Title: Historias de Reis e Principes
Author: Alberto Pimentel
Release date: May 30, 2014 [eBook #45840]
Most recently updated: October 24, 2024
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano, Keith Edkins and the Online
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Notas de transcrição: |
O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1890. Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário assinalá-los.. |
Alberto Pimentel
HISTORIAS
DE
REIS E PRINCIPES
PORTO
LIVRARIA GUTENBERG—Editora
Cancella Velha, 66
1890
I. | Um rei e um conspirador | 5 |
II. | Seis rainhas para um rei | 31 |
III. | D. Beatriz de Portugal | 67 |
IV. | Rei e pastor | 117 |
V. | Mãi e filhos | 121 |
VI. | Tradição galante de D. Miguel | 147 |
VII. | Maximiliano em Portugal | 163 |
VIII. | Duas imperatrizes | 195 |
IX. | O paiz dos meninos | 265 |
X. | Um rei entre montanhezes | 279 |
XI. | No harem de Marrocos | 287 |
XII. | Idyllio de amor | 295 |
XIII. | Na morte do Kronprinz | 303 |
XIV. | El-rei D. Luiz nos Jeronymos | 311 |
XV. | Rainha e viuva | 319 |
HISTORIAS DE REIS E PRINCIPES
«... le roman est l'histoire des hommes
et l'histoire le roman des rois.»
Daudet—Souvenirs d'un homme
de lettres.
Fernão da Silveira, filho primogenito do barão de Alvito, foi escrivão da puridade de D. João II, e figura como poeta no Cancioneiro de Garcia de Rezende.
Estas circumstancias dão-lhe fóros de homem notavel no seu tempo. Mas a todas sobreleva, perante a historia, a de ter sido um dos conspiradores que mais incommodaram D. João II.
Parece que o rei não tinha sobejos motivos para confiar no seu escrivão.
Certo dia mandára chamar, por um moço da camara, Fernão da Silveira. D. João II não se queria referir ao secretario particular, mas a outro Fernão da Silveira, o coudel-mór, tambem poeta como o seu homonymo.
Comparecendo o escrivão da puridade em vez do coudel-mór, D. João II agastou-se e perguntou ao moço da camara:
—A quem te mandei chamar?
—A Fernão da Silveira.
—Não era este, replicou o rei, mas o Bom.
O escrivão da puridade julgou-se desconsiderado com estas palavras do rei e, sahindo do Paço, como encontrasse no Rocio D. Martinho de Castello Branco, desabafou com elle. D. Martinho procurou aquietal-o com bom conselho, porém Fernão da Silveira insistiu em mostrar-se agastado contra o rei, de quem jurou vingar-se.
—Mas o que podereis vós fazer? perguntou D. Martinho.
—Matal-o, respondeu o escrivão da puridade.
E correu d'alli a bandear-se com os conspiradores: o duque de Vizeu, o bispo d'Evora D. Garcia, o irmão do bispo, D. Fernando de Menezes, D. Guterres Coutinho, D. Alvaro Coutinho e seu filho, o conde de Penamacôr e seu irmão D. Pedro d'Albuquerque.
D. João II soube das conferencias mysteriosas dos conspiradores, celebradas em Santarem, fóra de portas.
Por mais de uma delação o soubera.
Tinha o bispo d'Evora certa manceba, de nome Margarida Tinoco, a cujo irmão, Diogo Tinoco, ella revelára o segredo da conspiração. Foi este homem que, disfarçado em frade, procurou o rei no {7}convento de S. Francisco em Setubal, e lhe denunciou os conspiradores, recebendo em troca uma larga mercê, que a morte, devida talvez a peçonha mandada propinar pelos denunciados, lhe não deixou gozar.
D. João II recebeu outra denúncia por D. Vasco Coutinho, a quem seu irmão D. Guterres pozera ao facto da conspiração. D. Vasco arrecadou em premio o condado de Borba, importando-se pouco com perder o irmão, que veio a acabar preso na torre de Aviz.
Quando Fernão da Silveira teve conhecimento d'esta delação, e da explosão da colera do rei para com o duque de Vizeu, exclamou:
—Soube D. Vasco aguçar os pescoços!
Foi, como se sabe, em Setubal que D. João II quiz por suas proprias mãos fazer justiça no duque de Vizeu. E comquanto emprehendesse esmagar a conspiração na pessoa dos chefes, não se esqueceu o rei de outros conspiradores menos qualificados. Enviou officiaes a casa de Fernão da Silveira para que o prendessem. D. João II sentia-se profundamente indignado contra o seu escrivão da puridade, que desde pequeno creára no Paço, pelo que lhe ficára o appellido de Moço, honrando-o e agasalhando-o na côrte, onde o casára com D. Brites de Sousa, filha de João de Mello, alcaide-mór de Serpa.
Os officiaes foram, e não acharam Fernão da Silveira. Encontraram apenas uma barjoleta com muitos cruzados, que lhe havia confiado o duque de Vizeu para occorrer ás despezas da conspiração.
O escrivão da puridade, não tendo já tempo para fugir de Setubal, fôra esconder-se em casa de um velho escudeiro de seu pai, de nome João Pegas, que não duvidou recebel-o, a despeito do perigo que por esse facto podia correr.
Pegas metteu o filho de seu amo dentro de uma grande arca sem fundo. Fingindo que guardava pão na arca, alimentava todos os dias o conspirador.
Uma escrava preta, que havia em casa, cuidou ouvir gemidos, que sahiam da arca. Disse-o a João Pegas que, receiando se descobrisse o segredo, ordenou á preta que se calasse até que elle no dia seguinte verificasse se era verdadeiro ou não o caso dos gemidos.
Ao outro dia, a escrava tornou a ouvir gemer. Foi dizel-o a João Pegas, que se levantou do leito immediatamente, e a mandou buscar um balde de agua ao poço.
Quando a escrava estava tirando a agua, Pegas precipitou-a no poço, esperando cautelosamente que ella acabasse de escabujar na afflicção extrema dos afogados.
Logo que reconheceu que estava morta, gritou publicando que a escrava se afogára.
Mas o segredo do escondrijo de Fernão da Silveira ficou no fundo do poço, que era o que João Pegas queria conseguir.
Decorreu tempo, e o escudeiro tratou de fazer sahir de Portugal o seu hospede. Valeu-se para isso de um mercador, que se chamava Bartolo, e que {9}levou comsigo para Sevilha Fernão da Silveira, disfarçado em mendigo.
Salvo em Castella, o foragido foi bem acceito na côrte de Izabel a Catholica, e lá lhe acudia com auxilios pecuniarios o conde de Benavente, fidalgo castelhano, que fôra grande amigo do pai de Fernão. Mandava-lhe todos os mezes um saco com duzentos escudos, mas Fernão da Silveira só tirava cinco, e devolvia o resto. O castelhano todos os mezes insistia em igual remessa, e o portuguez não deixava de insistir na recusa da quantia excedente a cinco escudos.
Comprehendeu o castelhano que era aquelle um homem retemperado de invencivel altivez lusitana, e, para acabar de experimental-o, certo dia em que se juntaram com outros fidalgos na ante-camara dos reis catholicos, deixou o conde cahir uma luva. Fernão da Silveira, em vez de se dar pressa em levantal-a, sentou-se n'um bufete. O conde de Benavente não desgostou d'esta arrogancia tão conforme ao espirito hespanhol, e celebrou-a. A noticia do facto espalhou-se com applauso na côrte de Castella, e chegou á de Portugal, onde D. João II, comquanto sempre resentido dos aggravos recebidos de Fernão da Silveira, e sempre implacavel nos seus projectos de vingança, commentou a noticia com esta phrase sentenciosa:
—Fernão da Silveira aonde chegar ha de sempre ter lugar.
D. João II mandára citar por carta de éditos {10}Fernão da Silveira, emquanto estivera escondido em casa de João Pegas, para que se apresentasse perante o rei e o seu conselho, no termo de quarenta dias, a fim de se livrar «da dita traição e maldade que contra nós e nosso real estado, e contra o bem, paz, e assesseguo de nossos reinos cometera, e para sobre todo ser ouvido com o dito procurador fiscal da nossa justiça.»
Passou-se o praso de quarenta dias, e Fernão da Silveira não appareceu. N'essa não cahia elle, que bem sabia a sorte que o esperava se apparecesse.
Chegou o dia da audiencia, e o porteiro do tribunal, João Trancoso, apregoou o réo. Como se não apresentasse, nem outrem por elle, o procurador da justiça offereceu o libello articulado sobre os seguintes factos criminosos:
«Que nós criáramos o dito reo de moço pequeno, e que sempre lhe fizeramos muita honra, gasalhado, e mercê, casando-o, e dando-lhe muita renda com vontade, e tenção de o muito honrar, e acrecentar, e fiando nós d'elle nossos segredos, e conselhos, encarregando-o muitas vezes de nosso escrivão da Puridade, fiando nós nossa vida d'elle reo, e sempre o dito reo obrigado a nos guardar lealdade não sómente como nosso criado, mas ainda como vassalo, e nosso subdito, elle o fizera muito pelo contrario, antes como desleal desobediente Portuguez, fizera, tractára, ordenára e aconselhára contra nós, e nosso Real Estado, bem, paz e assesseguo, e prol comunal d'estes nossos reinos e senhorios, as coisas que se adiante {11}seguem. A saber, que elle dito reo com o Bispo d'Evora, e com D. Diogo, que foi Duque de Vizeu, tractou, conjurou, e ordenou muitas desleadades contra nós, e contra o Principe meu sobre todos muito Amado, e Prezado Filho, tractando, e ordenando muitas vezes, assim na Cidade de Evora como nas Villas de Santarem e Setubal, e outros lugares de nos matarem, e ao dito Principe meu Filho, e de se alevantarem com as Villas, e Fortalezas que o dito Duque tinha, e outras quaesquer, que podessem haver, tractando de metter gente de fóra d'estes reinos para poderem pôr em obra o seu mau e desleal proposito, e para contra quem quer que lh'o embargar quizesse, sendo o dito reo o que principalmente tractava contra nós, induzindo para isso o dito Duque, como do feito induziu, e outros seus amigos, de que se elle reo fiava, e o principal conspirador e ajuntador, dos que no dito tracto e conspiração eram contra nós, e sendo o recebedor, e o que dispendia os dinheiros que para as ditas traições, e maldades eram juntos, e o pagador d'elles, a quem era ordenado, como dos ditos dinheiros pagára quinhentos cruzados a Pero de Albuquerque, para abastimento da Fortaleza do Sabugal, e assim a D. Alvaro d'Athayde, certa somma de dinheiro que vier em verdade. E que logo como o dito Duque D. Diogo foi morto, e o Bispo, e alguns dos outros conjurados presos, pelas ditas maldades e traições serem reveladas a nós, elle dito reo, temendo-se do que feito tinha, logo sem mais detença se partiu, e foi d'estes {12}reinos, e amarou sem mais nunca n'elles apparecer, nem ser visto de seus parentes e amigos, e dos que com elle tinham conversação.»[1]
Ouvido o libello pelo rei e seu conselho, foram julgados procedentes os artigos de accusação, ordenando D. João II que se o réo tivesse artigos contrarios, viesse com elles. Como não veio, correu o processo á revelia, sendo admittida a prova do procurador da justiça, o qual offereceu a inquirição devassa que por este motivo havia sido tirada.
Fernão da Silveira teve conhecimento dos éditos de citação; mas só quando se viu salvo em Castella ousou denunciar o seu paradouro, não escrevendo uma justificação judicial, mas dirigindo particularmente ao rei uma carta audaciosa, de que vamos extrahir alguns periodos:
«... eu dias ha que estou n'esta Côrte de El-Rei e da Rainha de Castella, meus Senhores, e bem se sabe em Portugal: poderia tambem responder a elles (éditos) por direito, outras razões poderia dar n'este caso, mas não quero alongar a escriptura e ainda d'estes me quero lançar fóra; sómente digo que os éditos contra mim postos são mandados pôr por vós ante quem o direito nem justiça não vale nada, nem ousa ninguem de os julgar que claramente sobre os éditos que contra Ruy Lopes Coutinho {13}mandaveis pôr, dizem de vós os letrados que não era de direito de se pôrem na forma que querieis, dissestes que quem aquillo dissesse o mandarieis esfolar e cobrir a cadeira de sua pelle e isto ao Doutor Nuno Gonçalves, que quizestes lançar a perder por uma sentença que deu segundo lhe parecia direito no feito de Cezimbra; d'estas taes pudera dizer muitas, mas, sobre cousa tão clara como a vossa injustiça, não cumpre muitas provas, bem se sabe que nenhum homem em vosso reino não ha de julgar, senão o que vós quizerdes, e bem se sabe que é o que vós quereis; e deixando todas estas cousas, sómente digo que apéllo de vós para Rei direito e justiçoso, e que o mereça e deve ser, e ainda que para isto ahi não houvesse prova senão as obras que fazeis abastariam afóra outras cousas que tenho caladas para quando cumprir, assim que vossos éditos para mim não são de nenhum valor, nem força, e protesto que cousa que n'elles digaes, nem sentença que por elles contra mim se der, não me possa damnar nem empécer em nenhum tempo que seja.
Ora, Senhor, vos quero dar conta de mim e da causa que em minha sahida d'esse Reino e o porque sei que tanto desejastes, e trabalhastes de me ver á mão, o que principalmente foi, porque eu não contasse a verdade d'este feito, e de como mal e como não devieis matastes o Duque de Vizeu que Deus haja, e eu ouvindo a crueldade de sua morte e lembrando-me o mal que muito tempo me querieis e mui sem causa, e quanto agora me quereis pelo bem {14}que o Duque me queria, pareceu-me que não devia estar á misericordia de quem não tem nenhuma nem esperar vossas injustiças e crueldade, as quaes em mim sei que muito desejaveis executar que pela grande que com o Duque que Deus haja tinha cuidaveis que saberia a causa da sua morte, a qual não foi outra senão o grande mal que sempre lhe quizestes e os grandes aggravos e deshonras que lhe fazieis, as quaes seriam cousa larga de contar, se houvesse de contar das escripturas e doações que lhe furtastes do cofre que a Senhora Infanta sua mãe deixou em guarda da Rainha vossa mulher, e de como nunca lhe confirmastes cousa que tivesse, antes lhe quebrastes cada dia suas cartas e privilegios e mandaveis a letrados a revolver livros para lhe tirar a vintena da Guiné, afóra na paga d'ella terdes tal forma que a mór parte lhe levaveis, e quebrastes-lhe o trato da canella e fizestes que em Côrtes que vos requeressem que lhe tivesseis as saboarias e o montado, e tirastes-lhe o desembargador que trazia na casa e tirastes-lhe a jurisdicção dos rendimentos das suas rendas, e dissestes que se vos não tornasse a Ilha da Madeira por terras do Duque que lh'a deitarieis a perder, e deixando estas cousas e outras muitas que contra elle tendes feito e commettidas tocantes á sua fazenda, nas quaes ia a maior parte do seu estado e em muitas todo lhe fazieis e ordenaveis outras em que lhe ia honra e vida, são tratal-o mui descortez e soberbamente e fallares n'elle mui feiamente chamando-lhe rapaz e necio, e que não {15}era para nada, e trazerdel-o em vossa Côrte a seu pesar, que por preso o haviam todos, não querieis consentir que casasse com uma filha d'El-Rei meu Senhor, e mui honradamente casára, nem quizestes que casasse Irman com elle desejando-o ella, e tendo vós promettido á Infante sua Mãe que farieis n'isso o que pudesseis, fizestes o contrario, por onde visto está, que querieis que elle não casasse com ninguem por não haver filhos que herdassem o seu, e d'isto ha outra mui mais certa prova que estas, que é certo que lhe mandaveis dar cousa para não haver geração, e foi-lhe descoberto, depois lhe foi dito como mandaveis alguns que o matassem de noite indo elle fóra só, fingindo que o não conheciam, e foi avisado, e guardou-se, e depois foi avisado agora em Santarem, que com um cosinheiro trataveis para lhe dar peçonha, assim que claro está que dias ha que tinheis determinado de fazer o que fizestes e mais o matastes porque vos elle devia matar que por querer matar, que se elle tal quizera, não andára tão mal apparelhado para tal negocio nem viera só ver-vos e deixára-vos os mais dos seus em Palmella, nem os que com elle culpaes não estiveramos tão mal apercebidos, que eu n'esse mesmo mez não mandára com meus Irmãos os meus escudeiros e encavalgados, nem lhe déra os meus cavallos e armas de minha pessoa e áquella hora estava em casa de meu Pai que Deus haja, sem saber que o Duque era ido nem D. Alvaro de Athayde vos houvera de matar em Santarem nem D. Pedro de Athayde inda no {16}ventre, eu muitas cousas pudera dizer em prova d'isto, mas abasta o que todo o mundo sabe, que matastes o Duque mal, e como não devieis e por mau respeito, e isto pudera bem provar por direito e leis e ordenações, mas porque seria longura será melhor que vamos pôr a batalha: eu estou aqui e affirmo uma duas ou tres vezes, que matastes o Duque mal e como não devieis, e aleivosamente, e o defenderei a quem por vossa parte me desafiar, e isto darei empreza para vós mandares tomar a D. Vasco não já que elle tomou, e d'esta guiza me devieis vós mandar matar que não á traição, como me dizem que mandais e se por vossa pessoa isto houvera de ser feito, bem sei que vos não porieis n'este risco, assim porque sabieis a verdade como por ali, e se isto se ordenar para que venha a fim, por aqui se saberá a verdade, porque eu espero que será n'isto tão inteiro juizo como em tudo, e se vos disto escuzardes n'elle espero que mostrará tal juizo de vós o qual merecem essas obras, e que vingará no sangue dos mortos, por mãos dos vivos, etc...»[2]
No final da carta, que é um documento importantissimo para a historia da época, allude Fernão da Silveira á phrase dita por D. João II ao moço da camara, phrase que determinou o seu procedimento contra o rei:
«... mas como natural e amigo d'esses reinos e por bem d'elles vos desservirei em tudo o que puder, porque todo o desserviço e nojo que fizer a vós vem a essa terra e gente d'ella assim grandes como pequenos, os quaes praza a Nosso Senhor livrar da sujeição e captiveiro em que vivem, e de mim digo que serei sempre tal inimigo como devem de ser todos os bons...»
O processo subiu concluso perante o rei em Relação com os do seu Conselho e Desembargo, sendo proferida sentença condemnatoria a dez de junho de 1485, dada na villa de Portel:
«... condemnamos, e mandamos onde quer que fôr achado, e tomado, e comprehendido dentro em estes Reinos, e seus Senhorios, e em qualquer Cidade, Villa, ou Lugar d'elles, logo morra cruel morte natural, e seja esquartejado, e seus quartos de seu corpo sejam postos nas portas da Cidade, Villa, ou Lugar onde fôr preso, e a sua cabeça seja posta no Pelourinho: e isto sem elle mais ser ouvido, nem requerido, visto como este maleficio é claro, e notorio, e que elle principalmente e primeiro o commetteu, tratou, conspirou a dita maldade, e traição: e havemos todos seus bens moveis, e de raiz, e assim os da Corôa do Reino, se os trazia, e os patrimoniaes, e declaramos por confiscados e applicados á Corôa Real d'estes nossos reinos, a que direitamente pertencem.»
