti á gente Aguiar o que a seu respeito ouvi á viuva Noronha; falei a D. Carmo nos talentos musicaes da moça, e ella me confirmou que a viuva está disposta a não tocar mais. Se não fosse isso, pedia-lhe que nos desse alguma cousa. Ao que eu respondi: --A propria arte a convidará um dia a tocar em casa, a sós comsigo... --Póde ser; em todo caso, não a convidarei a tocar aqui; o aplauso podia avivar-lhe a saudade-ou, se a distraisse della, viria diminuir-lhe o gosto de sofrer pelo marido. Não lhe parece que ella é um anjo? Achei que sim; acharia mais, se me fosse perguntado. D. Carmo crê na reconciliação della com o pae, e nem por isso receia perdel-a. Fidelia saberá ser duas vezes filha, é o resumo do que lhe ouvi, sem entrar em pormenores nem na especie de afeição que lhe tem. Do que ella me disse ácerca do «gosto de sofrer pelo marido», concluo que a senhora do Aguiar é daquellas pessoas para quem a dor é cousa divina. * * * * * Fim de Maio. Acaba hoje o mez. Maio é tambem cantado na nossa poesia como o mez das flores,-e aliás todo o anno se pode dizer dellas. A mim custou-me bastante aceitar aquellas passagens de estação que achei em terras alheias. A viuva Noronha, ao contrario, pelo que me disse na ultima noite do Flamengo, achou deliciosa essa impressão lá fora, apezar de nascida aqui e criada na roça. Ha pessoas que parecem nascer errado, em clima diverso ou contrario ao de que precisam; se lhes acontece sair de um para outro é como se fossem restituidas ao proprio. Não serão communs taes organismos, mas eu não escrevi que Fidelia seja commum. A descrição que ella me fez da impressão que teve lá fora com a entrada da primavera foi animada e interessante, não menos que a do inverno com os seus gelos. A mim mesmo perguntei se ella não estaria destinada a passar dos gelos ás flores pela ação daquelle bacharel Osorio... Ponho aqui a reticencia que deixei então no meu espirito. * * * * * 9 de Junho. Este mez é a primeira linha que escrevo aqui. Não tem sido falta de materia, ao contrario; falta de tempo tambem não; falta de disposição é possivel. Agora volta. A materia sobra. Antes de mais nada, Osorio recebeu carta do pae, pedindo-lhe que o fosse ver sem demora; está doente e mal. Osorio preparou-se e embarcou para o Recife. Não o fez logo, logo; parece que a imagem de Fidelia o prendeu uns tres dias, ou porque se não pudesse separar della, ou por temor de a perder ás mãos de terceiro; ambas as causas seriam. Os paes fazem muito mal em adoecer, mormente se estão no Recife, ou em qualquer cidade que não seja aquella onde os filhos namorados vivem perlo das suas damas. A vida é um direito, a mocidade outro; perturbal-os é quasi um crime. Se eu tenho podido dizer isto ao Osorio, talvez elle não partisse; acharia na minha reflexão um eco do proprio sentimento, e escreveria ao pae uma carta cheia de piedade; mas ninguem lhe disse nada. Haveria tambem outro recurso, que conciliaria a piedade e o amor, era escrever a Fidelia dizendo-lhe que embarcava e pedindo-lhe alguns minutos de atenção. A carta, se levasse um ar petulante, aguçaria naturalmente a curiosidade da viuva, e a entrevista se realizaria em presença ou na ausencia do desembargador; é indiferente. Talvez elle preferisse sair da sala. --Titio pode ficar, diria ella ao receber o cartão de Osorio. --Não, é melhor sair. Provavelmente é algum caso de advocacia, continuaria elle sorrindo, e eu sou magistrado, não devo ouvir nada por ora; mais tarde terei de ser juiz. Osorio entraria, e depois de alguns comprimentos, pediria a mão da viuva. Suponhamos que ella recusasse, fal-o-hia com palavras polidas e quasi afetuosas, dizendo que sentia muito, mas resolvera não cazar mais. Pausa longa; o resto adivinha-se. Osorio talvez lhe perguntasse ainda se a resolução era definitiva, ao que ella, para evitar mais dialogo, responderia com a cabeça que era, e elle iria embora. Fidelia correria a contar a novidade ao tio. Quero crer que este defendesse a candidatura do advogado, e dissesse das boas qualidades delle, da carreira prospera, da familia distinta e o resto; Fidelia não se arrependeria da recusa. --Resolvi não cazar, diria pela terceira vez naquella tarde. Tres vezes negou Pedro a Christo, antes de cantar o galo. Aqui não haveria galo nem canto, mas jantar, e os dous iriam pouco depois para a meza. Não diriam nada durante os primeiros minutos, elle pensando que teria sido vantajoso á sobrinha cazar com o rapaz, ella remoendo a impressão do amor que este lhe tinha. Por muito que se recuse deixa sempre algum gosto a paixão que a gente inspira. Ouvi isto a uma senhora, não me lembra em que lingua, mas o sentido era este. E Fidelia deixaria a meza sem chorar, como Pedro chorou depois do galo. Tudo imaginações minhas. A realidade unica é que Osorio embarcou e lá vae, e a viuva cá fica sem perder as graças, que cada vez me parecem maiores. Estive com ella hoje, e se não a arrebatei commigo não foi por falta de braços nem de impulsos. Quiz perguntar-lhe se não sonhara com o pretendente despedido, mas a confiança que começo a merecer-lhe não permitte taes inquirições, nem ella contaria nada de si mesma. Contou-me, sim, que as pazes com o pae estarão concluidas daqui a pouco, ainda que lhe seja preciso ir á fazenda. Naturalmente aprovei este passo. Fidelia disse-me que o pae já na ultima carta ao irmão lhe mandou lembranças, não nominalmente, mas por esta forma coletiva: «lembranças a todos». --Hade custar-lhe a dar o primeiro passo, mas a mim não me importa fazei-o, concluiu ella. --Naturalmente. --A separação que se deu entre nós era impossivel impedil-a. Conselheiro, o senhor que viveu lá fóra a maior parte da vida não calcula o que são aqui esses odios politicos locaes. Papae é o melhor dos homens, mas não perdoa a adversario. Hoje creio que está tudo acabado; a abolição fel-o desgostoso da vida politica. Já mandou dizer aos chefes conservadores daqui que não contem mais com elle para nada. Foram os odios locaes que trouxeram a nossa separação, mas póde crer que elle padeceu tanto como eu e meu marido. Confiou-me, em prova do padecimento de ambos, varias reminiscencias da vida conjugal, que eu ouvi com grande interesse. Não as escrevo para não acumular noticias, vá só uma. Um anno depois do cazamento, pouco mais, tiveram elles a ideia de propor aos paes a reconciliação das familias. Primeiro escreveria o marido ao pae delle; se este aceitasse de boa feição, escreveria ella ao seu, e esperariam ambos a segunda resposta. A carta do marido dizia as suas felicidades e esperanças, e concluia pedindo a bênção, ou, quando menos, que lhe retirasse a maldição. Era longa, terna e amiga. --Meu marido nunca me mostrou a resposta do pae, concluiu Fidelia, ao contrario, disse-me que não recebera nenhuma. Eu é que a achei depois de viuva, seis ou oito mezes depois, entre papeis delle, e comprehendi porque a escondera de mim... Parou aqui. Tive curiosidade de saber o que era, e, evocando a musa diplomatica, lembrou-me induzil-a á confissão ou retificação, dizendo á minha recente amiga: --Dissesse o que fosse a seu respeito ou de seu pae, era natural da parte de um inimigo... --Não, não, acudia Fidelia; não teve nenhuma palavra de odio. Não gosto de repetir o que foi, uma simples linha ou linha e meia, assim: « Recebi a tua carta, mas não recebi o teu remedio para o meu reumatismo.» Só isto. Elle era reumatico, e meu marido, como sabe, era medico. Ri commigo. Não esperava tal remoque da Parahyba do Sul, e comprehendi tambem a reserva do marido. Não comprehendi menos a confidencia da viuva; cedia, alem do mais, á necessidade de contar alguma cousa que distribuisse ao sogro parte grande na culpa que cabia ao pae. Não podia tolher que falasse em si o sangue do fazendeiro. Tudo era Santa-Pia. * * * * * 14 de Junho. Más noticias de Santa-Pia. O barão teve uma congestão cerebral; Fidelia e o tio vão para a fazenda amanhã. Não é facil adivinhar o que vae sair daqui, mais não seria dificil compor uma invenção, que não acontecesse. Enchia-se o papel com ella, e consolava-se a gente com o imaginado. Melhor é dizer que a reconciliação parece fazer-se mais depressa do que esperavam, e tristemente. * * * * * 15 de Junho. Ha na vida simetrias inesperadas. A molestia do pae de Osorio chamou o filho ao Recife, a do pae de Fidelia chama a filha á Parahyba do Sul. Se isto fosse novela algum critico tacharia de inverosimil o acordo de factos, mas já lá dizia o poeta que a verdade pode ser ás vezes inverosimil. Vou hoje á casa do Aguiar para ver se a filha postiça deixou saudades aos dous; deve tel-as deixado. * * * * * 16 de Junho. Deixou, deixou saudades e grandes. Achei-os sós e conversámos da amiga. Propriamente não estavam tristes da ausencia della, mas da tristeza que ella levou comsigo. Quero dizer que lhes doía a magua da outra; foi o que me pareceu. A ausencia contam que não seja longa, e será temperada por visitas á capital; em todo caso, a separação não é tamanha que elles não possam dar um pulo á fazenda. Taes foram os sentimentos e as esperanças que lhes adivinhei. Falaram-me do golpe recebido pela moça. D. Carmo disse-me que eu não podia imaginar como a foi achar abatida. --Ofereci-me para acompanhal-a á fazenda; recusou agradecida, e pela primeira vez me deu um nome que o ceu não quiz que eu tivesse na terra: «Obrigada, mãesinha», e beijou-me com grande ternura. A minha ternura não é grande, nem acaso pequena, mas comprehendi o sentimento da boa senhora, e gostei de saber que em tão grave instante, Fidelia lhe tivesse dado aquella palavra cordial. Parecia contental-a muito e ao marido. Este, aliás, acompanhou a narração da mulher em silencio, com os olhos no tecto; naturalmente não queria incorrer na pecha de fraco, mas a fraqueza, se o era, começou nos gestos; elle ergueu-se, elle sentou-se, elle acendeu um charuto, elle retificou a posição de um vaso... Eu, para espanar a melancolia da sala, perguntei se os negocios do barão iam bem, e se os libertos... Aguiar volveu a ser gerente de banco e expoz-me algumas cousas sobre o plantio do café e os titulos de renda. Nessa ocasião entrou um intimo da casa e conversou tambem do fazendeiro. Disse que os negocios delle, apezar do desfalque, não iam mal; deve ter uns tresentos contos. Aguiar não sabe exatamente, mas aceitou o calculo. --Tem só aquella filha, concluiu a visita, e é provavel que ella case outra vez. Eu, para ser agradavel aos donas da casa, quiz dizer que me parecia que não, mas este bom costume de calar me fez engolir a emenda, e agora me confesso arrependido. Ao cabo eu já me vou conformando com a viuvez perpetua da bella dama, se não é ciume ou inveja de a ver cazada com outro. Já me parece que realmente Fidelia acaba sem cazar. Não é só a piedade conjugal que lhe perdura, é a tendencia a cousas de ordem intelectual e artistica, e pouco mais ou mais nada. Fique isto confiado a ti sómente, papel amigo, a quem digo tudo o que penso e tudo o que não penso. * * * * * 17 de Junho. O barão de Santa-Pia está mal, muito mal. * * * * * 18 de Junho. Viva a Fortuna, que sabe ás vezes consolar o mal agudo com algum balsamo inesperado. A gente Aguiar recebeu carta de Tristão, que lhes anuncia a vinda ao Brazil, talvez no paquete proximo. Logo que entrei... Era dia de recepção delles, e soube depois que tinham pensado em transferil-a por causa da tristeza de Fidelia, mas consideraram que era modesta e resumida, que se não dansava, raro se cantava, e apenas se conversava e tomava chá; podia ser mantida sem escandalo. Logo que entrei deu-me Aguiar a noticia. Quando fui comprimentar D. Carmo, e a felicitei pela vinda do moço, ouviu-me com grande prazer. Meia hora depois, tornámos a falar do assunto, ella e eu, e então foi ella que iniciou a conversação, dizendo-me que estava em caza, longe de esperar tal cousa, e de repente viu entrar no jardim um homem do banco com um bilhete do Aguiar, dando-lhe a boa nova, e acompanhado da carta que Tristão mandava aos dous. Contando-me estas particularidades, acaso dispensaveis, D. Carmo queria naturalmente communicar-me o proprio alvoroço. Conheço estas intenções reconditas e manifestas a um tempo; é velho sestro de felizes. A gente pouca e as relações estreitas deram azo a que no fim da noite falassemos todos do hospede vindouro. Ahi vem o afilhado que elles tiveram por esquecido, quasi ingrato, esse outro meio filho que ajudaram a criar e a amar. Aguiar e a mulher deram explicações pedidas, contaram episodios de infancia, historias de graça, de esperteza, algumas de manha, mas a manha das creanças só enfada em ação; recordada, deleita, como outras cousas idas. Uma das senhoras presentes quiz lembrar alguns actos de carinho e dedicação de D. Carmo ácerca do pequeno, mas a boa velha esquivou-se depressa, e apenas ouvimos um ou dous. Noite de familia; saí cedo, vim para casa tomar leite, escrever isto e dormir. Até outro dia, papel. * * * * * 20 de Junho. Telegrama da Parahyba do Sul: «O barão de Santa-Pia faleceu hoje de manhã.» Vou mandar a noticia a mana Rita, e enviar cartões de pezames. É caso de dar tambem os pezames á gente Aguiar? Pezames não, mas uma visita discreta e afetuosa, amanhã ou depois... * * * * * 21 de Junho. Aguiar vae á fazenda de Santa-Pia, em visita de pezames a Fidelia; parte amanhã. D. Carmo fica. Foi o que elle me disse na rua do Ouvidor. --Já lhe mandei os meus, disse-lhe. Receba-os tambem, se a afeição que os liga a D. Fidelia pode justificar esta participação de desgosto... --Ambos nós sentimos a dor que aflige a nossa boa amiga. Carmo queria ir commigo; eu é que lhe disse que não, que não vá; pode cançal-a muito a viagem assim rapida. Lá vae o Aguiar enfraquecer da alegria do filho com a magua da filha; cá virá convalecer da tristeza da moça com a alegria do rapaz. Tudo se atenua assim neste mundo, e ainda bem. O peor é não serem filhos de verdade, mas só de afeição; é certo que, em falta de outros, consolam-se com estes, e muita vez os de verdade são menos verdadeiros. * * * * * 21 de Junho, á noite. Cá esteve hoje a minha boa mana; ia visitar a gente Aguiar, eu disse-lhe que vá commigo amanhã, e aceitou. * * * * * 23 de Junho. A mana e eu estivemos hontem em casa da boa velha Aguiar. Saí de lá mais cedo do que quizera; se pudesse, ficaria muito mais tempo. Achamo-la entre alegre e triste, se esta expressão pode definir um estado que se não descreve; eu, ao menos, não posso. Recebeu-nos como sempre; ella sabe dar ao gesto e á palavra um afago sem intenção, verdadeiramente delicioso. Quando lhe falámos de Fidelia disse da tristeza da amiga com outra tristeza correspondente, e referiu a partida do marido na manhã de hontem, sem aludir ás obrigações que elle teve de interromper. Não tardou, porém, que lhe perguntassemos pelo afilhado e respondeu com satisfação grande. O resto da visita dividiu-se entre ambos, mas ao rapaz coube a maior parte da conversação, naturalmente por ser mais longa a ausencia, maior a distancia e inesperada a volta. D. Carmo continuou a narração da outra noite, agora mais intima, eramos tres pessoas apenas. Não diria toda a primeira vida do pequeno, o tempo seria pouco, ella mesma o confessou, mas muita cousa principal disse. Era fragil, magrinho, quasi nada, creaturinha de escasso folego. Não disse que se fez mãe; esta senhora não conhece a lingua do proprio louvor, mas eu já sabia, e percebia-se do carinho da narração que devia ser assim mesmo. Rita arriscou esta reflexão rindo: --As creanças não sabem o cuidado que dão, e esquecem depressa o que sabem. --É preciso desculpar a Tristão o que é proprio de rapaz, acudiu D. Carmo. Elle não é mau; esqueceu-se um pouco de nós, mas a idade e a novidade dos espectaculos explicam tudo. A prova é que ahi vem elle ver-nos, e se lêsse as cartas delle... Aguiar não lhe mostrou a ultima? --Não, minha senhora, respondi; disse-me só o que continha. --Talvez não dissesse tudo. Cuido que quizesse mostrar-me as cartas do rapaz, uma só que fosse, ou um trecho, uma linha, mas o temor de enfadar fez calar o desejo. Foi o que me pareceu e deixo aqui escrito. Tornámos á viuva, depois voltámos a Tristão, e ella só passou a terceiro assunto porque a cortezia o mandou; eu, porém, para ir com a alma della, guiei a conversa novamente aos filhos postiços. Era o meu modo de ser cortez, com a boa senhora. Custa-me dizer que saí de lá encantado, mas saí, e mana Rita tambem. Rita disse-me na rua: --Ha poucas creaturas como aquella. --Creio, creio, é excelente... sem desfazer em você. --Eu não, replicou Rita prontamente. Não me acho má, porém estou longe de ser o que ella é. Você repare que tudo naquella senhora é bom, até a opinião, que nem sempre é justa, porque ella perdoa e desculpa a todos. Eu não sou assim; acho muita gente má, e se fôr preciso dizel-o, digo. D. Carmo não é capaz de criticar ninguem. Algum reparo que aceite é sempre explicando; quando menos, calando. * * * * * 24 de Junho. Hontem conversei com a senhora do Aguiar ácerca das antigas noites de S. João, Santo Antonio e S. Pedro, e mais as suas sortes e fogueiras. D. Carmo pegou do assunto para tratar ainda do filho postiço. Leve o diabo tal filho. A filha postiça é que hade estar a esta hora mui triste no cazarão da fazenda, onde certamente passou as antigas noites de S. João de donzela esperançada e credula. A deste anno sem pae deve ser aborrecida, não tendo mãe que o continue, nem marido que os supra. Um tio não basta para tanta cousa. Tambem eu tirei sortes outr'ora. Com pouco se fingia de Destino,-um livro, um rimador de quadras e um par de dados. «Se hade despozar a pessoa a quem ama», dizia o titulo da pagina, por exemplo; deitavam-se os dados, os numeros eram cinco e dous, sete; ia-se á quadra setima, e lia-se. Suponhamos que se lia... Vá, risco a quadra que cheguei a escrever aqui. Geralmente era engraçada,-pelo menos, mas tambem troçava com a pessoa que consultava o Destino. Todos riam; alguns criam deveras; em todo caso passavam-se as horas até chegar o somno. E alli vinha este velho camareiro da humanidade, que os pagãos chamaram Morpheu, e que a pagãos e christãos, e até a incréos fecha os olhos com os seus eternos dedos de chumbo. Agora, meu somno amigo, só tu virás daqui a uma ou duas horas, sem livros de sortes nem dados. Quando muito trarás sonhos, e já não serão os mesmos de outro tempo. * * * * * 27 de Junho. Missa do barão de Santa-Pia em S. Francisco de Paula. O filho do desembargador representava a familia; este e a sobrinha ouviram missa na fazenda. Hade ter sido outra recordação antiga para a viuva. A fazenda tem capela, onde um padre dizia missa aos domingos e confessava pela quaresma. Tambem eu conheci esse costume em pequeno, e ainda me lembra que, na quaresma, eu e outros rapazes iamos esconder-nos do confessor em baixo das camas ou nos desvãos da caza. Já então confundiamos as praticas religiosas com as canceiras da vida, e fugiamos dellas. Entretanto, o padre que me confessou pela primeira vez era meigo, atento, guiava-me a confissão indicando os pecados que devia dizer, e até que ponto, e punha a absolvição na lingua antes que os pecados lhe entrassem pelo ouvido; assim me pareceu. Perdôe-me a sua memoria, se não é verdade. Tudo isso vae longe. A segunda confissão foi por ocasião de cazar. Dahi em diante não fui mais que virtudes. Bastante gente em S. Francisco de Paula. Na sacristia havia folhas de papel onde se inscreveram as pessoas que lá foram, e uma ou outra que não foi mas encomendou o cuidado a um terceiro. Vi magistrados, advogados, pessoas do comercio e do funcionalismo, senhoras, algumas senhoras. Destas eram moças umas, amigas de Fidelia, outras eram velhas do tempo da mãe. Uma destas era a que não faltaria, ainda que lá não fosse ninguem, e só amiga da viuva, a boa Aguiar, naturalmente. Lá estava tambem Rita, que veiu almoçar commigo. Se as missas pudessem ser ditas, segundo a ocasião, eu acharia que o padre ajustou a sua á pouca presença do sangue do morto, tão breve foi, mas não é assim; cada padre diz a missa á sua maneira de sempre, apressada ou vagarosa, conforme usa ler ou falar. * * * * * 30 de Junho. Ora bem, a viuva Noronha mandou uma carta a D. Carmo, documento psicologico, verdadeira pagina da alma. Como elles tiveram a bondade de mostrar-m'a, dispuz-me a achal-a interessante, antes mesmo de a ler, mas á leitura dispensou a intenção; achei-a interessante deveras, disse-o, reli alguns trechos. Não tem frases feitas, nem frases rebuscadas; é simplesmente simples, se tal adverbio vae com tal adjetivo, creio que vae, ao menos para mim. Quatro paginas apenas, não deste papel de cartas que empregamos, mas do antigo papel chamado de peso, marca Bath, que havia na fazenda, a uso do pae. Trata longamente delle e das saudades que ella foi achar lá, das lembranças que lhe acordaram as paredes dos quartos e das salas, as colunas da varanda, as pedras da cisterna, as janellas antigas, a capela rustica. Mucamas e moleques deixados pequenos e encontrados crescidos, livres com a mesma afeição de escravos, tem algumas linhas naquellas memorias de passagem. Entre os fantasmas do passado, o perfil da mãe, ao pé o do pae, e ao longe como ao perto, nas salas como no fundo do coração, o perfil do marido, tão fixo que cheguei a vel-o e me pareceu eterno. Vou reconhecendo que esta moça vale ainda mais do que me parecia a principio. Não é a questão de amar ou não o defunto marido; creio que o ame, sem que essa fidelidade lhe aumente a pureza dos sentimentos. Pode ser obra delle, ou della, ou de ambos a um tempo. O maior valor della está, além da sensação viva e pura que lhe dão as cousas, na concepção e na analise que sabe achar nellas. Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade, mas creio que não. Se fosse nos primeiros dias deste anno, eu poderia dizer que era o pendor de um velho namorado gasto que se comprazia em derreter os olhos atravez do papel e da solidão, mas não é isso; lá vão as ultimas gabolices do temperamento. Agora, quando muito, só me ficaram as tendencias esteticas, e deste ponto de vista, é certo que a viuva ainda me leva os olhos, mas só deante delles. Realmente, é um bello pedaço de gente, com uma dose rara de expressão. A carta, porém, dá a tudo grande nota espiritual. Acredito que D. Carmo sinta essa dama como eu a entendo, mas desta vez o que lhe penetrou mais fundo foi o comprimento final da carta, as tres ultimas palavras, anteriores á derradeira de todas, que é o nome: «da sua filhinha Fidelia.» Percebi isto, vendo que ella desceu os olhos ao fim do papel tres ou quatro vezes, sem querer acabar de o dobrar e guardar. * * * * * 1 de julho. Tambem ha ventanias de felicidade, que levam tudo adeante de si. A gente Aguiar recebeu hontem a carta de Fidelia, e hoje outra de Tristão, em que este lhe annuncia que embarca no paquete inglez para cá; deve chegar a 23 ou 24. A alegria com que elles leram esta noticia foi naturalmente grande; por quanto Fidelia cá está e diz-se filha da boa velha; Tristão ahi vem e annuncia que esta carta é a ultima; a seguinte é elle proprio. Tudo isso a um tempo. Preparam-lhe alojamento em casa. Aguiar anda tão satisfeito que, contra os seus habitos de discrição, já me disse ter em vista a mobilia do quarto que lhe destinam; é simples e elegante. Provavelmente a mulher começará já a obra dos seus ornamentos de lã e de linho para as cadeiras e a meza. Isto não foi elle que me disse nem ninguem; eu é que o adivinho e escrevo aqui para mostrar a mim mesmo o que é facil de ver. Para a boa Carmo, bordar, cozer, trabalhar, emfim, é um modo de amar que ella tem. Tece com o coração. É regra velha, creio eu, ou fica sendo nova, que só se faz bem o que se faz com amor. Tem ar de velha, tão justa e vulgar parece. Dahi a perfeição daquellas suas obras domesticas. Será como dormir ou transpirar. Não lhe tiro com isto o merito; por maior que seja a necessidade, não é menor a virtude. Tambem eu fiz a minha diplomacia com amor, e ouvi a ministros que bem, mas no meu caso (distingamos-nos da velha Aguiar) não bastou amor nem necessidade; se não fosse carreira é provável que eu acabasse juiz, banqueiro ou outra cousa. * * * * * 2 de Julho. O que ouvi dizer hontem a Aguiar foi no Banco do Sul, aonde tinha ido depozitar umas apolices. Esqueceu-me escrever que, á saida, perto da egreja da Candelaria, encontrei o desembargador Campos; tinha chegado de Santa-Pia ante-hontem, á noite, e ia ao Banco levar recados da sobrinha para o Aguiar e para a mulher. Perguntei-lhe se Fidelia ficava lá de vez; respondeu-me que não. --Ficar de vez, não fica; demora-se algumas semanas, depois virá e provavelmente transfere a fazenda; acho que não faz mal. Ficaria, segundo me disse, se fosse util, mas parece-lhe que a lavoura decae, e não se sente com forças para sustel-a. Dahi a ideia de vender tudo, e vir morar commigo. Se ficasse tinha geito. Ella mesma tomou contas a todos, e ordenou o serviço. Tem ação, tem vontade, tem espirito de ordem. Os libertos estão bem no trabalho. Conversámos um pouco dos efeitos da abolição, e despedimo-nos. * * * * * 5 de Julho. Obrigado pela palavra a ir passar a noite com o corretor Miranda, lá fui hoje. Veiu mais gordo da Europa, onde só esteve alguns mezes; é o mesmo impetuoso de sempre, mas bom sujeito e excelente marido. Nada novo, a não ser um jogo, parece que inventado nos Estados-Unidos e que elle aprendeu a bordo. No meu tempo não se conhecia. Chama-se _poker_ eu trouxe o _whist_, que ainda jogo, e peguei no meu velho voltarete. Parece que o _poker_ vae derribar tudo. Na casa do Miranda até a senhora deste jogou. As filhas não jogaram, nem a cunhada, D. Cesaria, que não acha recreação nas cartas; confessou (rindo) que é muito melhor dizer mal da vida alheia, e não o faz sem graça. Justamente o que falta ao marido, a quem sobra o resto. Cuidei que os dous estivessem brigados com o corretor, não formalmente, porque D. Cesaria não briga nunca, arrufa-se apenas; cuidei que estivessem arrufados com o corretor, quando este e a familia embarcaram. Estivessem ou não, a volta os reconciliou. É uma das prendas desta senhora. Talvez tivesse dito mal da propria irmã ou do cunhado, mas tão habilmente se arranjou que os achei unidissimos. Não sei o que ella dirá de mim, eu acho-lhe interesse, e preferi-lhe a lingua ao _poker_; com a lingua não se perde dinheiro. Como se falasse da morte do barão de Santa-Pia e da situação da filha, D. Cesaria perguntou se ella realmente não cazava. Parece