Dois annos depois, ainda Fernão da Silveira estava em Castella, protegido pelos reis catholicos, que se recusavam a entregal-o a D. João II.
Em 1487, n'um conselho realisado em Santarem, ventilou-se a questão de assentar no destino a dar ás mulheres dos conspiradores, sobre as quaes recahiam suspeitas de estarem em intelligencia com os maridos.
Os drs. Fernão Rodrigues e Nuno Gonçalves foram de parecer que deviam ser enviadas com os filhos aos maridos, não só para não peccarem com outros, mas tambem porque não deviam pagar pelas culpas d'elles. E ainda porque os filhos dos conspiradores constituiriam um foco permanente de conspiração pelo desejo que teriam de vingar os pais.
Ao dr. João Teixeira, chanceller-mór, pareceu melhor não renovar a lembrança de factos que o tempo ia esquecendo. Que, mais aquietadas as paixões politicas, bem podiam os filhos dos conspiradores ser leaes servidores d'el-rei.
Por isso entendia que se deixassem sahir com seus filhos e haveres as que quizessem ir reunir-se aos maridos; mas que não fossem obrigadas a fazel-o todas, indistinctamente.
Os restantes membros do conselho concordaram com este alvitre. O rei tambem concordou.
Então Ruy de Sousa disse saber que a mulher de Fernão da Silveira folgaria de ir para o marido.
Ora um documento da época, que suppomos inedito, diz qual foi a resposta de D. Brites de Sousa:
«Esta parte tomou el-rei de as não mandar constrangidamente, e mandou a esta de Fernão da {19}Silveira saber se se queria ir, e ella escolheu a parte de estar no reino por então.»[3]
Uma tal resposta surprehendeu decerto o leitor, por não ser conforme com a declaração que no conselho d'el-rei fizera Ruy de Sousa.
Tem comtudo uma explicação, e o leitor vai sabel-a.
D. Brites de Sousa tinha realmente manifestado desejo de ir viver com seu marido em Castella.
Pesava-lhe a vida que levava longe d'elle, com um filho pequeno nos braços. Chamava-se João o filho legitimo de Fernão da Silveira. O conspirador tinha outro filho, illegitimo, que houvera de uma manceba de nome Izabel Rodrigues, e que havia nascido em 1480.
D. Brites chegára a fallar aos do conselho d'el-rei para que lhe obtivessem a concessão de passar a Castella. Mas obtida a concessão, soubera que Fernão da Silveira tinha mandado ir a manceba e o filho.
O seu coração amantissimo não foi superior a este golpe. Resolveu não ir para castigar a infidelidade do marido, que no homisio preferira as consolações da familia illegal ás da familia legitima.
Eis-aqui a rasão que determinou a recusa de D. Brites.
O certo era que Fernão da Silveira vivia em Castella sem disfarces de mancebia. A sua existencia, {20}cortada de continuos sobresaltos e receios, que o faziam esperar a toda a hora o punhal assalariado por D. João II, achava lenitivo nas expressões affectuosas da manceba, que na desgraça se tornára mais dedicada.
Sabia o foragido que o rei de Portugal procurava constantemente actuar no animo de Fernando e Izabel para leval-os a entregarem-lhe o conspirador. Receiava que os reis catholicos viessem a ceder, e n'esse caso contava com uma infallivel morte ignominiosa, com uma vingança terrivel que nem os seus restos mortaes respeitaria. A pelle do seu corpo serviria para cobrir a cadeira de D. João II.
Em Castella, nas horas em que não frequentava a côrte, onde assiduamente concorria para sondar a seu respeito o animo de Fernando e Izabel, fraquejára por vezes aquelle homem forte, cuja altivez assombrára o conde de Benavente, e merecêra elogio ao proprio D. João II.
Perante a rigidez indomavel do rei de Portugal, antolhava-se-lhe desolador o futuro. Se lograsse escapar aos sicarios armados pela colera de D. João II, o que era muito pouco provavel, teria que viver e morrer longe da patria com o labéo de conspirador, sempre vexado pela necessidade de receber agasalho e protecção.
As sombras da noite punham-lhe no espirito o constante receio de emboscadas; atravessava as ruas com o sobresalto com que póde atravessar-se um sertão povoado de féras. Não se permittia a fraqueza {21}do medo, não evitava as horas sinistras da noite, por mais que Izabel Rodrigues lh'o pedisse; mas tinha sempre presente o espectro da morte por traição.
Quando recolhia a casa, esquecia nos braços carinhosos da manceba, que lhe apresentava o filho, os sobresaltos d'aquelle dia, e repousava como o naufrago n'um porto de abrigo.
Ás vezes tinha furias de raiva contra D. João II, o assassino do duque de Vizeu, o flagello da nobreza portugueza, como elle lhe chamava. Retratava-o moralmente como um tyranno sedento de sangue e poder. Justificava a reacção da nobreza, e a sua, declamava como um verdadeiro jacobino do seculo xv, como um sans-culotte que se tinha antecipado trezentos annos aos da demagogia franceza.
A manceba ouvia-o tremendo com o filho sentado nos joelhos, e procurava aquietal-o com palavras brandas.
Mas Fernão da Silveira perguntava-lhe se poderia ter animo tranquillo e sereno um homem a quem D. João II, se o apanhasse, faria esquartejar, pregando-lhe os quartos nas portas de qualquer cidade ou villa, e a cabeça no pelourinho da praça publica.
Lembrava-lhe que o odio de D. João II costumava ser tão profundo e sanguinario, que não respeitava nem as regalias de nascimento nem os laços de parentesco.
Perguntava-lhe se não sabia que o duque de Bragança fôra decepado no cadafalso da praça de Evora; que em Abrantes cevára D. João II a sua {22}vingança na estatua do marquez de Montemór já que, por se ter refugiado em Castella, não podéra ceval-a no seu corpo; que o duque de Vizeu, cunhado do rei, fôra por elle proprio assassinado em Setubal. Agradecia á Providencia o ter-se encarnado na pessoa de João de Pegas para o salvar; senão, haver-lhe-ia acontecido o que acontecêra a D. Pedro de Athayde, que fugindo de Setubal para Santarem fôra preso no caminho, publicamente degolado e feito em quartos.
Os fidalgos castelhanos continuamente estavam avisando Fernão da Silveira das repetidas instancias que D. João II fazia junto dos reis catholicos para que lh'o entregassem. O conspirador teimava em não querer parecer fraco, deixava-se ficar, sempre intimamente sobresaltado e desconfiado.
Mas em 1488, como D. João II enviasse a Castella uma embaixada a pedir para o herdeiro da corôa a mão da filha primogenita dos reis catholicos, Fernão da Silveira, receiando que pelo facto do casamento se estreitassem, como era natural, as relações de amizade entre as duas côrtes, resolveu-se a fugir para França acompanhado pela manceba e pelo filho.
Não devia, porém, considerar-se muito seguro em França um conspirador representante da nobreza insurgida contra o poder absoluto dos reis.
Luiz XI, que tinha morrido poucos annos antes, em 1483, havia sido um inimigo implacavel dos poderosos senhores do seu reino, que formaram contra elle a celebre liga do Bem publico. Sabe o leitor que {23}Luiz XI se fizera rodear de gente de baixa estofa, que continuamente atiçava a colera do rei contra a nobreza. Vivêra mano a mano com o seu barbeiro Olivier Le Daim, e tratava por compadre o preboste Tristan, executor dos seus planos sanguinarios.
Estava ainda muito viva a lembrança das crudelissimas represalias de Luiz XI,—da vingança que tirára do seu ministro Jean Balue, que de simples presbytero chegára a ser cardeal de Santa Suzana e que, suspeito de ter atraiçoado o rei com o duque de Borgonha, fôra, no castello de Plessis, encerrado n'uma gaiola de ferro, onde não podia conservar-se deitado nem de pé; do supplicio horrivel de Jacques d'Armagnac, duque de Nemours, e de seus filhos, na fortaleza de Loches; finalmente do drama tragico-burlesco dos ultimos tempos da sua vida n'aquelle mesmo castello de Plessis, onde Jean Balue padecêra, e onde Luiz XI, assaltado pelos terrores da morte, fazia vigiar as avenidas pelo barbeiro Olivier e pelo compadre Tristan, que se encarregavam de enforcar nas arvores do parque todo o individuo que podesse inspirar-lhes desconfiança.
Luiz XI havia pois morrido em Plessis, onde passára os ultimos dias passeiando ao longo d'uma vasta galeria, torturado pelo medo da justiça eterna, sem que podessem tranquilizal-o o espectaculo dos combates de gatos e ratos, as danças dos camponezes, as orações e as penitencias a que se entregava, e sem que podesse avigoral-o o uso de beber o sangue das creanças no intuito de fortalecer-se e remoçar.
Nem este tonico vivificante, nem o soccorro do eremita da Calabria, que mandára buscar para consultal-o, e ao qual pedia a vida chorando, haviam podido salvar da morte Luiz XI.
O herdeiro do throno, Carlos VIII, tinha treze annos quando foi proclamado rei, e sua irmã, Anna de Beaujeu, investida na regencia, procurava conservar intacto o poder real, dominando a nobreza.
Depois da batalha de Saint-Aubin, ferida em 1488, em que o duque de Orléans cahira prisioneiro nas mãos da regente, que o conservou dois annos encarcerado, diz-se que, principalmente, para vingar-se dos seus desdens amorosos, Fernão da Silveira entendeu como mais prudente abandonar uma côrte, onde a nobreza continuava a ser esmagada pelo poder real, e foi estabelecer o seu faux ménage em Avinhão, a cidade sagrada, que um legado do papa governava.
Em Avinhão, Fernão da Silveira tinha horas de cerrada melancolia, quando ermava contemplativo junto ao tumulo da Laura de Petrarcha, e aproximava o seu destino do destino do poeta italiano, ambos infelizes, posto que por differente motivo.
Petrarcha apaixonára-se aos vinte annos pela bella Laura, que nunca foi sua, pois que desposára Hugues de Sade, a quem, victima da peste de 1348, deixára viuvo com a descendencia bem pouco lyrica de onze filhos.
Fernão da Silveira, menos infeliz pelo que respeitava ao feminino, tinha comsigo, em mancebia adulterina, a sua Laura, a qual procurava {25}suavisar-lhe as horas amargas da vida, que eram todas ou quasi todas.
Mas como poeta e exilado, comprehendia a solidão dolorosa de Petrarcha em Valchiusa, á beira de cuja fonte o portuguez ia muitas vezes sentar-se juntando idealmente as suas angustias ás do poeta que, tendo alli cantado um seculo antes, vivêra solitario como elle e como elle perseguido pela fatalidade do destino.
Entrado o anno de 1489, o espirito de Fernão da Silveira principiou a ser assaltado por sombrios presentimentos, que elle baldadamente procurava reprimir.
Tinha frequentes accessos de colera, que o sorriso de seu filho, creança de pouco mais de oito annos, não lograva serenar.
Imprecava violentamente D. João II, que continuava a denominar o tyranno de Portugal.
Dizia muitas vezes a Izabel Rodrigues que a justiça do céo havia de cahir tarde ou cedo sobre o tyranno, e feril-o na mais sensivel fibra do coração, se aquelle coração tinha alguma coisa de humano. Parecia que Fernão da Silveira adivinhava n'esse momento a catastrophe que, tempo depois, havia de victimar em Santarem o joven principe D. Affonso, herdeiro da corôa.
Recommendava-lhe que, no caso d'elle morrer assassinado por ordem de D. João II, como presentia, educasse seu filho no odio ao tyranno e no amor da liberdade.
Mostrava alimentar a esperança de que a sua morte e a dos outros conspiradores seria vingada pelo veneno ou pelo punhal na pessoa do rei.
Ainda n'isto se não enganou Fernão da Silveira, porque os intestinos de D. João II parece terem cedido lentamente á acção toxica das drogas preparadas por mestre João de Masagão de accôrdo com o duque de Beja.
O inverno de 1489 havia sido cruel em toda a Europa. Estava-se em dezembro, os dias eram plumbeos, as noites tempestuosas.
Fernão da Silveira dizia muitas vezes a Izabel Rodrigues:
—A cada silvo do vendaval sinto-me estremecer interiormente, como um predio que vai desabar... É o presagio da morte, Izabel. Morro longe da patria, longe da familia que eu constitui em tempos de felicidade. Morro ao pé de um filho, e tenho saudades de outro. O coração é assim feito. Foi o tyranno que me casou, porque na côrte dos reis poderosos nem o coração é livre. Nunca tive nem podia ter por minha mulher a febre de amor com que tu me incendiaste os sentidos. É a ti que eu amo, boa alma, que tanto te tens doído das minhas dôres. Vivo comtigo com o mesmo direito com que o tyranno abandonava a rainha para se ir emboscar em Cernache do Bom Jardim com D. Anna de Mendonça, a mãe do bastardo. Se alguem n'este ponto podesse tomar-me contas, não era por certo o tyranno, tão fragil com mulheres. Mas da esposa que não amei nunca, {27}tenho um filho que sempre tenho amado, e peza-me que elle haja de arrastar na sociedade a infamia com que o tyranno enlameou protervamente o meu nome. Outro filho tenho... é o teu, é o nosso, Izabel, e d'esse me peza duplamente, porque só póde ser meu filho para compartir da deshonra do pai com o irmão.
Izabel Rodrigues acudia com palavras carinhosas a desviar-lhe o espirito para menos lastimosos pensamentos, mas o conspirador quedava-se triste, calado, dando a perceber que continuava mentalmente os raciocinios que a manceba meigamente pretendêra interromper.
No dia 8 de dezembro, Fernão da Silveira lembrára-se saudosamente de Portugal, recordando com grande nitidez de memoria muitos episodios da sua vida da côrte. Izabel Rodrigues tentou distrahil-o; e como no céo, anteriormente caliginoso, se fossem rasgando clareiras azues, lembrou-lhe que sahisse a passeio.
Dos labios do conspirador escaparam em resposta estas palavras presagas:
—Sahir! Procurar a morte!
Mas como se de subito se envergonhasse da sua fraqueza, disse a Izabel Rodrigues que sahiria.
Lembrou ella que levasse comsigo o filho, que bem podia attrahir-lhe a attenção para as suas graças infantis.
Fernão da Silveira sahiu, e levou o filho.
Foram, caminho fóra, conversando os dois.
Obedecendo á teimosia dos seus pensamentos, {28}Fernão da Silveira ia fallando de Portugal ao filho, gravando na sua memoria, a traços de fogo, o retrato odiento do tyranno.
Á volta de uma rua, encontraram-se a pequena distancia com um fidalgo catalão, cujo nome e situação Fernão da Silveira muito bem conhecia. Era, como elle, um conspirador, que andava foragido de Castella: o conde de Palhaes.
O catalão, em vez de se dispôr a saudar Fernão da Silveira, levou a mão direita ao peito, insinuando-a no gibão. E, ao passar junto de Fernão da Silveira, cravou-lhe rapidamente um punhal no coração.
Não teve o portuguez tempo para resistir; cahiu desamparado na rua.
Mas o pequeno Alvaro, vendo o pai morto, desatou em gritos dilacerantes, que despertaram as attenções, e chamaram gente.
O conde de Palhaes foi logo preso, conduzido ao carcere em nome do rei de França, que não era já Luiz XI, como sabemos, porque Luiz XI havia morrido seis annos antes.
A opinião publica alvorotára-se com este acontecimento, pela significação que realmente tinha. O braço do conde de Palhaes fôra manifestamente armado por D. João II, que ao catalão fizera mercê de muita somma de ouro, em que se primeiro concertou, como escreve Garcia de Rezende. Não podéra o rei de Portugal ser feliz nas negociações que para haver á mão Fernão da Silveira entabolára com os reis catholicos e com o rei de França. Ter-lhe-ia sido por {29}certo bem mais agradavel que essas negociações houvessem surtido effeito, porque lhe permittiriam vingar-se do escrivão da puridade pelo seu proprio braço, como fizera ao duque de Vizeu, ou pelo braço do algoz, como fizera ao duque de Bragança. Mas, posto falhassem os meios a que primeiro recorrêra, não desistíra da vingança. Empregou outros, o da corrupção pelo ouro, sob promessa talvez de que, além do ouro, a sua protecção salvaria o sicario.
N'este ponto enganou-se D. João II.
Morto Fernão da Silveira pelo conde de Palhaes, o rei de Portugal quiz effectivamente valer-lhe, como decerto havia promettido. Mas o mais que pôde conseguir foi que a regente, em nome do rei de França, lhe commutasse a pena de morte em prisão perpetua.
É natural que o catalão désse ao diabo a empreza, vistos os resultados. O ouro que recebêra não podéra ganhar-lhe a liberdade; e D. João II apenas lográra salvar-lhe a vida.
Alvaro Rodrigues, o bastardo de Fernão da Silveira, fôra conduzido a casa por pessoas compassivas que o acompanharam. Levava o fato salpicado de sangue do pai, e impressos para todo o sempre na memoria os pormenores do seu tragico assassinato.
A mãe abraçou-se chorando ao filho, e rompeu em apostrophes violentas contra o tyranno que assalariára o sicario para que elle, á luz do dia, perpetrasse um homicidio dentro da cidade dos papas.
Na memoria infantil do pequeno Alvaro {30}condensaram-se, em torno da recordação do cadaver do pai, todos estes lugubres accessorios, que as lagrimas e os clamores da mãe a cada momento renovavam.
Quando a noticia chegou a Portugal, outra mãe, D. Brites de Sousa, esquecendo na sua dôr as infidelidades do marido, recordou a João da Silveira, seu filho, a historia lacrimosa do pai. Era então menino de poucos annos João da Silveira, mas a recordação do pai, sempre avivada pela narrativa da viuva, fez-lhe grave e triste o caracter. Demais a mais, João da Silveira herdára o talento poetico do pai. Foi, mais tarde, um dos glosadores dos serões da côrte, e um dos poetas do Cancioneiro de Garcia de Rezende.
Educou-o a expensas suas D. Diogo Lobo, seu tio, e tambem poeta.
D. Manoel, subindo ao throno, tratou de rehabilitar os conspiradores. A Fernão da Silveira rehabilitou-o na pessoa do filho legitimo, que começou a sua carreira publica por ir servir em Çafim. João da Silveira chegou a ser commendador de Montalvão, governador de Ceylão, trinchante de D. João III, e seu embaixador em França. Morreu em Evora, e foi sepultado na capella do Espinheiro.
Os dois filhos de Fernão da Silveira nunca se deram. A bastardia de um explica naturalmente o facto. Izabel Rodrigues, recolhendo a Portugal, não recorreu á protecção de D. Brites de Sousa, nem D. Brites de Sousa lh'a offereceu.
O que eu vou contar é uma historia verdadeira, tão verdadeira como ter havido em Inglaterra um rei chamado Henrique VIII, que casou com seis mulheres e que, sem ter morrido a primeira, passou a segundas nupcias, contra a vontade do Padre Santo.
Aqui principia, pois, todo o interesse do conto, porque, por causa de uma mulher, como sempre acontece, separou-se a Inglaterra da communhão catholica de Roma.
Aquelle rei dos bretões, que ao depois havia de sahir tão voluvel e tyranno, foi na sua mocidade um bom principe, muito amante da musica e das letras e, no respeitante a religião, muito orthodoxo. Seu pai, o primeiro soberano Tudor, acabára dominado pela mania da ambição, que o levára a vexar o povo, de {32}modo que sorrira com Henrique VIII a esperança de uma nova época melhor auspiciada, tanto mais que o rei, acclamado em 1509, tinha casado aos dezeseis annos com a viuva de seu irmão o principe de Galles, D. Catharina de Aragão, princeza virtuosa, que o devia aconselhar prudentemente, sendo que este casamento era duplamente vantajoso, porque d'elle dependia a alliança com a Hespanha e porque evitava que a Inglaterra tivesse que restituir o dote da princeza.
Tão orthodoxo era o joven rei Henrique, que se condecorava com o titulo de defensor da fé porque, tendo rebentado o grande scisma de que Luthero fôra a cabeça visivel, escrevêra contra o lutheranismo, guiado pelas suas predilectas leituras de S. Thomaz d'Aquino, um livro que intitulou De septem sacramentis.
O cardeal Wolsey, arcebispo de York, que procedia de baixo nascimento, era junto de Henrique VIII um ministro absoluto. Ora á rainha Catharina pesava que todo o poder residisse de facto nas mãos d'esse homem ambicioso, e como o cardeal o soubesse, espreitou occasião propicia para tirar vingança da rainha.
Conhecendo que Henrique VIII estava namorado de Anna Boleyn, filha do gentilhomem Thomaz Boleyn, procurou despertar na alma do rei certas duvidas a respeito da legalidade do seu casamento com D. Catharina d'Aragão, casamento que aliás havia sido realisado por auctoridade de uma bulla do papa Julio II.
A rainha Catharina, mais velha seis annos do que Henrique VIII, tinha-lhe dado cinco filhos, mas só uma sobrevivêra: a princeza Maria. N'isto quiz o cardeal Wolsey vêr castigo do céo, porque o Levitico fulmina penas contra todo aquelle que desposar a viuva do irmão. S. Thomaz d'Aquino, o auctor predilecto do rei, parece que tambem diz a este respeito alguma coisa. Mas dissesse que não dissesse. O que o cardeal queria era explorar em proveito proprio a paixão do rei por Anna Boleyn.
Henrique VIII gostou de encontrar uma porta aberta ao divorcio. E sem mais demora apparentou os seus escrupulos á rainha.
D. Catharina d'Aragão disse que apenas um anno fôra casada com o principe de Galles, que, pelo seu mau estado de saude, não podéra consummar o matrimonio. Que depois, para o segundo casamento, houvera dispensação de Roma. O rei objectou que desejava vêr a bulla. E a rainha expediu logo, a buscal-a, um gentilhomem seu que se chamava Montoya, e que dentro de vinte dias viera a Hespanha e voltára a Inglaterra com a bulla.
Então Henrique VIII procurou um novo subterfugio: que queria saber de Roma se a bulla era falsa ou verdadeira.
E ordenou que, durante dez dias, ninguem, a não ser o seu emissario de confiança, podesse sahir para Roma.
A rainha, como isto soube, valeu-se ainda de Montoya para que sem demora partisse occultamente {34}para Antuerpia, e d'alli, tomando um navio flamengo, procurasse chegar a Roma primeiro do que o postilhão do rei.
Assim aconteceu. O papa, recebendo Montoya, disse-lhe que a bulla era verdadeira, e que a enviaria a Inglaterra por mão do cardeal Campeggio. E o mesmo respondeu ao emissario de Henrique VIII, que ficou desesperado quando teve conhecimento do modo como as coisas haviam corrido.
A rainha, para segurar a vida de Montoya, mandou-lhe recado que se demorasse em Brugges, e ahi esperasse ordens suas.
Entretanto chegára a Inglaterra o cardeal Campeggio. O rei tomára por seu patrono o cardeal Wolsey, a rainha o cardeal Campeggio, e marcou-se o praso de um mez para que cada um dos conjuges litigasse o seu direito.
Catharina de Aragão mandou procurar em Brugges um advogado que, tendo medo, não acceitou a procuração, de modo que a rainha ficou sem outro defensor além do cardeal Campeggio.
E reunido um conselho de dezeseis lettrados, oito por parte do rei, oito por parte da rainha, declarára um dos lettrados do rei que o principe de Galles, segundo duas testemunhas podiam jurar, tivera conversação com D. Catharina, porque certa manhã, sahindo da alcôva, dissera alegremente que tinha passado a noite em Hespanha...
A rainha, ouvindo isto, levantou-se indignada, replicando:
—Que o testemunho era aleivoso, por quanto o rei Henrique bem sabia como a havia encontrado.
E, ouvidos tambem os debates theologicos entre os cardeaes inglez e italiano, o conselho dos lettrados reconheceu a dispensação por boa e authentica, ficando resolvido que aquelles dois dignitarios da Igreja dariam sentença no dia seguinte.
O cardeal de Wolsey, vencido n'esta lucta, foi desculpar-se junto do monarcha, que o repelliu agrestemente, accusando-o de não ter sabido levar a cabo o seu plano.
E Henrique VIII, como cada vez estivesse mais namorado de Anna Boleyn, chamou os duques de Norfolk e Suffolk, e outros grandes senhores do reino, para que no dia seguinte, quando os dois cardeaes se reunissem, lhes dissessem da sua parte que não queria que dessem sentença.
Os duques e os outros grandes senhores cumpriram a ordem do rei, e os cardeaes não ousaram dar a sentença, indo o de Wolsey lançar-se de joelhos aos pés de Henrique VIII para que lhe perdoasse e o deixasse sahir incolume da côrte.
Ora o rei, apesar do que se tinha passado, dissera em segredo a Anna Boleyn que estivesse certa de que elle a havia de desposar e fazer coroar rainha.
Despedindo o cardeal Campeggio, Henrique VIII fez-lhe saber que estava resolvido a não reconhecer por mais tempo a auctoridade do bispo de Roma, e logo, reunindo o seu conselho, communicára-lhe esta resolução, bem como a de desposar Anna Boleyn.
Foi resolvido que se convocassem côrtes.
Mas, para não perder tempo, o rei Henrique, que estava então em Greenwich com a rainha, ordenou que Catharina de Aragão partisse sem demora para Kimbolton, a vinte e seis leguas da côrte, sahindo elle proprio para Richmond.
A pobre Catharina de Aragão partiu com os seus fieis criados, e o rei casou em Richmond com Anna Boleyn, sendo celebrante o arcebispo de Cantorbery.
O rei Henrique teimára em passar através de todas as difficuldades.
Uma d'ellas suggeriu-lh'a a propria mãi de Anna Boleyn, filha do duque de Norfolk, que lhe pedira reflectisse no que ia fazer.
—Porque, disse a mãi de Anna, se vossa magestade examinar bem a sua consciencia, ha de achar que minha filha tambem é sua filha.
Mas o rei não achou nada.
Henrique VIII, voltando a Greenwich, mandou dizer á cidade de Londres que passaria n'aquella cidade para ir a Westminster coroar a nova rainha, e Londres apercebeu-se pomposamente para receber o rei Henrique e a rainha Anna.
Tres dias depois, Henrique VIII embarcou com Anna Boleyn no bergantim real, seguido de uma flotilha flammante, sendo saudado tão estrondosamente pela artilheria, que não ficou n'aquelle dia vidraça inteira desde Greenwich até Londres.
O rei e a rainha pernoitaram na Torre e, no dia seguinte, Henrique VIII foi no bergantim real para {37}Westminster, sahindo pouco depois Anna Boleyn com igual destino, n'umas andas descobertas, precedida de toda a cavallaria e de gentishomens e damas em hacaneas e coches.
Anna Boleyn levava um vestido de brocado carmezim constellado de pedraria, no collo um collar de perolas maiores do que amendoas, na cabeça uma grinalda á maneira de corôa, e nas mãos um bouquet de flôres raras e bellas.
Na rua de Cheapside havia um arco triumphal, no sitio onde a cidade costuma dar aos reis que vão coroar-se mil libras sterlinas, que lhes são entregues por um anjo que desce do arco.
A rainha Anna recebeu a bolsa com o dinheiro, e guardou-a. Logo o povo, que se lembrava de que a rainha Catharina havia mandado distribuir igual quantia, quando lh'a deram, pelos alabardeiros e lacaios, ficou ainda mais desconfiado do que estivera até ahi, dizendo com os seus botões que aquillo era outra loiça de rainha.
Á porta de Westminster, o rei Henrique VIII esperava a rainha Anna, e, dirigindo-se todos para o templo, foi a rainha coroada, havendo durante oito dias grandes justas e torneios, coisa espantosa de se vêr.
Ora o parlamento confirmou tudo quanto o rei havia feito: ratificou o casamento com Anna Boleyn, jurou a legitimidade da successão que d'elle resultasse, reconheceu a Henrique VIII o titulo e o poder espiritual de chefe supremo de igreja anglicana, e {38}outorgou-lhe os rendimentos outr'ora destinados ao thesouro pontificio.
Como alguns catholicos permanecessem firmes na sua antiga crença, e não quizessem jurar, foram presos e executados: entre outros João Fisher, bispo de Rochester, e o chanceller e escriptor Thomaz Moore, a quem Erasmo dedicou o Elogio da loucura, e que fôra, junto de Henrique VIII, o successor do cardeal de Wolsey.
Tambem quiz o rei obrigar a rainha Catharina e os seus fieis criados a reconheceram por juramento Anna Boleyn como rainha, e elle como chefe da igreja anglicana. Catharina de Aragão recusou-se dignamente, mas não queria sacrificar os criados. Elles limitaram-se a jurar que o rei se tinha feito cabeça da igreja, negando-se porém terminantemente a reconhecer Anna Boleyn como rainha de Inglaterra.
Roma fulminára terriveis excommunhões contra Henrique VIII. Paulo III, como já havia feito Clemente VII, anathematisára o rei de Inglaterra, citando-o a comparecer perante o tribunal de Roma.
Mas o rei Henrique fez ouvidos de mercador, e ordenou que a filha de Anna Boleyn, que veio depois a reinar com o nome de Izabel e o cognome de Virgem (que virgem!) fosse jurada princeza de Galles, sendo declarada bastarda madama Maria, que tambem foi rainha, filha de Catharina de Aragão.
Desde que na rua de Cheapside a rainha Anna tinha arrecadado a bolsa com as mil libras sterlinas, que lhe dera a cidade de Londres, ficou-se sabendo {39}que, na balança do seu coração, o amor ao rei não pesava mais do que o amor ao dinheiro.
Assim foi que ella cobiçou a corda e as joias que pertenciam á rainha Catharina.
Ora a rainha Catharina podia, como a condessa de Chateaubriand, quando Francisco I lhe pediu todas as joias para as dar a Anna de Pisseleu, tel-as mandado derreter no fogo. Mas não fez assim, devolveu-as honradamente, com excepção da corôa, porque estava guardada da mão de lord Rutland, que não a quiz entregar emquanto a rainha Catharina foi viva.
Lord Rutland é o Martim de Freitas inglez.
Mas aquelle e outros golpes acabaram por dilacerar o coração atormentado da boa rainha Catharina, cujos padecimentos se aggravaram mortalmente.
No seu leito de agonia escreveu ao rei uma carta, que o abbade Millot com razão classifica de lettre touchante, mas que nós, graças á chronica hespanhola de Julian de Pliego, tão sabiamente annotada pelo marquez de Molins, podêmos reproduzir na integra:
«Senhor meu e rei meu e marido amantissimo:
«O profundo amor que vos tenho faz-me escrever-vos n'esta hora e agonia de morte, para admoestar-vos e lembrar-vos que tenhaes conta da saude eterna da vossa alma mais que de todas as coisas fallazes d'esta vida e de todos os regalos e deleites de vosso corpo, por cuja causa me haveis dado tantas penas e fadigas e vos haveis embrenhado n'um labyrintho e pélago de cuidados e angustias. Perdôo-vos de boa mente tudo o que tendes feito contra {40}mim, e supplico a Nosso Senhor que tambem vos perdoe. O que vos rogo é que olheis por Maria, nossa filha, a qual vos recommendo; e vos peço que para com ella tenhaes cuidados de pai. Tambem vos recommendo as minhas tres criadas, e que as cazeis honradamente, e todos os outros criados, para que não padeçam privações; e além do que se lhes deve, desejo que se lhes entregue o salario inteiro de um anno. E, para concluir, senhor, certifico-vos e affirmo-vos que não ha coisa mortal que os meus olhos mais desejem do que vós.»
Boa e santa alma de mulher, que morre amando o seu verdugo!
No céo—e, se o ha, deve ser para os martyres que se volvem anjos—foi Catharina gozar a eterna felicidade: aquellas grinaldas, de que falla Shakspeare, e que ella esperava ser digna de gozar.
Porque, a proposito vem dizel-o, uma das tragedias de Shakspeare tem por assumpto e titulo Henrique VIII. Foi Izabel, a filha de Anna Boleyn, que lhe pediu que a escrevesse. Ora a obra do tragico inglez, a respeito de Henrique VIII, é um producto convencional, destinado á filha da rainha intrusa que depoz Catharina de Aragão.
Anna Boleyn tinha estado na côrte galante de França, fazendo parte da comitiva da princeza Maria, irmã de Henrique VIII, ultima esposa de Luiz XII, e saboreára ahi nas festas ruidosas do castello de Blois a vida alegre e frivola cuja effervescencia é capitosa. Quando a viuva de Luiz XII, que por amor d'ella se {41}extenuára, voltou a Inglaterra, Anna Boleyn, educada á franceza, acompanhou-a. Vinha coquette. De mais a mais Henrique VIII era um marido que se saciava de afogadilho, e que nos seus caprichos amorosos tinha azas como a borboleta, para voar de flôr em flôr.
Anna Boleyn, que começára amando a dança e a musica, acabou por amar os dançarinos e os musicos.
Assim era que bailava nos seus aposentos com sir Henry Norreys, com Weston e William Brereton, dois gentishomens de segunda ordem, ao som de uma orchestra de tangedores, de que fizera parte Marcos Smeaton, um aventureiro, filho de um carpinteiro pobre, mal vestido e afadistado.
Este Marcos Smeaton foi levado á presença da rainha para exercer a sua prenda de menestrel, emquanto ella bailava com o primeiro gentilhomem do rei, sir Henry Norreys; mas a rainha, impressionada pelo filho do carpinteiro, quiz bailar com elle, mandando a uma dama que tangesse.
Não vá cuidar-se que esta democracia reles era privativa da côrte dos bretões.
Conta André de Rezende, na Vida do Infante D. Duarte, que este infante tomára por companheiro um tangedor castelhano de appellido Ortiz, que lhe tocava na guitarra fados contra o papa, e trocava em sucia com o principe graçolas obscenas de calão fadista.
Marcos Smeaton entrára com o pé direito nos {42}aposentos e nas danças da rainha Anna, porque, pouco tempo volvido, uma servilheta velha, alcoveta industriosa, levava de noite o Marcos até ao leito da rainha.
Sir Henry Norreys e William Brereton descobriram mouro na costa, e recalcitaram. Armou-se uma embrulhada de ciumes, tanto maior quanta era a pompa de vestuario e galanices que o Marcos exhibia, indicando tolamente as boas fortunas de que gozava junto da rainha Anna.
A ousadia pimpona de Marcos Smeaton desbragou-o a ponto de se mostrar altaneiro com lord Thomaz Percy, conde de Northumberland.
Ora ainda n'esta ousadia chibante do menestrel andava o ciume, porque Thomaz Percy, antigo namorado de Anna Boleyn, lográra ser, á sombra de Henrique VIII, o mais feliz dos amantes.
A rainha ordenou com descaro a Percy que não maltratasse o Marcos, mas Percy, ferido talvez mais pelo ciume do que pela desconsideração, foi denunciar os novos amores da rainha a Thomaz Cromwell, ministro do rei Henrique.
Cromwell attrahiu a Londres Marcos Smeaton e, pondo-o na tortura, arrancou-lhe a confissão das relações adulterinas da rainha com os tangedores e bailarinos da côrte, incluindo elle.
D'alli foi Marcos Smeaton mandado para a Torre de Londres, onde não tardaram a ser igualmente encerrados Henry Norreys, William Brereton e o poeta Thomaz Wyat, muito protegido do ministro Cromwell.
N'este lance da nossa historia precisamos conversar um pouco a respeito do poeta Wyat, aliás famoso, comquanto amorosamente fosse mais pateta do que poeta.
Creado desde pequeno com Anna Boleyn, estabeleceu-se entre os dois um d'aquelles idyllios infantis de que Bernardin de Saint-Pierre deixou uma photographia generica na pastoral de Paulo e Virginia.
Mas os devaneios d'essa idade são gorgeios de rouxinol que ascendem ao azul, e por lá ficam pairando n'uma alada melodia, que lembra toda a vida com maior fiasco do que saudade.
Emquanto a pureza dos idyllios platonicos se libra nos ares, as mulheres positivas que os inspiraram vão cá na terra saboreando as iguarias do peccado com grande menospreço pelos poetas bucolicos que não souberam ir além do platonismo piégas.
Conta Pliego que a alcoveta de Anna Boleyn, na noite em que introduzira na camara da rainha Marcos Smeaton, e no momento de o occultar com o espaldar do regio catre, dissera para disfarce, pondo junto ao leito uma bandeja: «Senhora, aqui está a marmelada.»
A marmelada era Marcos Smeaton.
Foi a isto que eu chamei metaphoricamente iguarias do peccado.
O pobre Wyat, quando Anna Boleyn subiu de marqueza de Pembroke a rainha de Inglaterra, o mais que fez foi chorar sobre as ruinas do seu proprio platonismo. Compoz, ahi por 1535, uma elegia {44}com o titulo de Forget not yet, que, em versão descolorida, sôa pouco mais ou menos assim:
Não te esqueça a constancia que meu peito
No amor provado tem.
Trabalhos que soffri alegremente
Não esqueças tambem.
Não te esqueça do meu antigo affecto
Seu antigo soffrer.
Quanto implorei captivo e atormentado
Não deves esquecer.
Provas por que passei, desdens, supplicios
Na memoria retem.
Delongas que soffri pacientemente
Não esqueças tambem.
Não esqueças o tempo que vai longe
No seu longo correr.
Que jámais julgou mal meu pensamento,
Não deves esquecer.
Não te esqueças do eleito teu d'outr'ora,
Do amor que teve e tem.
Do seu peito a constancia inquebrantavel
Não esqueças tambem.
Mas o sentimentalismo levava Wyat por caminho errado. Anna Boleyn, na côrte de Inglaterra, gostava mais dos musicos que das elegias.
Pensam alguns auctores que Thomaz Wiat nunca mais se avistára com Anna Boleyn. O chronista castelhano desfaz, porém, este equivoco, dando conta {45}da prisão de Wyat, pouco antes da propria rainha ser presa em Greenwich, onde acabava de se celebrar um torneio e onde a sua ultima galanteria fôra deixar cahir o lenço, como favor concedido aos seus amantes. Mas quem categoricamente tira todas as duvidas é o proprio Wyat n'uma carta que escreveu ao rei.