que duvida da viuvez de Fidelia. Eu não lhe disse que já pensara o mesmo, nem lhe disse nada; não quiz trazer a outra á conversação e fiz bem. D. Cesaria aceitou dahi a pouco a hipothese da viuvez perpetua, por não achar graça á viuva, nem vida, nem maneiras, nada, cousa nenhuma; parece-lhe uma defunta. Eu sorri como devia, e fui ouvir a explicação que me davam de um _bluff._ No _poker_, _bluff_ é uma especie de conto do vigário. * * * * * 13 de Julho. Sete dias sem uma nota, um facto, uma reflexão; posso dizer oito dias, porque tambem hoje não tenho que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada. * * * * * 18 de Julho. Tristão chegou a Pernambuco; esperam por elle a 23. * * * * * 20 de Julho. Chegou á Bahia o afilhado dos Aguiares. Creio que elles lhe darão festa de recepção, ainda que modesta. A ultima fotografia foi mandada encaixilhar e pendurar. É um bello rapaz, e a atitude do retrato tem certo ar de petulancia que lhe não fica mal, ao contrario. * * * * * 25 de Julho. Já aqui chegou o Tristão. Não o vi ainda; tambem não tenho saido de caza estes tres dias. Entre outras cousas, estive a rasgar cartas velhas. As cartas velhas são boas, mas estando eu velho tambem, e não tendo a quem deixar as que me restam, o melhor é rasgal-as. Fiquei só com oito ou dez para reler algum dia e dar-lhes o mesmo fim. Nenhuma dellas vale uma só das de Plinio, mas a todas posso aplicar o que elle escrevia a Apollinario: «teremos ambos o mesmo gosto, tu em ler o que digo, e eu em dizel-o.» Os meus Apollinarios estão mortos ou velhos; as Apollinarias tambem. * * * * * 27 de Julho. Vi hoje o Tristão descendo a rua do Ouvidor com o Aguiar; adivinhei-o por este e pelo retrato. Trazia no vestuario alguma cousa que, apezar de não diferir da moda, cá e lá, lhe põe certo geito particular e proprio. Aguiar aprezentou-nos. Tristão falou-me polidamente, e com tal ou qual curiosidade, não ouso dizer interesse. Naturalmente já ouviu falar de mim em casa delles. Cinco minutos de conversação apenas,-o bastante para me dizer que está encantado com o que tem visto. Creio que seja assim, porque eu amo a minha terra, apezar das ruas estreitas e velhas; mas tambem eu desembarquei em terras alheias, e usei igual estilo. Entretanto, esta cidade é a delle, e, como eu lhe dissesse que não devera ter esquecido o Rio de Janeiro, donde saíra adolescente, respondeu que era assim mesmo, não esquecera nada. O encanto vinha justamente da sensação de cousas vistas, uma resurreição que era continuidade, se assim resumo o que elle me disse em vocábulos mais simples que estes. Cinco minutos e despedimo-nos. É uma bonita figura. A palavra forte, sem ser aspera. Os olhos vives e lepidos, mas talvez a brevidade do encontro e da aprezentação os obrigasse a essa expressão unica; possivelmente os terá de outra maneira alguma vez. É antes alto que baixo, e não magro. A certa distancia, ia eu a voltar a cabeça para vel-o ainda, mas recuei a tempo; seria indiscreto e apressado, e talvez não valesse a pena. Irei uma destas noites ao Flamengo. Ha já tres semanas que não apareço lá. * * * * * 28 de Julho. Não duvido que o Tristão visse com prazer o Rio de Janeiro. Quaesquer que sejam os costumes novos e ligações de familia, e por maior que tenha sido a ausencia, o logar onde alguem passou os primeiros annos hade dizer á memoria e ao coração uma linguagem particular. Creio que elle esteja realmente encantado, como me disse hontem. Demais, lá fora ouvia a mesma lingua daqui; a mãe é a mesma paulista que o gerou e levou comsigo, e está agora em Lisboa, com o pae, ambos velhos. Eu nunca esqueci cousas que só vi em menino. Ainda agora vejo dous sujeitos barbados que jogavam o entrudo, teria eu cinco annos; era com bacias de madeira ou de metal, ficaram inteiramente molhados e foram pingando para as suas cazas. Só não me acode onde ellas eram. Outra cousa que igualmente me lembra, apezar de tantos annos passados, é o namoro de uma visinha e de um rapaz. Ella morava defronte, era magrinha e chamava-se Flor. Elle tambem era magro e não tinha nome conhecido; só lhe sabia a cara e a figura. Vinha ás tardes e passava tres, quatro, cinco e mais vezes de uma ponta á outra da rua. Uma noite ouvimos gritos. Na manhã seguinte ouvi dizer que o pae da moça mandára dar por escravos uma sova de páu no namorado. Dias depois foi este recrutado para o exercito, dizem que por empenho do pae da moça; alguns creram que a sova fôra um simples desforço eleitoral. Tudo é um; amor ou eleições, não falta materia ás discordias humanas. Que valem taes ocurrencias agora, neste anno de 1888? Que pode valer a loja de um barbeiro que eu via por esse tempo, com sanguesugas á porta, dentro de um grosso frasco de vidro com agua e não sei que massa? Ha muito que se não deitam bichas a doentes; ellas, porém, cá estão no meu cerebro, abaixo e acima, como nos vidros. Era negocio dos barbeiros e dos farmaceuticos, creio; a sangria é que era só dos barbeiros. Tambem já se não sangra pessoa nenhuma. Costumes e instituições, tudo perece. * * * * * 31 de Julho. Tem agradado muito o Tristão, e para crer que o merece basta dizer que a mim não me desagrada, ao contrario. É ameno, conversado, atento, sem afetação nem presunção; fala ponderado e modesto, e explica-se bem. Ainda lhe não ouvi grandes cousas, nem estas são precisas a quem chega de fóra e vive em familia; as que lhe ouvi são interessantes. No vestido e nas maneiras usa o tom da conversa; a mesma correção e simplicidade. O encanto que outro dia me disse achar na cidade continua a achar nella e na gente; reconhece ruas, cazas, costumes e pessoas; pergunta por muitas destas e interessa-se em ouvir as noticias que lhe dão. Algumas reconhece logo, outras com pouca explicação. Emfim, não é mau rapaz. Para a gente Aguiar é mais que excelente. Essa está tanto ou mais encantada que elle; nestes poucos dias já o levou a differentes partes. O desembargador Campos, que lá jantou hontem, disse-me que D. Carmo estava que era uma creança; quasi que não tirava os olhos de cima do afilhado. Tristão conhece musica, e á noite, a pedido della, executou ao piano um pedaço de Wagner, que elle achou muito bem. Alem do Campos, jantou lá um padre Bessa, o que batizou Tristão. Não era habituado do Flamengo este padre; foi o proprio Tristão que o descobriu, de maneira que merece notar. Perguntou por elle, e, ao cabo de dous dias, sabendo que residia na Praia Formosa, dispoz-se a lá ir, depois de recusar ao padrinho a companhia que este lhe ofereceu. --Quero ir eu só, replicou, para lhe mostrar que não desaprendi a minha cidade. E lá foi, e lá andou, e lá descobriu o padre, dentro de uma cazinha-baixa. Bessa, que fora comensal dos paes delle, não o conheceu logo, mas ás primeiras noticias recompoz o passado e adivinhou o menino a quem dera batismo. Aguiar fel-o convidar e vir á caza delle, a ver o moço e visital-o, sempre que quizesse. É uma boa figura de velho e de sacerdote, disse-me o desembargador, calvo bastante, cara magra, e expressão placida, apezar das miserias que terá cortido; chega a ser alegre. * * * * * 1 de Agosto. O desembargador deu-me tambem noticia da sobrinha. Está boa e virá brevemente da fazenda. Contou-lhe em carta um sonho que teve ultimamente, a aparição do pae e do sogro, ao fundo de uma enseada parecida com a do Rio de Janeiro. Vieram as duas figuras sobre a agua, de mãos dadas, até que pararam deante della, na praia. A morte os reconciliára para nunca mais se desunirem; reconheciam agora que toda a hostilidade deste mundo não vale nada, nem a politica nem outra qualquer. Quiz replicar ao desembargador que talvez a sobrinha tivesse ouvido mal. A reconciliação eterna, entre dous adversarios eleitoraes, devia ser exatamente um castigo infinito. Não conheço igual na _Divina Comedia._ Deus, quando quer ser Dante, é maior que Dante. Recuei a tempo e calei a facecia; era rir da tristeza da moça. Pedi mais noticias della, e elle deu-m'as; a principal é que está cada vez mais firme na ideia de vender Santa-Pia. * * * * * 2 de Agosto. Aguiar mostrou-me uma carta de Fidelia a D. Carmo. Letra rasgada e firme, estilo correntio, linguagem terna; promete-lhes vir para a Corte logo que possa e será breve. Estou cançado de ouvir que ella vem, mas ainda me não cancei de o escrever nestas paginas de vadiação. Chamo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este _Memorial_ um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensado, dão a mesma cousa. Vadiação é bom costume. A carta de Fidelia começa por estas tres palavras: «Minha querida mãesinha», que deixaram D. Carmo morta de ternura e de saudades; foi a propria expressão do marido. Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda apenas de dono. * * * * * 3 de Agosto. Hoje fazia annos o ministerio Ferraz, e quem já pensa nelle nem nos homens que o compunham e lá vão, uns na morte, outros na velhice ou na inação? Foi elle que me promoveu a secretario de legação, sem que eu lh'o pedisse e até com espanto meu. Dizendo isto ao Aguiar, ouvi-lhe anedotas politicas daquelle tempo (1859-1861), contadas com animação, mas saudade. Aguiar não tem costela de homem publico; todo elle é familia, todo espozo, e agora tambem filhos, os dous filhos postiços,-Tristão mais que Fidelia, pela razão que penso haver já dito. Confirmou-me as boas impressões do desembargador, e concluiu: --Conselheiro, já falou ao nosso Tristão, já o ouviu, e creio aprecial-o, mas eu dezejo que o conheça mais para aprecial-o melhor. Elle fala da sua pessoa com grande respeito e admiração. Diz que um dia o viu em Bruxellas, e estava longe de crer que viria achal-o e falar-lhe aqui. --Já me disse isso mesmo. Acho que é um moço muito distinto. --Não é? Tambem nós achamos, e outras pessoas tambem. Não lhe pedi que me contasse a vida delle lá, mas conversei de maneira que elle me foi dizendo muita cousa, os estudos, as viagens, as relações; pode ser que invente ou exagere, mas creio que não; tudo o que nos disse é verosimil e combina com o que vimos delle aqui, e tambem do compadre e da comadre. Se pudessemos ficar com elle de uma vez, ficavamos. Não podemos; Tristão veiu apenas por quatro mezes; a nosso pedido vae ficar mais dous. Mas eu ainda verei se posso retel-o oito ou dez. --Veiu só para visital-os? --Diz que só. Talvez o pae aproveitasse a vinda para encarregal-o de algum negocio; apezar de liquidado, ainda tem interesses aqui; não lhe perguntei por isso. --Pois veja se o faz ficar mais tempo; elle acabará ficando de vez. * * * * * 4 de Agosto. Indo a entrar na barça de Nicterohy, quem é que encontrei encostado á amurada? Tristão, ninguem menos, Tristão que olhava para o lado da barra, como se estivesse com desejo de abrir por ella fóra e sair para a Europa. Foi o que eu lhe disse, gracejando, mas elle acudiu que não. --Estou a admirar estas nossas bellezas, explicou. --Deste outro lado são maiores. --São iguaes, emendou. Já as mirei todas, e do pouco que vi lá fora é ainda o que acho mais magnifico no mundo. O assunto era velho e bom para atar conversa; aproveitamol-o e chegamos ao desembarque, depois de trocadas muitas ideias e impressões. Confesso que as minhas não eram mais novas que o assunto inicial, e eram curtas, as d'elle tinham sobre ellas a vantagem de evocações e narrativas. Não estou para escrever tudo o que lhe ouvi ácerca dos annos de infancia e adolescencia, nem dos de mocidade passados na Europa. Foi interessante, de certo, e parece que sincero e exacto, mas foi longo, por mais curta que fosse a viagem da barca. Emfim, chegámos á Praia-Grande. Quando eu lhe disse que preferia este nome popular ao nome oficial, administrativo e politico de Nicterohy, dissentiu de mim. Repliquei-lhe que a razão do dissentimento vinha de ser eu velho e elle moço. «Criei-me com a Praia-Grande; quando o senhor nasceu a chrisma de Nicterohy pegára.» Não havia nisto agudeza alguma; elle, porém, sorriu como achando fina a resposta, e disse-me: --Não ha velhice para um espirito como o seu. --Acha? perguntei incredulamente. --Já meus padrinhos m'o haviam dito, e eu reconheço que diziam a verdade. Agradeci de cabeça, e, estendendo-lhe a mão: --Vou ao palacio da presidencia. Até á volta, se nos encontrar-mos. Uma hora depois, quando eu chegava á ponte, lá o achei. Imaginei que esperasse por mim, mas nem me cabia perguntar-lh'o, nem talvez a elle dizel-o. A barca vinha perto, chegou, atracou, entrámos. Na viagem de regresso tive uma noticia que não sabia; Tristão, alcunhado _brazileiro_ em Lisboa, como outros da propria terra, que voltam daqui, é portuguez naturalisado. --Aguiar sabe? --Sabe. O que elle ainda não sabe, mas vae saber, é que nas vesperas de partir aceitei a proposta de entrar na politica, e vou ser eleito deputado ás cortes no anno que vem. Não fosse isso, e eu cá ficava com elle; iria buscar meu pae e minha mãe. Sei que elle me hade querer dissuadir do plano; meu padrinho não gosta de politica, menos ainda de politica militante, mas eu estou obrigado pelo gosto que lhe tenho e pelo acordo a que cheguei com os chefes do partido. Escrevi algum tempo n'um jornal de Lisboa, e dizem que não inteiramente mal. Tambem falei em comicios. --Elles querem-lhe muito. --Sei, muito, como a um filho. --Tem tambem uma filha de afeição. --Tambem sei, uma viuva, filha de um fazendeiro que morreu ha pouco. Já me falaram della. Vi-lhe o retrato encaixilhado pelas mãos da madrinha. Se conhece bem a madrinha, hade saber o coração terno que tem. Toda ella é maternidade. Aos proprios animaes estende a simpatia. Nunca lhe falaram de um terceiro filho que tiveram, e ella amava muito? --Creio que não; não me lembra. --Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lh'o um dia, com poucos mezes de existencia, e ambos entraram a gostar delle. Não lhe conto o que a madrinha fazia por elle, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia credito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze annos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lagrimas. Quando entrar no jardim, á esquerda, ao pé do muro, olhe, foi ahi que o enterraram; e já me não lembrava, a madrinha é que m'o apontou hontem. Não me soube grandemente essa aliança de gerente de banco e pae de cachorro. É verdade que o proprio Tristão dá a maior parte á madrinha, que é mulher. Com a pratica dos dias anteriores e estas duas viagens de barca, sinto-me meio habilitado a possuir bem aquelle moço. Só lhe ouvi meia duzia de palavras algo parecidas com louvor proprio, e ainda assim moderado. «Dizem que não escrevo inteiramente mal» encobrirá a convicção de que escreve bem, mas não o disse, e pode ser verdade. * * * * * 7 de Agosto. D. Carmo foi a Nova-Friburgo com o afilhado para lhe mostrar novamente a cidade em que nasceu, creio que tambem a rua, e parece que a propria caza. Tudo está velho e quieto, dizem-me. Isto vae com os habitos della, que sabe e gosta de guardar os velhos retalhos e lembranças antigas, como que lhe dando um ar perpetuo de mocidade. Tristão, não tendo aliás o mesmo interesse, mostrou prazer em a acompanhar. Toda a gente continua a gostar delle, Campos mais que outros, pois o conheceu menino. Mana Rita é que apenas o viu; tem estado adoentada, levantou-se ante-hontem; só hontem soube disso, e fui visital-a. Contei-lhe o que havia daquella caza e da caza do desembargador; dei-lhe vontade de vir tambem á gente Aguiar, quando os dous voltarem de Nova-Friburgo. * * * * * 10 de Agosto. Meu velho Ayres, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o ministerio Ferraz, que é de 10? Hoje é que elle faria annos, meu velho Ayres. Vês que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou trocarias tudo. Fidelia chega da Parahyba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar tristes; sabendo que ella transfere a fazenda pediram-lhe que não, que a não vendesse, ou que os trouxesse a todos comsigo. Eis ahi o que é ser formosa e ter o dom de cativar. Desse outro cativeiro não ha cartas nem leis que libertem; são vinculos perpetuos e divinos. Tinha graça vel-a chegar á Corte com os libertos atraz de si, e para quê, e como sustental-os? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres sujeitos que elles precisam trabalhar, e aqui não teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não torne á roça, recomendal-os ao novo dono da propriedade. * * * * * 11 de Agosto. Recebi hoje um bilhete de Tristão, escrito de Nova-Friburgo, no qual me diz que está muito satisfeito com o que vê e o que ouve; reconheceu a cidade, que é encantadora com a sua gente. A companheira de viagem ainda o é mais que a gente e a cidade. Copio estas palavras do bilhete: «A madrinha ou mãesinha,-não sei bem qual dos nomes lhe dê, ambos são exactos,-é aqui muito querida e festejada, não só por duas amigas velhas que lhe restam dos tempos de creança, mas ainda por outras que conheceu depois de cazada, parentas daquellas ou somente amigas tambem. Gosto do logar e do clima; a temperatura é excelente; ficaremos uns tres dias mais.» Não ha nessa carta nada que não pudesse ser dito na volta, uma vez que elle desce daqui a tres dias. Creio que elle cedeu ao desejo de ser lido por mim e de me ler tambem. Questão de simpatia, questão de arrastamento. Vou responder-lhe com duas linhas... ... Lá vae a carta; respondi-lhe com trinta e tantas linhas, dizendo-lhe cousas que busquei fazer alegres, e com certeza sairam quasi amigas. Concordei que Nova-Friburgo era delicioso, e conclui por estas palavras: «Quando descer venha almoçar commigo; falaremos de lá e de cá.» * * * * * 17 de Agosto. Fidelia chegou, Tristão e a madrinha chegaram, tudo chegou; eu mesmo cheguei a mim mesmo,-por outras palavras, estou reconciliado com as minhas cans. Os olhos que puz na viuva Noronha foram de admiração pura, sem a minima intenção de outra especie, como nos primeiros dias deste anno. Verdade é que já então citava eu o verso de Shelley, mas uma cousa é citar versos, outra é crer nelles. Eu li ha pouco um soneto verdadeiramente pio de um rapaz sem religião, mas necessitado de agradar a um tio religioso e abastado. Pois ainda que eu não desse então toda a fé ao poeta inglez, dou-lh'a agora, e aqui a dou de novo para mim. A admiração basta. * * * * * 19 de Agosto. Tristão veiu almoçar commigo. A primeira parte do almoço foi a gloza da carta que elle me escreveu. Contou-me que já em creança tinha ido com a madrinha a Nova Friburgo algumas vezes, parece-lhe que tres; reconheceu a cidade agora e gostou muito della. De D. Carmo fala entusiasmado; diz que a afeição, o carinho, a bondade, tudo faz della uma creatura particular e rara, por ser tudo de especie tambem rara e particular. Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou que as impressões da nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a infancia e a adolescencia. O fim do almoço foi com o naturalizado e o politico. A politica parece ser grande necessidade para este moço. Estendeu-se bastante sobre a marcha das cousas publicas em Portugal e na Hespanha; confiou-me as suas ideias e ambições de homem de Estado. Não disse formalmente estas tres palavras ultimas, mas todas as que empregou vinham a dar nellas. Emfim, ainda que pareça algo excessivo, não perde o interesse e fala com graça. Antes de sair, tornou a dizer do Rio de Janeiro, e tambem falou do Recife e da Bahia; mas o Rio foi o principal assunto. --A gente não esquece nunca a terra em que nasceu, concluiu elle com um suspiro. Talvez o intuito fosse compensar a naturalização que adotou,-um modo de se dizer ainda brazileiro. Eu fui ao deante delle, afirmando que a adoção de uma nacionalidade é acto politico, e muita vez pode ser dever humano, que não faz perder o sentimento de origem, nem a memoria do berço. Usei taes palavras que o encantaram, se não foi talvez o tom que lhes dei, e um sorriso meu particular. Ou foi tudo. A verdade é que o vi aprovar de cabeça repetidas vezes, e o aperto de mão, á despedida, foi longo e fortissimo. Ate aqui um pouco de fel. Agora um pouco de justiça. A idade, a companhia dos paes, que lá vivem, a pratica dos rapazes do curso medico, a mesma lingua, os mesmos costumes, tudo explica bem a adoção da nova patria. Acrescento-lhe a carreira politica, a visão do poder, o clamor da fama, as primeiras provas de uma pagina da historia, lidas já de longe por elle, e acho natural e facil que Tristão trocasse uma terra por outra. Ponho-lhe, emfim, um coração bom, e comprehendo as saudades que a terra de cá lhe desperta, sem quebra dos novos vinculos travados. * * * * * 21 de Agosto. Ante-hontem fui deixar um bilhete de visita a Fidelia; hontem, a convite do tio, que me encontrou na rua, fui tomar chá com ambos. Naturalmente conversámos do defunto. Fidelia narrou tudo o que viu e sentiu nos ultimos dias do pae, e foi muito. Não falou da separação trazida pelo cazamento, era assunto velho e acabado. A culpa, se houve então culpa, foi de ambos, ella por amar a outro, elle por querer mal ao escolhido. Eu é que digo isto, não ella, que em sua tristeza de filha conserva a de viuva, e se houvesse de escolher outra vez entre o pae e o marido, iria para o marido. Tambem falou da fazenda e dos libertos, mas vendo que o assunto era já demasiado pessoal, mudou de conversa, e cuidámos da cidade e das ocurrencias do dia. Pouco depois chegaram D. Cesaria e o marido, o doutor Faria, que vinham tambem visital-a. A expansão com que D. Cesaria falou a Fidelia e lhe deu o beijo da entrada compensou, a meu ver, o dente que lhe meteu ha dias em casa do corretor Miranda. Daquella vez, apezar da graça com que falou, não gostei de a ver morder a viuva; agora tudo está pago. Repito o que lá digo atraz: esta senhora é muito mais graciosa que o marido. Nem precisa muito; elle o mal que diz dos outros dil-o mal, ella é sempre interessante. D. Cesaria pagou tudo. Não é que as palavras que empregou hontem deem muito de si, como louvor e amizade, mas a expressão dos olhos, o ar admirativo e aprovador, um sorriso teimoso, quasi constante, tudo isso valia por um capital de afecto. Papel moeda tambem é dinheiro. Com elle comprei esta tinta e esta penna, o charuto que estou fumando e o almoço que começo a digerir. As duas senhoras não sofrem comparação entre si, e para conversar, D. Cesaria basta e sobra. Eu conheci na vida algumas dessas pessoas capazes de dar interesse a um tedio e movimento a um defunto; enchem tudo comsigo. Fidelia parece ter-lhe simpatia e ouvil-a com prazer. A noite foi boa. Ia-me esquecendo uma cousa. Fidelia mandou encaixilhar juntas as fotografias do pae e do marido, e pol-as na sala. Não o fez nunca em vida do barão para respeitar os sentimentos deste; agora que a morte os reconciliou, quer reconcilial-os em efigie. Foi ella mesma que me deu esta explicação, quando eu olhava para elles. Não me admira a delicadeza de outr'ora, nem a resolução de agora; tudo responde á mesma harmonia moral da pessoa. Quando eu disse isto cá fora ao cazal Faria (saimos juntos), o marido torceu o nariz. Não lhe vi o gesto, mas elle proferiu uma palavra que implica o gesto; foi esta: «Afetação!» Quiz replicar-lhe que não podia havel-a em acto tão intimo e particular, mas a tempo encolhi a lingua. D. Cesaria não aprovou nem reprovou o dito; ponderou apenas que o gaz estava muito escuro. Notei para mim que estava clarissimo, e que provavelmente ella não achara mais pronto desvio á conversação. Faria aproveitou o reparo da espoza para dizer o mal que pensa da companhia do gaz e do governo, e chamou ladrão ao fiscal. Eram onze horas. * * * * * 21 de Agosto, cinco horas da tarde. Não quero acabar o dia de hoje sem escrever que tenho os olhos cançados, acaso doentes, e não sei se continuarei este diario de factos, impressões e ideias. Talvez seja melhor parar. Velhice quer descanço. Bastam já as cartas que escrevo em resposta e outras mais, e ainda ha poucos dias um trabalho que me encomendaram da secretaria de Estranjeiros,-felizmente acabado. * * * * * 24 de Agosto. Qual! não posso interromper o _Memorial_; aqui me tenho outra vez com a penna na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memoria ou da reflexão. Venhamos novamente á notação dos dias. Desta vez o que me põe a penna na mão é a sombra da sombra de uma lagrima... Creio tel-a visto ante-hontem (22) na palpebra de Fidelia, referindo-me eu á dissidencia do pae e do marido. Não quizera agora lembrar-me della, nem tel-a visto ou sequer suspeitado. Não gosto de lagrimas, ainda em olhos de mulheres, sejam ou não bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tedio aos fracos. Ao cabo, as mulheres são menos fracas que os homens,-ou mais pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade... Ahi está; tinha resolvido não escrever mais, e lá vae uma pagina com a sombra da sombra de um assunto. Tambem, se foi verdadeiramente lagrima, foi tão passageira que, quando dei por ella, já não existia. Tudo é fugaz neste mundo. Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro _Ecclesiastes_, á moderna, posto nada deva haver moderno depois daquelle livro. Já dizia elle que nada era novo debaixo do sol, e se o não era então, não o foi nem será nunca mais. Tudo é assim contraditorio e vago tambem. * * * * * 27 de Agosto. A alegria do cazal Aguiar é cousa manifesta. Marido e mulher andam a inventar ocasiões e maneiras de viver com os dous e com alguns amigos, entre os quaes parece que me contam. Jantam, passeiam, e se não projetam bailes é porque os não amam de si mesmos, mas se Fidelia e Trintão os quizessem, estou que elles os dariam. A verdade, porém, é que os dous hospedes não chegaram a tal ponto, mormente Fidelia que se contenta de conversar e sorrir; não vae a teatros, nem a festas publicas. Os passeios são recatados pela hora e pelos logares. Ou vão as duas sós, ou se elles vão tambem, trocam-se ás vezes, dando Aguiar o braço a Fidelia, e D. Carmo aceitando o de Tristão. Assim os encontrei ha dias na rua de Ipiranga, eram cinco horas da tarde. Os dous velhos pareciam ter certo orgulho na felicidade. Ella dizia com os olhos e um riso bom que lhe fazia luzir a pontinha dos dentes toda a gloria daquelle filho que o não era, aquelle filho morto e redivivo, e o rapaz era atenção e gosto tambem. Quanto ao velho não ostentava menos a sua delicia. Fidelia é que não publicava nada; sorria, é certo, mas pouco e cabisbaixa. E lá foram andando, sem darem por mim, que vinha pela calçada oposta. * * * * * 31 de Agosto. Como eu ainda gosto de musica! A noite passada, em casa do Aguiar, eramos algumas pessoas... Treze! Só agora, ao contar de memoria os presentes, vejo que eramos treze; ninguem deu então por este numero, nem na sala, nem á meza do chá de familia. Conversámos de cousas varias, até que Tristão tocou um pouco de Mozart, ao piano, a pedido da madrinha. A execução veiu por que faiamos tambem de musica, assunto em que a viuva acompanhou o recem-chegado com tal gosto e discrição, que elle acabou pedindo-lhe que tocasse tambem. Fidelia recusou modestamente, elle insistiu, D. Carmo reforçou o pedido do afilhado, e assim o marido; Fidelia acabou cedendo, e tocou um pequeno trecho, uma reminiscencia de Schumann. Todos gostámos muito. Tristão voltou ainda uma vez ao piano, e pareceram apreciar os talentos um do outro. Eu saí encantado de ambos. A musica veiu commigo, não querendo que eu dormisse. Cheguei cedo a caza, onze horas, e só perto de uma comecei a conciliar o somno; todo o tempo da rua, da caza e da cama foi consumido em repetir trechos e trechos que ouvira na minha vida. A musica foi sempre uma das minhas inclinações, e, se não fosse temer o poetico e acaso o patetico, diria que é hoje uma das saudades. Se a tivesse aprendido, tocaria agora ou comporia, quem sabe? Não me quiz dar a ella, por causa do oficio diplomatico, e foi um erro. A diplomacia que exerci em minha vida era antes função decorativa que outra cousa; não fiz tratados de comercio nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar-me ás melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos outros. Ha dous ou tres mezes ouvi dizer a Fidelia que nunca mais tocaria, tendo desde muito suspendido o exercicio da musica. Repliquei-lhe então que um dia, a sós comsigo, tocaria para recordar, e a recordação traria o exercicio outra vez. Hontem bastaram as instancias da gente Aguiar para mover uma vontade já disposta, ao que parece. O exemplo de Tristão ajudou-a a sair do silencio. Repito que saí de lá encantado de ambos. Quem sabe se a esta hora (dez e meia da manhã) não estará ella em caza, com espanto da familia e da visinhança, deante do piano aberto, a começar alguma cousa que não toca ha muito? --Não é possível! --Nhanhã Fidelia! --A viuva Noronha! --Hade ser alguma amiga. E as mãos della irão falando, pensando, vivendo aquellas notas que a memoria humana guarda impressas. Provavelmente tocará como hontem, sem musica, de cór, na ponta dos dedos... Seis horas da tarde. Antes de ir para a meza, escrevo a confirmação de que conjeturei de manhã; Fidelia efectivamente acordou os ecos da casa e da rua. Contou-m'o ha pouco o proprio desembargador Campos. A diferença é que não foi ás dez horas e meia, mas ás sete. Campos estava ainda na cama, quando ouviu os primeiros acordes de uma composição conhecida, parece que italiana. Não chegou a crer que fosse ella, mas não podia ser outra pessoa. Um creado, chamado por elle, veiu dizer-lhe que sim, que era ella mesma. Tocou algum tempo. Quando elle entrou na sala, tinha acabado, mas estava ainda ao piano, ante um folheto de musicas aberto, a soletrar para si. --Que é isto? perguntou-lhe. --Ouviu tocar? disse ella fazendo rodar o banco. --Ouvi. --Creio que desaprendi alguma cousa; sinto os dedos um pouco tolhidos, já os senti assim hontem, a composição é que me não esqueceu. --Mas que resurreição é esta? --Cousas de defunta, respondeu ella querendo sorrir. Posto não seja grande apreciador de musica, o desembargador parece satisfeito daquella resurreição, como lhe chama. Tudo é viver com mais ou menos barulho, disse elle. Confessou-me que a tristeza da sobrinha o aflige muita vez, e a não leval-a a bailes ou teatros, contentava-se de a ver tocar em caza, e até cantar se quizesse; Fidelia tambem sabe cantar, tem muita arte e linda voz. Mas até agora não queria uma cousa nem outra. Não é que não encha a caza comsigo mesma, sem musica; a musica, porém, era uma das suas ocupações de outrora, e a abstenção datada viuvez. Quiz ponderar ao desembargador que o exercicio da musica podia conciliar-se muito bem com o estado, uma vez que a arte é tambem lingua, mas tudo isso me passou rapido pela cabeça. Era acaso poetico para um magistrado, sem contar que podia ser indiscreto tambem. Contentei-me de aceitar o convite que elle me fez de ir ouvil-a, em casa delle, hoje, amanhã, depois, quando queira. --Uma destas noites, concordei. Por emquanto, vou jantar. Creio que não saio mais hoje; mas que heide fazer com estes pobres olhos? Ler é peoral-os; ah! se eu soubesse musica! Pegava do violino, trancava bem as portas para não ser ouvido da visinhança, e deixava-me ir atraz do arco. Talvez saia a passeio... * * * * * 2 de Setembro. Anniversario da batalha de Sedan. Talvez vá á casa do desembargador pedir a Fidelia que, em comemoração da victoria prussiana, nos dê um pedaço de Wagner. * * * * * 3 de Setembro. Nem Wagner, nem outro. Tristão estava lá e deu-nos um trecho de _Tannhauser_, mas a viuva Noronha recusou o pedido. Supondo que fosse luto pela lembrança da derrota franceza, pedi-lhe um autor francez qualquer, antigo ou moderno, posto que a arte,-disse-lhe com alguma afectação,-naturaliza a todos na mesma patria superior. Sorriu e não tocou; tinha um pouco de dor de cabeça. Aguiar e Carmo, que lá estavam tambem, não me acompanharam no pedido, como «se lhes doesse a cabeça da amiga.» Outra preciosidade de estilo, esta renovada de Sevigné. Emenda essa lingua, velho diplomata! A razão verdadeira da recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra qualquer parte. Quer-me parecer que Fidelia vae um tanto commigo, e tocaria para si, caso estivesse só. Naquella outra noite, em casa do Aguiar, deixou-se arrastar e tocar para as doze pessoas que lá estavam, levada do sobresalto, de um acordar do gosto antigo; agora abana a cabeça, não quer divertir os outros. Tocará para o tio, de manhã, e para si durante as horas de desembargo. Quando muito satisfará os dous paes postiços, alguma vez. Signal de que não tinha dor de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo. Não digo que a musica não tenha o dom de fazer esquecer um mal fisico, mas desconfio que não foi assim neste caso. Os dous conversaram de Wagner e de outros autores, com interesse, e provavelmente com acerto. Eu falei tambem o meu pouco; depois atendi ao que me disse Aguiar, ácerca de Tristão. --Parece que vem liquidar tambem alguns negocios do pae; soube hoje por elle mesmo. Deus queira que não acabe tão cedo. --Deus tambem ama a chicana, quem sabe? --Não são negocios do foro; e se algum chegar lá, provavelmente elle deixa procurador aqui. Sabe já que elle vae entrar na camara? --Sei; disse-me que aceitou de alguns chefes de Lisboa elegel-o deputado. --Carmo, que queria prendel-o por um anno ou mais, ficou aborrecida e triste, e eu com ella. Trocámos os nossos aborrecimentos, quero dizer que os somámos, e ficamos com o dobro cada um... Gostei desta palavra de Aguiar, e decorei-a bem para me não esquecer e escrevel-a aqui. Aquelle gerente de banco não perdeu o vicio poetico. É bom homem; creio que já o escrevi alguma vez, mas lá vae ainda agora. Não perco nada em repetil-o. Falavamos a um canto da sala, onde Campos e Tristão foram ter comnosco, deixando as duas damas entregues uma á outra. E eu cá de longe fiquei a miral-as, encantadoras naquella expressão de si mesmas. A harmonia dos cabellos brancos de uma e dos cabellos pretos de outra, as vozes que trocavam baixo sorrindo, com os olhos brandos e amigos, tudo isso me faria perguntar a mim mesmo, porque não eram realmente mãe e filha, esta cazada com algum rapaz que a merecesse, e aquella cazada ou viuva, não importa; consolar-se-ia do marido perdido com a filha eterna. Toda filha moça é eterna para as mães envelhecidas. Mas ainda uma vez notei que pareciam antes irmãs, tal a arte de D. Carmo em se fazer moça com as moças. A materia da conversação não sei qual fosse, nem vale a pena cogital-a; não daria mais interesse ao grupo. De uma vez, demorando-se Fidelia em concertar a posição do broche, D. Carmo substituiu-lhe os dedos pelos seus, e concertou-lh'a de todo. * * * * * 4 de Setembro. Relendo o dia de hontem fiz commigo uma reflexão que escrevo aqui para me lembrar mais tarde. Quem sabe se aquella afeição de D. Carmo, tão meticulosa e tão serviçal, não acabará fazendo damno á bella Fidelia? A carreira desta, apezar de viuva, é o cazamento; está na idade de cazar, e pode aparecer alguem que realmente a queira por espoza. Não falo de mim, Deus meu, que apenas tive veleidades sexagenarias; digo alguem de verdade, pessoa que possa e deva amar como a dona merece. Ella, entregue a si mesma, poderia acabar de receber o noivo, e iriam ambos para o altar; mas entregue a D. Carmo, amigas uma da outra, não dará pelo pretendente, e lá se vae embora um destino. Em vez de mãe de familia, ficará viuva solitaria, porque a amiga velha hade morrer, e a amiga moça acabará de morrer um dia, depois de muitos dias... A reflexão é verdadeira, por mais que se lhe possa dizer em contrario. Não afirmo que as cousas se passem exactamente assim, e que os tres,-os quatro, contando o velho Aguiar,-os cinco e seis, juntando o tio e o primo,-não façam com o noivo adventicio, uma só familia de afeição e de sangue; mas a reflexão é verdadeira. A afeição, o costume, o feitiço crescente, e por fim o tempo, complice de attentados, negarão a bella viuva a qualquer namorado trazido pela natureza e pela sociedade. Assim chegará ella aos trinta annos, depois aos trinta e cinco e quarenta. Quando a espoza Aguiar morrer não se contentará de a chorar, lembrar-se-ha della, e as saudades irão crescendo com o tempo. O pretendente terá desaparecido ou passado a outras alegrias. Reli tambem este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma nota poetica ou romanesca, mas não ha disso; antes é tudo prosa, como a realidade possivel. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da moça, a propria lembrança do marido. Daqui a cinco annos, ella mandará transferir os ossos do pae para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e alli toda a politica se resume em viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais. * * * * * 5 de Setembro. Os dous filhos postiços do cazal Aguiar não têm ciumes um do outro, não se sentem diminuidos pela afeição que recebem dos velhos. Ao contrario, parecem achar que a porção de cada um cresce com a que o outro recebe tambem. Eis ahi uma boa divisão de amigos; ha casos em que os filhos de verdade não se mostram tão cordatos. Mana Rita, a quem comuniquei esta impressão, acha tambem que é assim. Acrescenta, porém, uma reflexão mais fina que essa, e não tenho duvida em a escrever aqui ao pé da minha, tanto mais que lhe repliquei com outra, não menos fina que a sua. Vá este elogio a nós ambos. Sempre hade haver quem nos desgabe um pouco, e ahi fica já a compensação. Nem custa muito elogiar-se a gente a si mesma. Eis o que me disse a mana: --Esse sentimento hade custar pouco ao Tristão, estando aqui de passagem. Ao que eu repliquei: --Tambem não lhe custará muito a Fidelia, sabendo que elle se vae embora daqui a pouco. Escritas as palavras de ambos nós, entro a duvidar da finura della e minha. Por mais rapida que fosse a passagem do rapaz, elle gostaria de se ver exclusivamente querido, e ella tambem a si. Penso outra vez que a qualidade do afecto filial é que os faz assim generosos e abertos. Repito o que lá disse acima: casos ha em que não vivem com tanto acordo filhos verdadeiros. Rita deu-me outras noticias da caza Aguiar, onde não piso ha mais de uma semana, creio. Todas confirmam a communhão de boa vontade da parte de moços e velhos. Os quatro passam os dias em conversa, e hontem a viuva Noronha tocou piano, um pouquinho, é verdade, mas tocou. Parece que já uma vez jogaram cartas. Rita disse mais: --Fidelia, que desde que saiu do colegio nunca mais fez trabalhos de agulha, começa agora a imitar a amiga, e já hontem trabalharam juntas. Quando eu lá cheguei ás duas horas da tarde e dei com ellas, defronte uma da outra, movendo agulhas, você não imagina a alegria com que me receberam; D. Carmo mostrava um pouco de orgulho tambem, ou cousa parecida. Faziam um par de sapatinhos de creança. O trabalho de Fidelia não tinha a perfeição do da outra, e não estava tão adeantado, mas tambem o de D. Carmo podia ir mais depressa; talvez fosse intenção della não deixar a moça muito atraz, e por isso iria demorando os dedos. Quiz rir, perguntando a qual dellas destinavam taes sapatos, mas não tive tempo; Fidelia disse-me que eram para o filho de uma creada de D. Carmo que fora dar á luz em casa do marido. D. Carmo ia começar o crochet quando Fidelia lhe apareceu, e quiz acompanhal-a. Consentiu para não sair trabalho de velha. O mais que a mana me disse não vae aqui para não encher papel nem tempo, mas era interessante. Vae só isto, que jantou lá e Fidelia tambem, a convite de D. Carmo. O velho Aguiar e Tristão tinham saido a passeio, depois do almoço, mas voltaram cedo, ás quatro horas. Não viram a parada do dia de hontem (sete) apenas viram passar um batalhão, que não deixou impressão no moço. Todos os batalhões se parecem, disse elle. O himno nacional, sim, é que acordou nelle algumas saudades do tempo de creança e de rapaz; assim o confessou, e dahi nasceu a conversação musical que levou Fidelia ao piano. A viuva não tocou mais de quatro ou cinco minutos, e fel-o a pedido de Tristão, que lhe citou um autor; Rita não se lembra que autor foi, mas achou bonita a musica. Tambem se falou em cousas da Europa, e os dous ajustaram bem os modos de ver. Ouvi tudo isso em Andarahy, onde fui jantar hoje com Rita. Propuz-lhe vir commigo e irmos ao Flamengo, a mana recusou; estava com o somno atrazado, e queria dormir. Voltei só e fui á caza Aguiar, onde os quatro e o desembargador conversaram de festas religiosas, a proposito do dia santo de hoje. Ainda uma vez os dous deram impressões europeas, e realmente ajustaram as reminiscencias. As minhas, quando as pediram, ficaram naquelle acordo de cabeça, que é util, quando um assunto cança ou aborrece, como este a mim. Quando o tio e a sobrinha se foram, eu fiquei ainda um quarto de hora com a gente Aguiar. O resto amanhã; tambem eu estou com somno. * * * * * 9 de Setembro. O resto é a noticia de ter chegado Osorio, o advogado do Banco do Sul, que foi ha tempos ao Recife, onde o pae estava doente e morreu. --Voltou triste, e o luto ainda o faz mais triste, disse Aguiar. --Será só a morte do pae? perguntei. --Que mais pode ser? --Não me disseram, ou eu adivinhei que elle andava meio apaixonado por D. Fidelia...? --Andava, sim, e talvez mais que meio, explicou Aguiar, mas já lá vae naturalmente. --Em todo caso não se lhe declarou? --Com o gesto, é possível; ella tacitamente recusou, e foi pena; ambos se merecem. Aguiar louvou as qualidades profissionaes do moço, a educação e as virtudes. Acreditei tudo, como era do meu dever, e aliás não tinha razão para duvidar de nada. D. Carmo confirmou as palavras do marido, sem afirmar que era pena não se terem casado. Calou esse ponto, e foi mais discreta que elle. Pode ser que nelle falasse tambem o gerente do banco. Tristão durante esse tempo folheava um livro de gravuras. Digo que eram gravuras, porque me fui despedir delle, que se levantou logo, com grande cortezia; mas de longe pensei que fosse o album de retratos. Não era; o album estava ao pé, aberto justamente na pagina em que figuram as duas fotografias de Carmo e do marido. Tristão, deixou tambem aberto o livro das gravuras e veiu commigo á porta, acompanhando Aguiar, e ali me despedi de ambos. * * * * * 9 de Setembro á tarde. Parece que a gente Aguiar me vae pegando o gosto de filhos, ou a saudade delles, que é expressão mais engraçada. Vindo agora pela rua da Gloria, dei com sete creanças, meninos e meninas, de vario tamanho, que iam em linha, prezas pelas mãos. A idade, o riso e a viveza chamaram-me a atenção, e eu parei na calçada, a fital-as. Eram tão graciosas todas, e pareciam tão amigas que entrei a rir de gosto. Nisto ficaria a narração, caso chegasse a escrevel-a, se não fosse o dito de uma dellas, uma menina, que me viu rir parado, e disse ás suas companheiras: --Olha aquelle moço que está rindo para nós. Esta palavra me mostrou o que são olhos de creanças. A mim, com estes bigodes brancos e cabellos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente dão este nome á estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão de idade. Deixei andar as creanças e vim fazendo commigo aquella reflexão. Ellas foram saltando, parando, puxando-se á direita e á esquerda, rompendo alguma vez a linha e recozendo-a logo. Não sei onde se dispersaram; sei que dahi a dez minutos não vi nenhuma dellas, mas outras, sós ou em grupos de duas. Algumas destas carregaram trouxas ou cestas, que lhes pezavam á cabeça ou ás costas, começando a trabalhar, ao tempo em que as outras não acabavam ainda de rir. Dar-se-ha que a não ter carregado nada na meninice devo eu o aspecto de «moço» que as primeiras me acharam agora? Não, não foi isso. A idade dá o mesmo aspecto ás cousas; a infancia vê naturalmente verde. Tambem estas, se eu risse, achariam que «aquelle moço ria para ellas», mas eu ia serio, pensando, acaso doendo-me de as sentir cançadas; ellas, não vendo que os meus cabelos brancos deviam ter-lhes o aspecto de pretos, não diziam cousa nenhuma, foram andando e eu tambem. Ao chegar á porta de casa dei com o meu creado José, que disse estar ali á minha espera. --Para quê? --Para nada; vim esperar V. Ex. cá embaixo. Era mentira; veiu distrair as pernas á rua, ou ver passar creadas visinhas, tambem necessitadas de distração; mas, como elle é habil, engenhoso, cortez, grave, amigo de seu dever,-todos os talentos e virtudes,-preferiu mentir nobremente a confessara verdade. Eu nobremente lh'o perdoei e fui dormir antes de jantar. Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todas as creanças deste mundo, com carga ou sem ella, faziam um grande circulo em volta de mim, e dançavam uma dança tão alegre que quasi estourei de riso. Todas falavam «deste moço que ria tanto.» Acordei com fome, lavei-me, vesti-me e vim primeiro escrever isto. Agora vou jantar. Depois, irei provavelmente ao Flamengo. * * * * * 9 de Setembro, á noite. Fui ao Flamengo. A viuva não estava lá; estava o Osorio, e não o achei triste, como Aguiar havia dito, tambem não estava alegre; falava pouco. Tristão, que lhe fora apresentado hoje, falava mais que elle, sem falar muito. Noite sem interesse. Voltei cedo e vou dormir. * * * * * 12 de Setembro. Quando cheguei hoje á cidade, eram duas horas, e ia a sair do bonde, chegou-se a elle a bella Fidelia, com o seu gracioso e austero meio luto de viuva. Vinha de compras, naturalmente. Comprimentamo-nos, dei-lhe a mão para subir. Perguntou-me pela mana, eu pelo tio, ambos por nós, e ainda houve tempo de trocar esta meia duzia de palavras. Ella: --Ainda agora? --A minha preguiça de apozentado não me permitiu sair mais cedo, disse eu rindo, e afastei-me. O bonde partiu. Na esquina estava não menos que o Dr. Osorio sem olhos, porque ella os levava arrastados no bonde em que ia; foi o que conclui da cegueira com que não me viu passar por elle... Ai, requinte de estilo! Entrei nesta duvida,-se teriam estado juntos na rua ou no loja a que ella veiu, ou no banco, ou no inferno, que tambem é logar de namorados, é certo que de namorados viciosos, _del mal perverso._ Achei que não, e comprehendi que elle, se acaso a comprimentou na rua, não ousou falar-lhe, apenas a acompanhou de longe, até que a viu meter-se no bonde e partir. Tambem achei outra cousa; é que a paixão antiga e recusada não estava morta nelle, ou revivia com a vista nova da pessoa. Não era por ser agora a dona rica, já antes era ella herdeira unica, e vivia de si mesma. Não, elle é bom, e o proprio Aguiar afirma que os dous se merecem. Ia nessas conjecturas, em direção á Escola Politecnica, e vi-o passar por mim, cabisbaixo, não sei se triste ou alegre; não pude ver-lhe a cara. Mas parece que a tristeza é que é cabisbaixa, a alegria distribue os olhos felizes á direita e á esquerda; alguma vez ao ceu tambem. É suposição minha, e pode não ser verdade. A verdade certa é que, ás duas horas da tarde, aquelle advogado andava atraz das moças, em vez de estar no foro; ou mau advogado, ou feliz namorado. * * * * * 14 de Setembro. Nem uma cousa nem outra. Refiro-me ao que escrevi ante-hontem do Osorio, que não é namorado feliz, pelo que me disse Aguiar hoje, nem máu advogado, pelo que li nos jornaes. Li que venceu uma demanda do Banco do Sul, e Aguiar não lhe regateou louvores ao zelo com que a pleiteou antes do embarque e depois do desembarque. Eis ahi um homem que sabe cazar o zelo e a tristeza, e bem pode ser isto um simbolo, se elle é o zelo, e Fidelia a tristeza. Talvez acabem cazando. Mas ainda depois da recusa? Tudo é possivel debaixo do sol,-e a mesma cousa sucedará acima d'elle,-Deus sabe. * * * * * 18 de Setembro. Venho da gente Aguiar, e não me quero ir deitar sem escrever primeiro o que lá se passou. Cheguei cedo, estavam sós os dous velhos e receberam-me familiarmente. --Venha o terceiro velho, disse Aguiar, venha fazer companhia aos dous que aqui ficaram abandonados. Esta palavra, que podia ser de queixa, foi dita rindo, e percebi pelo tom que era alegre. Foi-me dita quasi á porta da sala, onde elle foi ter commigo, ficando ella em uma das duas cadeiras de balanço, unidas e trocadas, em forma de conversadeira, onde costumavam passar as horas solitarias. Respondi que trazia a minha velhice para sommar ás duas e formar com ellas uma só e verde mocidade, das que já não ha na terra. Sobre este tema gasto e vulgar disseram tambem algo de riso, e taes foram os primeiros minutos. --Talvez não nos encontrasse, se eu não estivesse doente de um joelho, disse D. Carmo. --Doente? --Dóe-me um pouco este joelho, e o logar é melindroso para andar. Tristão foi sozinho á casa do desembargador, aonde vão hoje alguns amigos do fôro. Aguiar tambem queria ir, mas Tristão disse-lhe que era melhor ficar; elle se incumbiria de dar lá todas as desculpas, e foi sozinho. --Quiz que eu ficasse fazendo companhia á madrinha, explicou Aguiar. Se eu teimo em ir elle era capaz de ficar para a não deixar sozinha. --Pode ser, disse D. Carmo com os olhos. Só com os olhos. De boca disse logo depois que talvez elle fosse tambem, á espera de ver lá moças. É provável que os velhos amigos levem as filhas. --Mas então é alguma festa? perguntei. --Não, conselheiro, acudiu Aguiar; os amigos são uns tres ou quatro que hontem ajustaram entre si lá ir hoje, e avizaram disso o desembargador. Foi o que Fidelia nos contou hontem mesmo, aqui em casa. E D. Carmo continuou o que ia dizendo antes: --Alguns levarão as filhas, e é natural a um rapaz o dezejo de ver moças. Tristão acha que as suas patricias são muito graciosas; mais de uma vez o tem dito. Tambem se não houver lá nenhuma é provavel que acabe a visita cedo e torne para caza. Tristão é cada vez mais amigo nosso. Conhecia este outro tema, e acenei de cabeça que sim. Aguiar disse a mesma cousa. O que elle não disse, nem eu esperei, foi a nota melancolica que a mulher trouxe á conversação, e que eu cuidei de atenuar, como pude. --Os dias vão correndo, disse ella, e os ultimos correrão mais depressa; brevemente o nosso Tristão volta para Lisboa e nunca mais virá cá, ou só virá para ver as nossas covas. --Ora D. Carmo! deixe-se de ideias tristes. --Carmo tem razão, interveiu o marido; o tempo acabará depressa para que elle se vá, e não ficará ás nossas ordens para que fiquemos eternamente na vida. --Todos nós lá vamos, disse eu. A morte é outro desembargador, conta muitos amigos que lá passam as noites, e os que tem filhas levam as filhas. Isto é certo, mas o melhor é não pensar nella. --Não é nella, é nelle, emendou D. Carmo; falo do nosso Tristão, que se irá brevemente. Sorri e disse: --_Elle_ se irá, creio, mas ficará _ella._ Acentuei bem os pronomes, e não seria preciso; Carmo entendeu-me logo e bem. O ar de riso que se lhe espraiou do rosto mostrou que entendera a alusão á bella Fidelia. Era uma consolação grande. Não obstante, a consolação só cabe ao que doe, e a dor da perda de um já não seria menor que o prazer da conservação da outra. Logo vi essas duas expressões no rosto da boa senhora, combinadas em uma só e unica, especie de meio luto. Aguiar tambem sentiria como a mulher, mas o oficio de banqueiro obriga e acostuma a dissimular. E talvez ainda não falassem entre si do proximo regresso do Tristão; felicidade rima com eternidade, e estes eram felizes. Eram felizes, e foi o marido que primeiro arrolou as qualidades novas de Tristão. A mulher deixou-se ir no mesmo serviço, e eu tive de os ouvir com aquella complacencia, que é uma qualidade minha, e não das novas. Quasi que a trouxe da escola, se não foi do berço. Contava minha mãe que eu raro chorava por mama; apenas fazia uma cara teia e implorativa. Na escola não briguei com ninguem, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes eram extremados e discutiam, eu fazia da minha alma um compasso, que abria as pontas aos dous extremos. Elles acabavam esmurrando-se e amando-me. Não quero elogiar-me.... Onde estava eu? Ah! no ponto em que os dous velhos diziam das qualidades do moço. Não mentiam; quando muito, podiam exagerar alguma, mas as que citavam deviam ser verdadeiras, bom, carinhoso, attento, justo, puro de sentimentos, indole pacifica, maneiras educadas, capaz de sacrificios, se fosse necessario. Não o tinham achado máu nem falho, quando elle chegou; agora porém, ás qualidades antigas estavam apuradas, e algumas novas appareciam. Ainda que eu discordasse d'elles não diria nada para os não aborrecer, mas que sabia eu que pudesse contrariar essa opinião de amigos? Nada; concordei com ambos. D. Carmo entendeu acaso que o assunto podia ser enfadonho a extranhos, e trocou as mãos á conversa. Não totalmente, é verdade; falou da casa do desembargador Campos e do que iria por lá. Eu (habilmente, confesso) querendo saber o estado do coração de Osorio, perguntei se elle não estaria lá tambem, elle, que tambem é do fôro. Aguiar disse logo que podia ser que sim; conforme. Sobre isto falámos um pouco, e as qualidades do advogado foram ainda honradas, mas não eram tantas, nem tamanhas como as de Tristão. Falavam com simpatia, Aguiar mais que D. Carmo; eram relações propriamente do banco e do foro. --Mas não haverá ainda nelle alguma faisca antiga? perguntei. --Pode ser, e será mais uma razão para fugir, concluiu elle. Não quiz dizer o que vira na rua, e aliás a conclusão delle não era errada. D. Carmo escutava agora sem falar, embora com interesse. A discrição daquella senhora é das mais completas que tenho achado na vida. Não quiz ella entrar em tal assunto, e o marido não tardou muito que o deixasse. Eu não retive a um nem a outro. Assim é o destino dos namorados sem ventura; os proprios amigos, como Aguiar parece que é de Osorio, tratam logo de outra cousa. Elles que se fiquem comsigo. Nós passámos a tratar de algumas noticias de sociedade e das ultimas noticias novellescas de Paris. Neste capitulo D. Carmo sabe mais que eu, e muito mais que o marido, que não sabe nada; mas Aguiar acompanhou a conversação como se soubesse alguma cousa. Elle compra-lhe os livros, que ella lê e resume para elle ouvir. Como a memoria delle é grande, cita tambem as narrações escritas, com a diferença que ella, tendo impressão direta, a analise que faz é mais viva e interessante. Ouvi-lhe dizer de alguns nomes contemporaneos muita cousa fina e propria. É claro que, se o marido escrevesse tambem, achal-o-hia melhor que ninguem,, porque ella o ama devéras, tanto ou mais que no primeiro dia; é a impressão que ainda hoje me deixou. Eu, para lhes ser agradavel,-e um pouco a mim mesmo, porque os queria gozar tambem,-voltei ao assunto principal para ambos, que não seria Fidelia só, nem só Tristão, mas os dous juntos. --Digam-me, se elles fossem irmãos e seus filhos, não seria melhor que apenas amigos e extranhos um ao outro? Era a primeira vez que lhes dizia uma cousa d'estas, e o interesse foi tamanho que elles pegaram do assunto para dizer cousas interessantissimas. Não as escrevo por ser tarde, mas cá me ficam de memoria. Digo só que, quando saí, D. Carmo, apezar do joelho doente, e por mais que eu quizesse detel-a, veiu commigo á porta da sala. Aguiar acompanhou-me até á porta do jardim, emquanto ella veiu á janela, donde se despedia ainda uma vez. --Olhe o sereno, boa noite, disse-lhe eu cá debaixo. --Boa noite D. Carmo entrou. Aguiar e eu apertámos a mão um do outro. Indo a sair, lembrou-me falar do cão ali sepultado. Não lhe falei logo, dei tres ou quatro investidas, mas tão rapidas que, se gastei um minuto, foi o mais; nem tanto. Aguiar ouviu-me espantado e constrangido. --Quem lhe contou isso? --O Dr. Tristão. Não lhe quiz citar o Campos, que tambem me falou do animal. Aguiar confessou calando, depois falando, mas não falou muito. Confirmou que tiveram muita amizade ao bicho, e referiu-me os padecimentos que a doença e a morte deste produziram na mulher. Não disse os seus, mas tambem os tivera; olhou uma vez para o lado da parede, e depois de uma pausa: --Tristão riu-se naturalmente do nosso carinho? --Ao contrario, falou-me com muito louvor; tem bom coração aquelle rapaz. --Muito bom. Apezar de não ser dado a melancolias, nem achar que oficio de banqueiro vá com taes lastimas, separei-me delle com simpatia. Vim pela rua da Princeza, pensando nelle e nella, sem me dar de um cão que, ouvindo os meus passos na rua, latia de dentro de uma chacara. Não faltam cães atraz da gente, uns feios, outros bonitos, e todos impertinentes. Perto da rua do Cattete, o latido ia diminuindo, e então pareceu-me que me mandava este recado: «Meu amigo, não lhe importe saber o motivo que me inspira este discurso; late-se como se morre, tudo é oficio de cães, e o cão do cazal Aguiar latia tambem outrora; agora esquece, que é oficio de defunto.» Pareceu-me este dizer tão subtil e tão espevitado que preferi attribuil-o a algum cão que latisse dentro do meu proprio cerebro. Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engulira um rouxinol. Creio que falavam da Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engolido um cão filosofo, e o merito do discurso será todo delle. Quem sabe lá o que me haverá dado algum dia o meu cozinheiro? Nem era novo para mim este comparar de vozes vivas com vozes defuntas. * * * * * 20 de Setembro. Aquelle dia 18 de Setembro (ante-hontem) ha de ficar-me na memoria, mais fixo e mais claro que outros, por causa da noite que passámos os tres velhos. Talvez não escrevesse tudo nem tão bem; mas bastou-me relel-o hontem e hoje para sentir que o escrito me acordou lembranças vivas e interessantes, a boa velha, o bom velho, a lembrança dos dous filhos postiços... Continuo a dar-lhes este nome, por não achar melhor... Principalmente aquella felicidade média ou turva de pessoas que vão perder um de dous bens do ceu, essa expressão que vi em D. Carmo mais forte ainda que no Aguiar... * * * * * 21 de Setembro. Ao sair hoje de casa, vi passar na rua, do lado oposto, a irmã do corretor Miranda, D. Cesaria, tão risonha que parecia falar mal de mim, mas não falava, ia só,-ou falava de mim comsigo; mas só comsigo não teria tanto prazer. Comprimentámo-nos e seguimos. * * * * * 22 de Setembro. ... encantadora Fidelia! Não escrevo isto porque a deseje, mas porque é assim mesmo: encantadora! Pois não é que esta creatura de Deus, encontrando-se commigo de manhã, veiu agradecer-me a companhia que fiz aos seus amigos do Flamengo, na noite de 18? --Não tive merecimento nisso; fui lá, achei-os sós, passei a noite. --Isso mesmo. D. Carmo disse-me que, se não foi uma noite cheia, foi só por lhe faltarmos o Dr. Tristão e eu, mas que, ainda assim, o senhor teve o dom de nos fazer esquecer. Sorri incredulamente, depois expliquei o caso, dizendo que, se os fiz esquecer, foi por serem elles o proprio assunto da conversação... --Isso é que ella não me disse, interrompeu Fidelia espantada. --Nem dirá; nem lh'o pergunte. O melhor é crer que eu, com os meus cabelos brancos, ajudei a encher o tempo. A senhora não sabe o que podem dizer tres velhos juntos, se alguma vez sentiram e pensaram alguma cousa. --Sei, sei, já tenho visto e ouvido os tres. --Mas nessas ocasiões a senhora dá outra nota recente e viva á conversação. Era verdade e era comprimento; Fidelia sorriu agradecida e despediu-se. Eu-aqui o digo ante Deus e o Diabo, se tambem este senhor me vê a encher o meu caderno de lembranças,-eu deixei-me ir atraz della. Não era curiosidade, menos ainda outra cousa, era puro gosto estetico. Tinha graça andando; era o que lá disse acima: encantadora. Não fazia crer que o sabia, mas devia sabel-o. Ainda não encontrei encantadora que o não soubesse. A simples suposição de o ser tenta persuadir que o é. No largo de S. Francisco estava um carro della, perto da egreja. Iamos da rua do Ouvidor, a dez passos de distancia ou pouco mais. Parei na esquina, vi-a caminhar, parar, falar ao cocheiro, entrar no carro, que partiu logo pela travessa, naturalmente para os lados de Botafogo. Quando ia a voltar dei com o moço Tristão, que ainda olhava para o carro, no meio do largo, como se a tivesse visto entrar. Elle vinha agora para a rua do Ouvidor, e tambem me viu; detive-me á espera. Tristão trazia os olhos deslumbrados, e esta palavra na boca: --Grande talento! Percebi que se referia ao talento musical, e nem por isso fiquei menos espantado; quasi me esqueceu concordar com elle. Concordei de gesto e de palavra, sem entender nada. Tambem eu gosto de musica, e sinto não tocar alguma cousa para me aliviar da solidão; entretanto, se fosse elle, e apezar de todos os Schumanns e seus emulos, ao vel-a parar no largo de S. Francisco e entrar no carro, não soltaria a mesma exclamação, antes outra, igualmente estetica, é verdade, mas de uma estetica visual, não auditiva. Não entendi logo. Depois, quando nos separámos na esquina da rua da Quitanda, entrei a cogitar se elle ao dar commigo, com pôz aquella palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo, admira nella arte musical. Pode ser isto; ha nelle muita compostura e alguma dissimulação. Não quiz parecer admirador de pés bonitos; referiu-se aos dedos habeis. Tudo vinha a dar na mesma pessoa. * * * * * 30 de Setembro. Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as paginas do dia 12 e do dia 22 deste mez. Uma novela não permitiria aquella paridade de sucessos. Em ambos esses dias,-que então chamaria capitulos,-encontrei na rua a viuva Noronha, trocámos algumas palavras, vi-a entrar no bonde ou no carro, e partir; logo dei com dous sujeitos que pareciam admiral-a. Piscaria os dous capitulos, ou os faria mui diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais util que na obra de imaginação. Já lá vão muitas paginas falei das simetrias que ha na vida, citando os casos de Osorio e de Fidelia, ambos com os paes doentes fora daqui, e daqui saindo para elles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna ás composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de actos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguaes no tempo e nas circumstancias; assim a historia, assim o resto. Dou estas satisfações a mim mesmo, afim de mencionar o meu joelho doente, tal qual o de D. Carmo. Outra paridade de situações... Ha duas diferenças. A primeira é que nella o mal é puro e confessado reumatismo. Em mim tambem, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por menos doloroso; é um dos seus modos de amar o patrão. A segunda diferença... A segunda diferença,-ai, Deus! a segunda diferença é que, ainda que lhe dôa muito o joelho, D. Carmo lá tem o marido e os dous filhos postiços. Eu tenho a mulher embaixo do chão de Vienna e nenhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fóra, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relogio de parede, batendo as horas, parece falar alguma cousa,-mas fala tardo, pouco e funebre. Eu mesmo, relendo estas ultimas linhas, pareço-me um coveiro. Mana Rita não me veiu visitar, porque não sabe nada, e provavelmente não tem saído; sei que está boa. O meu mal começou ha sete dias. Durmo bem ás noites, mas não me faz bem andar, doe-me. Amanhã, se não acordar peor, saio. * * * * * 2 de Outubro. Estou melhor, mas choveu e não saí. * * * * * 3 de Outubro. --Foi um duelo entre mim e a velhice, que me disparou esta bala no joelho; uma dôr reumatica. Já sei que vem jantar commigo? O desembargador respondeu que não; disseram-lhe que eu estava doente e vinha saber o que era. D. Carmo tambem está melhor do joelho, disse-me. Já sae, mas pouco, pela praia do Flamengo, até á do Russell. --Sempre com a amiguinha, não? --Nem sempre; lá tem o seu Tristão que a acompanha de manhã. Fidelia manda-lhe visitas, e pode ser que Aguiar venha cá hoje; souberam hontem, á noite, como eu. Logo depois contou-me Campos que a sobrinha queria ir passar algum tempo á fazenda. --Os libertos, apezar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a deixar o trabalho, e ella quer ver como está aquillo antes de concluir a venda de tudo. Não entendi bem, mas não me cabia pedir explicação. Campos incumbiu-se de me dizer que tambem elle não entendia bem a ideia da sobrinha, e acrescentou que, por gosto, ella partiria já. A doença de D. Carmo é que a fez aceitar o que lhe propôz o tio, a saber, que adiassem a viagem para as férias. --Iremos pelas férias, concluiu elle; provavelmente já o trabalho estará parado de todo; o administrador, que não tem tido força para deter a saida dos libertos até hoje, não a terá até então. Fidelia cuida que a presença della bastará pare suspender o abandono. --Logo, se fôr mais depressa... aventurei eu, querendo sorrir. --Foi o argumento della; eu creio que não será tanto assim, e, como tenho de a acompanhar, prefiro Dezembro a Outubro. Quer-me parecer que ella teme menos a fuga dos libertos que outra cousa... Não acabou; levantou-se para concertar um laço da cortina, e voltou coçando o queixo e olhando para o tecto. Sentou-se e cruzou as pernas. Eu, para me não deixar ir a perguntas, peguei do gesto do desembargador, dizendo-lhe que elle acabava de fazer com as pernas o que ainda me custaria um pouco; mas foi como se falasse á cortina, ao laço ou á palhinha do chão. Campos não me respondeu nem provavelmente me ouviu. Ergueu-se, disse que estimava as minhas melhoras e despediu-se até breve. Teimei que jantasse. --Não posso; tenho gente de fora; o Tristão janta commigo. Para lhe mostrar que convalecia, fui ao patamar pizando rijo. Agradeci-lhe o obsequio da visita, e tornei á sala, com a viuva deante dos olhos, caminho da fazenda. Mas que terá que a faça ir meter-se na fazenda, com meia duzia de libertos, se ainda achar alguns? Pouco depois, outra visita, o Aguiar, que me trazia lembranças da mulher. Estimou ver-me de pé, no meio da sala. --Não valia a pena, disse-lhe; foi uma cousa de nada, estou quasi bom, e hoje mesmo, se a chuva parar, como está querendo, lá vou leval-o á casa, depois do jantar. Janta commigo? --Não posso; tenho gente de fóra. Uma das pessoas não me impediria, é a Fidelia, que lá janta comnosco, e é quasi da familia. Mas vae tambem um colega do banco. --Pois irei tomar chá. --Vá, se quer, mas não faça isso, é o meu conselho. Ainda que não chova, sempre haverá humidade, e para reumatismo... --Mas D. Carmo tem saido, creio. --Tem, e pode-se dizer que está boa. Apezar disso, já hoje não saiu, por cousa do tempo. Vá, se quer; eu no seu caso não saía. Aguiar não disse mais nada, e despediu-se. Pareceu-me (ou foi ilusão) que elle queria acrescentar alguma cousa e não acabou de querer. Não sei que seria. Não sentisse eu mesmo algum medo da humidade e iria vel-os á noite, mas a humidade é certa, e creio que a chuva tambem. Fico em casa. Se aparecer algum enxadrista, jogarei xadrez; se apenas jogar cartas, cartas. Se não vier ninguem, atiro-me a compôr um poema de cabeça. * * * * * 6 de Outubro. Mana Rita, Mana Rita Foi a ultima visita, e o resto do poema em prosa, que a minha musa não dá para mais. Foi assim que o compuz, não na outra noite, a de 3, mas na de hoje, 6, depois de levar a mana a Andarahy. Apareceu-me aqui de manhã. Já outros, amigos e até indiferentes, me tinham visitado, como aquelle Dr. Faria, que me deixou lembranças da mulher, e o corretor Miranda, que tambem m'as trouxe da sua. Tristão esteve cá ante-hontem, e eu saí á tarde e hontem de manhã. Estou bom, nem por isso deixei de lhe chamar ingrata. Rita confessou-me que ha mais de tres semanas não sae de casa para ver se tinha um irmão que se lembrasse della. --Tinha e tem, retorqui-lhe, mas um irmão que só agora convaleceu de todo. Contei-lhe a dôr e a reclusão. Rita, que a principio não queria crer e ria, acabou convencida e contristada. Censurou-me naturalmente; eu disse-lhe que continuava a guardal-a para a doença mortal e ultima. Assim trocámos muitas palavras amigas e doces, algumas alegres. Corno lhe perguntasse se estivera com a gente Aguiar ou com a familia Campos, respondeu-me que não. Se fosse a uma daquellas casas teria sabido do meu incomodo, e não receberia a noticia aqui, acrescentou. --Então você não sabe nada do projeto de ir á fazenda? perguntei-lhe. --Projeto de quem? --Da viuva Noronha. --Ir á fazenda? --Sim, ir a Santa-Pia, para ver como andam lá as cousas; parece que os libertos estão abandonando a roça. Foi o que me disse o tio da viuva. --Não ouvi dizer nada. Ha perto de um mez que não saio de casa. Mas o tio por que não vae? --O tio vae, mas é com ella; a sobrinha quer a companhia delle, mas só a companhia, parece, não quererá tambem a colaboração. Vão pelas ferias. Eu não comprenhendo esta necessidade de ir ella mesma, quando era melhor um homem. Rita quiz ir saber da própria Fidelia. Ponderei-lhe que era indiscreto, e faria crer da nossa parte alguma curiosidade. Saiu a voltas, e tornou. Confesso uma cousa; depois que a vi sair imaginei se teria ido saber da viuva ou dos amigos a verdadeira causa da viagem, e disse-lh'o ao jantar. Ella ficou séria e abanou a cabeça. Se me tem jurado que não, é provável que me enterrasse o espinho da duvida, mas falou com simplicidade, e nomeou as visitas que fez. Uma dellas foi a D. Carmo. --Carmo está sã como um pêro, disse-me; recebeu-me rindo como só ella sabe rir, um rir de dentro, tão simples, tão franco... Falámos de Fidelia, falamos de Tristão, ella com a ternura e amizade que você já lhe tem visto. --Ainda não sabe da viagem á fazenda? --Sabe, e parece que nem esperam as ferias; é daqui a dias. Sabe da viagem e do motivo, e aprova; diz que a viuva tem muito prestigio entre os libertos. Se pudesse iria tambem, mas Aguiar não ficaria só, e elle não pode deixar agora o banco. --Mas elle não ficaria só; o Tristão ahi está. --Não, por duas razões; a primeira é que Tristão nem ninguem supre a boa Carmo. A viagem que ella fez este anno a Nova-Friburgo custou muito ao marido. Não foi ella que me disse isto; eu é que soube, e percebe-se, todos sabem; Aguiar sem Carmo é nada. A segunda razão é que o proprio Tristão está com vontade, de acompanhar o desembargador e Fidelia, nunca viu uma fazenda, e tem vontade, antes de voltar para Lisboa... --E a nossa amiga, deante desse eclipse dos dous, não está aborrecida? --Foi o que lhe perguntei; disse-me que é por poucos dias, e espera; em todo caso, se houver demora dos outros, Tristão virá embora. Quer passar com ella e o marido o mais tempo que puder. Mana Rita (percebe-se) está com vontade de achar algum defeito grande no afilhado do Aguiar, mas não acha nenhum, grande ou pequeno, e peza-lh'o. O bem que diz delle é repetição confessada do que ouviu. Eu não penso mal, antes bem, creio que já o escrevi em alguma destas paginas; mas não disse se bem nem mal. Deixei-me ficar a condenar o meu pobre jantar, que foi ruim, só o frango prestou e a fruta, menos as peras... Ao café, mana Rita contou-me algumas anedotas de Andarahy, aonde a fui levar, seriam dez horas e donde voltei para escrever isto, acabar e repetir como principiei: Mana Rita, mana Rita Foi a ultima visita. * * * * * 10 de Outubro. Entendam lá mulheres! Tanta necessidade de ir á fazenda e já. Campos alcança uma licença de alguns dias, Tristão apronta a mala, e, tudo feito cessa a necessidade de partir. Foram só o Campos e o Tristão. Tal a notícia que me deram as duas (Carmo e Fidelia) hoje, á tarde, quando eu ia a entrar no jardim da casa do Flamengo. As duas vinham chegando ao portão. --Não fui, confirmou Fidelia as primeiras palavras de D. Carmo. Um homem basta e sobra, e acaba depressa todas as duvidas. Tambem as noticias agora são melhores. --Lucram os seus amigos, retorqui. D. Carmo disse o mesmo que eu, mas sem palavras, com os olhos apenas. Como iam a passeio, dispuz-me a acompanhal-as, depois de algumas noticias que trocámos, D. Carmo e eu, sobre os nossos reumatismos; estamos bons. As duas iam de braço, eu ao lado, entre ellas e o mar que não batia com força. A conversação não foi constante, porque a viuva levava os olhos no chão. A amiga falava-me, mas olhava de quando em quando para ella, e eu tambem. Fidelia falava pouco, e só então olhava para a outra. O passeio foi curto; tornei com ellas ao jardim, aonde pouco depois chegou Aguiar trazendo cartas de Lisboa para Tristão, tres ou quatro. Conhecia a letra de uma, era do pae, e provavelmente havia dentro outra da mãe, tão volumosa era. A ideia de as mandar para Santa-Pia passara-lhe pela cabeça, mas recuou por não saber se o rapaz voltará, amanhã ou depois, ou se ficará mais tempo. Se voltar já, espera; se ficar, manda-lh'as. Queria consultar a mulher. D. Carmo achou mais pratico escrever-lhe um bilhete perguntando quando conta vir, para lhe mandar ou não a correspondencia. Fidelia não sabia nada da volta do tio. Acha provavel que fique alguns dias mais para dar as ultimas providencias e coligir as notas necessarias á venda da caza e das terras; ia vendel-as, por intermedio do Banco do Sul, mas nem ella nem Aguiar sabiam nada positivamente. Eu, convidado a opinar, disse que o rapaz, sabendo de correspondencia numerosa e presumindo alguma della politica, pediria logo a remessa, se não viesse abril-a em pessoa. A segunda hipothese não foi mal acolhida pela madrinha; pareceu-lhe certa. Ao cabo, que faria elle lá depois de ver a fazenda? A fazenda naturalmente via-se depressa, não tendo elle nenhuma cousa de recordação pessoal, ou costume velho que reviver. Assim disse eu, ou por outras palavras, e os dous concordaram commigo. Como perguntasse a Fidelia se não sentiria saudades da caza em que nasceu e se criou, respondeu-me que sim, mas já não terá gosto em lá viver. --Aquillo agora é para mãos de homem, concluiu. Estas palavras foram ouvidas por D. Carmo, com vivo prazer. Aguiar provavelmente teria a mesma sensação, mas saira á calçada para falar a um visinho, e não as ouviu. Quando voltou, achou que me despedia das duas senhoras, e nem por isso deixou de me pedir que ficasse e jantasse. Recusei, e saí. Andando, ouvi que elle dizia á mulher e á amiga: --Quem sabe o que trarão estas cartas? Em caminho, arrependi-me de não ter ficado para jantar. Ouviria o _grande talento_ que arrancou a voz exclamativa ao Tristão. Não seria novo para mim, mas seria mais uma vez, comquanto pareça que ella anda a recusar-se agora ao piano. É verdade que talvez os dous a vão levar á noite a Botafogo. Tambem pode ser que ella durma ali hoje, em casa dos paes postiços. * * * * * 12 de Outubro. Aguiar e D. Carmo foram hontem levar a amiga a Botafogo, e voltaram cedo. Assim o soube hoje por elle, á porta do Banco, onde me achava a conversar com o corretor Miranda. Nenhuma noticia de Tristão, mas o bilhete do padrinho já está no correio, e segue hoje mesmo para Santa-Pia. Que as azas postaes o levem, digo eu aqui neste cantinho de papel, sem advertir no rebuscado da imagem. Advirto agora, e não a risco nem substituo; azas postaes servem, uma vez que vão ter á fazenda e não percam o bilhete em caminho. Quer-me parecer que tambem eu estou curioso de saber o que trazem as taes cartas de Lisboa, curioso apenas, e aliás não admira que desta vez são numerosas e bastas; escrevem-se geralmente pouco. Seja o que fôr os dous velhos estão anciosos de saber se o mandam voltar de cá. Não o dizem, mas vê-se. Miranda continuou a dizer das saudades que a mulher, a cunhada Cesaria, o cunhado Faria, toda a caza delle tem de mim;-cousas que ouvi agradecido, prometendo ir devolvel-as em pessoa um dia destes. Em suma, o corretor não é mau homem, e já me serviu urna vez em negocio do seu oficio. Usa a nota alegre, sem juvenilidade, e acha grande interesse em cousas que nenhum tem. * * * * * 13 de Outubro. Campos escreveu á sobrinha, referindo-lhe o estado da fazenda, e contando os passeios que deu por ella com o moço Tristão. Este é curioso e discreto no exame das cousas que vê e nas noticias que pede. Lá está o capelão, e mais o juiz municipal. A carta é anterior ao bilhete do Aguiar, não fala nelle, mas diz que Tristão não se demorará muito; conta vir daqui a dias. D. Carmo espera que os dias serão abreviados logo que elle receba o bilhete do marido. Não m'o disse a mim, quando lá estive hontem, á noite, nem o ouvi a ninguem; eu é que pensei haver-lh'o lido no rosto. A carta do desembargador foi-lhe levada pela propria Fidelia, que lá estava hontem, e desta vez tocou piano, não sei se tão bem como Tristão, mas bem; os dous podiam tocar juntos. Eramos apenas cinco; o estudante primo de Fidelia viera trazel-a e tornou com ella para Botafogo, ás dez horas. * * * * * 17 de Outubro. Chegou Tristão. Ignoro o que terá lido nas cartas de Lisboa, não falei a nenhuma das pessoas que poderiam sabel-o. Irei ao Flamengo um dia destes, amanhã. Hoje conto não sair de casa, que faço annos. Chego aos meus sessenta e... Não escrevas todo o algarismo, querido velho; basta que o saiba teu coração e vá sendo contado pelo Tempo no livro de lucros e perdas. Não escrevas tudo, querido amigo. Não saio de casa. Se a mana Rita vier jantar, como fez o anno passado, irei leval-a á noite a Andarahy. Se não vier, deixo-me ficar sósinho. Vou ocupar o tempo em reler uns papeis velhos que o meu creado José achou dentro de uma velha mala e me trouxe agora. A cara delle tinha a expressão de prazer que dá o serviço inesperado; aquelle gosto de descobrir papeis que podem ser importantes fazia-o risonho, olhos escancarados, quasi commovido. --Vossa Excellencia talvez os procure ha muito tempo. Eram cartas, apontamentos, minutas, contas, um inferno de lembranças que era melhor não se terem achado. Que perdia eu sem ellas? Já não curava dellas; provavelmente não me fariam falta. Agora estou entre estes dous extremos, ou lel-as primeiro, ou queimal-as já. Inclino-me ao segundo. Ante mim continuava o meu José com a mesma expressão de gosto que lhe deu o achado. Naturalmente agradecia á sua boa Fortuna que lh'o deparou; contará que é mais um elo que nos prenda. Talvez a ideia que o levou á mala fosse a esperança de algum valor extraviado, uma joia, por exemplo, ou ainda menos, uma camisa, um colete, um lenço, e sendo assim o silencio era mui possível. Achou papeis velhos, veio fielmente entregar-m'os. Não lhe quero mal por isso. Não lh'o quiz no dia em que descobri que elle me levava dos coletes, ao escoval-os, dous ou tres tostões por dia. Foi ha dous mezes, e possivelmente ja o faria antes, desde que entrou cá em casa. Não me zanguei com elle; tratei de acautelar os nickeis, isso sim; mas, para que não se creia descoberto, lá deixo alguns, uma vez ou outra, que elle pontualmente diminue; não me vendo zangar é provavel que me chame nomes feios, descuidado, tonto, papalvo que seja... Não lhe quero mal do furto nem dos nomes. Elle serve bem e gosta de mim; podia levar mais e chamar-me peor. Resolvo mandar queimar os papeis, ainda que dê grande magua ao José que imaginou haver achado recordações grandes e saudades. Poderia dizer-lhe que a gente traz na cabeça outros papeis velhos que não ardem nunca nem se perdem por malas antigas; não me entenderia. * * * * * 17 de Outubro, duas horas. Começo a receber cartões de visita pelo dia de hoje, entre elles os do cazal Aguiar e do Tristão, e um de Fidelia. A viuva escreveu estas palavras: _comprimentos de boa amizade._ Agora me lembra que no dia 12, quando a encontrei no Flamengo, em caza do Aguiar, usei desta expressão «boa amizade», como a mais doce que podia desejar della; foi um modo de concluir o elogio discreto que lhe fazia, apoiando a outro que D. Carmo lhe fazia tamben. Dahi este comprimento de hoje. O bilhete de Tristão traz a formula admirativa, os dos Aguiares afeto e apreço. Rita não me escreveu; certamente virá jantar. * * * * * Meia noite. Veiu, veiu, Rita veiu jantar com a alegria do costume, e examinou todas as cartas e cartões de comprimentos. Explicou-me que estivera hontem no Flamengo, onde dera noticia do meu anniversario; dahi as cortezias de hoje. Ouvindo isto, não me pude ter que lhe não falasse das cartas que aguardavam o Tristão. Disse-me que sabia dellas; eram dos paes e de amigos políticos. Entre as primeiras vinha uma para D. Carmo, com um _post-scriptum_ para o marido. Depois de alguma hesitação, perguntei-lhe se instavam pela volta delle. --Os paes não, respondeu-me Rita; os amigos não sei, apenas ouvi de D. Carmo que elles falam muito da politica de lá. E dizia-me isto um pouco aborrecida, como receiosa, e ella teme já a separação; entretanto, é a coisa mais natural do mundo. --Tristão não disse nada? --Que eu ouvisse, nada. Passei lá uma boa meia hora de conversa, e o principal assunto foi a visita de Tristão a Santa-Pia, que elle achou interessante como documento de costumes. Gostou de ver a varanda, a senzala antiga, a cisterna, a plantação, o sino. Chegou a desenhar algumas cousas. Fidelia ouvia tudo com muito interesse, e perguntava tambem, e elle lhe respondia. --Ella vae sempre vender a fazenda? --Não ouvi falar disso. --Vae, vae vendel-a. Ao menos, era plano ha tempos, e o desembargador lá ficou para cuidar de apontamentos. Elle quando vem? --Ouvi dizer que daqui a oito ou sete dias; duas semanas, quando muito. --Fidelia jantou com elles naturalmente? --Não. Quando eu saí ás quatro horas, Carmo pediu-me que ficasse. Tendo de fazer outra visita, recusei. Fidelia disse então que aproveitava a minha companhia. A outra instou com ella que jantasse, mas a amiga alegou que era esperada em caza e não podia; voltaria hoje ou amanhã. Carmo e Tristão acompanharam-nos á porta do jardim. Eu e Fidelia viemos andando, e, ao chegar á esquina da rua da Princeza, não me lembrou logo voltar a cabeça. Fidelia lembrou-se, eu imitei-a, e os dous parados na calçada diziam-nos adeus com a mão. Rita contou-me que foi até Botafogo com a viuva Noronha. De caminho falaram pouco, ou antes Fidelia é que não falou muito; ia preocupada. Apezar disso, mostrou-se o que sempre foi, afavel, quasi meiga; pareceu interessar-se pela vida de Rita, confessou saudades, sentia que se não vissem mais vezes, e pediu desculpa de não ir, ha muito, a Andarahy. Se as palavras eram poucas, não eram secas, ao contrario. Naturalmente falaram de D. Carmo e de Aguiar; tambem disseram alguma cousa de Tristão, concordaram que parecia amigo dos padrinhos. Perto da casa do tio, Fidelia entrou em uma fabrica de flores para encomendar as que levará no dia 2 de Novembro á sepultura do marido. Rita, que aliás não pensára ainda nisso, deixou de encomendar as suas; fal-o-ha quando o dia dos mortos estiver mais proximo, e tral-as-ha comsigo da cidade. Referiu-me as encomendas da viuva, a escolha, as exigencias, o numero de grinaldas, tres, e a composição das cores que teriam; não quiz deixar nada ao fabricante. Ouvi todas essas minucias e ainda outras com interesse. Sempre me sucedeu apreciar a maneira porque os carateres se exprimem e se compõem, e muita vez não me desgosta o arranjo dos proprios factos. Gosto de ver e antever, e tambem de concluir. Esta Fidelia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma. Querendo dizer isto a Rita, usei do conselho antigo, dei sete voltas á lingua, primeiro que falasse, e não falei nada; a mana podia entornar o caldo. Tambem pode ser que me engane. Não escrevo o resto. Quando ella acabou e contou o regresso, perguntei-lhe porque não viera hontem jantar commigo. Respondeu-me que, tendo de vir hoje, não queria ser convidada de vespera. Ri-me e fomos para a meza, que estava posta. Ao centro um ramo de flores, ideia della, que o mandou trazer ás escondidas, e, como eu lhe perguntasse se eram das que Fidelia encomendara, riu-se tambem. Agradeci-lhe a lembrança, exprimindo-lhe todo o meu afeto, comemos alegremente, recordando anedotas da infancia e da familia. * * * * * 18 de Outubro. Ao levantar da cama, a primeira ideia que me acudiu foi aquella que escrevi hontem, á meia noite: «Esta moça (Fidelia) foge a alguma cousa, se não foge a si mesma.» * * * * * 22 de Outubro. Fidelia não voltou ao Flamengo, apezar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer. D. Carmo fora achal-a a pintar; Fidelia lembrara-se de haver pintado em menina, e começara um trecho do jardim da propria casa. Prometeu voltar ao Flamengo no dia seguinte, e não foi. Tristão ao saber do motivo da ausencia, advertiu que a viuva Noronha podia ter em pintura talento igual ao da musica, e não sei se lh'o chamou grande; não m'o disse. Que elle mesmo é que me referiu o que ahi fica, e mais o que vou incluir nesta pagina antes que me esqueça. Tinha vindo almoçar commigo. --Venho almoçar, conselheiro; voltando agora do meu passeio, lembrou-me subir e perguntar por Vossa Excellencia. O seu creado disse-me que ia almoçar; ouso pedir-lhe um logar á meza. --Um, dous, tres, doutor, acudi eu, quantos a sua amizade pedir para o seu apetite. Deu-me noticias da gente Aguiar; estão bons; falou-me dos seus e das cartas politicas de Lisboa. Já as leu ao padrinho e á madrinha. Uma só dellas alude ao desejo de o ver tornar breve: «esperamos que não se demorará muito no Rio de Janeiro.» --E demora-se muito? perguntei-lhe. --Não sei, mas é natural que pouco; a politica chama-me. Ao almoço é que Tristão me contou a historia da tela que a viuva está pintando, da promessa que fez á amiga e não cumpriu. E disse-me depois: --Se ella sabe pintar pareceu-me que, melhor quadro que o seu jardim, é um trecho marinho do Flamengo, por exemplo, com a serra ao longe, a entrada da barra, alguma das ilhas, uma lancha, etc. A madrinha concordou logo, e foi propor á amiga a troca do quadro. Agradou-lhe este outro, prometeu vir ao Flamengo dezenhal-o, e não veiu. --É que está namorada do seu jardim. Geralmente os artistas sentem melhor as proprias imaginações. Ella ainda saberá pintar, como diz que pintou em menina? --A madrinha viu-lhe apenas algumas linhas de dezenho, e pareceram-lhe boas. Concordamos que deviam ser boas. Uma cousa traz outra, falamos das graças da viuva, da compostura, da discrição, da memoria das viagens, do gosto, dos gestos e creio que dos olhos tambem. Eu, com certeza, falei dos olhos, e agora me lembra que elle disse serem juntamente lindos e graves. Opinião ou diversão, acrescentou que os olhos das suas antigas patricias eram em geral bellos, e falou compridamente de outras damas; assim não parecia louvar somente a viuva Noronha. Achei isto bem, como equidade e como estetica. No meio da conversação tive uma ideia; disse-lhe que D. Carmo, que lhes queria tanto, em vez de propor á amiga a simples tela da praia, devia propor-lh'a com alguma figura humana. A delle ficaria bem para lhe lembrar, quando elle partisse, a pessoa do filho pintada pela filha. Tristão ouviu sorrindo isto que lhe disse; depois repetiu, como quem pensava: --A pessoa do filho pintada pela filha... Não ponho aqui o sorriso porque foi uma mistura de desejo, de esperança e de saudade, e eu não sei descrever nem pintar. Mas foi, foi isso mesmo que ahi digo, se as tres palavras podem dar ideia da mistura, ou se a mistura não era ainda maior. Dahi saltámos ás galerias de arte da Europa, e falámos do que sabiamos. Quando demos por nós, tinhamos acabado de almoçar. Ofereci-lhe charutos e o meu coração. Quero dizer que lhe pedi viesse muitas vezes dar-me aquella hora deliciosa. Retorquiu-me que dal-a não, mas tomal-a para sí. Era a volta do comprimento, e com graça. Despediu-se e saiu. Quiz sair logo, mas vim primeiro escrever isto, para que me não esqueça, como lá digo atraz. E agora que o escrevi confirmo a impressão, que me deixou o rapaz, e foi boa, como a principio. Talvez elle tenha alguma dissimulação, alem de outros defeitos de sociedade, mas neste mundo a imperfeição é cousa precisa. Pronto; vou sair, e amanhã ou depois irei saber da paizagem ou da marinha da bella Fidelia. * * * * * 28 de Outubro. Nem marinha nem paizagem, não soube de nada. Fidelia não tem aparecido no Flamengo, e escreveu hoje á velha amiga um bilhete de desculpas; esta tomando as contas ao tio, que voltou hontem da fazenda. Não me lembra se já escrevi que o Banco do Sul é que fará a transferencia de Santa-Pia. D. Carmo, a pretexto do estilo, deu-me o bilhete a ler. Tem graça, de certo, mas o verdadeiro motivo é a ternura que ella sente em ler a amiga e fazel-a ler aos outros. Depois que lh'o restitui, leu-o outra vez para si. Já devia trazel-o de cór. Em meio disto achou modo de aprovar a minha ideia do filho pintado pela filha, ouvida ao Tristão. --Hei-de dizel-a a Fidelia. Tristão não estava presente; fora jantar com um ministro. Francamente, era mais facil á moça prometer que pintar a marinha. O que a boa Carmo disse que faria penso que o não fará; não irá propor á viuva que venha copiar a figura do afilhado na marinha do Flamengo. A familiaridade que haja porventura entre elles não se ajustará muito a esta ação de arte, incomoda ou não sei que diga... Suspendo aqui a penna para ir dormir, e escreverei amanhã o resto da noite. * * * * * 29 de Outubro. O resto da noite foi passado em casa do Faria. Eram annos delle e estive lá mais tempo do que contava. Havia gente e alegria, algum canto e piano, e tambem conversa. Faria, apezar do dia e da festa, ria mal, ria sério, ria aborrecido, não acho forma de dizer que exprima com exação a verdade. É um desses homens nascidos para enfadar, todo arestas, toda secura. A mulher, D. Cesaria, estava alegre e tinha a pilheria do costume. Não disse mal de ninguem por falta de tempo, não de materia, creio; tudo é materia a linguas agudas. A maneira porque aprovava alguma cousa era quasi sarcastica; e dificil de entender a quem não tivesse a pratica e o gosto destas creaturas, como eu, velho maldizente que sou tambem. Ou serei o contrario, quem sabe? No primeiro dia de chuva implicante heide fazer a analise de mim mesmo. Quando saí de lá, Faria agradeceu-me, com o seu prazer nasal e surdo,-assim defino as palavras que lhe ouvi, acompanhadas de um fugaz sorriso de carcere. * * * * * 1 de Novembro. Este é o dia de todos os santos; amanhã é o de todos os mortos. A egreja andou bem marcando uma data para comemorar os que se foram. No tumulto da vida e suas seduções, fique um dia para elles... A reticencia que ahi deixo exprime o esforço que fiz para acabar esta pagina em melancolia; não posso, nunca pude. Tristezas não são commigo. Entretanto, em rapaz,-quando fiz versos, nunca os fiz se não tristissimos. As lagrimas que verti então,-pretas, porque a tinta era preta,-podiam encher este mundo, valle dellas. * * * * * 2 de Novembro. Mana Rita foi hoje ao cemiterio levar flores aos nossos. --Você não imagina; acordei ás cinco e meia para me vestir e estar cedo em S. João Baptista. Cheguei ás oito e pouco; achei muita gente, não tanta, porém, como hade ser logo, á tarde. Não vim buscar você, porque sei que não iria. --Pois eu fui á missa da Gloria. --A egreja é perto. --Talvez fosse ao cemiterio. Muitas sepulturas bonitas? --Bastantes; entre ellas a do marido de Fidelia. As coroas e flores que ella encomendou ha dias lá estavam bem dispostas e faziam grande efeito; parece que o desembargador mandou tambem o seu ramo; estava escrito n'uma fita. --Vocês falaram-se? --Não; ella já tinha saído. --Como sabe você que ella é que foi levar as flores e coroas? --Adivinha-se pela disposição. --Sim? --De certo, mano. A disposição, o arranjo, a combinação, tudo era de mulher. Ha dessas cousas que mão de homem não faz; mão de homem é pesada ou trapalhona, e mais se é de desembargador, como elle. Por exemplo, o nome do marido, o nome proprio só, não todo, estava cercado de perpetuas; isto é cousa que só uma senhora inventa e faz. As outras flores, rosas e papoulas, distribuiam-se com tal simetria que pediu tempo e gosto. Um homem chegava ali pegava das flores e espalhava-as á toa. --Admira que você a não visse. --É que foi muito cedo. --Mas n'um dia como o de hoje, tendo tanta cousa que arranjar. Daquella vez que a encontramos era mais tarde. --Era, mas o dia era outro; hoje havia muita gente, não quiz que a vissem, é o que foi. Mana Rita desenvolveu esta ideia, que achei aceitavel; depois falou de outros jazigos. Como dos jazigos passamos ao ministerio e a D. Cesaria não me lembra, mas falámos delle e della com interesse, e a mana com graça. Tinham estado juntas as duas, hontem á tarde; Rita desculpara-se de não ter lá ido no dia 28. Contou-me parte do que lhe ouviu ácerca de duas pessoas que lá estiveram... --Que lá estiveram? --Parece que sim. E entrou a repetir uma serie de anedotas e ditos, que ouvi durante uns dez minutos, com atenção. A maledicencia não é tão mau costume como parece. Um espirito vadio ou vazio, ou ambas estas cousas acha nella util emprego. E depois, a intenção de mostrar que outros não prestam para nada, se nem sempre é fundada, muita vez o é, e basta que o seja alguma vez para justificar as outras. Disse isto a Rita por palavras graciosas, que ella reprovou e deitou á conta da minha perversidade. * * * * * 9 de Novembro. A marinha interrompeu a paizagem, ou de todo a poz de lado. Fidelia consentiu em ir pintar um trecho da praia do Flamengo, não sei se com Tristão ou sem elle. Aguiar, que me deu a noticia, limitou-se a dizer que ella já começou a tela com muito gosto. --Vá lá amanhã, conselheiro, entre uma e duas horas. * * * * * 11 de Novembro. Não fui hontem, fui hoje ver a marinha. Achei Fidelia no jardim, junto da casa, com o pincel e a palheta nas mãos, os olhos no mar e na tela, em pé. Ao lado, sentada, estava D. Carmo, com o seu riso bom e maternal. Viu-me á porta do jardim, e fez um gesto convidando-me a entrar; entrei. --Venha, disse ella, ande ver a minha artista. Fidelia pareceu vexada com estas palavras, e estendeu-me a mão, já livre do pincel, dizendo: --Não olhe, não olhe que não presta. Olhei, prestava. Está ainda em começo, e não será obra-prima; a polidez obrigava-me a achal-a excelente, e disse-lh'o, com um gesto de admiração; mas, em verdade, presta. O fundo, serra e ceu, faz bom efeito; a agua creio que terá movimento e boa côr. Faltava Tristão; não vi nem sombra do «filho pintado pela filha». Posto não extranhasse a ausencia, lembrou-me insinual-a. Disse-lhe que podia pôr na praia a figura da boa amiga, que ali estava a acompanhal-a com os seus dous olhos amigos. Esta ia a dizer alguma cousa, mas Fidelia replicou: --Não me atrevi, por não conhecer bem a arte de figura; no colegio pintava flores e paizagens, algum pedaço de mar ou de ceu. Se não fosse isso, tirava o retrato de D. Carmo. D. Carmo confirmou: --Eu pedi-lhe que pintasse Tristão neste quadro e ella respondeu-me a mesma cousa. Aceitei a razão, aceitei uma cadeira vaga que ali estava, e pedi á viuva que continuasse a obra. Queria vel-a pintar. Na Europa tinha assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira vez que uma senhora pintava deante de mim. Fidelia dispoz-se e continuou. Após alguns minutos os tres falavamos de varias cousas. A viuva estava em toda a graça do costume, sem nenhum ar petulante que porventura pudesse tirar do exercicio; pintava modestamente. Alguma vez interrompia o trabalho, ou para ouvir melhor, ou para dizer mais longo, e logo tornava ao pincel e á tela. Ao cabo de alguns minutos cuidava eu de sair, quando vi aparecer á porta da casa nada menos que Tristão. A porta é larga, dá para um saguão, donde se comunica para cima por dous pequenos lanços de degráos, tecto baixo. Tristão vinha de concluir a correspondencia que vae mandar para o correio, segundo soube logo depois, e tornava ao logar em que estivera, ao pé das duas. Mandou vir cadeira; a que eu ocupava era a que elle ocupava antes, e não havia outra. Talvez estes pormenores não tenham valor, mas cabem aqui para o fim de acentuar bem que Tristão estava com ellas antes da minha chegada, e para lembrar que antes de vir a cadeira me consultou acerca da pintora; respondi o que cumpria. --Não é? disse elle contente do meu apoio. E acrescentou algumas palavras de louvor, calidas, sinceras de certo, que a viuva apreciou comsigo naturalmente; não as contestou, tambem não sorriu como sucede quando a gente aprova interioramente uma cousa que lhe vae bem com a alma. Ouviu pintando, recuando ou chegando, e deitando os olhos para longe. Quando os encaminhou para elle (já então sentado) não esperou que Tristão afastasse os seus; encontrou-os e deixou-os ficar onde estavam, indo continuar a marinha com tanta atenção que era como se nós outros não falássemos de nada, e nós falavamos de muita cousa, elle acaso menos, para ver melhor a pintura. Aquelle silencio de Fidelia, em contraste com a palestra de pouco antes, pareceu-me indicar que ella considerava a obra em atrazo. Tambem podia ser que o amor da arte a retivesse agora mais que a principio, e a convidasse a pintar exclusivamente. A causa secreta de um acto escapa muita vez a olhos agudos, e muito mais aos meus que perderam com a idade a natural agudeza; mas creio que seria uma daquellas, e não ha razão para descrer que fossem ambas successivamente. Quem parecia contente de tudo, palavras e silencios, era a dona da casa. Posto me désse a principal atenção, não o fazia em maneira que esquecesse a tela e os filhos. Mirava a tela e falava aos filhos com a ternura velha que já estou cançado de notar, e talvez a ternura fosse agora maior que de outras vezes; pelo menos, trazia certo alvoroço como de alma que soletra uma felicidade nova ou inesperada; não digo tudo para me não arriscar a engano. A verdade é que eu, que pensára cm sair, fui ficando, ficando, até que a viuva Noronha suspendeu o trabalho; tinha passado quasi uma hora. Confessou que estava cançada, e cuidou de recolher os pinceis e cobrir a pintura, ajudada nisso pelo moço Tristão, que o fazia com a mesma graça que ella, e um dezejo de bem servir, que é a alma da polidez. Eu, além de velho, não podia deixar a boa Carmo, que só os ajudou com os olhos, e ajudou-os bem; iam de um para outro, não só alegres, mas ainda interrogativos. Elles acabaram tudo e vieram sentar-se deante de nós, um cheio de riso, outra não cheia, mas tocada apenas do seu, que era igualmente agradecido e bom. A minha prezença era já longa, e apezar das relações que ha entre nós, começaria a parecer indiscreta. Era tempo de sair; quiz sair e ficar a um tempo, cousa impossivel; vivi assim alguns instantes de impulsos contrarios. Tristão podia resolver esta minha luta interior cantando alguma cousa que me obrigasse a ouvil-o, mas estava então ocupado em dizer finezas á artista, á viuva, á irmã, a todas aquellas tres pessoas consubstanciadas na mesma dama encantadora. Fidelia sorria com recato e atenção, e respondia tambem. Despedi-me, e achei (se não foi engano) que D. Carmo estimou a minha saída para se dar inteiramente aos dous filhos. Certo é, porém, que os tres me falaram com apreço e cortezia. Vim por ahi fóra pensando nelles. * * * * * 12 de Novembro. Fiz mal em não pôr aqui hontem o que trouxe de lá commigo. Creio que Tristão anda namorado de Fidelia. No meu tempo de rapaz dizia-se _mordido_; era mais energico, mas menos gracioso, e não tinha a espiritualidade da outra expressão, que é classica. Namoro é banal, dá ideia de uma ocupação de vadios ou sensuaes, mas namorado é bonito. «Ala de namorados» era a daquelles cavaleiros antigos que se bateram por amor das damas... Ó tempos! A minha impressão é que elle anda ou começa a andar namorado da viuva. Outra impressão que tambem não escrevi é que a madrinha parece perceber o mesmo, e tira dahi certo alvoroço. Quando lá fôr agora heide abrir todas as velas á minha sagacidade, a ver se confirmo ou desminto estas duas impressões. Pode ser engano, mas pode ser verdade. Hoje, que não saio, vou glozar este mote. Acudo assim á necessidade de falar commigo, já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A indole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciencia uma infinidade de sujeitos intoleraveis que este mundo nutre para os seus propositos secretos. A apozentação me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em que, não saindo de caza e cançado de ler, sou obrigado a falar, e não podendo falar só, escrevo. * * * * * 13 de Novembro. Aguiar veiu a mim, e disse: --Já sei que gostou da marinha. --Gostei muito. Está adeantada? --Está. --A artista não tem parado? --Não; vae lá todos os dias e pinta com amor. --Com amor? Essa é a corda principal della. Não sei se já lhe disse que o que me encanta na afeição que ella tem aos senhores, e particularmente a D. Carmo, é o toque de subordinação graciosa, que lhe dá totalmente um ar de filha. É isso, é a obediência discreta e pontual com que que ella acode aos dezejos dos seus paes de coração. --Diz bem, conselheiro. Estavamos no Tezouro, aonde fomos por negocios, e saimos dali a pé, caminho do Rocio, a pegar um bonde, mas não pegámos nada. A conversação foi o melhor vehiculo; é desses que tem as rodas surdas e rapidas, e fazem andar sem solavancos. Viemos descendo, a continuar o assunto, e a dizer cousas interessantes; eu, pelo menos, porque elle vivia mais nos olhos e nos ouvidos que na boca. Ouvia com atenção, e alguma vez com desatenção; no segundo caso, era todo olhos, mas tão alongados, que esqueciam a rua e o companheiro. Uma das confidencias que me fez merece ser posta aqui. Para me dar razão no que lhe disse da subordinação graciosa da viuva, referiu-me que as duas costumavam ir á missa, ao domingo, na matriz da Gloria; a viuva vinha sempre acompanhar D. Carmo ao Flamengo, donde tornava logo para Botafogo, se não almoçava com elles. --Carmo, para a não obrigar a vir tão longe, ia algum domingo ouvir missa a Botafogo, mas Fidelia vinha quasi sempre á Gloria. --E agora já não vem? --Agora Carmo é que não vae a uma nem a outra parte, ou só raro. A minha pobre mulher anda cançada; lá tem o seu livro, com as suas rezas marcadas. Ao domingo, á mesma hora, antes de catar noticias nas gazetas, pega em si e no livro, e acompanha a missa toda. Eu, que já sei a hora, não a perturbo nunca; se me acontece por acaso entrar no gabinete onde ella tem o seu altarzinho e o seu Christo, recuo a tempo, mas não lhe arranco os olhos da pagina; é como se não entrasse ninguem. Acaba, beija a imagem e torna ao mundo. Não sae de casa sem a beijar primeiro, como um pedido de proteção, nem volta sem fazer o mesmo, ainda vestida e de chapéu, como a dar graças. O mesmo ao deitar e ao levantar. Como esses, referiu Aguiar outros habitos cazeiros da consorte, que ouvi com agrado. Não seriam grandemente interessantes, mas eu tenho a alma feita em maneira que dou apreço ao minimo, uma vez que seja sincero. Não diria isto a ninguem cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes com paciencia, e alguma vez com satisfação, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda que me custe, e não me custa nada. Creio que outras damas leiam tambem a missa em casa, ou por fadiga, ou por doença, ou por estar chovendo, e ha sempre que louvar em pessoa que respeita os seus elos espirituaes. Só me aborrece a que os enfia ao modo de colar para dar melhor vista ao pescoço. Tal não é aquella boa senhora do Flamengo. A piedade dessa estende-se á memoria da mãe e do pae, á saudade das amigas, e (ainda que me cance repetil-o) a amizade dos seus dous filhos de emprestimo. * * * * * 20 de Novembro. Já lá voltei tres vezes. Achei sempre D. Carmo, Fidelia e Tristão. Da terceira vez Aguiar chegou mais cedo, e assistiu ás ultimas pinceladas. Creio que sim; creio que o moço admira menos a tela que a pintora, ou mais a pintora que a tela, á escolha. Uma ou outra hipothese, é já certo que está namorado. Chegou ao ponto de esquecer-nos e ficar preso della, embebido nella, levado por ella. Eu, com a arte que o Diabo me deu, divido a atenção entre a mãe e os dous filhos para concertar a cortezia e a curiosidade, e ambas saem satisfeitas do meu gesto. Quando escrevi ha dias (duas ou tres vezes) que «a moça Fidelia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma», tinha em mira o afastamento em que ella vinha estando da casa da amiga. Eil-a que continua a lá ir, e a se deixar ver do irmão que a amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir,-ou (cousa mais grave) não quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes perdoar. * * * * * 30 de Novembro. Tristão convidou-me a subir ás Paineiras, amanhã; aceitei e vou. Ha dez dias não escrevo nada. Não é doença ou achaque de qualquer especie, nem preguiça. Tambem não é falta de materia, ao contrario. Nestes dez dias soube que novas cartas chamam Tristão á Europa, agora formalmente, ainda que sem instancia; ha eleições proximas. Tristão resolveu não ir já, antes do principio do anno, mas não pode deixar de ir. Taes foram as novidades que me deram no Flamengo e fóra dali. Fóra ouvi-as da boca da graciosa Cesaria, que me disse com melancolia: --Elle gosta da Fidelia, mas é claro que lhe prefere a politica. Era a melancolia do prazer recondito, ou como se deva dizer para explicar um achado gostoso que a gente precisa disfarçar em tristeza. Havia naquella palavra tal ou qual condenação do moço, mas só aparente; o sentido verdadeiro era o gosto de ver a dama preterida. Para encubril-o bem, D. Cesaria disse todo o mal que pensa do rapaz, e não é pouco. A graça foi a mesma de seu uso, as lembranças agudas, as maneiras elegantes. Ri-me naturalmente, negando ou calando. Dentro de mim achei que a opinião era injusta, mas talvez este meu conceito seja filho da afeição que vou tendo ao moço. Ella cresce-me, com a vista e a pratica dos seus dotes, e naturalmente com a afeição e a confiança que me tem, ou parece ter. Seja o que fôr, a verdade é que não o defendi de todo, mas só em parte, e a graciosa dama apelou para o meu gosto, o equilibrio do meu espirito, o longo conhecimento que tenho dos homens... Todas as grandes qualidades deste mundo. * * * * * 1 de Dezembro. Volto espantado das Paineiras. Lá fui hoje com Tristão. No fim do almoço, acima da cidade e do mar, ouvi-lhe nem mais nem menos que a confissão do amor que dedica á formosa Fidelia. Uso os seus proprios termos: dedica á formosa Fidelia. O verbo não é vivo, mas pode ser elegante, e em todo caso, exprime a unidade do destino. As theses escolares dedicam-se