Quando os escandalos da rainha chegaram ao conhecimento de Wyat, aggravados até pela suspeita de incesto commettido com o visconde de Rochford, seu irmão, achou elle que o melhor que tinha a fazer era chorar menos e atirar-se mais.
Uma noite, estando Anna Boleyn a oito milhas de Greenwich, Wyat montou a cavallo e, dirigindo-se ao palacio da rainha, teve artes de se introduzir na sua camara. Glosou-lhe, á beira do leito, uma nova declaração de amor. Mas como a rainha se calasse, e como quem cala consente, ousou apolegar-lhe as carnes. Estavam as coisas em bom caminho, quando de repente ouviu bater com o pé no pavimento do andar superior. E a rainha, que esperava de certo este signal, levantou-se do leito e desappareceu por uma escada interior. Wyat esperou por ella uma hora, mas Anna Boleyn, quando voltou, despediu-o ariscamente.
Os platonicos, mesmo quando se propõem mudar de escóla, passam por uma iniciação desastrada e ridicula.
Mas oito dias depois, como era justo, pois que tanto chorára e esperára, o poeta Thomaz Wiat não foi menos feliz do que Marcos Smeaton e outros musicos.
Tudo isto contou Wyat ao rei, n'uma carta escripta da Torre de Londres, e o rei, depois de a lêr, mandou soltar o poeta e ficou estimando-o tanto, que em 1541 o enviou como embaixador á côrte de Carlos V, mas Wyat morreu dos incommodos d'esta viagem.
Os outros cumplices de Anna Boleyn não tiveram igual felicidade: o visconde de Rochford, Henry Norreys, William Brereton e Marcos Smeaton foram degolados. A alcoveta Margarida foi queimada.
Presa na Torre de Londres, Anna Boleyn negou os crimes de que a accusavam. Ao bispo de Cantorbery disse ella:
—Eu bem sei a causa de tudo isto. O rei anda namorado de Joanna Seymour, e achou este meio de se desfazer de mim.
A accusação e a defeza eram por igual verdadeiras.
De nada valeu á rainha encarcerada a carta que da Torre de Londres escrevêra ao rei, e que o rei leu sem commoção.
Sobre o cadafalso, Anna Boleyn pronunciou um discurso muito habil para não enganar Deus nem os homens.
—Não penseis, bom povo, que me peza morrer, nem que eu fizesse coisa que merecesse esta morte: tudo procede da minha grande ambição e do grande peccado que commetti fazendo com que o rei abandonasse a boa rainha Catharina por minha causa. Rogo a Deus que ella me perdôe. E para que todos o ouçaes, digo que sou injustamente accusada. A {47}principal razão da minha morte é Joanna Seymour, como eu fui a razão da morte da boa rainha Catharina.
E assim, humilhando-se diante de Deus sem se penitenciar diante dos homens, foi decapitada no dia 19 de maio de 1536.
Dividem-se as opiniões a respeito do comportamento de Anna Boleyn.
Os escriptores protestantes divinisam-lhe as virtudes; os catholicos põem em evidencia o desbragamento das suas libertinagens.
A sentença condemnatoria, assignada por Henrique VIII, accusa Anna Boleyn de traição, adulterio e incesto.
Guilherme Cobbett, comquanto protestante, faz resaltar o contraste da devassidão dos costumes da rainha Anna com a existencia virtuosa da rainha Catharina.
David Hume, o notavel historiador inglez, lança as graves accusações levantadas contra Anna Boleyn á conta das apparencias de coquetterie, que em grande parte ella havia aprendido em França, e das machinações facciosas dos seus inimigos, incluindo a viscondessa de Rochford, cunhada da rainha, que insinuou a suspeita do incesto.
Na chronica castelhana de Julian de Pliego vem a designação de que o auctor, talvez acobertado pelo pseudonymo, fôra contemporaneo dos factos que narra.
É certo que elle commette alguns anachronismos, como nota o marquez de Molins, mas não padece duvida que na sua chronica, facilmente escripta, com {48}uma discreta sobriedade de rhetorica, pouco vulgar nos historiadores hespanhoes, ha grande copia de preciosas noticias, de interessantes pormenores, que a fazem estimabilissima.
Em Portugal Anna Boleyn ficou sendo, na tradição popular, sob a translitteração de Anna Bolena, o typo da mulher corrupta e corruptora, enredadeira e devassa, perturbadora e intrigante.
No que, porém, todos os historiadores estão de accordo é em attribuir a summaria decapitação de Anna Boleyn ao amor que o rei alimentava por Joanna Seymour, filha de sir João Seymour, dama formosissima, que fazia parte da casa da rainha Catharina.
No dia da execução de Anna Boleyn, Henrique VIII, para mostrar a alegria do seu coração, e porventura a «pureza» das suas intenções, vestiu-se de branco; e no dia seguinte desposou Joanna Seymour.
David Hume observa, para fazer elogio á consciencia de Henrique VIII, que este rei não queria conhecer outras ligações além das do casamento. A desculpa afigura-se pueril e inexacta, porque o rei viveu tres annos amancebado com Anna Boleyn, antes de se divorciar de Catharina de Aragão.
Fizeram-se grandes festas para solemnisar o casamento de Henrique VIII com Joanna Seymour, que, tendo sido dama de honor da rainha D. Catharina, se mostrava muito affeiçoada á princeza Maria, a qual o rei seu pai não tinha visto havia mais de tres annos.
Esta princeza, que, como se sabe, depois do casamento de Henrique VIII com Anna Boleyn apenas recebia o tratamento de madama, foi educada mais ou menos sob a influencia dos conselhos de sua mãi, D. Catharina de Aragão, de quem Rivadaneyra publíca uma carta, dirigida á filha, na qual se lê o seguinte periodo: «Dá recommendaçoes minhas á condessa de Salisbury: dize-lhe da minha parte que tenha firmeza de animo, porque não podêmos ganhar o reino dos céos sem cruz e attribulações.»
A condessa de Salisbury, Margarida Plantagenet, virtuosa dama, fôra aia da princeza Maria. Morreu justiçada aos setenta annos de idade, em 1539, por odio do rei, nas luctas contra os catholicos, aos parentes do cardeal Pole, que era filho da condessa.
Graças á intervenção de Joanna Seymour, a recepção feita pelo rei á princeza Maria, que não sem repugnancia se havia submettido ao scisma, pois que a sua educação tinha sido catholica, pareceu ser muito cordeal.
E logo, invertendo facilmente os papeis, ordenou o rei que a filha de Anna Boleyn passasse a receber o tratamento de madama, e a filha de Catharina de Aragão o de princeza.
Mas Joanna Seymour déra tambem á luz um filho, o mais lindo que jámais se viu, diz Julian de Pliego.
O nascimento de um herdeiro varão causou alegria a Henrique VIII, não obstante as difficuldades que esse facto trazia para resolver a questão {50}dynastica, e ter custado a vida de Joanna Seymour, que morreu doze dias depois do parto.
Como diz Hume, a dôr do esposo foi absorvida pela satisfação do pai, que fez jurar principe de Galles o filho de Joanna Seymour, concedendo por essa occasião a dignidade de conde de Hertford a Eduardo Seymour, irmão da mallograda rainha, já anteriormente nomeado lord Beauchamp.
O baptisado fez-se com grande pompa, recebendo a creança o nome de Eduardo, que foi o sexto rei d'aquelle nome, e veiu a morrer aos dezeseis annos sem deixar successão. A princeza Maria, a cuja guarda Henrique VIII confiou o filho, tocou por madrinha; o conde de Hertford, irmão de Joanna Seymour, por padrinho.
De todos as mulheres de Henrique VIII foi Joanna seguramente a mais estimada. Encontram-se de accordo n'este ponto os historiadores. Mas a razão está decerto, attenta a volubilidade do rei, em que elle não teve tempo para se enfastiar.
Assim foi que Joanna Seymour logrou morrer rainha, como observa Cobbett, e na sua cama, felicidade que outras esposas de Henrique VIII não gosaram.
Mas o rei, apesar do grande sentimento que lhe causára a morte de Joanna Seymour, pensou logo em casar.
Deitou primeiro as suas vistas para a duqueza viuva de Longueville, filha do duque de Guise. Mandou pedil-a a Francisco I. A resposta foi que a {51}duqueza estava já promettida ao rei da Escocia. Henrique VIII ficou desesperado, e enviou a França um emissario para o informar da impressão que a duqueza produzia. O emissario disse que era bonita e gorda. Esta ultima informação coroou a primeira, porque o rei, que estava então muito nutrido, preferia uma esposa de gordura condigna á sua.
Francisco I, posto reconhecesse que a alliança da Inglaterra lhe seria mais proveitosa do que a da Escocia, manteve a sua palavra, mas offereceu a Henrique VIII, para lhe calmar o animo, Maria de Bourbon, filha do duque de Vendome.
Henrique VIII, sabendo, porém, que o rei Jacques da Escocia, seu sobrinho, havia recusado Maria de Bourbon, rejeitou a proposta.
Então Francisco I offereceu-lhe qualquer das duas irmãs mais novas da duqueza de Longueville.
Henrique VIII respondeu pedindo a Francisco I uma entrevista em Calais, e indicando-lhe que se fizesse acompanhar das duas princezinhas de Guise e de todas as mais bellas mulheres da côrte de França, para elle escolher.
Queria um bazar de mulheres, uma feira de noivas!
Francisco I não obtemperou ao pedido. Picou-se, como dizem os francezes, fosse que lhe repugnasse o papel de alcaiote officioso ou que, sendo elle proprio galanteador do bello sexo, lhe desagradasse a idéa de expôr mulheres comme des chevaux au marché.
Então Henrique VIII lançou vistas para a Allemanha, o que politicamente não deixava de convir-lhe para encontrar allianças nos principes da liga protestante contra o imperador Carlos V.
Cromwell indicou-lhe Anna de Cleves, filha do duque d'este titulo.
Mandou-se pedir um retrato. Executou-o Holbein, celebre pintor, que se gozou das boas graças de Henrique VIII e da amisade de Thomaz Moore e Erasmo. Conta-se até que estando Holbein a trabalhar um dia no seu atelier, fôra bater-lhe á porta um dos primeiros senhores da côrte. Holbein desculpou-se de não poder abrir por estar trabalhando. O fidalgo insistiu. Holbein, impacientado, abriu a porta, e atirou-o pela escada abaixo. Receioso das consequencias d'essa imprudencia, correu a pedir a protecção de Henrique VIII, a quem o fidalgo foi sem demora queixar-se. O rei tentou congraçar o fidalgo com o pintor, mas, vendo que os seus esforços eram inuteis, disse ao fidalgo, que se vangloriava do titulo de conde:
—Eu posso facilmente fazer sete condes como vós; mas de sete condes não poderei fazer um Holbein.
Holbein, comquanto cultivasse a pintura historica, não faltando quem pense que elle seria o auctor do famoso quadro da Misericordia do Porto, foi principalmente notavel nos retratos. Pois apesar da habitual fidelidade do seu desenho e da exacta expressão do seu pincel, Holbein, no retrato de Anna de Cleves, obedeceu um pouco á adulação palaciana que {53}mandava alindar os retratos das princezas, embora ficassem menos parecidos.
Um seculo depois dizia o joven Luiz XIV a respeito de Margarida de Saboya: Elle est agréable, et, contre l'habitude, ressemble à ses portraits. O nosso grande José Estevão, apesar de inventada já a photographia, disse uma vez no parlamento que todas as princezas eram formosas.
Depois de examinado o retrato, justou-se o casamento, sem embargo da opposição do eleitor de Saxe, chefe da liga protestante, casado com uma irmã do duque de Cleves.
Impaciente de vêr a sua quarta noiva, Henrique VIII dirigiu-se mysteriosamente a Rochester, e esperou-a ahi. Viu-a, e não gostou. Arrependeu-se então de ter confiado no retrato em vez de adoptar o expediente que anteriormente havia proposto a Francisco I.
Além de feia, a princeza só fallava o hollandez, lingua que Henrique VIII não entendia.
O rei reuniu conselho para vêr se seria possivel romper o contracto de casamento, mas acobardou-o uma consideração politica.
Carlos V e Francisco I estavam então reconciliados. Como surgissem novas perturbações na Hollanda, principalmente em Gand, Carlos V, que residia em Hespanha, quiz ir pessoalmente calmal-as. Mas como a viagem por Italia e Allemanha seria muito longa, o imperador pediu ao seu prisioneiro de Pavia licença para atravessar a França. Francisco I mostrou-se {54}magnanimo, deu a licença pedida e recebeu com grandes festas Carlos V. Alexandre Dumas, como o leitor deve estar lembrado, descreve-as no seu romance Ascanio. Ora, dada a conciliação de Francisco I e Carlos V, bem podiam estes dois principes, movidos pelo zelo religioso, cahir sobre a Inglaterra com todo o pezo dos seus exercitos.
Portanto, mais do que nunca, importava a Henrique VIII uma alliança com os principes allemães, para o que désse e viesse.
Henrique resignou-se por algum tempo, vivendo separado da rainha de dia e de noite. Dava como desculpa a suspeita de que Anna de Cleves não estava virgem quando a desposou. E secretamente mandou á Allemanha um emissario de confiança, o gentilhomem Vaughan, para averiguar o que podesse a este respeito.
O rei, já a esse tempo enamorado de Catharina Howard, sobrinha do duque de Norfolk, queria encontrar um pretexto para repudiar Anna.
Partiu Vaughan com dinheiro á ufa e, chegando a Cleves, reuniu em banquete alguns gentishomens, com o proposito de os embriagar. In vino veritas. Depois de haverem esgotado os picheis, elles diriam o que soubessem. Assim aconteceu. Um d'elles, mais expansivo na embriaguez, posto fosse criado do duque de Cleves, disse á mesa que a princeza havia desposado um cavalleiro, que morrêra na Allemanha de desgosto quando soube que acabavam de casal-a com Henrique VIII.
Surprehendido este fio da meada, Vaughan procurou desfial-a, fazendo-se acompanhar de cartas justificativas.
Interrogada a propria Anna por Henrique VIII, respondeu que tinha sido desposada com o duque de Lorena, mas que lhe disseram que elle havia morrido, e que de mais nada sabia.
Hume assevera que o casamento com o duque de Lorena fôra effectivamente tratado com Anna de Cleves, quando ambos estavam na infancia, e desfeito depois por commum accordo.
Todavia isto bastou para que Henrique procurasse divorciar-se da rainha Anna, allegando que não déra o seu consentimento interior para o casamento, e que não o consummára.
Esta ultima desculpa não é menos absurda do que a primeira, visto que Henrique VIII declarára que Anna de Cleves já não estava virgem.
O duque de Norfolk, aproveitando o amor do rei pela sobrinha, conspirou contra o ministro Cromwell, e empolgára o poder que elle, proscripto por um bill, fôra obrigado a largar. O clero e o parlamento ratificaram o divorcio, e Anna de Cleves foi, sem se importar muito com isso, enviada para Cornwall, onde viveu entregando-se ao prazer, fazendo alegres partidas de caça.
O seu temperamento frio de allemã não soffreu pois grandemente com o divorcio, mas altivo, como todos os de sua raça, levou-a a não querer voltar para a Allemanha.
Diz-se que escrevêra uma carta ao irmão, pois que o pai tinha fallecido, affirmando-lhe que fôra sempre bem tratada na Inglaterra.
A situação politica da Europa tinha mudado; a reconciliação de Francisco I com Carlos V não havia sido duradoura. Foi o que valeu a Henrique VIII, porque as suas relações com os principes da liga protestante esfriaram depois do divorcio. E o que valeu a Anna de Cleves foi o receio que Henrique tivera dos principes allemães. Se assim não fosse, em vez de ir para Cornwall, teria ido para a Torre de Londres, e d'ahi para o cadafalso.
Henrique VIII estava então nos seus quarenta e nove annos. Mas as velleidades amorosas eram as de um moço. Indo uma vez a casa da princeza Maria, a cuja guarda estava confiado o principe de Galles, disse a Catharina Howard, então viçosa donzellinha de quinze annos, que ajoelhára:
—Não mais, Catharina, quero que tornes a ajoelhar-te; bem ao contrario, ajoelharão diante de ti todas as damas e cavalleiros do meu reino.
Tal foi a explosão amorosa do coração do rei.
O casamento fez-se logo, e Henrique VIII delirava de jubilo por possuir uma esposa bella e graciosa, julgava-se o mais feliz dos maridos, instituira na capella real uma oração em acção de graças, e exigira que o bispo de Lincoln compozesse, pelo mesmo motivo, um hymno gratulatorio.
Catharina, vendo cingidos os seus cabellos com a corôa de Inglaterra, pompeou esplendores de {57}toilettes e joias nunca vistas. Era uma coquette de peior estofa que Anna Boleyn. Não precisára ter estado em França para se desmoralisar; o vicio era-lhe ingenito. Coquette e dominadora. Ciosa das honras dispensadas á princeza Maria e ao principe de Galles, fez com que o rei lhes pozesse casa á parte. E o rei, preso nos seus amavios, obedecera-lhe.
Comprehende-se facilmente que um marido de cincoenta annos não bastasse ás exigencias voluptuosas de uma coquette como Catharina Howard.
Aquillo já vinha de traz.
Frequentava a côrte um gentilhomem, de nome Colepeper, que havia merecido favores amorosos a Catharina Howard, quando solteira. Colepeper, depois que Catharina fôra desposada por Henrique VIII, sentira, como sempre acontece, maior paixão por ella e, na côrte, mostrava-se melancolico para significar á rainha a sua saudade pelas felicidades do passado.
Catharina Howard trocava com elle olhares furtivos, mas brilhantes de esperança, scintillantes de promessas.
Animado por este estimulo, Colepeper resolveu-se a escrever á rainha, e um dia, dançando com ella, entregou-lhe uma carta, a que Catharina respondeu, decerto confirmando as promessas dos seus olhares. A resposta foi entregue a Colepeper pela rainha, tambem n'um sarau dançante em que bailaram emparceirados.
Henrique VIII foi uma victima da dança,—sempre que as rainhas dançavam.
Certo dia Catharina procurou sondar uma criada sua, Maria se chamava ella, dizendo-lhe:
—Se soubesse que não me denunciarias, confiava-te um segredo.
A criada respondeu:
—Guardarei segredo do que me disserdes, comtanto que não toque pelo rei.
Sangrava-se em saude, a criada, lembrando-se certamente de que a confidente de Anna Boleyn havia sido queimada.
A rainha disfarçou:
—Outro dia fallaremos n'isso. Mas não é coisa que toque pelo rei.
Passado tempo, Catharina tentou sondar outra criada:
—Joanna, desejo fazer-te bem e conseguir que el-rei te case honestamente.
E, juntando os factos ás palavras, deu-lhe alguns vestidos e joias.
Corridos dias, a rainha abriu-se confidencialmente com a criada.
Disse-lhe que amava Colepeper, que pensára mesmo em casar com elle antes do rei a requestar. E pediu-lhe que a auxiliasse para ter uma entrevista com Colepeper, visto que o rei ia sahir para Rionsirche.