a paes, a parentes, a amigos; o amor é these para uma só pessoa. Novidade não era, a confissão é que me espantou, e provavelmente elle leu esse efeito em mim. Não lhe respondi logo, salvo por um gesto de aquiescencia, preciso em taes casos, não se devendo duvidar nunca da boa escolha, ao contrario. --Não disse isto a ninguem, conselheiro, nem á madrinha nem ao padrinho. Se lh'o faço aqui é que não ouso fazel-o áquelles dous, e não tenho terceira pessoa a quem o diga. Dil-o-hia a sua irmã, se me atrevesse a tanto; mas apezar do bom trato, não lhe acho franqueza igual á sua. Parece-lhe que o meu coração escolhe bem? --Pergunta ociosa, doutor; basta amar para escolher bem. Ao Diabo que fosse era sempre boa escolha. --Essa é a regra, sei; mas no caso particular daquelle senhora não acha que é admiravel? --Acho. --Tambem assim penso; independentemente da cegueira que me daria a paixão, vejo claro que a escolha é perfeita. Já tivemos ocasião de falar nella, e combinámos no parecer. Digo-lhe até que foi esse o motivo que me levou a confessar-me hoje. Lembra-se que ha algum tempo, em sua caza, almoçando...? Concordámos em achar-lhe todas as prendas moraes e fisicas. Comprehendi que me aprovaria, e resolvi falar-lhe á cerca deste sentimento e seus efeitos. --A resposta estava dada, como diz; não ha consulta nova. --Ha; ainda lhe não disse tudo. --Pois diga o resto. Disponho-me a ouvil-o, como se eu mesmo fosse rapaz. Gosta della ha muito tempo? --Logo que cheguei comecei a gostar della. --Não reparei. --Nem ella, nem eu tambem. Senti que lhe achava alguma cousa, mas a austeridade de viuva e a minha proxima volta não deixavam entender bem o que era. Poderia ser dessas preferencias que se dão a mulheres, não havendo plano nem possibilidade de as receber na vida. Alem dessa _cousa_, gostava de a ouvir falar, de lhe comunicar ideias e observações, e todas as nossas conversas eram interessantes. Os seus modos, aquelle gesto de acordo manso e calado, tudo me prendia. Um dia entrei a pensar nella com tal insistencia que desconfiei. Recorda-se quando resolvi ir á fazenda de Santa Pia com ella e o tio? --Recordo-me. --Era já a dificuldade de ficar aqui sem ella, não sabia porquanto tempo; e depois contava que na roça, mais a sós, chegaria a fazer-lhe sentir tudo, o que me pezava e dispol-a a ouvir-me. Resolução perdida; ella não foi e eu tive de acompanhar o desembargador sozinho; pouco depois voltei... --Lembra-me. Tristão deteve-se naquelle ponto e estendeu os olhos abaixo e ao longo. Um creado veiu servir-nos café, emquanto dous grandes passaros negros cortavam o ar, um atraz do outro. Podia ser um cazal, elle que a perseguia, ella que negava. Então eu, para sorrir da confidencia, suggeri a ideia de que a bella Fidelia estivesse a fazer o mesmo gesto da ave fugitiva; talvez já gostasse delle. Não me retrucou sim, nem não, mas a expressão do rosto era negativa, e eu, para não perder o resto, perguntei-lhe: --Quem lhe diz que não, doutor? A curiosidade ia-me fazendo deslisar da discrição, e acaso da compostura; nem só a curiosidade, um pouco de temperamento tambem. Tem-se visto muito rapaz falar de damas amadas, e muita viuva sair da viuvez ou ficar nella! Naquelle caso os dous personagens davam interesse especial á aventura. Cá me acordava a afirmação de mana Rita. Que Fidelia não caza. Que não cazará nunca. A situação de ambos, a vida que chama Tristão para fóra daqui, a morte que prende a viuva á terra e ás suas saudades, tudo somava o interesse da aventura, não contando que a esses motivos de separação, eu proprio ia-me a outros de união possível dos dous. Tristão não se deixou rogar muito; desfiou varios dos seus enganos e desenganos. Custou-lhe a principio, mas, dito um caso, vieram outros, e com pouco sabia eu que aparencias iludiram as suas esperanças, e que desilusões as mataram. Agora crê devéras o peor. Não lhe dei as minhas razões contrarias; podiam não ser mais que aparências. Tambem não aludi ás suspeitas que atribuo á madrinha e ao padrinho; elles podem enganar-se como eu. Ao demais,-e é o principal,-isso viria dando ao meu papel aspeto menos grave do que convinha. Basta que já aquella conversação lhe fosse deitando as manguinhas de fora,-e a mim tambem; no fim dos charutos, estavamos quasi como dous estudantes do primeiro anno e do primeiro namoro, ainda que com outro estilo. Creio que, ao descer, vinha arrependido ou vexado da confissão; trocou de assunto, conversámos de cousas alheias, do trem e da estrada, do mato e do morro, e cá embaixo um pouco da politica de ambos os paizes. * * * * * 2 de Dezembro. Uma observação. Como é que Tristão foi tão franco hontem nas Paineiras, e tão cauteloso naquelle dia do largo de S. Francisco, onde dei com elle embebido a ver entrar a moça no carro. «Grande talento!» exclamou então, o talento de pianista, que ella não levava nas saias. E já então gostava della, pelo que lhe ouvi hontem, visto que começou a querer-lhe pouco depois de chegado. A razão é que só agora a paixão subiu tão alto; isso, e a confiança que lhe inspiro. Não se pôde conter, é o que foi. * * * * * 3 de Dezembro. Ayres amigo, confessa que ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada delle; explica-te se podes, não podes. Logo depois entraste em ti mesmo, e viste que nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se ambos a quizerem ter juntos. A questão é querel-o, e ella parece que o não quer. * * * * * 5 de Dezembro. A marinha está quasi prompta. Mana Rita veiu encantada da tela, da autora e da dona, porque Fidelia destina a obra a D. Carmo. Esteve só com as duas amigas; não achou lá Tristão nem Aguiar, e conversaram as tres longamente, até que a viuva se despediu e tornou para Botafogo, apezar de instada para jantar no Flamengo; não podia e partiu antes de cair a tarde. Rita ficou e ainda bem que ficou, porque ouviu a D. Carmo a noticia do amor de Tristão, com um acrescimo que aqui vae para ligar ao que escrevi nestes ultimos dias. Esse acrescimo é nada menos que o desejo de D. Carmo é de os ver cazados. --Digo isto só á senhora e peço-lhe que não conte a ninguem, acabou D. Carmo, eu gostaria de os ver cazados, não só porque se merecem, como pela amizade que lhes tenho e que elles me pagam do mesmo modo. Rita achou que D. Carmo dizia verdade, e achou mais que, cazando-os, teria assim um meio de prender o filho aqui. A mana é dessas pessoas que não pedem reter o que pensam, e confiou logo o achado á amiga. D. Carmo sorriu com expressão de acordo; e foi o que pensou e me disse a propria Rita. Tambem assim me pareceu, mas eu quiz deitar a minha gota de fel do costume, e disse: --Talvez a terceira razão seja a principal, se não foi unica. Rita acudiu que não. Unica não era, não podia ser. Eu, por maldade e riso, teimei que sim, mas dentro de mim acabei concordando com ella. As tres razões podiam combinar-se bem naquella senhora. A ultima, quando muito, daria maior alma ás duas primeiras: era natural. Não tardaria a perder o filho postiço, que se vae embora, e a filha de emprestimo pode vir a amar outro e cazar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra familia. Unidos os dous aqui, amados aqui, tel-os-hia ella abraçados ao proprio peito, e elles a ajudariam a morrer. Resumo assim o que pensei e agora confirmo, acrescentando que o confiei tambem á mana. --O que eu disse ha pouco foi por gracejo; acho que você tem razão. E parece-lhe que ella alcance o que deseja? --Não afirmo nem nego, mas já me parece dificil; aqui está por quê. Tristão e Aguiar chegaram pouco antes da hora de jantar, e jantámos. Aguiar indagou da pintura, D. Carmo respondeu-lhe, elle ouviu com interesse, e creio que elle e ella olharam alguma vez para o afilhado; Tristão não dizia nada; parecia até não atender ao que elles diziam. --Talvez fingisse. --No fim do jantar, antes do café, Tristão declarou aos padrinhos que talvez parta antes do fim do anno... --Antes? --Antes. --E elles não sabiam? --Parece que não, porque ficaram desconsolados, e o jantar acabou triste. --Mas como é que elle não dissera isso ao padrinho, vindo com elle de fóra? --Não vieram juntos; Tristão chegou depois do Aguiar. Pensávamos até que jantasse fóra de caza. Foi assim; no fim deu noticia da partida. Contou que uma carta atrazada... mas não mostrou a carta; terá mostrado depois que saí de lá. Pensei commigo, e expliquei: --Mana, pode ser até que não haja carta nenhuma; elle foge-lhe, não tem esperanças, quer ir quanto antes. Já isso de chegar tarde a caza prova que não quer encontrar a viuva; é o que é. Os dous velhos não procuraram dissuadil-o da resolução? --A principio não disseram nada; ficaram acabrunhados. Depois o Aguiar entrou a dizer alguma cousa, que D. Carmo ouviu e apoiou apenas com os olhos; estava triste, e para me não deixar só, falava commigo; eu respondia apertando-lhe os dedos com piedade sincera. Olhe, mano, até eu cuidei de pedir ao rapaz que se demorasse mais tempo. Elle agradeceu a minha intervenção com um sorriso tambem triste, mas declarou que não podia; pedem-lhe muito que volte. --Bem, disse eu rindo, você mostrou ahi que se compadeceu da amiga D. Carmo, mas você esquece agora neste mez de Dezembro a aposta que fez commigo no principio de Janeiro. Não se lembra do que me disse no cemiterio? Não apostou que a viuva Noronha não tornaria a cazar? Como é que pediu hoje ao Tristão que ficasse,-com o pensamento intimo de o ver cazar com ella? Concluí pegando-lhe no queixo e levantando-lhe o rosto para mim, que estava de pé. A mana confessou a contradição e explicou-a. Antes de tudo, o seu pensamento era poupar a tristeza da amiga; seriam alguns dias ou semanas mais que passariam juntos, elles e o afilhado. Mas bem podia ser tambem que Fidelia, aconselhada por elles, acabasse despozando Tristão; as circumstancias seriam outras. --Logo, eu tinha razão naquelle dia? --Inteiramente não; mas tudo pode acontecer neste mundo. --Neste mundo e no outro. Quiz acabar a conversação notando-lhe que, a despeito do pedido de D. Carmo, quando lhe confiou a intenção recondita e lhe recomendou segredo, ella acabava de me revelar tudo; mas o coração tolheu-me o remoque, por mais fraternal e innocente que me saisse. Podia resentir-se, e ella não o merece; ella é boa. Em resumo, pode ser que Rita tivesse razão no cemiterio. Se a viuva Noronha, como lá escrevi ha dias, foge a si mesma, é que tem medo de cair e prefere a viuvez ao outro estado. 10 de Dezembro. Fidelia sabe já que Tristão resolveu partir no dia 24. Foi elle mesmo que lh'o disse em caza della. * * * * * 15 de Dezembro. Se eu estivesse certo de poder cazar os dous, cazava-os, por mais que me custe confessal-o a mim mesmo, e, a rigor, não custa muito. Estou só, entre quatro paredes, e os meus sessenta e tres annos não rejeitam a ideia do oficio eclesiastico. _Ego conjugo vos..._ A razão de tal sentimento é a tristeza que vejo nos padrinhos, á medida que se aproxima o dia 24. D. Carmo perguntou a Tristão implorativamente porque é que não adiava para 9 de Janeiro a viagem; eram mais quinze dias que lhe dava. Elle respondeu que não pode. Eu, algo incredulo, perguntei-lhe se já comprara bilhete; disse-nos que vae compral-o amanhã. A minha ideia é que elle espera achar todas as passagens tomadas, e adiar a viagem por força maior. Não lh'o disse, mas tudo se deve esperar dos homens, e particularmente dos namorados. Foi hontem que falámos disso os tres; Aguiar estava presente e não opinou. Pouco depois chegou o desembargador com a sobrinha; tinham saido em visita ao presidente do tribunal, mas apenas na rua, Fidelia propoz ao tio virem passar a noite no Flamengo, e vieram; eram nove horas. Tudo o que se passou até ás dez e meia teria aqui tres ou quatro paginas, se eu não sentisse algum cançasso nos dedos. Paginas de conjeturas, porque os dous apenas se falaram, mas conjeturas firmadas na comoção visivel de um e de outro, nos silencios da Fidelia, embora orlados da atenção que dava á amiga. Os quatro homens pouco a pouco nos ligamos. Campos chegou a propor cartas, nenhum de nós tres aceitou a ideia. Aguiar ia aceitando, ainda que a meia voz, mas Tristão alegou dor de cabeça ou dor nas costas, e era verdade; tinha passado toda a manhã curvado, a arranjar cousas velhas. O mesmo cançasso dos dedos agora é resto da fadiga de hontem; ficámos a conversar, até que as duas visitas sairam, e eu com ellas. * * * * * 20 de Dezembro. Sucedeu como eu cuidava. Tristão achou todas as passagens de 24 vendidas. Vae no dia 9. O peor é que, sendo natural comprar bilhete desde logo, para lhe não acontecer o mesmo, não comprou cousa nenhuma. Sei disto por elle, a quem perguntei se se não aparelhava já; respondeu que não, que ha tempo. Agora imagino que, se houver tempo e achar bilhete, elle pode converter a necessidade de amar a moça no dezejo de ceder aos velhos, e ficará mais duas ou tres semanas. Os velhos não serão a causa verdadeira, mas não ha só filhos de emprestimo, ha tambem causas de emprestimo. * * * * * 22 de Dezembro. A verdadeira causa-ou uma dellas, estava hoje no Flamengo, acabando a marinha. Tristão lá estava tambem, e ambos faziam a estetica um do outro. Elle admirava menos a tela que a pintora, ella menos o expectaculo que o admirador, e eu via-os com estes olhos que a terra fria hade comer. D. Carmo dava-me a parte de atenção a que a cortezia a obrigava, mas tão somente essa. Olhava para os dous a miudo, a espreital-os, e, se fosse preciso, a animal-os. Mas já não era preciso. Um e outro esqueciam-se de nós e deixavam-se ir ao som daquella musica interior, que não é nova para ella. Observando a moça e os seus gestos, pensei no que me disseram ha uma semana, a ideia que ella teve de ir passar o verão em Santa-Pia, que ainda não vendeu. Não lhe importaria lá ficar com os seus libertos; faltou-lhe pessoa que a acompanhasse. Ultimamente pensou em ir para Petropolis, mas ahi é provavel que fosse tambem Tristão, e a intenção della era fugir-lhe, creio eu. Creio tambem que ella foi sincera em ambos os projetos. Fidelia ouviu á porta do coração aquelle outro coração que lhe bate, e sentiu taes ou quaes veleidades de trancar o seu. Digo veleidades, que não obrigam nem arrastam a pessoa. A pessoa quer cousa diversa e oposta, e o sentimento, se não é já dominante, para lá caminha. Uma impressão que trago do Flamengo é que D. Carmo despediu-se de mim, quando me levantei, com o mesmo prazer que lhe dei ha dias, para ficar a sós com elles. Não lhes terá dito nada com palavras, mas até onde pode ir a alma sem ellas, foi de certo. Só a compostura da boa senhora terá impedido que os abrace e lhes diga: Amem-se, meus filhos! * * * * * 28 de Dezembro. Estive hoje com Tristão, e não lhe ouvi nada a não ser que recebeu cartas de Lisboa, cartas politicas; tambem as recebeu do pae e da mãe. A mãe, se elle se demorar muito, diz que virá ver a sua terra. Deu-me noticias dos seus outros paes de cá, mas não falou da moça. 1889 2 de Janeiro. Emfim, amam-se. A viuva fugiu-lhe e fugiu a si mesma, emquanto pôde, mas já não póde. Agora parece delle, ri com elle, e no dia 9 chorará por elle, naturalmente, se elle lhe não estancar a fonte das lagrimas com um gesto. As visitas são agora diarias, os jantares frequentes; D. Carmo acompanha algumas vezes o afilhado a Botafogo, e Aguiar vae buscal-os. Se já estão formalmente declarados é o que não sei; terá faltado ocasião ou animo a elle para confiar á outra o que ella sabe pelos olhos, mas não tardará muito. O que ahi digo é o que sei por observações e conjeturas, e principalmente pela felicidade que ha no rosto do cazal Aguiar. A mana não tem saido de caza; no dia de anno bom fui jantar com ella, mas não falámos disso. * * * * * 7 de Janeiro. Tristão já não vae a 9, por uma razão que me não deu, nem lh'a pedi. Some disse que não vae; escreveu para Lisboa e ia levar as cartas ao correio. * * * * * 9 de Janeiro. Segundo anniversario da minha volta definitiva ao Rio. Não ouvi hoje os pregões do anno passado e do outro. Desta vez lembrou-me a data sem nenhum som exterior; veiu de si mesma. Esperei ver a mana entrar-me em caza e convidar-me a ir com ella ao cemiterio. Não veiu (são quatro horas da tarde) ou porque se não lembrou, ou por lhe não parecer necessario todos os annos. Quem sabe se não iriamos dar com a viuva Noronha ao pé da sepultura do marido, as mãos cruzadas, rezando, como ha um anno? Se eu tivesse ainda agora a impressão que me levou a apostar com Rita o cazamento da moça, poderia crer que tal presença e tal attitude me dariam gosto. Acharia nellas o signal de que não ama a Tristão, e, não podendo eu despozal-a, preferia que amasse o defunto. Mas não, não é isso; é o que vou dizer. Se eu a visse no mesmo logar e postura, não duvidaria ainda assim do amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viuva nem infidelidade da proxima espoza. Era o acordo ou o contraste do individuo e da especie. A recordação do finado vive nella, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estréas de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o genio da especie faz reviver o extinto em outra fórma, e aqui lh'o dá, aqui lh'o entrega e recomenda. Emquanto pôde fugir, fugiu-lhe, como escrevi ha dias, e agora o repito, para me não esquecer nunca. * * * * * 12 de Janeiro. Amanhã (13) faz annos a bella Fidelia. Tal a razão que levou Tristão a transferir a viagem de 9 para outro dia que ainda não fixou. Assim o disse aos padrinhos que o aprovaram naturalmente e alegremente; esta mesma razão me foi confessada por elle hoje, quando o encontrei a buscar uma lembrança para deixar á viuva. Taes foram as suas palavras, mas não traziam alma de convicção. A razão da ficada é outra. * * * * * 13 de Janeiro. Antes de me despir quero escrever o que ouvi agora ha pouco (meia noite) á picante Cesaria. Vim com ella e o marido da caza do desembargador onde fomos tomar chá com a gracioza viuva. Os amigos desta lá estiveram, menos Rita, que mandou cartão de comprimentos; parece que está adoentada. Não escrevo porque seja verdade o que D. Cesaria me disse, mas por ser maligno. Esta senhora se não tivesse fel talvez não prestasse; eu nunca a vejo sem elle, e é uma delicia. Ou já sabia da afeição da viuva ao Tristão, ou reparou nella esta noite. Fosse como fosse, disse-me que Tristão não voltará tão cedo a Lisboa. --Sim, concordei, parece que lhe custa muito deixar os padrinhos. --Os padrinhos? redarguiu Cesaria rindo. Ora, conselheiro! Certamente chama assim aos dous olhos da viuva, que são bem ruins padrinhos. Mas lá tem comsigo a agua benta para o batizado. Não entendendo, perguntei-lhe que agua benta era, e que batizado. O marido, com a sua rabugem do costume, respondeu que a agua benta era o dinheiro, e esfregou o pollegar e o indice; ella riu apoiando, e eu comprehendi que atribuiam ao moço uma afeição de interesse. Quiz ponderar á dama que isto que me dizia agora estava em contradição com o que uma vez lhe ouvi. Ouvi-lhe então (e creio que o escrevi neste _Memorial_) que Tristão preferia a politica á viuva, e por isso a deixava. Não lh'o lembrei por duas razões, a primeira é que seria inutil, e até prejudicial ás nossas relações, a segunda é que ofenderia a propria natureza. D. Cesaria pensa realmente o mal que diz. A contradição é aparente; está toda no odio que ella tem a Fidelia, e este sentimento é a causa intima e unica das duas opiniões opostas. Preterida pela politica ou preferida pelo dinheiro, tudo é diminuir a outra dama. A essas duas razões para ouvil-a calado acresceu a fórma. Tudo lhe sae com palavras relativamente doces e honestas, ficando o veneno ou a intenção no fundo. Ha ocasiões em que a graça de D. Cesaria é tanta que a gente tem pena de que não seja verdade o que ella diz, e facilmente lh'o perdoa. Tudo isto considerado, e mais a hora, a viagem curta, e a presença do marido, que diabo ganhava eu em desfazer o que ella dizia? Commigo, sim, logo que elles me deixaram, vim pensando no Tristão, que é tambem rico, que ama devéras a viuva, é amado por ella, e acabará cazando. Vim recordando a noite e os seus epizodios, que não escrevo por ser tarde, mas foram interessantes. O desembargador parece que já descobriu a inclinação da sobrinha, e não a desaprova. O cazal Aguiar estava feliz; ainda lá ficou para vir com o afilhado. * * * * * 23 de Janeiro. Agora me lembra que amanhã faz um anno das bodas de prata do cazal Aguiar. Lá estive naquella festa intima, que me deu prazer grande. Tambem lá esteve Fidelia, e fez o seu brinde de filha á boa Carmo, tudo correu na melhor harmonia. Ainda cá não chegára Tristão, nem era esperado. Oxalá me não esqueça de lhes mandar cedo o meu bilhete de felicitações, e póde ser que lá vá de noite. Vou, vou. .... Rita escreveu-me agora (seis da tarde) pedindo que a espere amanhã, á noite, para irmos juntos ao Flamengo. Vou; ha seis dias que lá não pizo. * * * * * 25 de Janeiro. Não havia muita gente no Flamengo. Os quatro,-cazal Aguiar, Tristão e Fidelia (não conto o desembargador, que estava jogando) os quatro pareciam viver de uma novidade recente e dezejada. Quem sabe se a mão da viuva não foi já pedida e concedida por ella? Comuniquei esta suposição a Rita, que me disse suspeital-o tambem. * * * * * 29 de Janeiro. Tínhamos razão na noite de 24. Os namorados estão declarados. A mão da viuva foi pedida naquelle mesmo dia, justamente por ser o 26° anniversario do cazamento dos padrinhos de Tristão; foi pedida em Botafogo, na casa do tio, e em presença deste, concedida pela dona, com assentimento do desembargador, que aliás nada tinha que opor a dous corações que se amam. Mas tudo neste negocio devia sair assim, de acordo uns com outros, e todos comsigo. D. Carmo e Aguiar, que haviam abraçado a Tristão com grande ternura antes e depois do pedido, estavam naquella noite em plena aurora de bem-aventurança. Valha-me Deus, pareciam ainda mais felizes que os dous. A viuva punha certa moderação na ventura, necessaria á contiguidade dos dous estados, mas esquecia-se algumas vezes, e totalmente no fim. Nada se sabia então da novidade, e agora mesmo creio que só eu a sei (assim m'o disse hoje o noivo); alguns poderiam supol-a, como a mana Rita, que já sabia metade della; os menos sagazes terão dito comsigo, ao vel-os, que é bom que Fidelia vá aliviando o luto do coração. Referindo-me o que se passou ha cinco dias, Tristão explicou esta comunicação nova: sentia-se obrigado a contar-me o final de um idilio, cujo principio me confiára em fórma elegiaca. Usou dessas mesmas expressões, e quasi me citou Theocrito. Eu apertei-lhe a mão com sincero gosto, e prometi calar. Em verdade, estimo vel-os unidos. Já escrevi que era um modo de acudir á tristeza do cazal Aguiar. Agora acrescento (se já o não disse tambem) que elles se merecem, são moços, bellos, amam-se, têm o direito natural e legitimo de se possuirem. --Não publicamos oficialmente o nosso cazamento proximo, concluiu Tristão, porque eu escrevi a meus paes, e só nos cazaremos depois que me chegar a resposta. A resposta é sabida, e se pudesse ser contraria, nem por isso deixariamos de cazar-nos; todavia, não quero publicar já o acordo, é uma fórma de respeito aos velhos. Em seguida começou a desfiar as excelentes qualidades da moça. Já lhe ouvira algumas e conhecia-as todas, mas quando se trata com esta especie de gente é preciso ter a maior indulgencia do mundo. Tristão falava com tal sinceridade e gosto que seria duro não lhe dar ouvidos complacentes e palavras de aprovação; dei-lh'os; elle acabou pedindo-me o primeiro abraço de pessoa extranha; dei-lh'o apertado. * * * * * 2 de Fevereiro. O abraço que lá contei atraz fez-me bem; foi sincero. Podia ser afetado ou apenas de cortezia, mas não foi; gostei de ver feliz aquelle rapaz, e com elle a dama, e com elles os dous velhos de cá e os de lá. Talvez seja engano meu, mas acho a viuva agora mais bonita. A causa disto pode ser a mudança proxima do estado. A melancolia de antes era verdadeira, mas extranha ou hospede, não sei como diga para significar uma especie de visita de pezames, poucos minutos e poucas palavras. Já lá escrevi, ha tres semanas, a 9 do mez passado, alguma cousa que de certo modo explica e ata os dous estados. * * * * * 6 de Fevereiro. Não ha como um grande segredo para ser divulgado depressa. Além de mim, que sei, e de Rita, que desconfia, ha já quem afirme que os dous se cazam; ou porque o sabem ou porque desconfiam somente, mas afirmam. Osorio, que ouviu falar disso, recebeu a noticia como um grande golpe novo e inesperado. Nem faltarão outros que gostem della ou morram por ella, e façam figas ao Tristão. Verdade é que Osorio estava já desenganado, mas foi isto mesmo que lhe reabriu a ferida. O desengano da parte della era a fidelidade ao morto; desde que ella vae para outro, podia ir para elle, e é isto que o irrita, como sucede ao parceiro do gamão que dá com o copo no taboleiro se lhe sae o peor mumero de dados. * * * * * 10 de Fevereiro. A felicidade é palreira. D. Carmo ainda me não disse que os dous estão para cazar, mas já hoje me confiou que escreveu á comadre, mãe de Tristão, a quem não escreve ha muito. Justamente pelo mesmo paquete que levou a carta do afilhado. Naturalmente reforçou o pedido e analisou as graças phisicas e moraes de Fidelia, e se lhe não pediu que os deixe cá, e venha ella tambem, acabará por ahi. Nessa occasião me dirá o resto, ou antes. * * * * * 12 de Fevereiro. Estava com dezejo de ir passar um mez em Petropolis, mas o gosto de acompanhar aquelles dous namorados me faz hesitar um pouco, e acabará por me prender aqui. Rita tem o mesmo gosto, e já agora os frequenta mais. Hontem disse-me que o cazamento é certo. --Mas quem disse a você que elles se cazam? --Ninguem me disse, eu é que adivinhei. D. Carmo, a quem falei nisto, ficou um pouco embaraçada; não queria confessar e tinha vergonha de negar, é o que é; mas eu desconversei e falei de outra cousa. Só se elles não lhe disseram ainda nada... Não sei que escrupulo me deteve a lingua; não lhe contei o que sabia da parte do proprio Tristão, mas não me custou nada; apenas retruquei disfarçando: --Bem, a viuva não caza commigo, caza com outro, segundo lhe parece: mas então você confessa que perdeu a aposta. --Não digo que não. Tudo está nas mãos de Deus. --Lembra-se daquelle dia no cemiterio? --Lembra-me; ha um anno. Repito, não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento. Algum dia, quando sentir que vou morrer, heide