A criada teve medo, recusou-se e foi denunciar a rainha ao arcebispo do Cantorbery. Mas parece que outra criada, menos timida, favorecêra os intentos de Catharina, porque depois se averiguou, como vamos {59}vêr, que a rainha tivera effectivamente um tête-à-tête com Colepeper.
O arcebispo soube mais por um individuo chamado Lascelles, cuja irmã havia estado ao serviço da velha duqueza de Norfolk, e lhe revelára segredos da vida de Catharina quando solteira, que dois officiaes da casa da duqueza, Derban e Mannoc, haviam sido admittidos no seu leito, sem que d'isso fizessem mysterio.
Julgou o arcebispo, depois de ter conferenciado com o conde de Hertford, e com o chanceller, que devia contar tudo ao rei, e fel-o com certo embaraço, como era natural. Henrique VIII mostrou-se incredulo, no primeiro momento, mas o arcebispo, desejando justificar-se, activou decerto novas investigações. Lascelles foi a Sussex fallar com sua irmã, a qual não só confirmou mas até ampliou as revelações anteriores. Mannoc e Derban, presos e interrogados pelo chanceller, disseram tudo o que podiam dizer. Revelaram pormenores escandalosos. Contaram que tres jovens criadas da duqueza de Norfolk conheciam o segredo da devassidão de Catharina, porque tinham algumas vezes passado a noite entre Catharina e os seus amantes.
Averiguou-se mais que a rainha realisára a entrevista com Colepeper, e, como era natural, suspeitou-se do facto de haver Catharina escolhido Derban, um dos antigos amantes, para seu criado.
Todos os depoimentos foram lidos ao rei que, apesar de estar habituado a estes lances, chorou.
Interrogada a rainha sobre as accusações que lhe eram feitas, negou-as a principio; mas quando lhe apresentaram todas as provas, confessou que effectivamente se havia conduzido mal antes do casamento, insistindo, porém, na declaração de que não tinha trahido o rei.
O parlamento, vingador das infelicidades conjugaes de Henrique VIII, tomou conhecimento do facto.
A rainha, a viscondessa de Rochford, cunhada de Anna Boleyn, sua inimiga, e confidente dos amores de Catharina, Colepeper, Derban, a duqueza de Norfolk, avó da rainha, lord William Howard, seu tio, a mulher de lord Howard, a condessa de Bridgewater, e mais nove pessoas, foram proscriptos.
Como Anna Boleyn, Catharina Howard subiu ao cadafalso, em Tower-hill.
A dois passos do garrote e do algoz, fallou ao povo.
Confessou o seu amor por Colepeper, e que a ambição de ser rainha a perdêra. Lamentou não ter casado com Colepeper, pesando-lhe que elle por sua causa morresse. Accrescentou que morria rainha, mas que preferiria morrer mulher do homem que tinha amado e que a amava.
Um idyllio sobre o cadafalso!
No outro dia foi decapitado Colepeper, que se limitou a pedir ao povo que rogasse a Deus por elle.
Tambem morreu decapitada a viscondessa de Rochford, com applauso do publico, que se lembrava de {61}que fôra ella quem mais contribuira para a perda de Anna Boleyn.
Henrique VIII, afim de se precaver contra novos desastres conjugaes, levou o parlamento a votar uma lei em que a todos os cidadãos se impunha a obrigação de denunciarem secretamente ao rei quaesquer infidelidades da real consorte, e á real consorte o dever, sob pena de alta traição, de revelar ao rei as faltas que porventura houvesse commettido antes do casamento.
O povo inglez, vendo através d'esta lei o projecto de um novo casamento, desatou ás gargalhadas.
Ora Henrique VIII algumas vezes dizia rindo que ainda havia de cahir n'uma viuva. Chalaça do rei, porque a bem dizer a maior parte das suas mulheres não eram outra coisa. E não deixa de ser curiosa a coincidencia de que dois reis femeeiros, Henrique VIII e Luiz XIV, acabassem ambos por desposar uma viuva authentica, Henrique VIII Catharina Parr, viuva duplicada, de lord Nelvill e de lord Latimer; Luiz XIV a viuva Scarron.
Catharina Parr ia muitas vezes á côrte visitar a princeza Maria. O rei escolheu-a para sexta esposa, confiado em que, por ter já conhecido dois maridos, e contar trinta e seis annos, não prevaricaria extra-canonicamente no sexto mandamento como as outras.
O casamento fez-se um pouco á capucha. Sem embargo, Anna de Cleves assistiu e, longe de se mostrar pezarosa, gracejou sobre o caso.
—Que grande peso, disse ella, vai tomar Catharina Parr!
Anna de Cleves fizera um calembour, porque o rei estava descommunalmente obeso.
Posto de parte o calembour, a situação de Catharina Parr não era para invejar. Deviam passar-lhe pela imaginação os espectros das duas esposas decapitadas de Henrique VIII, tanto mais que, sendo Catharina partidaria de Luthero, os seus inimigos catholicos não deixariam de trabalhar para perdel-a.
E quasi o tiveram conseguido.
Henrique VIII, comquanto adversario do papa, zelava a orthodoxia dos dogmas. Succedêra que Catharina Parr fallára um dia com certa franqueza e favor a respeito da reforma, acabando por emittir o seu parecer ácerca da eucharistia.
Soube-o o rei e queixou-se a Gardiner de que a rainha tivesse a ousadia de pensar de maneira differente d'elle. Chegaram a formular-se officialmente artigos de accusação contra a rainha; e passou-se a respectiva ordem de prisão. Este documento cahiu, porém, da algibeira do chanceller, e foi encontrado por um partidario da rainha, o qual correu a mostrar-lh'o.
Catharina dirigiu-se immediatamente aos aposentos do rei, que, por ser esse o seu gosto, e para experimental-a, fallou de assumptos theologicos.
Catharina esquivou-se tenaz e artificiosamente a entrar na questão, dizendo:
—As mulheres estão sujeitas ao homem desde a origem do mundo. O homem foi creado á imagem de {63}Deus, e a mulher á imagem do homem; é pois ao esposo que cumpre regular as opiniões da esposa. Mas, como quer que seja, o dever da mulher é adoptar cegamente os principios do marido. Quanto a mim, obriga-me um duplo dever, pois que tenho a felicidade de possuir um esposo que, por sua intelligencia e saber, póde illustrar não sómente a sua familia, mas até os mais eruditos espiritos de todas as nações.
O rei, muito lisongeado, respondeu:
—Por Santa Maria! sois mais sabia do que o doutor Kate, e estais mais no caso de dar que de receber lições!
Catharina Parr declinou o elogio por immerecido, dizendo ao marido que o seu unico empenho era distrahil-o por alguns instantes dos seus grandes trabalhos e soffrimentos.
Henrique VIII replicou com alegria:
—É pois assim?! Bem está. D'aqui por diante seremos dois bons amigos.
No dia seguinte, o rei e a rainha, completamente reconciliados, conversavam no jardim quando o chanceller chegou acompanhado de quatro homens, para prender Catharina.
O rei obeso rebolou-se para elle, e desfechou-lhe epithetos injuriosos.
Quando o chanceller sahiu corrido, a rainha esforçou-se por tranquillisar o rei.
Henrique VIII disse-lhe:
—Pobre tontinha! Nem tu sabes o que deves a este homem!...
Não sabia a rainha outra coisa! Mas a sua astucia feminil e a experiencia de um terceiro casamento seguram-lhe a cabeça sobre os hombros.
Desde esse dia o chanceller ficou desprestigiado aos olhos do rei.
E Catharina redobrou de amabilidades para com seu marido, servindo-o á mesa, curando-lhe carinhosamente as feridas que elle tinha na perna esquerda e cantando-lhe trovas, para o adormecer, quando o rei, insomnioso, difficilmente rebolia na cama a sua incommoda rotundidade.
Conta Pliego que Henrique VIII, sentindo avisinhar-se a morte, no anno de 1547, se despedira ternamente da rainha, recommendando-a aos grandes do reino, e ordenando que lhe dessem sete mil libras, todas as suas joias e vestidos, se quizesse tornar a casar.
Accrescenta ingenuamente o chronista castelhano: E a boa rainha não pôde responder pelo muito que chorava.
A sinceridade d'essas lagrimas avalia-se pela fogosa paixão que Catharina Parr desentranhou pelo almirante Thomaz Seymour, que era amante de Isabel, filha do rei e de Anna Boleyn. O almirante desposou a rainha viuva, mas os ciumes de Isabel e a inveja que sua cunhada, a duqueza de Somerset, tinha da rainha atormentavam-n'o grandemente. Catharina Parr morreu envenenada, segundo se diz. Havia dado á luz uma creança que não vingou, sem que se soubesse ao certo se era filha do rei ou do {65}almirante, tão pouco tempo depois da morte do rei casára ella com o almirante.
Catharina Parr, a respeito de casamentos, lia pela cartilha de Henrique VIII. A terra lhe seja leve, já que os maridos o não foram.
O almirante teve motivos para sentir a morte da esposa, porque lhe arrebatou o rendimento annual de sete mil libras. Como compensação, mancommunou-se com os piratas e ia feito nas extorsões que elles praticavam. Enriqueceu. Vendo-se rehabilitado, quiz casar com a princeza Izabel, sua amante, talvez para conseguir que fosse entregue aos seus cuidados o joven rei Eduardo VI, sendo que estava usufruindo esta honra seu irmão o duque de Somerset, condecorado com o titulo de protector. O irmão e a cunhada, para cortar-lhe o vôo das ambições, perderam o almirante, accusado de cumplice nas extorsões dos piratas. O proprio duque assignou a sentença de morte do irmão, que foi decapitado.
Henrique VIII deve ter-se encontrado no outro mundo com as suas seis mulheres, que, se lá se julga melhor, como eu creio, do que cá em baixo, hão de tel-o visto condemnado pela justiça eterna.
As atrocidades sanguinarias que commettêra contra os catholicos e a bagagem dos seus vicios far-lhe-iam decerto grande carga.
Elle mesmo, ao expirar, se accusou de não ter poupado algum homem na sua colera, nem alguma mulher nos seus desejos.
Mas, como quer que fosse, a igreja catholica, {66}inspirando-se na misericordia christã, deve perdoar-lhe, tanto mais que Henrique VIII, que depois de velho não cria no Purgatorio, deixou muitas missas com medo d'elle.
Eu até me sentia disposto a rezar um Padre-Nosso por alma de Henrique VIII, se me não lembrasse de que alfim deve já lá em cima ter recebido alguma compensação de haver sido casado seis vezes, quasi sempre com maior peso do que o que canonicamente era justo.
Todos nós fomos litterariamente educados com a Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, o mavioso livro das saudades. Temos de cór, pelo menos, as primeiras palavras d'esse livro galante e cavalheiresco: «Menina e moça me leváram de casa de meu pai para longes terras...» Todos nós nos costumámos a vêr na Menina e Moça, de Bernardim, a infanta D. Beatriz de Portugal, filha do rei D. Manuel.
Diogo Barbosa Machado, na Bibliotheca Lusitana, deu curso á lenda, assignalando a fonte onde a bebêra. E digo fonte para não desaproveitar um calembour, por isso que se trata da Fuente de Aganipe, de Faria e Sousa.
Por sua parte diz Barbosa Machado:
«Arrebatado de impulsos amorosos (Bernardino ou Bernardim Ribeyro) passava muitas noites entre a espessura e solidão dos bosques, explicando junto á corrente das aguas, com suspiros e lagrimas, a vehemencia de paixão tão violenta que o obrigou a emprehender impossiveis dedicando os seus affectos á infanta D. Beatriz, filha do serenissimo rei D. Manuel, como elegantemente o contou Manuel de Faria e Sousa...»
Costa e Silva, no Ensaio Biographico-critico, reproduziu a lenda d'esses suppostos amores do poeta, desventurosos por desiguaes. Conta-nos o seu desespero quando o rei de Portugal concedeu a mão da infanta ao duque de Saboya; o seu ermar solitario pela serra de Cintra, bradando ás penhas e entalhando no tronco das arvores o nome de Beatriz; finalmente, a partida do trovador para Saboya, sob o disfarce de peregrino, e o seu furtivo encontro em Saboya com D. Beatriz:
«Chegando alli depois dos trabalhos e perigos de tão longa jornada, indagou qual era a igreja onde a duqueza costumava ouvir missa, e esperando-a na porta, lhe pediu esmola quando passou. A duqueza, que logo o conheceu, apesar da differença do traje e do transtorno que as maguas e saudades haviam feito em suas feições, parou, e, dando-lhe esmola, lhe disse baixo em portuguez:
—Já lá vai o tempo dos antigos galanteios.»
Segundo a versão de Costa e Silva, Bernardim Ribeiro, recolhendo á patria, e voltando á serra de Cintra, ahi terminou em breve os seus dias.
Era natural, como aconteceu, que esta antiga lenda tão profundamente sentimental se impozesse á imaginação dos escriptores portuguezes que floresceram ao tempo de fazer-se entre nós a evolução romantica.
De facto, Garrett, no canto nono do Camões, ensancha-a com felicidade na descripção de Cintra:
Tradição é que nomeado vate,
D'alta beldade mysterioso amante,
Entre as fragas erguêra a mansão triste,
Onde cevou de tristes pensamentos
O coração cortado de saudades.
Saudade pelas pedras entalhada
Se lia em caracteres bem distinctos;
E o nome de Beatrix, tambem gravado
Na silice do monte, lhe responde,
Como echo das endeixas namoradas
Do cantor da soidão.
Garrett não podia esquecer o poetico episodio da partida de Bernardim Ribeiro para Italia:
Subito um dia, de bordão na dextra,
Na opa de peregrino disfarçado
Desce os montes da Lua, e mais erguidas
Serras demanda; em romaria aos Alpes
Parte, a levar o coração votado
A quem talvez, na purpura, suspira
Pelos andrajos do mendigo amante.
Vel-o-ha, o objecto de suspiros tantos,
{70}De saudade tão longa, da romage
Devota, mas só vêl-o, e adeus eterno,
E para sempre adeus!... Crueis lhe vedam
Mais que esse adeus. Voltou á patria, e morre.
Na respectiva nota da primeira edição do Camões, Garrett dá como factos assentes o isolamento de Bernardim Ribeiro na serra de Cintra e a sua ida de peregrino aos Alpes. Na segunda edição, porém, revela duvidas a respeito dos derradeiros dias do poeta, dizendo que «eram a parte menos decifrada e decifravel do enigma de sua vida» e desculpando-se com ter seguido no texto do poema a tradição mais vulgar.
No Auto de Gil Vicente, representado com grande applauso no theatro da rua dos Condes, Bernardim Ribeiro inspira uma dupla paixão a Paula Vicente, filha de Gil Vicente, e á infanta D. Beatriz. A dedicação de Paula pela infanta vai até o ponto de sacrificar o seu proprio coração á paixão que a infanta nutre pelo trovador. Todo o entrecho d'esta peça inicial do moderno theatro portuguez é fornecido por um auto de Gil Vicente, de que a seu tempo nos occuparemos. O casamento da infanta realisa-se, e ella parte para Italia a bordo do galeão «Santa Catharina». Bernardim conseguiu ir a bordo dizer o ultimo adeus á infanta; mas el-rei D. Manuel chega pouco depois para se despedir da filha. Bernardim encontra-se n'uma situação desesperada, receiando comprometter a infanta e Paula Vicente. Prefere morrer a desacredital-as: precipita-se no Tejo.
O lance é de effeito para um final d'acto, que de mais a mais é o ultimo. E a responsabilidade historica de Garrett salva-se de algum modo, porque Bernardim Ribeiro póde não ter perecido no Tejo. Isto mesmo diz Garrett em nota á segunda edição do Camões: «... Bernardim Ribeiro lança-se ao mar, no Auto de Gil Vicente, mas nenhum nuncius, nenhum koros veio fóra, como na comedia ou tragedia antiga, dizer ao publico: «Bernardim Ribeiro afogou-se com effeito; nunc plaudite.»
Ora em uma das annotações com que o Auto de Gil Vicente sahiu impresso, escreveu Garrett:
«Em a nota E, ao canto nono do poema Camões, no 1.º vol. d'esta collecção, pag. 275, se promette illustrar o ponto d'estes amores de Bernardim Ribeiro e da sua romanesca vida. Mas não me atrevo por ora a cumprir tal promessa. Aqui atirei com elle ao mar, porque me era preciso: e o publico disse que era bem atirado. É o que me importa. Se elle foi ou não a Saboya depois, como eu já cuidei averiguado, se andou doido pela serra de Cintra, tambem me não atrevo a certificar.—O que parece mais certo é que não morreu de paixão, porque depois foi feito commendador da ordem de Christo, e governador de S. Jorge da Mina, onde talvez morresse de alguma carneirada: materialissimo e mui prosaico fim de tão romantica, saudosa e poetica vida.
«Aprendei aqui, ó Beatrizes d'este mundo!»
No terceiro volume do Romanceiro encorporou Garrett dois romances extrahidos da Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro: A Ama, Avalor; e o soláo Cuidado e Desejo, que se encontra entre as eclogas do poeta, appensas á edição da Menina e Moça, feita em 1852 pela empreza da Bibliotheca portugueza (Lisboa).
Todas estas tres composições são precedidas de pequenos prefacios elucidativos.
Fica pois bem accentuada a grande influencia que a tradição poetica dos amores de Bernardim Ribeiro exerceu no espirito delicado e na imaginação romantica de Garrett. O caso, em verdade, não era para menos. Cintra, a formosissima Cintra, como tablado; como actores, uma princeza e um trovador. E depois ainda a corrente tradicional dos costumes trovadorescos: «não estava tão longe o tempo em que princezas e rainhas ouviam sem enfado e acceitavam sem desaire as homenagens dos trovadores.»
Alexandre Herculano, no 3.º volume do Panorama, escreveu um artigo a respeito dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz. Acha escuro este problema historico, mas acceita a lenda. Lamenta que Garcia de Rezende, que tão curiosas informações nos legou sobre a partida da infanta para Saboya, se abstivesse, talvez por considerações palacianas, de tocar o assumpto. Cita Damião de Goes para mostrar que o casamento fôra mal recebido dos portuguezes, que não reconheciam no duque de Saboya qualidades nem de nascimento nem de posição {73}para tomar por mulher uma filha do rei D. Manuel. E não lhe parece que estas razões fossem as unicas que imperaram no animo dos portuguezes para desestimar o casamento. Copía, em reforço da sua opinião, um codice da primeira metade do seculo XVI, existente na bibliotheca real, da qual transcreve os seguintes periodos com relação á viagem da infanta:
«... e a um domingo, dia de S. Miguel, de setembro do anno de 521, chegaram a Villa-Franca de Niça, porto do duque de Saboya, a uma hora depois do meio-dia; e assi das náus como da villa se fez grão festa d'artilharia. E o duque mandou pedir á infante, que não dormisse na nau; e ella se escusou de sair por aquella noite; e vendo o duque sua escusa, foi lá em pessoa com alguns gentishomens, e lhe pediu que com toda maneira saisse: ella o fez por conselho do conde, contra sua vontade, e de todos, e saiu com tochas; onde achou doze facas guarnecidas, para si, e para as damas, e alguns chibaos para os fidalgos, porque d'alli a Niça, onde era a povoação, pelo rio acima, era meia legua; e ahi foram ter. E a duqueza de Nemuns (Nemours) irman do duque, e mãe d'el-rei de França, que ahi estava, saiu fóra ao terreiro das casas, onde o duque pousava, a receber; e ahi se fizeram grandes ceremonias e cortezias. E alli foi com a infante para dentro, e assi a rainha por hospeda aquella noite. Ao outro dia pela manhã foram ouvir missa a um mosteiro {74}de S. Domingos, pegado com as casas; e um cardeal, que ahi era, disse missa, e os benzeu...
«O duque é homem pequeno de corpo, e alvo; de rosto comprido, e fêo de tudo: tem um hombro mais alto que o outro, e é um pouco azumbado, e as pernas delgadas, e muito prudente. A este casamento, eram vindos um cardeal e tres bispos, e um marquez, e tres condes, e logo se tornaram. Em Niça estiveram oito dias, nos quaes alguns justaram, e o duque deu banquete aos portuguezes: e a cabo dos oito dias partiu com a infante para Piamonte: e á partida a infante se achou só em uma faca, com dous moços d'estribeira; e como ia de cá acostumada de andar d'outra maneira, achava-se corrida, e não soube que fazer, senão tornar-se ás lagrimas, porque a mór parte dos portuguezes eram já embarcados para se tornar. E alguns outros que por a servir aqui se iam acompanhar, não o consentiram, que assi lhes era ordenado do duque: e ao passar de uma ponte, uns cem alabardeiros lhes pozeram as alabardas nos peitos, e não consentiram que passassem ávante. As damas iam em chibaos d'aluguer, com varas nas mãos, sem nenhuma companhia d'homem, caindo a cada passo por seguir a infante pranteando e chorando sua orfandade, e a pouca honra e gasalhado que dos saboianos recebiam; e dizendo d'elle muitas pragas, e a pouca virtude e honra com que os tratava.»
D'estas passagens do codice tira Alexandre Herculano as conclusões que fazem ao seu proposito. {75}Ainda explica a repugnancia da infanta em desembarcar por estar informada da figura despicienda do duque; mas para explicar a dureza com que Carlos de Saboya trata D. Beatriz, poucos dias depois de casada, sendo certo que empregára grandes esforços para obter a sua mão, recorre Alexandre Herculano á conjectura de que «a noticia dos amores da infanta com um cavalleiro portuguez teria chegado aos ouvidos do senhor Vallaison (Claudio) que revelaria a seu amo, depois das nupcias, o terrivel segredo que levára de Portugal, e porventura o receio de que entre os que na viagem a acompanharam existisse o seu rival, e de que alguma das damas o favorecesse.»
O quadro da desamoravel lua de mel, que a infanta D. Beatriz, segundo o author do manuscripto, tivera em Saboya, não obstante a tradicional formosura da infanta, contrastaria asperamente com as alegrias com que os esponsaes foram celebrados na côrte de Portugal, onde Gil Vicente fez representar a tragicomedia das Côrtes de Jupiter, um dos autos que, a nosso vêr, melhor caracterisam a funcção truanesca que Gil Vicente desempenhava no paço, pelas allusões pessoaes a personagens importantes que elle irrisoriamente converte em peixes,—baleia, raia do alto, çafio, etc.
Veremos porém até que ponto, graças a um auxilio poderoso, lograremos esmiuçar a verdade.
Em 1867 publicava Camillo Castello Branco o livro intitulado Cousas leves e pezadas, e ahi, em nota á pagina 17, escrevia o seguinte:
«O meu parecer é que Bernardim, tambem Bernaldim Ribeiro, ou Bernardim Reinardino Ribeiro, como Faria e Sousa o chama, nem foi governador de S. Jorge da Mina, nem amou a infanta D. Beatriz, nem sahiu da sua terra, para Lisboa, senão depois que ella já tinha sahido de Lisboa para Saboya. Corre-me obrigação de pôr as clausulas d'este meu juizo, tão encontrado com o de doutos investigadores. Fal-o-hei em pouco, porque não cabe n'este genero de escriptos grande cavar em terra d'onde o que sae, para o cummum dos leitores, é pedregulho.
«Em primeiro, tenho como provavel que Bernardim Ribeiro, sob o pseudonymo de Jano, falla de si na ecloga 2.ª Ahi diz elle:
Quando as fomes grandes foram,
Que Alemtejo foi perdido,
Da aldéa que chamam Torrão
Foi este pastor fugido:
Levava um pouco de gado, etc.
«E continúa:
Toda a terra foi perdida;
No campo do Tejo só
Achava o gado guarida.
Vêr Alemtejo era um dó;
E Jano para salvar
O gado que lhe ficou,
Foi esta terra buscar, etc.
«Temos, pois, o poeta allegorico do Torrão—naturalidade que todos os biographos unanimemente dão a Bernardim Ribeiro—em Lisboa no anno das grandes fomes, que foi em 1522. Ora, D. Beatriz, em 9 de agosto de 1521, tinha sahido para Saboya.
«Nenhum biographo até agora assignou o anno do nascimento ou da morte de Bernardim Ribeiro. Póde, se o meu modo de decifrar a ecloga é plausivel, marcar-se-lhe o anno do nascimento em 1500, ou 1501 mais exacto, porque o pastor, n'outro ponto da mesma ecloga 2.ª, diz:
Agora hei vinte e um annos,
E nunca inda até agora
Me acorda de sentir damnos... etc.
«Quanto ao governo de S. Jorge, capitania-mór das armadas da India e commenda de Villa Cova, é tudo isso um equivoco do auctor da Bibliotheca Lusitana, com o qual se bandeou a boa fé de escriptores de grande porte. O Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge da Mina, assistiu em 1526 {78}ao cêrco de Mazagão, d'onde sahiu abrasado d'uma explosão de polvora. (Veja a Chronica de D. Sebastião, por D. Manuel de Menezes).»
Innocencio Francisco da Silva, no tomo VIII do Diccionario Bibliographico, pag. 379, não acceitára como definitivos os reparos de Camillo Castello Branco e appellára para investigações ulteriores.
No 10.º vol. das Noites de Insomnia, Camillo Castello Branco voltou ao assumpto, dizendo:
«Ulteriores investigações que fiz em cartapacios genealogicos e coevos, levaram-me da certeza á evidencia de que Bernardim Ribeiro, o poeta, não era Bernardim Ribeiro Pacheco, o commendador de Villa Cova, da ordem de Christo e capitão-mór das naus da India, casado com D. Maria de Vilhena, filha de D. Manuel de Menezes, nem ainda o outro Bernardim Ribeiro, governador de S. Jorge.»
Camillo estuda em seguida a genealogia dos tres Bernardins, que andam fundidos no auctor da Menina e Moça.
O snr. Theophilo Braga publicou em 1872 o volume dedicado, na sua Historia Litteraria de Portugal, a Bernardim Ribeiro.
Ahi, procurando reconstruir a biographia do poeta pela interpretação critica das suas obras, sustenta que Bernardim Ribeiro viera do Torrão para Lisboa em 1496, quando tinha vinte e um annos (Ecloga 2.ª), {79}o que permitte fixar a época do seu nascimento em 1475.
Parece ao snr. Theophilo Braga que já o poeta teria tido em 1496 o primeiro amor, inspirado por D. Maria Gonçalves Coresma, que casára com um viuvo do Alemtejo, chamado Alvaro Mendes Casco.
Suppõe que D. Maria Coresma seja a Cruelsia da Menina e Moça, abandonada pelo poeta, a quem Aonia enfeitiçára com a sua belleza.
E explica por esta situação moral, em que Bernardim Ribeiro se encontrava, o vilancete que Boutlerweck publicou na sua Historia da Litteratura Portugueza e que vem reproduzido na edição das obras do poeta, feita em 1852 pela Bibliotheca portugueza:
Não sou casado, senhora
Pois inda que dei a mão
Não casei o coração.
Antes que vos conhecesse
Sem errar contra vós nada,
Uma só mão fiz casada,
Sem que mais n'isso mettesse.
Dou-lhe que ella se perdesse,
Solteiros os versos são,
Os olhos, e o coração.
Dizem que o bom casamento
Se ha de fazer por vontade,
Eu a vós a liberdade
Vos dei, e o pensamento.
{80}N'isto não me achei contento
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração.
Como, senhora, vos vi,
Sem palavras de presente
Na alma vos recebi,
Onde estareis para sempre.
Não, dei palavra sómente,
Não fiz mais que dar a mão,
Guardai vós o coração.
Casei-me com meu cuidado
E com vosso desejar,
Senhora, não sou casado,
Não m'o queiraes acuitar.
Que servir-vos, e amar
Me nasceu do coração
Que tendes em vossa mão.
O casar não faz mudança
Em meu antigo cuidado,
Nem me negou esperança
Do galardão esperado:
Não ma engeiteis por casado,
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração.
Francamente, a interpretação que o sr. illustre escriptor Theophilo Braga deu a este vilancete, parece-nos forçada.
A affirmação do poeta, na hypothese de que o vilancete seja realmente seu, é tão categorica:
Não me engeiteis por casado,
Que se a outra dei a mão,
Dei a vós o coração
que não se acceita sem certa repugnancia a explicação de que elle se referia apenas ao galanteio que tivera com D. Maria Coresma, solteira ou casada, mas a quem, em todo caso, não havia dado a mão de esposo.
Este ponto julgamol-o ainda escurentado de grandes duvidas.
Mas, como quer que seja, o snr. Theophilo Braga, occupando-se dos segundos amores do poeta com a Aonia da Menina e Moça, suppõe que Aonia é o anagramma de Joanna, e que esta dama é D. Joanna de Vilhena, prima d'el-rei D. Manuel, e filha de D. Alvaro de Portugal, a qual viera para a côrte no tempo do casamento da princeza D. Izabel (Beliza) com o principe D. Affonso em 1491.
D. Joanna de Vilhena casou em 2 de fevereiro de 1516 com D. Francisco de Portugal, primeiro conde de Vimioso, um dos poetas do Cancioneiro de Garcia de Rezende.
Este casamento é a catastrophe que ensombra a vida do poeta. Na Menina e Moça, Bimnarder, anagramma de Bernardim, sabendo do casamento de Aonia «se foi, e não no viram mais.»
Francisco Antonio Varnhagem, que morreu visconde de Porto Seguro, publicou um livro, que precedeu o do snr. Theophilo Braga, pois que este escriptor a elle se refere desfavoravelmente (pag. 107), e que {82}se intitula Da Litteratura dos Livros de Cavallaria (Vienna, 1872).
Varnhagem, que se dedicou muito ao estudo da nossa historia litteraria, interpretou do seguinte modo os anagrammas da Menina e Moça:
Aonia por Joanna.
Arima por Maria.
Avalor por Alvaro.
Beliza por Izabel.
Boslia por Lisboa.
Cruelsia por Lucrecia.
Donanfer por Fernando.
Enis por Ines.
Fartesia por Tiséfara (?)
Godivo por Dioguo.
Jenao por Joane.
Lamberteu por Bartelmeu.
Loribaina por Briolanja.
Narbindel por Bernaldin.
Olania por Anjola (?)
Bomabisa por Ambrosia.
Tasbião por Bastião.
Zicelia por Cezilia.
Lamentor, modificação de Lamendor, por Manuel.
O snr. Theophilo Braga interpreta Bimnarder como outro anagramma de Bernardim, e Olania por Oriana. Eis os pontos de divergencia entre as duas interpretações.
Varnhagem commenta:
«Seja como fôr: o certo é que, decifrados os anagrammas, apparece Bimnarder apaixonado de certa Joanna, irmã de Izabel, mulher de Lamentor. Ora, se admittirmos que este fosse el-rei D. Manuel, resultariam os amores de Bernardim, não com a filha d'este rei, mas sim com sua cunhada D. Joanna, a mãi de Carlos V, mulher de Filippe o Bello, e filha (como a rainha D. Izabel sua irmã) dos reis catholicos Izabel e Fernando. Em tal caso o mesmo Filippe corresponderia ao Fileno e Orphileno (marido da Aonia da novella), etc.»
Não acha natural Varnhagem que Bernardim Ribeiro se apaixonasse por D. Beatriz, que nascêra em 1504 e a cantasse, quando ella era menina de menos de doze annos, no Cancioneiro de Rezende, que sahiu impresso em 1516.
Mas a verdade é que na Menina e Moça se diz: que «a senhora Aonia ainda então era donzella d'antre treze ou quatorze annos» e que menina e moça a levaram de casa de seu pai para longes terras.
Entende tambem o snr. Theophilo Braga que os dizeres com que abre a Menina e Moça não se podem referir á infanta D. Beatriz, que contava dezesete annos, quando foi levada para Saboya.
Como se vê, a opinião dominante nos ultimos quinze annos é contraria á lenda dos amores de Bernardim Ribeiro com a infanta D. Beatriz.
O snr. Theophilo Braga explica a formação da lenda pelo supposto facto de ter o poeta amado uma dama altamente collocada na côrte, parenta de el-rei D. Manuel, D. Joanna de Vilhena; pela prohibição, no Index de 1581, da novella Menina e Moça, o que lançou suspeitas sobre o conteúdo da novella; e pela coincidencia de Bernardim Ribeiro ter sahido de Portugal quando a infanta, em 1521, partiu para Saboya.
A lenda, recolhida no seculo XVI por Faria e Sousa, resuscitára com o romantismo pela reviviscencia das lendas nacionaes.
Acha o snr. Theophilo Braga que a idade do poeta e da infanta, em 1521, eram incompativeis entre si e a tresloucada paixão que a lenda attribuia a um homem de quarenta e seis annos por uma donzellinha de dezesete. Acha outrosim que a ingenita altivez do caracter de D. Beatriz não lhe permittiria descer até acceitar o galanteio de um trovador, de mais a mais amadurecido em annos.
No amor não ha incompatibilidades possiveis. Na historia de Portugal abundam estes desacertos de idade e de condição em assumptos amorosos.
A nós não nos repugna o facto de Bernardim Ribeiro, um poeta, se ter apaixonado por uma dama da côrte, que todavia, como diremos, não suppomos fosse a infanta, não obstante a desproporção das idades.
Mas, se D. Beatriz foi a inspiradora da paixão do poeta, o que podêmos provar com documentos {85}historicos é que ella o esqueceu em Saboya, se algum dia o amou ou se soube que foi amada por elle.
Não é natural que D. Beatriz, tão magoada como o codice publicado por Herculano nol-a pinta, se absorvesse tão profundamente, e tão estranha ao seu proprio passado, nos deveres de esposa e princeza, como realmente acontecêra em Saboya, e como vamos mostrar.
É verdade que a lenda romantica conta que a duqueza de Saboya, reconhecendo o poeta no disfarce de mendigo á porta de um templo, lhe disséra, dando-lhe esmola:—«Já lá vai o tempo dos antigos galanteios.»
Mas tão empenhada a vamos encontrar nos negocios politicos e domesticos da côrte de Saboya, tão despreoccupada de recordações amorosas, tão adaptada moralmente ao meio em que se encontrava, que estamos convencido de que, se Bernardim Ribeiro a amou, não foi correspondido ou só ephemeramente o foi, o que não seria natural n'uma princeza educada nos serões galantes do Paço da Ribeira, sabendo-se amada por um poeta, e vivendo sacrificada na companhia de um marido, que não era poeta, e cujo desgracioso feitio as chronicas memoram.
Se, como quer o snr. Theophilo Braga, a Aonia da Menina e Moça é D. Joanna de Vilhena, primeira condessa de Vimioso, a Condessa Santa, completo foi o seu esquecimento do amor que inspirára ao poeta.
«Emquanto viveu o conde, escreve o padre Francisco da Fonseca na Evora Gloriosa, o imitou, e acompanhou em todas as obras virtuosas, attendendo cuidadosamente á educação de seus filhos, e ao prudente governo da sua familia, e casa, que debaixo da sua direcção era convento com apparencias de palacio. Era inimicissima do ocio, e por isso assim ella, como todas as suas criadas, se occupavam continuamente nos exercicios proprios do seu estado, umas cosiam, outras fiavam, outras faziam rendas ou fios para curar os necessitados. O mesmo usava com as senhoras, que a vinham visitar, dando a cada uma d'ellas algum trabalhinho, com que se entreter; e entretanto, ou lhe lia algum capitulo dos documentos, que o conde tinha composto, e lhe contava algum exemplo, ou historia santa, com que adoçar o trabalho; o que fazia com tanta graça, que assim sua irmã D. Brites, duqueza de Coimbra e Aveiro, com todas as mais senhoras continuavam e frequentavam com gosto a escóla de D. Joanna. Morto o conde, se deu totalmente a Deus, e, abraçando a terceira ordem de Santo Agostinho, fez uma vida verdadeiramente de santa. Remendava por suas proprias mãos os habitos dos frades, e lhes fazia o comer, quando estavam enfermos, amando-os e consolando-os a todos, como se fossem seus filhos: o mesmo praticava com as religiosas de Santa Catharina, e porque viu as lagrimas e suspiros da pobreza eborense por causa da falta que lhe fazia a morte de seu querido esposo, tomou muito a sua conta enxugar-lhe as {87}lagrimas com opportuno remedio: escolheu para capellães e esmoleres a dous sacerdotes exemplares, em cuja companhia ia todos os dias visitar os enfermos da sua parochia: seguiam-n'a dous escravos, carregados de tudo aquillo de que podiam necessitar os enfermos, e ella por si mesma lhe repartia todos os mimos e os regalos: com estas, e outras muitas santas obras, continuou a nossa condessa a sua exemplarissima vida até os 24 de julho de 1559 em que Deus a chamou para a gloria.»
A dama que inspirára a paixão de Bernardim Ribeiro tinha os olhos verdes.
No capitulo XXI da Menina e Moça encontra-se o romance
Pensando-vos estou filha
que Garrett reproduziu no terceiro volume do Romanceiro com o titulo de A Ama.
N'esse cantar, á maneira de solau, como o classifica Garrett, encontra-se a seguinte allusão:
Mas não póde ser, senhora,
Para mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.
Entre as eclogas de Bernardim Ribeiro encontra-se outro romance, que Almeida Garrett tambem reproduziu com o titulo de Cuidado e desejo, e ahi {88}depara-se-nos uma outra referencia á côr dos olhos da sua dama:
Seus olhos verdes rasgados
De lagrimas carregados, etc.
Conhecemos dois retratos da infanta D. Beatriz de Portugal, duqueza de Saboya.
Um foi publicado no periodico litterario Universo Pittoresco. O artigo que o acompanha tem a assignatura do fallecido escriptor S. J. Ribeiro de Sá.
O artigo nada adianta, mas o retrato é copia do que se encontra em Turim na galeria dos retratos dos duques e duquezas de Saboya. Enviou-o para Portugal o snr. Miguel Martins Dantas, hoje ministro de Portugal em Londres, e então addido á legação de Sua Magestade Fidelissima em Turim.