ler esta pagina a mana Rita; e se eu morrer de repente, ella que me leia e me desculpe; não foi por duvidar della que lhe não contei o que já escrevi atraz. Leia, e leia tambem esta outra confissão que faço das suas qualidades de senhora e de parenta. Talvez eu, se vivessemos juntos, lhe descobrisse algum pequenino defeito, ou ella em mim, mas assim separados é um gosto particular ver-nos. Quando eu lia classicos lembra-me que achei em João de Barros, certa resposta de um rei africano aos navegadores portuguezes que o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquelle penedo contiguo ao mar, que batia nelle com violencia. A imagem era viva, e se não foi a propria ouvida ao rei de Africa, era comtudo verdadeira. * * * * * 12 de Fevereiro, _onze horas da noite._ Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio dia, e achei o final demaziado sceptico. A mana que me perdoe. Chego do Flamengo, onde achei Aguiar meio adoentado, na sala, numa cadeira de extensão, as portas fechadas, grande silencio, os dous sós. Tristão saira para Botafogo, não que não quizesse ficar, mas padrinho e madrinha disseram-lhe que fosse, que Fidelia podia ficar assustada se elle não aparecesse, que lhe désse lembranças. Tristão cedeu e foi. Eu cederia tambem, sem teimar muito, como provavelmente este não teimou nada. Não me disseram as cousas naquelles termos instantes, mas os que empregaram vinham a dar nelles. Continuam a calar o negocio do cazamento. A doença do Aguiar parece que é um resfriado, e desaparecerá com um suadouro; nem por isso elle me despediu mais cedo. D. Carmo teimava em fazel-o recolher, e eu em sair, mas o homem temia que eu viesse meter-me em casa sósinho e aborrecido; foi o que elle mesmo me disse, e reteve-me em quanto pôde. Não saí muito tarde, mas tive tempo de ver a dona da casa ir de um para outro cabo do espirito, entre os cuidados de um e as alegrias de outro. Interrogativa e inquieta, apalpava a testa e o pulso ao marido; logo depois aceitava a ponta da conversação que elle lhe dava, acerca da Fidelia ou do Tristão, e a noite passou assim alternada, entre o bater do mar e do relogio. * * * * * 13 de Fevereiro. Mandei saber do Aguiar; amanheceu bom; não sae para se não arriscar, mas está bom. Escreveu-me que vá jantar com elles. Respondi-lhe que a doença foi um pretexto para passar o dia de hoje ao pé da espoza, e por isso mesmo não me é possivel ir contemplar de perto esse quadro de Theocrito. Realmente, não posso, tenho de ir jantar com o encarregado de negocios da Belgica. Confesso que preferia os Aguiares, não que o diplomata seja aborrecido, ao contrario; mas os dous velhos vão com a minha velhice, e acho nelles um pouco da perdida mocidade. O belga é moço, mas é belga. Quero dizer que, cançado de ouvir e de falar a lingua franceza, achei vida nova e original na minha lingua, e já agora quero morrer com ella na boca e nas orelhas. Todos os meus dias vão contados, não ha recobrar sombra do que se perder. «Quadro de Theocrito, escreveu-me Aguiar em resposta á minha recuza, quer dizer alguma cousa mais particular do que parece. Venha explicar-m'o amanhã, entre a sopa e o café, e contar-me-ha então os planos secretos da Belgica. Tristão diz-me que jantará tambem, se V. Ex. vier. Veja a que ponto chegou este ingrato, que só janta comnosco, se houver visitas; se não, some-se. Virá, conselheiro?» Respondi que sim, e vou. A frase final do bilhete traz uma afetação de magua, algo parecido com prazer que se encobre; por outras palavras, sabe-lhes aquella ausencia do rapaz, uma vez que tudo é amarem-se duas creaturas que os amam, e a quem elles amam tambem. Heide ver que, acabado o jantar, os primeiros que o remetem para Botafogo são elles mesmos. * * * * * 15 de Fevereiro. Não, não remeteram Tristão para Botafogo. Creio que o desejassem e o fizessem, mas não tiveram tempo. Tão depressa acabamos de jantar, apareceram Fidelia e o tio. Conclui que os dous namorados houvessem concertado isto mesmo. Noite boa para todos. Eu proprio achei prazer em observar os dous. Não é que elles não buscassem disfarçar, ella principalmente, mas não ha disfarce que baste em taes lances. A agitação interior transtornava os calculos, e os olhos contavam os segredos. Quando falavam pouco ou nada, o silencio dizia mais que palavras, e elles davam por si pendentes um do outro, e ambos do ceu. Foi o que me pareceu. Não me pareceu menos que o ceu os animava e que elles nos mandavam a todos os diabos, a mim e aos tres velhos, e aos paes de Tristão, aos paquetes, ás malas, ás cartas que esperavam, a tudo que não fosse um padre e latim,-latim breve e padre brevissimo, que os aliviasse do celibato e da viuvez. E desta maneira diziam tudo o que sabiam de si. Sabiam tudo. Parece incrivel como duas pessoas que se não viram nunca, ou só alguma vez de passagem e sem maior interesse, parece incrivel como agora se conhecem textualmente e de cór. Conheciam-se integralmente. Se alguma celula ou desvão lhes faltava descobrir, elles iam logo e pronto, e penetravam um no outro, com uma luz viva que ninguem acendeu. Isto que digo pode ser obscuro, mas não é fantazia; foi o que vi com estes olhos. E tive-lhes inveja. Não emendo esta frase, tive inveja aos dous, porque naquella transfuzão desapareciam os sexos diferentes para só ficar um estado unico. * * * * * 16 de Fevereiro. Esqueceu-me notar hontem uma cousa que se passou ante-hontem, no começo do jantar do Flamengo. Aqui vae ella; talvez me seja precisa amanhã ou depois. As primeiras colheres de sopa foram tanto ou quanto caladas e atadas. Tinham chegado cartas da Europa (duas) e Tristão as leu á janella, rapidamente, parecendo não haver gostado do assunto. Comeu sem atenção nem prazer, a principio. Naturalmente os padrinhos desconfiaram alguma cousa, mas não se atreveram a perguntar-lhe nada. Olharam para elle, á socapa; eu, para lhes não perturbar o espirito, não trazia assunto extranho, e comia commigo. Depressa acabou o constrangimento, e o resto do jantar foi alegre. Já lá deixei notado o que foi o resto da noite. Se eu quizesse saber o que diziam as cartas bastaria ser indiscreto ou descortez; era perguntar-lh'o em particular. Tristão me confiaria, creio, visto que entro cada vez mais no coração daquelle moço. Ouve-me, fala-me, busca-me, quer os meus conselhos e opiniões. Mas a impressão má foi tão breve que provavelmente não foi grande, e elle acabaria referindo tudo aos padrinhos quando ficaram sós, e mais certamente á noiva, hontem. Devem estar já no periodo dos segredos comuns. * * * * * 18 de Fevereiro. Telegrama dos paes de Tristão, dizendo-lhe que sim, que aprovam, que os abençoam. O estilo telegrafico é mais concizo, mas foi assim que Tristão m'o traduziu de cór; contentamento traz derramamento. Apertei-lhe a mão com prazer; elle quiz um abraço. Foi aqui em casa, quando eu ia a sair, duas horas da tarde. Saimos juntos, e tive de ouvir tres panegiricos, um dos paes, outro dos padrinhos, e o terceiro (aliás vigesimo) da propria dama dos seus pensamentos. --D. Fidelia ficou contentissima; diz que nunca duvidou da resposta, mas a declaração telegrafica mostra que os velhos não se puderam guardar para o correio, e responderam logo. Agora esperamos cartas, mas a publicação do cazamento faz-se já. Ao sair do bonde ouvi um quarto panegirico, o dos seus chefes politicos que estão anciosos por vel-o na camara dos deputados e escreveram-lhe. Um delles chegou a confessar-lhe que abandonaria a politica, se elle a deixasse tambem. --É exagero, concluiu Tristão sorrindo, mas isto prova que me querem. Tambem pode ter sido um meio de me chamar depressa; o outro limitou-se a dizer que a minha eleição é certa, e a candidatura vae ser aprezentada. --Sim? Felicito-o. --Não já, nem publicamente. Não disse nada disto aos padrinhos; a D. Fidelia, sim, contei-lh'o em particular, e agora a V. Ex. pedindo-lhe a maior reserva. Provavelmente eram as duas cartas do outro dia. Mas, de facto, partirá elle, ou ainda está incerto se cederá ou não á espoza, caso ella pense em ficar? A rezerva que me pediu explicará uma e outra solução... * * * * * 22 de Fevereiro. Está publicado o cazamento de Tristão e de Fidelia, não nos jornaes, e antes fosse nelles tambem; está só publicado entre as relações das duas familias... Eu gosto de ver impressas as noticias particulares, é bom uso, faz da vida de cada um ocupação de todos. Já as tenho visto assim, e não só impressas, mas até gravadas. Tempo hade vir em que a fotografia entrará no quarto dos moribundos para lhes fixar os ultimos instantes; e se ocorrer maior intimidade entrará tambem. * * * * * 25 de Fevereiro. Quando mana Rita veiu trazer-me a noticia oficial do cazamento mostrei-lhe a minha carta de participação, e fiz um gesto de triunfo, perguntando-lhe quem tinha razão no cemiterio, ha um anno. Ainda uma vez concordou que era eu, mas emendou em parte, dizendo que a nossa aposta é que ella cazaria commigo, e citou a aposta entre Deus e o Diabo a proposito de Fausto, que eu lhe li aqui em caza no texto de Goethe. --Não, trapalhona, você é que me incitou a tental-o, e desculpou a minha idade, com palavras bonitas, lembra-se? Lembrava-se, sorrimos, e entrámos a falar dos noivos. Eu disse bem de ambos, ella não disse mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de ver cazar a viuva, como se fosse cousa condenavel ou nova. Não tendo cazado outra vez, pareceu-lhe que ninguem deve passar a segundas nupcias. Ou então (releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora taes ou quaes remorsos de não havel-o feito tambem... Mas, não, seria suspeitar de mais de pessoa tão excelente. Ahi fica, mal resumida, a nossa conversação. Não falámos da data do cazamento, nem da partida do cazal, se partisse. Rita era pouca para referir anedotas, repetir ditos e boatos, nenhum malevolo nem feio, todos interessantes, ouvidos á gente Aguiar. * * * * * Seis horas da tarde. Vim agora da rua, onde me confirmaram que o corretor Miranda teve hoje de manhã uma congestão cerebral. Rita só me falou disso ao sair daqui, e esqueceu-me escrevel-o. Estavamos no patamar da escada quando ella me contou que ouvira a noticia, no bonde, a dous desconhecidos. --Só agora é que você me dá esta novidade? disse-lhe eu. Tem razão; a vida tem os seus direitos imprescritiveis; primeiro os vivos e os seus consorcios; os mortos e os seus enterros que esperem. Tambem eu fiz o mesmo; só agora falo do homem. * * * * * 26 de Fevereiro. Miranda morreu hontem ás dez horas; enterra-se hoje ás quatro. Creio que deixa a familia bem. Davamo-nos sem ser grandes amigos. Eu, se fosse a somar os amigos que tenho perdido por esse mundo, chegaria a algumas duzias delles. Os jornaes dizem que não ha convites para o enterro; irei ao enterro sem convite. * * * * * Dez horas da noite. Lá fui a enterrar o Miranda. Não valeria a pena contal-o, se não fosse o que me sucedeu no fim. Muita gente, as tristezas do costume. A propria Cesaria parecia abatida; não digo se chorava ou não. Aguiar e Campos tambem compareceram, e outros conhecidos. No cemiterio, deitada a ultima pá de terra na cova, lembrou-me ir ao jazigo dos meus. Desviei-me e fui; achei-o lavado como de costume, e depois de alguns minutos, vendo que a gente não acabava de sair, caminhei para o tumulo do Noronha, marido de Fidelia. Sabia onde ficava, mas ainda lá não fora. Agora que a viuva está prestes a enterral-o de novo, pareceu-me interessante miral-o tambem, se é que não levara tal ou qual sabor em atribuir ao defunto o verso de Shelley que já puzera na minha boca, a respeito da mesma bella dama: _I can, etc._ Tumulo grave e bonito, bem conservado, com dous vasos de flores naturaes, não ali plantadas, mas colhidas e trazidas naquella mesma manhã. Esta circumstancia fez-me crer que as flores seriam da propria Fidelia, e um coveiro que vinha chegando respondeu á minha pergunta: «São de uma senhora que ahi as traz de vez em quando...» A pergunta foi feita tão naturalmente que o coveiro não teve duvida em responder, nem eu em contal-o aqui. Tambem não quero calar o que vim pensando commigo. Já não havia ninguem dos que acompanharam o enterro do Miranda. Chegava outro, e entre um e outro meti-me no carro e vim para casa. Em caminho pensei que a viuva Noronha, se efetivamente ainda leva flores ao tumulo do marido, é que lhe ficou este costume, se lhe não ficou essa afeição. Escolha quem quizer; eu estudei a questão por ambos os lados, e quando ía a achar terceira solução chegara á porta da casa. Desci, dei ao cocheiro a molhadura de uso, e enfiei pelo corredor. Vinha cançado, despi-me, escrevi esta nota e vou jantar. Ao fim da noite se puder, direi a terceira solução: se não, amanhã. A terceira solução é a que lá fica atraz, não me lembra o dia... ah! foi no segundo anniversario do meu regresso ao Rio de Janeiro, quando eu imaginei poder encontral-a deante da pessoa extinta, como se fosse a pessoa futura, fazendo de ambas uma só creatura presente. Não me explico melhor, porque me entendo assim mesmo, ainda que pouco. D. Cesaria, se vier a sabel-o é capaz de ir dizel-o ao proprio Tristão, com uma gota amarga ou corrupta, ou ambas as cousas para variar... Já já, não; está ainda com a morte do cunhado na garganta, mas tudo passa, até os cunhados. * * * * * Sem data. Já lá vão dias que não escrevo nada. A principio foi um pouco de reumatismo no dedo, depois visitas, falta de materia, emfim preguiça. Sacudo a preguiça. A noite passada estive em casa da viuva Noronha, quasi que a sós com ella; havia a mais o tio, um colega da Relação e uma parenta velha. Tristão fôra a Petropolis, levado pelos padrinhos até á barca da Prainha, e por mim que os vi passar na rua da Quitanda, e subi ao carro convidado por elles. Não lhes ouvi então o motivo da ida a Petropolis, mas já o sabia de vespera; foi examinar uma caza para o noivado. Conclui, não sei porque, que elles ficavam morando aqui. Posso dizer que verdadeiramente fiquei a sós com ella. Tendo ouvido ao tio que a sobrinha andava com saudades do velho amigo,-que sou eu-imaginei que era mentira; o tio queria parceiro para cartas. Não fui e acertei; a parenta foi ao voltarete com os dous magistrados. Eu, relativamente a Fidelia, já cheguei á liberdade de lhe perguntar se não tinha saudades do noivo. A resposta foi afirmativa, mas calada, um sorriso breve e um gesto de sobrancelhas. Tristão foi o assunto mais frequente da conversação, dizendo eu todo o bem que penso delle e francamente é muito, ao que ella retrucava sem vaidade, antes com modestia e discrição; em si mesma devia estar feliz. Disse-me que elle recebera cartas da familia, confirmando por extenso o que já lhe mandára em resumo. A da mãe era toda ternura, citou-me algumas frases da futura sogra, e foi buscar a carta della para que eu a lesse tambem. --Cartas politicas não vieram? --Parece que vieram. Li e louvei muito a carta da paulista, que achei efetivamente terna, ainda que derramada, mas ternura de mão não conhece sobriedade de estilo. Era escrita á propria Fidelia. Vendo que esta gostava da conversa, não lhe pedi musica; ella é que foi de si mesma tocar piano, um trecho não sei de que autor, que se Tristão não ouviu em Petropolis não foi por falta de expressão da pianista. A eternidade é mais longe, e ella já lá mandou outros pedaços da alma; vantagem grande da musica, que fala a mortos e a ausentes. * * * * * Sabado. Fidelia parece retrair-se agora depois das primeiras confidencias que me fez, e é natural. Como eu lhe pedisse noticias de Tristão, respondeu-me que não as tinha, e falou de outra cousa; mas falando-lhe eu da alegria recente de D. Carmo, referiu-me as tristezas que lhe ouviu uma vez a proposito da volta do afilhado, e do conselho que então lhe deu de ir com elle; ao que a boa senhora retrucou que seria preciso separar-se do marido e não podia. --Veja o perigo de dividir a alma com duas pessoas; eu, em moço, nunca o fiz, menos o faria agora depois de velho. Sobre isto (que não tinha sentido claro nem intenção) dissemos cousas que não importa escrever aqui. Ella falou com graça, e provavelmente com verdade, mas não tratámos do assunto principal do coração da moça. Eu deleitava-me em aprecial-a por dentro e por fora, não a achando menos curiosa interna que externamente. Sem perder a discrição que lhe vae tão bem, Fidelia abre a alma sem biocos, cheia de confiança que lhe agradeço daqui. * * * * * 9 de Março. Tristão voltou de Petropolis. Deixou casa alugada em Westphalia, casa posta pelo comendador Josino, que a vae deixar por algum tempo e segue com a familia para o sul; passou-lhe o contracto por tres mezes. D. Carmo e Fidelia sobem a vel-a esta semana. Andam agora muito mais juntas, em casa ou na rua, naturalmente a confidencia é maior. Tambem eu ando com ellas se as encontro, tambem ouço as palavras de ambas. --Mana, disse eu a Rita contando-lhe estas cousas em Andarahy, eis aqui em que acaba um velho e grave diplomata apozentado, sem os cançassos do oficio, é certo, mas tambem sem as esperanças da promoção. Rita entendeu e quasi me puxou o nariz; preferiu dizer com saudade e consolação que não tivesse ideias de cemiterio. Esta alusão á visita que fizemos ao jazigo da familia, ha mais de um anno, levou-me quasi a confessar o sentimento paterno que Fidelia acaso acorda em mim, mas recuei a tempo. Era provavel que Rita me dissesse, como fez um dia, que eram desculpas de mau pagador. A mana gosta de mofar, sem criar odio a ninguem, e menos a mim que a outro. Ao cabo, ha cousas que apenas se devem escrever e calar, é o que eu faço a esta especie de afeição nova que acho na viuva. * * * * * 13 de Março. Não ha como a paixão do amor para fazer original o que é comum, e novo o que morre de velho. Taes são os dous noivos, a quem não me canço de ouvir por serem interessantes. Aquelle drama de amor, que parece haver nascido da perfidia da serpente e da desobediencia do homem, ainda não deixou de dar enchentes a este mundo. Urna vez ou outra algum poeta empresta-lhe a sua lingua, entre as lagrimas dos expectadores; só isso. O drama é de todos os dias e de todas as formas, e novo como o sol, que tambem é velho. * * * * * 20 de Março. D. Carmo tomou a si adornar a casa dos noivos. Soube isto pelo desembargador, que chegou de Petropolis e deixou a casa «uma belleza» com a ordem em que ella dispõe os moveis e os adornos, alguns destes obra já de suas mãos. --Já? perguntei. --Já; D. Carmo trabalha depressa, e neste momento com grande afeição; deu-lhes tambem muitos trabalhos seus. Converse com o Aguiar, que lhe dirá a mesma cousa, e Tristão tambem; Fidelia é do mesmo parecer. Rita, sem nada ver, acredita que seja assim; foi o que me respondeu. Quanto a D. Cesaria tambem não viu nada, mas inclina-se a crer que lhe falte alguma harmonia. --Pode ser que não, aventurei. --Não digo que D. Carmo não pudesse fazer alguma cousa capaz, mas com esta pressa, ás carreiras, não é provavel. Demais ella não possue tanto gosto como se quer; algum tem, mas falta-lhe graça. Aos noivos tambem; elle parece-me espalhafatoso... Quiz defender os tres, mas a certeza de que ella não tem de mim melhor opinião, fez-me recuar, e dizer-lhe que nunca lhe achei tanto espirito. Fui além; gabei-lhe os olhos. Como então passasse os dedos pelas sobrancelhas, gabei-lhe a mão, e iria aos pés, se me mostrasse os pés, mas não me mostrou mais nada. * * * * * 21 de Março. Explico o texto de hontem. Não foi o medo que me levou a admirar o espirito de D. Cesaria, os olhos, as mãos, e implicitamente o resto da pessoa. Já confessei alguns dos seus merecimentos. A verdade, porém, é que o gosto de dizer mal não se perde com elogios recebidos, e aquella dama, por mais que eu lhe ache os dentes bonitos, não deixará de m'os meter pelas costas, se for oportuno. Não; não a elogiei para desarmal-a, mas para divertir-me, e o resto da noite não passei mal. Estava em caza della, onde a irmã escurecia tudo com a sua viuvez recente. D. Cesaria disse muitas cousas de fel e de mel, trocando-as e completando-as com tal arte que alguma vez uma cousa parecia outra, e ambas pareciam as duas unidas. * * * * * 22 de Março. A reflexão que vou fazer é curta; se tal não fora, melhor seria guardal-a para amanhã, ou logo mais tarde, quando me recolher; mas é curta. Curta e lucida. Tristão pode acabar deitando ao mar a candidatura politica. Pelo que ouvi e escrevi o anno passado da primeira parte da vida delle, não se fixou logo, logo, em uma só cousa, mudou de afeições, mudou de preferencias, a propria carreira ia ser outra, e acabou medico e politico; agora mesmo, vindo a negocios e recreios, acaba cazando. Nesta parte não ha que admirar; o destino trouxe-lhe um feliz encontro, e o homem aceitará algemas, se as houver bonitas, e aqui são lindas. Já me fala menos de partidos e eleições, e não me conta o que os chefes lhe escrevem. Commigo, ao menos, só me fala da viuva, e não creio que com outros seja mais franco, nem mais extenso, dizendo as suas ambições politicas, proximas e remotas. Não; todo elle é Fidelia, e pode bem mandar a cadeira das Cortes ao Diabo, se a noiva lh'o pedir. Dir-se-ha que é um versatil, cativo do mais recente encanto? Pode ser; tanto melhor para os Aguiares. Se assim acontecer, lerei esta pagina aos dous velhos, com esta mesma linha ultima. * * * * * 25 de Março. Era minha ideia hoje, anniversario da Constituição, ir comprimentar o imperador, mas a visita de Tristão fez-me abrir mão do plano. Deixei-me estar a conversar com elle de mil cousas varias, depois saímos, passeámos e tornámos a casa. Não aceitou jantar commigo por ter de ir jantar com ella. Naturalmente falámos della algumas vezes, elle com entusiasmo, eu com simpatia. Talvez eu falasse menos que elle, é verdade; mas eu sou apenas amigo de ambos, e, de costume, prefiro ouvir. Outro assunto que nos prendeu tambem, menos que ella, foi a politica, não a de cá nem a de lá, mas a de além e de outras linguas. Tristão assistiu á Communa, em França, e parece ter temperamento conservador fora da Inglaterra; em Inglaterra é liberal; na Italia continua latino. Tudo se pega e se ajusta naquelle espirito diverso. O que lhe notei bem é que em qualquer parte gosta da politica. Vê-se que nasceu em terra della e vive em terra della. Tambem se vê que não conhece a politica do odio, nem saberá perseguir; em suma, um bom rapaz, não me canço de o escrever, nem o calaria agora que elle vae cazar; todos os noivos são bons rapazes. * * * * * 26 de Março. _Or bene_, marcou-se o dia do cazamento de Tristão e Fidelia; é a 15 de Maio. Já estava disposto entre elles, secretamente, para que os papeis corressem em Lisboa, a tempo. Os de cá vão correr já. Foi a propria D. Carmo que me deu a noticia hoje, antes que me venha por carta, como se tratasse de pessoas minhas, noivo e noiva, tão frequentes somos os tres e os quatro, mas logo reduziu tudo a si mesma. --Realisa-se um grande sonho meu, conselheiro, disse ella. Tel-os-hei finalmente commigo. Espero arranjar-lhes caza aqui mesmo no Flamengo. Ella disse-me uma vez que seria minha filha... --Foi por occasião das suas bodas de prata, não foi? --Ouviu? --Não ouvi; mas vi-lhe um gesto que vinha a dar na mesma. Lembre-se que eu estava a seu lado, e ella ao pé de seu marido; a distancia era curta, e eu não esqueço nada. --Justamente. Senti-me feliz, mas não contei que a felicidade viesse a ser maior. Eu, para levar a conversa a outro ponto, insisti que não esqueço nada, e referi varias anedotas de lembrança viva, todas verdadeiras, mas da minha mocidade. Agora muita cousa me passa, muitas se confundem, algumas trocam-se. Mas, emfim, mudára o caminho da conversação, que é o que eu queria para não atalhar a felicidade da boa Aguiar com pergunta indiscreta ácerca de politica. Não contei que ella propria falasse disso, como fez. Tristão ja lhe não toca em politica, e as cartas escasseiam ou tratam de materia aborrecida, que elle não comunica a ninguem, guardando-as ou lendo-as por alto e de passagem. A mãe escreveu-lhe ultimamente. --A comadre mandou-me dizer que eu lhe quero roubar o filho, e ameaçou-me de o vir buscar com uma esquadra; respondi-lhe gracejando tambem. D. Cesaria, que entrava então na sala, recebeu a noticia do dia do cazamento; ouvira falar disso, e vinha saber se era verdade. O alvoroço e doçura com que falou á outra compensou em grande parte o mal que me dissera della, e por outra maneira confirmou o que lá pensei uma vez (e não sei se escrevi) sobre a propriedade deste mundo. Deus vencia aqui o Diabo, com um sorriso tão manso e terno que faria esquecer a existencia do immundo consocio. O marido daquella dama não seria capaz de tamanho contraste, creio eu; falta-lhe disposição, e principalmente maneiras. É sujeito capaz de pagar com um pontapé a noticia que lhe trouxerem da sorte grande. Não sabe ser feliz, posto não lhe custe nada; não sei se me explico bem, mas basta que o sinta commigo. Isto e outras cousas que fui pensando vieram comendo o tempo, e ás onze horas estava em casa. Antes de me meter na cama, refleti que efetivamente Tristão já me não fala em politica, nem me cita as cartas que recebe, e pode ser que ellas escasseiem devéras. Soubesse eu fazer versos e acabaria com um cântico ao deus do amor; não sabendo, vá mesmo em proza: «Amor, partido grande entre os partidos, tu és o mais forte partido da terra...» Lerei esta outra pagina aos dous moços, depois de cazados. * * * * * 4 de Abril. Não esperava por esta. Tristão veiu pedir-me que lhe sirva de padrinho ao cazamento. Não podia negar-lh'o, e aceitei o convite, ainda que sem grande gosto. Ahi tinha elle o Aguiar, ou o Campos, mas emfim, quero ajudar a felicidade de todos. Deu-me outros pormenores: cazamento á capucha, entre onze horas e meio dia, almoço no Flamengo, em familia, e os dous serão levados á Prainha modestamente, embarcarão alli para Petropolis. Minucias escusadas, mas tudo se deve escutar com interesse a um coração que ama. * * * * * 8 de Abril. --Sabe o que D. Fidelia me escreveu agora? perguntou-me Aguiar. Que o Banco tome a si vender Santa-Pia. --Creio que já ouvi falar nisso... --Sim, ha tempos, mas era ideia que podia passar; vejo agora que não passou. --Os libertos têm continuado no trabalho? --Têm, mas dizem que é por ella. Não me lembra se fiz alguma reflexão ácerca da liberdade e da escravidão, mas é possivel, não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou não vendida. O que me interessa particularmente é a fazendeira,-esta fazendeira da cidade, que vae cazar na cidade. Já se fala no cazamento com alguma insistencia, bastante admiração, e provavelmente inveja. Não falta quem pergunte pelo Noronha. Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha? Não são muitos que perguntam, mas as mulheres são mais numerosas,-ou porque as afligiam as lagrimas de Fidelia,-ou porque achem Tristão interessante,-ou porque não neguem belleza á viuva. Tambem pode ser que as tres razões concorram juntas para tanta curiosidade; mas, emfim, a pergunta faz-se, e a resposta é um gesto parecido com esta ou outra resposta equivalente:-Ah! minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria a eternidade. É engenhoso, mas não é bom, principalmente não é certo. Os mortos param no cemiterio, e lá vae ter a afeição dos vivos, com as suas flores e recordações. Tal sucederá á propria Fidelia, quando para lá fôr; tal sucede ao Noronha, que lá está. A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidelia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada. Quando eu era do corpo diplomatico efetivo não acreditava em tanta cousa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me apozentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem! * * * * * 15 de Abril. Já se não vende Santa-Pia, não por falta de compradores, ao contrario; em cinco dias apareceram logo dous, que conhecem a fazenda, e só o primeiro recusou o preço. Não se vende; é o que me disseram hoje de manhã. Conclui que o cazal Tristão iria lá passar o resto dos seus dias. Podia ser, mas é ainda mais inesperado. O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viuva, formulou um plano e foi communicar-lh'o. Não o fez nos proprios termos claros e diretos, mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da sinhá-moça, que impedia que ella pegasse da fazenda e a désse aos seus cativos antigos? Elles que a trabalhem para si. Não foi bem assim que lhe falou; poz-lhe uma nota voluntariamente seca, em maneira que lhe apagasse a côr generosa da lembrança. Assim o interpretou a propria Fidelia, que o referiu a D. Carmo, que m'o contou, acrescentando: --Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu tambem acho possivel que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no cazamento. Seja o que for, parece que assim se fará. --E andam criticos a contender sobre romantismos e naturalismos! Parece que D. Carmo não me achou graça á exclamação, e eu mesmo não lhe acho graça nem sentido. Aplaudi a mudança do plano, e aliás o novo me parece bem. Se elles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dal-a aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder á boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; ha muita outra cousa neste mundo mais interessante. * * * * * 19 de Abril. Tristão, a quem falei da doação de Santa-Pia, não me confiou os seus motivos secretos; disse-me só que Fidelia vae assinar o documento amanhã ou depois. Estavamos no Carceller tomando café. Ouvi-lhe tambem dizer que recebeu cartas de Lisboa, duas politicas; instam por elle. Quiz saber se acudiria ao chamado, mas o gesto com que elle via subir o fumo do charuto parecia mirar tão somente a noiva, o altar e a felicidade; não ousei passar adeante. Saindo do Carceller, ouvi-lhe que ia fazer uma encomenda; talvez algum presente para a noiva, mas não me disse o que era, nem o destino. Falou-me, sim, da madrinha e da amizade que ella lhe tem; ao que redargui, confirmando: --Posso dizer-lhe que é grande. --É grande e antiga. Contou-me então o que eu já sei, anedotas da infancia e da adolescencia, e nisto me entreteve andando alguns minutos largos; parece-me realmente bom e amigo. A idade em que foi daqui e o tempo que tem vivido lá fora dão a este moço uma pronuncia mesclada do Rio e de Lisboa que lhe não fica mal, ao contrario. Despedimo-nos á porta de um ourives; hade ser alguma joia. * * * * * 28 de Abril. Lá se foi Santa-Pia para os libertos, que a receberão provavelmente com danças e com lagrimas; mas tambem pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira... * * * * * 6 de Maio. A gente Aguiar parece estar sobressaltada. Tristão recebeu novas cartas e alguns jornaes de Lisboa, e longamente os leu para si, agora alegre, logo carrancudo. O que leu nos jornaes foram trechos marcados a lapis azul e a tinta preta, e nada referiu aos dous velhos. Ao contrario, levou os jornaes para o quarto, onde nenhum delles lh'os foi pedir nem ver. Tambem não lhe perguntaram nada, elle ficou a pensar comsigo, e assim correu o resto da tarde. Depois de jantar foram para Botafogo. Lá se desfizeram as sombras, porque o encontro de Tristão e Fidelia era sempre uma aurora para ambos, a preocupação dos Aguiares passou, e a noite acabou, com a mesma familia de bem-aventurados. Não estive lá; soube isto por mana Rita, que conversou com D. Carmo, e veiu confiar-me tudo «como a um cofre», disse ella. Eu aceitei a confidencia e agradeci a definição, e aqui as deixo com esta linha ultima. Em verdade, Tristão é feito de modo que a politica o póde levar sem esforço, e Fidelia retel-o sem dificuldade. * * * * * 8 de Maio. Tristão quer ser cazado pelo padre Bessa e pediu-lh'o. O padre mal pôde ouvir o pedido, consentiu e agradeceu deslumbrado. Ha uma ideia de simetria na bênção do cazamento dada pelo mesmo sacerdote que o batizou, que entrará por alguma cousa na resolução do noivo, mas tambem póde ser que a principal intenção fosse fazel-o feliz. Aquelle sacerdote obscuro e escondido na praia Formosa virá subir a escadaria da matriz da Gloria (o cazamento é na matriz da Gloria) para abençoar o cazamento de duas pessoas lustrosas e vistosas. Aguiar disse-me que o padre está que parecia ser elle proprio o noivo. --Note bem, conselheiro, concluiu elle, dando-me aquella noticia que é já de alguns dias, note que quando Tristão lhe fez presente de uma batina nova, o padre Bessa recebeu-a vexado, porque então a velhice da sua lhe entrou melhor pelos olhos. Agora a alegria é grande e franca, não imagina. Creio que é do papel espiritual e sacramental que lhe offerecem; elle já não caza ninguem ha muitos annos. * * * * * 15 de Maio. Emfim, cazados. Venho agora da Prainha, aonde os fui embarcar para Petropolis. O cazamento foi ao meio-dia em ponto na matriz da Gloria, poucas pessoas, muita comoção. Fidelia vestia escuro e afogado, as mangas prezas nos pulsos por botões de granada, e o gesto grave. D. Carmo, austeramente posta, é verdade, ia cheia de riso, e o marido tambem. Tristão estava radiante. Ao subir a escadaria, troquei um olhar com a mana Rita, e creio que sorrimos; não sei se nella, mas em mim era a lembrança daquelle dia do cemiterio, e do que lhe ouvi sobre a viuva Noronha. Ahi vinhamos nós com ella a outras nupcias. Tal era a vontade do Destino. Chamo-lhe assim, para dar um nome a que a leitura antiga me acostumou, e francamente gosto d'elle. Tem um ar fixo e definitivo. Ao cabo, rima com _divino_, e poupa-me a cogitações filosoficas. Na egreja havia curiosos do bairro, damas principalmente. Cada uma destas era pouca para apanhar com os olhos as figuras dos noivos, desde a porta até o altar-mór. Movimento, sussurro, cabeças inclinadas, tudo isso encheria este pedaço de papel sem proveito. Mais interessante seria o que alguma boca disse do primeiro cazamento e suas alegrias, e da viuva e suas tristezas, e os demais quartos dessa perpetua lua da creação. Quando acabou a ceremonia e o padre Bessa deixou o altar, a efusão da madrinha foi grande. Vi o abraço que deu aos dous, um depois de outro, e afinal juntos; Tristão beijou-lhe a mão, Fidelia tambem, ambos comovidos, e ella, ainda mais commovida que elles, selou tudo com dous beijos de mãe. Á uma hora da tarde estavamos de volta ao Flamengo, e pouco depois almoçavamos. Venho cançado de mais para dizer tudo o que alli se passou antes, durante e depois da comida, até á hora em que fomos levar os recem-cazados á Prainha. Passou-se o costume, salvo a nota particular que os quatro me deram e foi profunda. Não citei entre os assistentes o Campos, que não era dos menos satisfeitos, embora Tristão lhe leve a sobrinha, meia espoza e meia filha pela ordem que lhe punha em caza desde que foi viver com elle. Tambem não falei do filho delle, primo della. O resto, pessoas intimas e poucas. Um incidente, tão ajustado que pareceu de encomenda. Em meio do almoço chegou um telegrama de Lisboa para Tristão com duas palavras, dous nomes e a data: «Deus abençoe.» Os paes sabiam pelo correio que o cazamento era hoje, e quizeram mandar-lhes a bênção pelo cabo. Tristão leu as palavras para si e depois para todos, e o papel correu a meza. Naturalmente os recem-cazados apertaram as mãos, e D. Carmo adotou o texto da verdadeira mãe com o seu olhar de mãe postiça. Eu deixei-me ir atraz daquella ternura, não que a compartisse, mas fazia-me bem. Já não sou deste mundo, mas não é mau afastar-se a gente da praia com os olhos na gente que fica. Dahi a brindar pelos noivos não me custou nada; fil-o discretamente, e estendi o brinde á gente Aguiar, que me ficou reconhecida. Rita disse-me, ao voltar da Prainha, que as minhas palavras foram deliciosas. Confessei-lhe que seriam mais adequadas se eu as resumisse em emendar Bernardim Ribeiro: «Viuva e noiva me levaram da caza de meus paes para longes terras...» Mas, além de lembrar o primeiro marido, podia estenderas longas terras além de Petropolis, e viria afligir a festa tão bonita. --Foi melhor ficar nas palavras deliciosas que eu disse, conclui modestamente. * * * * * 26 de Maio. Nestes ultimos dias só tenho visitado o cazal Aguiar, que parece meter-me cada vez mais no coração. Vivem felizes, recebem e mandam noticias aos dous filhos de emprestimo. Estes descerão na semana proxima para subir no mesmo dia; o unico fim é abraçar os velhos. Em Petropolis tem chovido, mas tambem ha dias bonitos, e delles e das chuvas Fidelia manda impressões interessantes; talvez a principal causa destas seja o proprio estado conjugal. A alma da gente dá vida ás cousas externas, amarga ou doce, conforme ella fôr ou estiver, e o texto de Fidelia é dulcissimo. D. Carmo mostrou-me hontem a ultima carta da moça, escrita nas quatro paginas, letra miuda e cerrada, e linhas estreitas. A ternura não embarga a discrição nem esta diminue aquella. No fim da carta, Fidelia insinua a ideia de irem todos quatro á Europa, ou os tres, se Aguiar não puder deixar o Banco. A velha vae dizer que não pode ser por ora. --Nem por ora, nem jamais, concluiu dobrando a carta; estou cançada e fraca, conselheiro, e meia doente. Não dou para folias de viagens. --Viagens dão saude e força, opinei. --Pode ser, mas em outra idade; na minha é já impossivel. Seguiu-se uma pausa, durante a qual Aguiar olhou de soslaio para a mulher, ella para si, e eu para ambos alternadamente. Entrou um visinho, e falámos de outras cousas. * * * * * Quinta-feira. Tristão e Fidelia desceram hoje e Aguiar os foi buscar á Prainha. Dali vieram almoçar ao Flamengo, onde D. Carmo esperava os recem-cazados e os abraçou cheia de coração. O velho ficou de ir do Banco á Prainha, quando a barca houvesse de sair á tarde para Petropolis. Tudo isso ouvi de noite aos dous velhos, e ouvi mais que a velha e os moços passaram um dia deleitosissimo. Não foi este o proprio vocabulo empregado por ella; já lá disse algures que D. Carmo não possue o estilo enfatico. Mas o total do que me disse vem a dar nelle. Conversaram os tres de varias cousas, de Petropolis, de musica e de pintura; os dous tocaram piano, e logo depois sairam á praia, com a velha. Justamente na praia, Fidelia pegou da ideia que propuzera em carta de fazerem uma viagem á Europa, á qual D. Carmo se recuzou por debil e cançada. Então Fidelia explicou o que seria a viagem; em primeiro logar curta, a Lisboa, para ver a mãe de Tristão, depois a Paris, e se houvesse tempo, a Italia; partiriam em Agosto ou Setembro, e em Dezembro estariam de volta. --Não é o tempo, filha, replicou D. Carmo; pouco ou muito, desde que lá estivesse iria ao fim, mas é este corpo já cançado, e depois, não indo Aguiar, quem hade cuidar delle? --Pois elle que vá tambem, acudiu Tristão. --Este anno não pode. A conversação foi andando com elles, ao longo da praia, onde o mar, indo e vindo, era como se os convidasse a meterem-se nelle até desembarcar «no porto da inclyta Ullysséa,» como diz o poeta. D. Carmo ainda se lembrou de lhes perguntar porque não transferiam a viagem para o anno; Aguiar poderia ir tambem. Não responderam. --Recusaria o acordo eu, disse Aguiar á noite, ao me contarem isto. Assim repliquei aos dous na Prainha, quando ali os fui meter na barca. tambem eu não deixaria Carmo. * * * * * 11 de Junho. Hoje apareceram-me os recem-cazados pela primeira vez, encontro casual, na rua do Ouvidor, ás duas horas da tarde; iam a compras. Gostei de os ouvir, e ainda mais de a ver. A graça com que ella dava o braço ao marido e deslizava na rua era mais completa que a anterior ao cazamento; obra do cazamento e da felicidade. Iam ouvindo, iam falando, iam parando aos mostradores. Descem definitivamente no dia 20 deste mez, e partem nos primeiros dias de Agosto para Lisboa; irão logo a outras partes. --Porque não vem dahi, conselheiro? perguntou-me Tristão? --Depois de tanta viagem? Sou agora pouco para reconciliar-me com a _nossa_ terra. Sublinho este _nossa_, porque disse a palavra meio sublinhada; mas elle creio que não a ouviu de nenhuma especie. Olhava para a consorte, como avivando o programa da viagem que iam fazer, e seguiram pela rua abaixo com a mesma graça vagarosa. * * * * * 25 de Junho. Campos e Aguiar queriam, á sua vez, que o joven cazal viesse aposentar-se em casa delles e alegaram a razão de ser por poucos dias, pois que tinham de embarcar. Tristão e Fidelia recusaram e foram para o Hotel dos Estranjeiros. A razão alegada por estes foi a mesma dos poucos dias, e eu creio que era verdadeira, mas principalmente seria a de não dar preferencia a um nem a outro. --Passaremos estes ultimos dias nas duas cazas, alternadamente, propoz Tristão. --Não, isso não, acudiu o desembargador; passaremos todos no Flamengo. Era natural e cortez, sendo elle só e Aguiar cazado. Assim fazem desde o dia 20, em que os dous desceram de Petropolis; lá os vi hontem, dia de S. João. Não escrevo o que lá se passou para me não demorar a dizer tudo, que é muito. Vi-os felizes a todos quatro. D. Carmo parecia esconder a tristeza da viagem que se aproxima ou temperal-a com a ideia da volta, a que aludia frequentemente e a proposito de tudo, como a avivar a obrigação. Assim correram as horas depressa. Sai com elles até o Hotel; dali seguiu Campos para Botafogo e vim eu para o Cattete. * * * * * 29 de junho A outra visita foi por noite de S. João, noite de S. Pedro, chegarei também ao Flamengo, e se couber, falaremos tambem das cousas antigas. * * * * * 30 de junho Lá estive ma casa Aguiar. Não falamos de cousas velhas, mas só das futuras. No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o casal recente; esse, depois de algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de si mesmo, um dizer calado, espraiado e fundido. De quando em quando os dous davam alguma silaba á conversação, e logo tornavam ao puro silencio. Tambem tocaram piano. Tambem foram falar entre si ao canto da janela. Sós os quatro velhos,-o desembargador com os tres,-faziamos planos futuros. Certo é que D. Carmo alguma vez acompanhou os dous com os seus olhos inquietos, como a perguntar-lhes que parte viriam elles ter no futuro que ella e nós imaginavamos; mas o receio de os interromper na felicidade tapava-lhe a boca, e a santa senhora contentava-se de os mirar e amar. Ao chá a conversação fez-se de todos, e Tristão referiu alguns casos de Lisboa, casos de politica e de recreação. Vindo para caza acudiu-me em caminho uma ideia, indiscreta, de certo, mas felizmente não a disse a ninguem, e mal a deixo nesta folha de papel. A ideia é saber se Fidelia terá voltado ao cemiterio depois de cazada. Possivelmente, sim; possivelmente não. Não a censurarei, se não: a alma de uma pessoa pode ser estreita para duas afeições grandes. Se sim, não lhe ficarei querendo mal, ao contrario. Os mortos podem muito bem combater os vivos, sem os vencer inteiramente. * * * * * Sem data. Hoje foi a ultima recepção dos Aguiares, e eu quiz despedir-me dos viajantes que embarcam depois de amanhã. Bastante gente, entre ella o Faria e D. Cesaria, e a viuva do corretor Miranda, ainda abatida. A nota geral da noite não era alegre, ao contrario: todos buscavam ir pelo tom da caza, que era tristonha. A propria Fidelia parecia definhar-se ao pé da amiga, e uma vez a mana Rita a foi achar que dizia á outra: --D. Carmo, porque não vem comnosco? Ainda é tempo de comprar bilhetes, e se os não houver, Tristão adia viagem, e vamos no outro paquete. D. Carmo respondia que não; sentia-se cançada e abatida. --Viagem não cança, e lá chegando cria alma nova. Rita juntou o seu voto ao da moça, e ambas teimaram com ella, mas não puderam nada. Como ultima razão, vinha a separação do marido, razão velha e parece que decisiva. Rita notou que as duas estavam sinceramente desconsoladas, mas D. Carmo buscava fortalecer-se, emquanto que Fidelia não acabava de vencer o desgosto. --Olhe, mano, eu ainda creio que ella desfaz a viagem... Era no escuro, a vinda da praia; por isso a mana não me pôde ver o gesto incrédulo, mas certamente o adivinhou e trocou o que disse. «Não, que desfaça não digo, mas daria muito para não ter consentido em partir.» Repetiu-me as palavras que Fidelia lhe disse de D. Carmo, chamando-lhe boa e santa, «a santa Aguiar». Confesso que vim de lá aborrecido; preferia não ter ido, ou quizera ter saido logo. Tristão vem cá almoçar commigo amanhã. * * * * * Vespera do embarque. Tristão cumpriu a promessa, veiu almoçar commigo, eram onze horas e meia. Vinha triste,-triste e calado. Quer dizer que falámos muito pouco. Não havendo melhor assunto de conversa que esse mesmo silencio, lembrou-me dizer-lhe que comprehendia as saudades que elle levava daqui, já da terra, já das pessoas, e particularmente das duas pessoas que lhe queriam tanto. A ocasião era boa para dizer dos dous velhos as melhores cousas,-ou repetil-as, pois já m'as tinha confiado varias vezes; outrosim, inteirar-me dos seus planos de futuro, até onde ia a viagem, e em que tempo tornaria com a formosa espoza. Não me disse nada; afirmou de cabeça e mergulhou no mesmo grande silencio do principio. Creio que não me ouviu metade. No fim do almoço, como fumassemos, deu-me novamente a indicação da caza em Lisboa, o titulo da folha politica em que colabora, e ia confiar-me alguma cousa mais que calou, pareceu-me. Mergulhou outra vez no silencio. Eu respeitava aquella melancolia e deixava-me ir atraz do fumo do charuto. Tristão finalmente despediu-se. --Não nos veremos mais? perguntou-me. --Irei ao caes Pharoux, pode ser que a bordo tambem. --Até amanhã; vá fazendo as encomendas. Levei-o até á escada, que elle começou a descer vagarosamente, depois de me apertar a mão com força. A meio caminho deteve-se e subiu outra vez. --Olhe, conselheiro, Fidelia e eu fizemos tudo para que a velha e o velho vão comnosco; não podem, ella diz que está cançada, elle que não se separa della, e ambos esperam que voltemos. --Pois voltem depressa, aconselhei. Tristão fitou-me os olhos cheios de misterios, e tornou á sala; vim com elle. --Conselheiro, vou fazer-lhe uma confidencia, que não fiz nem faço a ninguem mais; fio do seu silencio. Fiz um gesto de. assentimento. Tristão meteu a mão na algibeira das calças e tirou de lá um papel de côr; abriu-o e entregou-m'o que lêsse. Era um telegrama do pae, datado da vespera; anuncia-lhe a eleição para daqui a oito dias. Ficámos a olhar um para o outro, calados ambos, elle como que a apertar os dentes. Depois de alguns segundos de pausa: --Eleição certa, disse elle. As cartas já me faziam crer isto, mas não cuidei que fosse tão proxima. Restitui-lhe o telegrama. Tristão insistiu pelo meu silencio, e acrescentou: --Queria que elles viessem comnosco; eu lhes diria a bordo o que convisesse, e o resto seria regulado entre as duas,-ou entre as tres, contando minha mãe. Fidelia mesma é que me lembrou este plano, e trabalhou por elle, mas não alcançámos nada; ficam esperando. Quiz dizer-lhe que era esperarem por sapatos de defunto, mas evitei o dito, e mudei de pensamento. Como elle não dissesse mais, fiquei um tanto acanhado; Tristão, porém, completou a intenção do acto, acrescentando: --Confesso-lhe isto para que alguem que nos merece a todos dê um dia testemunho do que fiz e tentei para me não separar dos meus velhos paes de estimação; fica sabendo que não alcancei nada. Que quer, conselheiro? A vida é assim cheia de liames e de imprevistos... Não sei que disse mais; a mim chegava-me outra ideia que tambem deixei passar, não querendo ser indiscreto. Era indagar se Fidelia sabia já do telegrama; elle dissera-me que o não mostrára a ninguem, mas é claro que a mulher era elle mesmo, e estava excluida do silencio que tivera com os outros. * * * * * 18 de Julho. Vim de bordo, aonde fui acompanhar os dous, com o velho Aguiar, o desembargador Campos e outros amigos. D. Carmo foi só até o caes; estava sucumbida, e enxugava os olhos. Ficou parada, a ver a lancha em que iamos, dizendo adeus com o lenço: não tardou que o espaço nos separasse inteiramente da vista. Fidelia ia realmente triste; o mar não tardaria em espancar as sombras, e depois a outra terra, que a receberia com a outra gente. Eu, no tombadilho do paquete, imaginei o cemiterio, o tumulo, a figura, as mãos postas e o resto. Tristão, á despedida, disse palavras amigas e saudosas a Aguiar, mandou outras para a madrinha, e a mim pediu-me que não esquecesse os paes de emprestimo e os fosse ver e consolar. Prometi que sim. Descemos para a lancha e afastamo-nos do paquete. Tenho embarcado e desembarcado muitas vezes, devia estar gasto. Pois não estou. Não sentia a separação, é verdade; trazia os olhos no velho Aguiar e o pensamento na velha Carmo. Quanto ao desembargador vinha triste com a separação, mas a sobrinha obrigou-o a prometer, á ultima hora, que iria vel-a no anno proximo, e elle não advertiu que o pedido desdizia da promessa que lhe tinha feito de regressar no fim do anno ao Rio de Janeiro. Despedimo-nos no caes. Aguiar seguiu para o Banco, eu vim para casa, onde escrevo isto. De noite irei ao Flamengo, a cumprir desde já a promessa que fiz a Tristão e a Fidelia. Não acabarei esta pagina sem dizer que me passou agora pela frente a figura de Fidelia, tal como a deixei a bordo, mas sem lagrimas. Sentou-se no canapé e ficámos a olhar um para o outro, ella desfeita em graça, eu desmentindo Shelley com todas as forças sexagenarias restantes. Ah! basta! Cuidemos de ir logo aos velhos. * * * * * Dez horas da noite. Venho do Flamengo. Quizera ficar mais tempo, mas elles precizavam descançar da separação. Campos tambem lá foi, e ambos saímos cedo, nove e meia; não se falou dos viajantes. * * * * * 29 de Agosto. Chegou paquete da Europa, trouxe cartas de Lisboa e noticias politicas. As cartas eram saudosas, e as noticias interessantes; aliás só vieram á noite. Na rua tinha-me Aguiar dito o que havia nas cartas de Tristão e de Fidelia e na que a comadre escrevera a D. Carmo; fui vel-as ao Flamengo. A da comadre era cheia de louvores á nora, que achava mais bella que no retrato, e mais terna que ninguem; foram as proprias palavras della, e para uma sogra não me destoaram muito. Assim o disse a D. Carmo, que sorria complacente, com uma especie de ternura morbida. Eramos sós os tres, e a saudade grande. Pouco depois chegou Campos. Vinha aturdido, e ao dar commigo pareceu querer falar-me em particular. Em particular, a um canto, disse-me que Tristão lhe escrevera dizendo achar-se eleito deputado quando desembarcou em Lisboa, e pedindo-lhe que désse a noticia á gente Aguiar como entendesse melhor; não lhes escrevia a elles sobre isso para evitar o sobresalto. Que me parecia? --Sempre se lhes hade dizer tudo, respondi; o melhor é que seja logo, e aqui estamos para dizer as cousas cautelosamente. --Tambem me parece. --Eu engenharei uma fabula... Engenhei o que pude. Falei do golpe que o moço recebeu quando desembarcou deputado, e viu misturadas as alegrias dos paes com as dos amigos politicos; devia dizer tambem que a primeira ideia de Tristão foi rejeitar o diploma e vir para Santa-Pia; mas que o partido, os chefes, os paes... Não fui tão longe; seria mentir de mais. Ao cabo, não teria tempo. Os dous velhos ficaram fulminados, a mulher verteu algumas lagrimas silenciosas, e o marido cuidou de lh'as enxugar. Assim correram as cousas, a mentira e os efeitos. Os dous procurámos levantar-lhes o animo. Eu empreguei algumas reflexões e metaforas, afirmando que elles viriam este anno mesmo ou no principio do outro; bastava saberem a dor que causava aqui a noticia. D. Carmo não parecia ouvir-me, nem elle; olhavam para lá, para longe, para onde se perde a vida presente, e tudo se esvae depressa. Aguiar ainda pegou na carta que o desembargador lhe mostrava; leu para si as palavras de Tristão, que eram aborrecidas em si mesmas, além da nota que o autor intencionalmente lhes poz. D. Carmo pediu-lh'a com o gesto, elle meteu-a na carteira. A boa velha não insistiu. Campos e eu saímos pouco depois. * * * * * 30 de Agosto. Praia fóra (esqueceu-me notar-isto hontem) praia fóra viemos falando daquella orfandade ás avessas em que os dous velhos ficavam, e eu acrescentei, lembrando-me do marido defunto: --Desembargador, se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade! Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos deixados pelos dous moços, e conclui que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não concordou,-o que mostra que ainda então não me entendeu completamente. * * * * * Sem data. Ha seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora á tarde lembrou-me lá passar antes de vir para caza. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei e parei logo. --Lá estão elles, disse commigo. Ao fundo, á entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D. Carmo, á esquerda, tinha os braços cruzados á cinta. Hesitei entre ir adeante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos. FIM *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAL DE AYRES *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.