O snr. Dantas fez acompanhar a copia d'esse retrato, que deve considerar-se authentico, das seguintes indicações:
«Rosto claro, olhos castanhos escuros, cabellos castanhos claro, bonet de velludo preto adornado de pedraria, e uma pluma branca; no pescoço um adresse de pedras roxas engastadas em oiro, acabando com uma perola. Uma especie de lenço, ao que parece de cambraia, com muito feitio occupa o espaço do decote—em roda uma bordadura de ouro. O vestido é de fazenda (não velludo) côr de castanha, atirando para roxo, com tufos brancos nas mangas, rematados {89}com pedras roxas tambem engastadas em ouro, punhos brancos de renda, collar de perolas acabando com tres pedras iguaes ás outras: desde a cintura até ao chão ha um cordão formado de pedras azuladas engastadas em ouro.»
Pela descripção d'este retrato, existente na galeria de Turim, e que para todos os effeitos, repetimos, se deve considerar authentico, sabemos que os olhos da infanta D. Beatriz não eram verdes, como os que descreve Bernardim Ribeiro, mas castanhos escuros.
D'aqui, pois, se póde tirar um novo argumento para reforçar a opinião, aliás hoje dominante, de que não foi a infanta D. Beatriz a mulher amada pelo poeta das saudades.
Do outro retrato só ha pouco tempo tivemos conhecimento.
No leilão da livraria do fallecido visconde de Juromenha compramos, unicamente attrahidos pela indicação do respectivo catalogo, um livro intitulado—Notizie storiche intorno alla vita ed ai tempi di Beatrice di Portogallo duchessa di Savoia, con documenti per il barone Gaudenzio Claretta, membro della R. Deputazione sovra gli studi di storia patria—Torino, 1863, tipografia Eredi Botta, Palazzo Carignano.
Não tinhamos a menor noticia d'este livro, que versava um dos mais interessantes assumptos da historia de Portugal, não obstante haver sido publicado em 1863.
E como temos por indispensavel estudar a historia portugueza, para apural-a com segurança, pelo confronto do que escreveram os nossos historiadores com os dos paizes que comnosco tiveram relações politicas em determinadas épocas, fossem essas relações devidas a um casamento, a um tratado, a uma guerra ou a qualquer outra causa—systema este em que principalmente baseamos o nosso estudo historico ácerca da Excellente Senhora, Rainha sem reino,—procuramos a todo o custo obter esse livro, para nós desconhecido, cujo titulo nos aguçára a curiosidade e o interesse de possuil-o.
Mal diriamos n'essa occasião que, tambem pela venda de um espolio, adquiririamos pouco depois outro livro do mesmo author ácerca de uma época não menos notavel da historia portugueza.
O barão Gaudenzio Claretta dá n'aquelle seu livro noticia de duas medalhas que o duque de Saboya Carlos III mandára cunhar para perpetuar a memoria de sua esposa.
Uma d'ellas tem de um lado a effigie de D. Beatriz com a legenda: Beatrix dux Sabavdie e do outro os escudos de Saboya e Portugal com esta inscripção; Lvsitaniæ regis filia an svæ æt. 36.
A segunda medalha, que se encontra reproduzida no ante-rosto do livro, representa a duqueza de Saboya, ricamente vestida, com a legenda: Beatrix decvs Portvgallie ducissa Sabavdie.
Um argumento salta desde já aos bicos da penna.
Se Carlos III tivesse menospresado sua mulher {91}pela revelação do segredo dos seus amores com um cavalleiro portuguez, como Herculano deprehende do codice por elle publicado no Panorama, não haveria decerto manifestado pela morte da duqueza um tão profundo sentimento como aquelle que se traduz pelo facto de haver mandado cunhar não apenas uma só medalha commemorativa—mas duas.
A effigie de D. Beatriz, gravada na segunda medalha, é claro que nada póde aproveitar para tirarmos a limpo a côr dos seus olhos. Mas a este respeito basta o testemunho fidedigno, a que já nos referimos, do snr. Miguel Martins Dantas. Em todo caso, a medalha é muito interessante, pois que reproduz, e devemos suppôr que com fidelidade official, as feições da infanta portugueza e a sua toilette.
A medalha representa-a com um toucado de pedras preciosas, que lhe circumdam os cabellos apartados ao meio e cahidos em madeixas sobre os hombros. Vestido de decote escanteado. Um pequeno cabeção de recortes com tres voltas de pedraria. Collar pendente. A meio do peito uma cruz suspensa da orla do decote.
As feições do retrato enviado pelo snr. Dantas ajustam-se inteiramente ás da effigie que a medalha representa: Nariz comprido, bocca pequena e grossa, testa alta, sobrancelhas pouco espessas e arqueadas, pescoço alto e bem lançado, estatura erecta, porte gentil.
Vamos porém á historia do casamento da infanta D. Beatriz de Portugal com Carlos III, duque de Saboya.
São conhecidos os pormenores da viagem da infanta pelo opusculo de Garcia de Rezende, que anda nas suas obras, intitulado Hida da infante D. Beatriz pera Saboya; e pelo capitulo LXX, quarta parte, da Chronica de D. Manuel, por Damião de Goes.
Já tivemos tambem occasião de referir-nos ao auto de Gil Vicente que tem por assumpto a viagem de D. Beatriz.
No tomo II das Provas da Historia Genealogica encontra-se a pag. 439 o Contrato do casamento, e a pag. 445 a longa enumeração dos objectos que constituiam o opulento enxoval da infanta.
Até aqui o que conhecemos dos livros portuguezes.
Agora passemos a soccorrer-nos da Memoria do barão Gaudenzio Claretta, a fim de a divulgarmos em Portugal, por ser realmente muito pouco conhecida entre nós.
O casamento realisou-se no 1.º de outubro de 1521, na igreja dos dominicanos de Niza, lançando a benção nupcial o bispo de Vercelli, Bonifacio Ferrero, que mais tarde se tornou conhecido pelo nome de cardeal de Ivrea.
Realisaram-se pomposos festejos publicos, primando entre elles, pelo seu luzimento, o torneio celebrado junto á porta Marina, no qual cavalleiros hespanhoes, portuguezes e italianos quebraram lanças em honra dos augustos esposos.
O codice citado por Herculano conta que a infanta, tendo chegado a Villa Franca pela uma hora da tarde do dia de S. Miguel (29 de setembro), não queria sahir da nau, o que fizera a instancias do duque de Saboya.
D'ahi inferiu Herculano que a a «má vontade com que ella desembarcou mostra que este casamento não lhe era demasiadamente grato.»
Vejamos porém o que diz o texto da Memoria de Claretta:
«Seguendo ora il racconto del Revelli, narra questo storico che il giorno 29 verso le tre ore di notte sbarcó la principessa a Villafranca, dove di comandamento del Duca eransi portati per riceverla e complimentarla Lodovico dei Malingri, Gioanni d'Orliè, il vescovo Geronimo d'Arsagis, Onorato Cays ed i consoli seguiti dai primi gentiluomini del paese. L'ora era già avanzata, ma pur volle l'infante Beatrice la sera medesima recarsi a Nizza traversando il colle di Montalban al chiaror di molte faci, ed assisa su di una sedia soppannata di velluto e d'armellino, sostenuta da quattro gentiluomini portoghesi. Giunta la comitiva ai molini di Riquieri le acclamazioni più vive degli astanti annunziarono l'incontro del Duca, {94}il quale era giunto quella sera all'abbazia di San Ponzio e non aveva voluto far l'ingresso nella città prima che fosse arrivata la sposa.»
Vão grifadas as expressões que contrariam a versão do codice publicado por Herculano.
Como vimos, Claretta apoia-se na narração de Revelli, e não podêmos suppôr que Claretta occultasse a verdade, por isso que elle a patenteia com inteira franqueza em varios lances da sua Memoria, especialmente, como veremos, quando se refere á decadencia da côrte de Carlos III.
O condado de Niza offereceu á duqueza, como brinde de casamento, a somma de cinco mil florins.
Pier Leone di Cavaglià, conego de Santa Maria della Scala de Milão, recitou uma oração e um epithalamio, de que existe um exemplar na bibliotheca real, sendo o opusculo que contém as duas peças litterarias muito raro na Italia. Oggidi assai raro, diz em parenthesis Claretta.
A oração é em latim. Claretta dá alguns extractos, e commenta-os. Por exemplo:
«... habes uxorem pulcherimam (ei gli dice) venustissimamque ut cernere est virtutis lacte et cura ut scimus nutritam (e questo era vero) fæcundam ut optamus.»
Claretta publíca na integra o epithalamio, tambem latino, que foi recitado pela menina Veronica Leone, {95}de quatro annos de idade apenas—giovinetta di quattro anni.
N'esse epithalamio são grandemente exaltadas a belleza e castidade da infanta D. Beatriz.
Claretta ainda cita outras congratulações poeticas que por essa occasião foram publicadas.
A tres de outubro fizeram os duques de Saboya a sua entrada solemne na cidade de Niza pela porta Pairoliera.
Segundo Revelli, cerca de tres mil portuguezes, ricamente vestidos, tomaram parte no cortejo. Mas outros muitos, não menos ricamente vestidos, assistiram como espectadores ao desfilar do prestito.
Agora vem algumas linhas de Claretta, que reproduzimos no texto para que n'ellas sobresaia a impressão profunda, conservada pela tradição, que causára em Niza o apparato que os portuguezes exhibiram n'esse acto:
«Soggiunge il citato storico (Revelli) che i Portoghesi sommarono a ben cinque mila, e che fu cosa ammirabile il vedere tanti ornamenti d'oro, gemme, selle de cavalli com briglie, staffe, speroni e cose simili tutte formate di lame e piastre di puro oro, uccelli ed animali peregrini, quantità incredibile de aromi di specie diversa, in una parola, tutto che di prezioso dall' Africa e dalle Indie, con l'occasione dell' navigazioni alle più remote parti, era stato apportato al re di Portogallo.»
Ahi fica mais essa recordação do nosso passado {96}esplendor n'um tempo em que a riqueza dos cavalleiros igualava a dos arreios dos cavallos, tudo constellado do ouro e pedrarias, que o descobrimento da India nos permittia exhibir por entre nuvens de exquisitos perfumes orientaes.
Segundo Claretta, foi no dia 8 de outubro que os noivos partiram de Niza para o Piemonte.
Esta indicação confere com a do codice publicado no Panorama.
É porém durante a jornada que o author do codice se refere a violencias praticadas contra os portuguezes que acompanharam a infanta.
Claretta cita os nomes dos personagens italianos que fizeram séquito aos noivos até Vigone, um dos quaes personagens era o governador de Niza, com o seu logar-tenente. Parece natural que aquelle funccionario e alguns mais retrocedessem depois de haverem acompanhado os duques por algum tempo. Accrescenta Claretta que em Vigone se despediu o cortejo, ficando ahi os noivos, podendo suppôr-se que no gôso da sua lua de mel, livres finalmente das impertinencias officiaes, que durante oito dias os tinham rodeado.
A 10 de fevereiro de 1522 expedia Carlos III patente de assentamento, a favor de D. Beatriz, da quantia de nove mil e setecentos florins, com hypotheca sobre diversos rendimentos publicos, e a 22 de abril passava quitação ao rei de Portugal da somma de cento e cincoenta mil ducados, com que a infanta fôra dotada por seu pai.
Os duques demoraram-se em Vigone até ao mez de março, recebendo ahi D. Beatriz, por parte do estado do Piemonte, um donativo de cincoenta mil florins, e o duque outro de duzentos mil.
Claretta diz que a entrada dos noivos em Turim fôra saudada pela população, mas que as festas publicas bem depressa tiveram de ser ensombradas pela noticia da morte do rei de Portugal, occorrida no mez de dezembro, e pela peste que os portuguezes haviam deixado em Niza, cujos habitantes flagellára por longo tempo.
A scena da ponte, descripta no codice do Panorama, quando uns cem alabardeiros pozeram as alabardas aos peitos dos portuguezes, que queriam acompanhar a infanta, teria uma explicação inverosimil pela versão de Herculano, visto como o duque não havia ainda regulado a situação financeira de um casamento que tanto lhe convinha e por que tanto instára.
Sendo tamanha, como refere Claretta, a multidão de portuguezes que assistiram á recepção da infanta D. Beatriz, explica-se facilmente o acto de violencia praticado pelos alabardeiros como medida prophylatica adoptada pelo duque contra a invasão de uma epidemia que desde longos annos não tinha deixado de fazer grande numero de victimas em Portugal. Póde mesmo ter acontecido que um ou outro caso de peste se houvesse manifestado entre os cinco mil portuguezes que por occasião das festas do casamento se encontravam em Niza, incluindo os marinheiros dos {98}dezoito navios que constituiam a frota portugueza. É porém natural que os portuguezes se offendessem com essa precaução, e desfigurassem as intenções de Carlos III tomando-as á conta de descortezes para com a infanta, e de hostis para com elles.
As condições hygienicas de Portugal eram realmente deploraveis então. A peste tinha devastado o reino annos antes, e, referindo-se á morte de D. Manuel, diz Garcia de Rezende na Miscellania:
N'este anno se finou
o gran rei D. Manoel,
quantos comsigo levou
a morte triste, cruel?
que rei, que gente matou?
duzentos homens honrados,
em que iam muitos d'estados,
vivos que então se finaram
de modorra, e escaparam
muitos já quasi enterrados.
É certo que em torno da infanta D. Beatriz se levantaram desde o principio algumas recriminações. Mas não partiam do duque de Saboya nem procediam de ciumes. Partiam do povo.
D. Beatriz tinha sido educada na opulencia e, como era natural, não perdêra facilmente esse habito. Os saboyanos achavam-na altiva, orgulhosa, e criticavam n'ella os costumes de Portugal.
O duque, bem ao contrario dos sentimentos que lhe attribue o codice citado por Herculano, transigia com a esposa.
Elle proprio, quando a côrte se dirigiu a Genova, seguia o coche rico que conduzia a duqueza, montando uma mula, acompanhado pelo abbade de Beaumont.
Os genovezes, segundo o testemunho de Spon, censuravam que Carlos III dispendesse em pompas, para honrar sua esposa, o dinheiro que melhor seria empregado em fortificar a cidade.
Não obstante estas censuras, as festas continuaram.
Por sua parte, a duqueza devia sentir-se contrariada porque, tendo sido educada no esplendor dos Paços da Ribeira, via-se agora condemnada a viver n'uma côrte pobre e endividada, não sem que o povo murmurasse á menor despeza que ella fazia.
Mas, é Claretta quem o confessa: a experiencia não devia tardar em corrigil-a. D. Beatriz inteirou-se das circumstancias, como mostra a sua correspondencia, que Claretta examinou com cuidado, e que elle proprio divide em politica e particular.
Desprendida de todos os defeitos de educação, mostrando um espirito desassombrado, como o de quem não está impressionado por a saudade de um amor infeliz, como teria sido o de Bernardim Ribeiro, Beatriz de Portugal principia a cuidar seriamente dos negocios internos do paiz.
Logo em 1524 escrevia ao marquez de Pescara {100}para que fizesse cessar as violencias que os soldados do imperador Carlos V, depois da victoria de Pavia, commettiam no ducado de Saboya com grande vexame para os habitantes. Carlos III implorava tambem no mesmo sentido.
A 13 d'agosto d'esse mesmo anno, D. Beatriz instava de novo, dirigindo-se ao capitão imperial Fernando d'Alençon para que deixasse de opprimir os povos do Piemonte, em particular os de Borge e Bognolo in maniera che li nostri subdicti li quali gia tanto hano patito non seano in tutto ruynati.
O imperador, cada vez mais solicitamente instado pelos duques de Saboya, respondia com boas palavras apenas: em carta, datada de Toledo a 7 de fevereiro de 1526, diz a Carlos III que tem por elle e por a duqueza sua cunhada a maior consideração; que os vexames commettidos no Piemonte o contrariam tambem; mas que espera pôr-lhes termo logo que vá a Italia.
A 12 d'esse mesmo mez de fevereiro, a duqueza de Saboya, D. Beatriz, escrevendo ao commendador de Murel, dizia-lhe: Vous n'aues pas a ignorer les insultes et peilleages que alcuns souldars estantz dans Carmagnole auecques leurs complices ont fait sur le pays de Monseigneur de maniere que tous les chemins sont rompuz qui est grant scandalle por tout le pays ce qui ne voulons plus en durer.
Mas os vexames, as humilhações continuavam.
A 22 de fevereiro, a duqueza energicamente recommendava á communa d'Ivrea que lhe enviasse {101}duzentos homens, dos melhores, a fim de policiarem os logares vexados pelos soldados do imperador.
Em abril, como continuassem as coisas no mesmo pé, D. Beatriz escrevia ao marquez del Guasto, pedindo-lhe que fizesse retirar as tropas que devastavam Racconigi.
Sempre valeram as supplicas repetidas e instantes de D. Beatriz junto de Carlos V.
O imperador calmára um pouco a sua vingança, pois que tivera contas a ajustar com Carlos III, ao qual em 1521 havia escripto, tratando-o não por principe italiano, mas por seu visinho d'Italia, pedindo-lhe que obstasse á passagem do exercito de Francisco I: no que fareis o vosso dever, e a mim me dareis singular prazer, que não será esquecido.
O duque de Saboya não só não obstou á passagem do exercito francez, senão tambem o forneceu de viveres e munições.
D. Beatriz, logo que pôde inteirar-se dos negocios politicos do paiz, e intervir n'elles, procurou corrigir o desacerto do marido. Como vimos, dirigia-se supplicante ao imperador ou aos seus capitães, e tanto captivára Carlos V, que elle, comquanto sempre dissimulado, acabou por attender-lhe as supplicas.
Em 1524 D. Beatriz dera á luz um filho.
Os seus deveres de mãi não a inhibiam comtudo de interferir solicitamente nos negocios politicos do ducado,—com tal zelo, com tal dedicação, que não deixa no nosso espirito sombra de suspeita de que ella, no caso de ter sido amada por Bernardim {102}Ribeiro, podesse lembrar-se ainda do infeliz trovador portuguez.
O duque de Saboya tinha fixado a sua residencia em Chambery, cujo clima molestava D. Beatriz, nascida e educada nas regiões temperadas do occidente. Além do que, conservando-se no Piemonte, podia Carlos III observar de mais perto os acontecimentos da Italia.
Esta ausencia obrigada contrariava muito D. Beatriz, como se vê de uma carta sua escripta ao duque a 21 de fevereiro de 1526: ... votre retour qui mest si long que plus ne pourroit. Já não podia supportar a ausencia do marido. Como estaria esquecido Bernardim Ribeiro, se alguma vez tivesse sido lembrado! No fim da carta falla-lhe do filho. Du surplus votre filz se porte tres bien, etc. Deixou para o fim, como as mulheres sempre fazem, o pensamento que mais podia attrahir o marido.
Carlos III, reconhecido á intervenção de sua mulher junto do imperador, escreveu-lhe de Chambery para Turim, em 19 de junho, uma carta que completamente esmaga a suspeita de qualquer resentimento amoroso.
Diz a carta:
«Ma femme. J'ay receu toutes vos lettres par Chasteaufort et par luy entendu de vos nouuelles que me sont a tel aise et plaisir que plus me porrient mesmes vous voyant en bonne santé et les afferez reduitz a souhet dons auons a louer notre seigneur {103}et de tant plus quaues heu si bon heurt que de faire vne si belle oeuure au bien et soulagement des subgectz et a votre gros honneur et reputation. Que vous sera succes et accroissement de vertu. Jay ausplus veu vos aduys et vous asseure que estre ces gens entierement vuydes ie ne tarderay a vous aller veoir et cependant ie men vey des demain Annessy car a... se fait le baptesme qui na este retarde que pour attendre les ambassadeurs des ligues et ne fault au demorant quaye nul soucy de ma personne car aidan Dieu elle vos sera conseruee et de notre fils. Je vous asseure quil fait graces a Dieu auquel ie prie qui vous donne ma femme le bien que ie vous desire De Cambery le XVIIII jour de juins—Votre bon mary, Charles.»
A situação era realmente difficil para Carlos III. Precisava um Cyrineu dedicado, e encontrou-o em sua mulher, D. Beatriz de Portugal.
A duqueza acompanhava, de Turim, todos os acontecimentos importantes, e aconselhava resolutamente o marido.
Citaremos um trecho de uma carta sua, varonilmente energica, escripta ao duque:
«Quant a la ligue de sept cantons suisses quoy que le pape saiche dire ie vous conforte si vous la pouvez conclure a la fere car la nature du marchant n'est que de voir a grandir vos voisins et sa mayson pour ruiner s'il pouvait la votre ou votre etat et tous {104}les aultres quelque dissimulation quil face au contraire.»
Como se sabe, depois do tratado de Madrid, tão vexatorio para a França, recomeçára a lucta entre Francisco I e Carlos V.
Foi pela Italia que as hostilidades principiaram, sangrentamente. Toda a gente conhece as crueldades commettidas pelo exercito de lutheranos, que o duque de Bourbon commandava. E toda a gente sabe que pelo desastre de Landriano foram os francezes expulsos da peninsula italica.
Carlos V, victorioso, entrou na Italia, realisou a sua annunciada visita, que tinha por fim fazer com que os senhores dos pequenos estados italianos reconhecessem a sua suzerania e com que o papa Clemente VII o coroasse rei de Italia e imperador.
Então, a França teve de assignar um novo tratado pouco menos vexatorio que o de Madrid: o de Cambrai.
Todavia, a situação do Piemonte não melhorára. As devastações continuavam. Carlos III lembrou-se de recorrer á intercessão de D. João III de Portugal. Para isso solicitou uma carta de sua mulher, para o irmão, carta de que foi portador um cavalleiro saboyano, de nome Honorato Cays,
O resultado d'esta missão diplomatica, em que D. Beatriz interveio, não o conheceu Claretta.
Mas era esse o momento em que Carlos V devia realisar a definitiva submissão da Italia.
Todos os principes d'aquella peninsula rodeiaram o imperador suzerano: Carlos III, teve, junto de Carlos V, um logar de honra. D. Beatriz offereceu ao imperador uma coberta de leito, do valor de dez mil escudos, e Carlos V presenteou-a, em troca, com quatro vestidos de igual valor.
Terminada a ceremonia da coroação, D. Beatriz regressava a Turim, sempre intendendo all'amministrazione e buon governo dello statto, diz Claretta.
Mas D. Beatriz não havia perdido politicamente o tempo que estivera em Borgonha. Induzira o imperador a ceder-lhe, e aos seus descendentes, o condado de Asti e o senhorio de Chevasco e Ceva, que, pelo tratado de Cambrai, a França havia cedido a Carlos V.
A carta de doação, escripta em latim, e assignada pelo imperador, tem a data de 3 de abril de 1531. Carlos V encarregou o gentilhomem D. Gutierres Lopes de Padilla de legalisar a investidura, que foi celebrada solemnemente.
Os habitantes do condado de Asti festejaram este acontecimento com demonstrações de grande jubilo, e resolveram fazer á duqueza D. Beatriz uma doação de dez mil escudos de ouro.
Em verdade, bem precisada estava de auxilios pecuniarios D. Beatriz.
N'uma carta ao duque dizia ella:
«Touchant ma despense Monseigneur j ay prins {106}le premier payement de ceulx de Cargnan pour contenter partie de ce quest deheu tant seullement du vin et vous plaira nen estre marry vous asseheurant que la crierie et lextremité y estoit plus grosse que je ne vous ay jamais escript...»
Parece mais uma carta de uma boa mãi de familia burgueza, informando seu marido, com uma grande dedicação conjugal, do mau estado das finanças domesticas, do que a carta d'uma princeza, bella e joven, dirigida a um marido pobre e um pouco azumbado, como lhe chama o author do codice citado por Herculano.
A figura lacrimavel do desditoso trovador Bernardim Ribeiro apaga-se lentamente, até diluir-se no esquecimento, se procuramos enxergal-a através da dedicação politica e domestica com que D. Beatriz de Portugal encarou os seus deveres de esposa de Carlos III de Saboya.
Ahi tem o leitor a plena confirmação de quanto lhe haviamos annunciado.
N'essa mesma carta refere-se D. Beatriz aos disturbios que occorriam entre os habitantes de Fossan, sendo que os banidos da povoação tinham derrubado uma grossa muralha. E accrescentava:
«Mais la difficulté y est quil ny a moyen d'auoir argent por leuer gens pour y enuoyer et sans y fere quelque bonne entreprinse et demonstration de iustice la chose ne peult tomber que a pis.»
As circumstancias pecuniarias da côrte de Saboya tornaram-se cada vez mais apertadas, a ponto de não haver dinheiro para pagar aos fornecedores.
D. Beatriz, filha do opulento rei D. Manuel, não tinha uma palavra de queixume ácerca da má situação financeira da sua casa, como seria natural que tivesse, especialmente n'essa conjunctura, se, contrariando uma paixão mallograda, houvesse sido compellida a um casamento que lhe repugnasse.
Oiçamol-a:
«Au regard du duc d'Albanie sil treuue peu pour bien trecter et par faulte d'argent et mon poullalier ne voult plus fournir a cause qui lui est deheu pres de mil florins et a mon bouchier environ quatre ou cinq cens escuz auquel j ay rebattu sa part de la composition du Carignan tousiours en deduction de ce quen luy doibt et por non auoir argent soue constrainte dacheter sur la place de ceste ville a mespris.»
Devendo ao fornecedor de aves e até ao talho—oh prosa vil das realidades do mundo!—a bella princeza de Portugal via-se obrigada a mandar comprar á praça, como toda a gente!
Tendo de receber como hospedes alguns capitães do imperador, que a encontraram em Rivoli e a acompanharam por distincção palaciana até Turim, dizia D. Beatriz ao marido:
«Reste Monseigneur que ie suis assez mal en {108}ordre de caddretz dune naugiere potz flascons platz chandelliers et aultre veisselle dargent. Et ne scay si le duc de Millan viene comme le pourray recepuoir a votre honneur et myen. Semblablement nya icy aulcune tappisserie ny donzelletz de soy combien que iay fait accoustrer le chasteau au myeulx que ma este possible.»
Nem baixella, nem tapeçaria, nada! A isto estava reduzida uma filha de D. Manuel de Portugal, forçada aliás, pela sua alta posição social, a receber como hospedes os generaes de Carlos V.
Mas não era só a falta de dinheiro a unica difficuldade que tinha a vencer.
No dia 15 de agosto de 1532, foi D. Beatriz, com seu filho, á igreja de S. João. Ahi travou-se uma grave rixa entre os senhores de Racconigi, de Masino, o governador de Asti e o conde de Tenda. Houve quem dissesse á duqueza que essa rixa seria um pretexto para ferir o principe, seu filho, que tinha comsigo. D. Beatriz, mostrando uma intrepidez admiravel, mandou suspender a missa, e retirou-se para o côro com o filho, com o prior de Lombardia, com o abbade Capris, e alguns mais personagens. Acudindo alguns cidadãos armados, que guardaram as pessoas da duqueza e do principe, D. Beatriz ordenou que o templo fosse evacuado e, com a intervenção do bispo de Niza, fez reconciliar os contendores.
Ella propria deu noticia d'este acontecimento a seu marido dizendo-lhe:
«... et le commancement du debat a tyrer les epes ont este les vallets de sorte quy sont venus aus meytres tant quy ly auet byen synt sans espes desgenes dedans le glisse et de sorte quy la faglu layser de dyre ma messe pour me retirer et jey heu peur pour ce que tous me disoynt que je retyrasse mon fys cuydant quy fut este fet tout espres totefoys ce na este synon chosse quy tochet a tus memes...»
Quando a gente deletrea á luz d'esta realidade cruel a biographia de D. Beatriz de Portugal, como que sente em torno de si um esvoaçar de aves que fogem amedrontadas, para não mais voltar.
Sao as ficções da sua lenda poetica—a lenda com que a nossa infancia foi embalada—que debandam, espavoridas e batidas, para o paiz azul d'onde vieram...
Emquanto Carlos III, que continuava no Piemonte, via escapar-se-lhe das mãos a alliança dos genovezes, a duqueza de Saboya, esposa dedicada, estremecia de cuidados pela saude do duque: «... quil vous plaise ne trauailler tant votre personne que tomberiez en aulcune malladie car le plus gros malheur qui sceust venu et a vos enfants seroit qui fussiez mal desposé.»
N'uma outra carta da duqueza ha ainda um trecho mais expressivo do seu carinho conjugal: «... si devan lundy ie nen ay nouuelles je deslivre me mectre en chemin que ne sera encoures bien au long {110}iusquez ie soie aupres de vous quest la chose que plus ie desire en ce monde.»
Se não recebesse noticias, que a tranquillisassem, a respeito da saude do duque, D. Beatriz dar-se-ia pressa em partir para reunir-se ao marido, pois que era essa a felicidade que mais desejava n'este mundo.
No coração da infanta portugueza não podiam existir, em face d'estes documentos authenticos, vestigios de qualquer paixão, absorvente e mallograda, sobredourada pelo encanto com que a saudade costuma revestir a imagem dos ausentes queridos. Não se vê, através d'estas cartas, a amante lendaria de Bernardim Ribeiro; o que se vê é a esposa carinhosa do duque de Saboya.
Sempre envolvido nas agitações politicas da Italia, Carlos III viu-se a braços com uma nova controversia. Disputava agora com o duque de Mantua a successão do Monferrato pela extincção da linha masculina dos Paleologos. A solução foi favoravel ao duque de Mantua, e os partidarios de Carlos III aconselhavam-no a empregar a força das armas, a recorrer á violencia.
D. Beatriz de Portugal, que, de longe, acompanhava todas as questões politicas em que o marido se via lançado, revelava o heroismo do seu animo apoiando o conselho com resoluta firmeza: «le vrai expedient et moyen de vostre affere et ni ayez respect ni regard a personne ni a chose du monde.»
Uma dama de tão rija tempera, como D. Beatriz se mostrou em Saboya, não só nos negocios {111}politicos, mas tambem nos domesticos, não menos apertados e difficeis, se se houvesse apaixonado por Bernardim Ribeiro, se tivesse acceitado os galanteios do famoso trovador portuguez, haveria tido a coragem de resistir a todas as vicissitudes que combatessem os designios do coração amoroso.
Ao contrario de sua mulher, Carlos III, sempre vacillante, continuava hesitando entre a França e a Hespanha, entre Francisco I e Carlos V.
D. Beatriz tinha, a este respeito, opiniões definidas, e expunha-as com clareza ao marido. Ella era pela Hespanha. E n'este sentido aconselhava ao duque: «... mais que si vous aviez deliberé vous entretenir envers France comme aviez faict jusqu'ici que ce vous serait chose bien difficile pour vivre avec tous deux neanmoins j espere selon votre accoutumée prudence vous y scaurez bien conduire.»
Todavia as circumstancias eram de geito para entibiar qualquer animo menos forte que o de D. Beatriz de Portugal.
Longe do marido, soffrendo pela saude e pela situação politica d'elle continuados sobresaltos; luctando com a falta de recursos pecuniarios cada vez mais aggravada; tendo perdido seu filho Luiz, que expirára em Hespanha, na companhia de Carlos V, em dezembro de 1536; compromettida, no anno seguinte, a sua delicada saude pelo extremo estado de gravidez em que se encontrava; D. Beatriz de Portugal luctára, emquanto pudera, com animo varonil e esforçado, mas, presentindo a morte, que se avisinhava, {112}preparou-se serenamente para a viagem eterna, ditando as suas disposições testamentarias.
Era, nas circumstancias em que se encontrava, uma princeza pobre.
Mas, pela leitura do testamento, reconhece-se toda a humildade dos seus sentimentos religiosos, na recommendação que faz ácerca da modestia dos funeraes, e nos pequenos legados, nas ultimas recordações com que testemunha o seu affecto pelas pessoas que a rodeavam, as suas criadas particulares, taes como a ama do fallecido principe Luiz e a mulher do barbeiro do duque.
Herdeiro universal o marido. Aos filhos legava a terça. E recommendava que se do proximo parto nascesse uma filha, não a casassem sem consentimento de Carlos V; e sempre com um principe igualmente illustre em nascimento. De contrario, preferiria que fosse freira.
Legitimo orgulho de uma princeza portugueza que, alongando os olhos para além do tumulo, procurava evitar que uma filha sua desposasse um d'esses pequenos principes que enxameavam na Italia. Mãi dedicada, queria que a sua prole estremecida tivesse um destino mais tranquillo do que ella tivera.
O testamenteiro nomeado por D. Beatriz foi Francisco de Carvalho, embaixador portuguez junto á côrte de Saboya.
A duqueza déra á luz uma creança do sexo masculino, que recebeu o nome de João Maria. Mas a {113}saude de D. Beatriz estava de tal modo damnificada, a sua fraqueza era tamanha, que rendeu a alma ao Creador no dia 8 de Janeiro de 1538.
O duque não assistiu ao passamento de D. Beatriz; o duque, a quem ella sempre cosi teneramente aveva amato, diz Claretta. Sendo informado do perigo que corria a vida da duqueza, Carlos III dera-se pressa em partir para Niza, mas foi no caminho, em Genova, que recebêra a fatal noticia.
O duque ficou fulminado. Dicesi che il dolore da cui il buon Carlo III era oppresso fosse talmente profondo che dava non poco a dubitare della sua esistenza. É o testemunho de Claretta.
Comquanto fossem precarias as circumstancias da côrte de Saboya, Carlos III ordenou pomposos funeraes. Mas, aggravadas com esta despeza as finanças do duque, não foi possivel dar inteiro cumprimento á ultima vontade de D. Beatriz, quanto aos legados que ordenára em testamento.
Para memoria eterna de saudade conjugal, Carlos III mandou gravar em honra de D. Beatriz, como já dissemos, duas medalhas.
Do casamento de Carlos III com a infanta de Portugal nasceram nove filhos: seis do sexo masculino, sendo um d'elles o celebre Manuel Felisberto, o vencedor de S. Quintino, e tres do sexo feminino.
Aqui fica pois reconstruida, graças á monographia de Claretta, a vida da infanta D. Beatriz depois que sahiu de Portugal.
É o proprio Claretta quem confessa que a {114}duqueza de Saboya tem sido apreciada por modos diversos; mas a sua opinião exalça-lhe a memoria. Notando que Brantome faz referencia á altivez de D. Beatriz, diz que, tendo a duqueza seguido a causa de Hespanha, este facto explica o resentimento de Brantome. Dueros, na sua Histoire d'Emmanuel Philibert, explica essa altivez pela firmeza de caracter, que contrastava com a indecisão do marido, e entende que D. Beatriz deve ser collocada a par das mulheres fortes que a historia celebra.
Hoje, conhecidos os importantes documentos que Claretta deu á estampa, a lenda d'essa paixão contrariada, em que D. Beatriz e Bernardim Ribeiro durante tantos annos figuraram como victimas, recebeu por certo mais um golpe.
Se o trovador tivesse sido amado pela infanta, se, como suspeitava Alexandre Herculano, houvesse chegado até Saboya o segredo d'esses amores infelizes, de que Carlos III quereria tirar represalias, o caracter de D. Beatriz, em vez de se dobrar em carinhosas demonstrações de affecto para com o marido, haveria reagido pelo desdem, e até pelo desprezo.
Mas não é isso o que vemos das proprias cartas da infanta.
E, se por hypothese, D. Beatriz se soube algum dia amada de Bernardim Ribeiro, a noção do dever apagou completamente no seu coração a recordação d'esse amor infeliz. Seria, n'esse caso, um idyllio que tivera a duração de um meteoro, e cujas proporções a historia, rigorosamente descarnada, não póde avultar.
A nossa convicção, pelos factos que longamente indicamos, é que a tradição dos amores de Bernardim Ribeiro e D. Beatriz pertence aos dominios da lenda; que se alguma paixão vehemente infernou a existencia do poeta da Menina e Moça, não foi D. Beatriz que a inspirou; mas não achamos sufficientes os elementos até agora apurados para nos determinarmos pela opinião de Varnhagem ou pela opinião do snr. Theophilo Braga, quanto ao nome da dama que deve occupar o lugar em que a lenda collocou, no coração do poeta, a infanta D. Beatriz.
«O rei James V, que morreu de trinta e tres annos em 13 de dezembro de 1542, era um joven rei, tunante e maganão, que se disfarçava em trajos de mendigo, de adello, ou que taes, para andar correndo baixas aventuras pelas aldeias ou pelos bairros escusos das cidades.»
Garrett.
Ao pé do freixo umbroso e da sonora fonte,
Que dão sombra e frescura ás boninas do monte,
Glycera, a moça loira, Amyntas, o pastor,
Juravam-se um ao outro o seu eterno amor.
Sobre a relva assentada, a formosa Glycera
Tecia de jasmins e verdes folhas de hera
Grinaldas e festões, cantando uma canção
Em que menos cantava a voz que o coração.
{118}Assim tambem se eleva o cantico suave
De uma ave que estremece á espera de outra ave
Nas alcôvas em flôr que tece o mez de abril.
Não tardou que chegasse, á volta do redil,
Amyntas, o pastor, já recolhido o gado.
—«Grinaldas! Para que?»
—«Para o nosso noivado»
Córando de pudor, Glycera respondeu,
E emquanto elle a fitava, ella os olhos desceu.
—«Disseste muito bem, minha amada Glycera,
Vamos ambos colhêr jasmins e folhas de hera.
Sim!... Tu não serás de outro? É minha a tua mão?
De mais ninguem será?»
—«Eu te juro que não.»
—«Agora sou feliz! Vou dar-te, porque és minha,
Aquella ovelha branca, ess'outra malhadinha
Que valem um milhão! Iguaes inda não vi!
Mas, porque tu és minha, eu dou-t'as para ti.
Olha, que lindas são! Valem um bom rebanho
Na côr, na timidez, no pello e no tamanho!
Só teu, de mais ninguem, é o fresco laranjal,
Que dá tão dôce sombra ao meu... ao teu casal.
Dou-te do meu redil os dois novilhos bravos,
E as colmêas que tenho, e todo o mel dos favos,
As arcas, o bragal, peculio do pastor,
E, acima d'isto tudo, o meu eterno amor.»
E, sorrindo enlevada, a formosa Glycera
Alternava jasmins com verdes folhas de hera.
Era o rei James V um joven rei feliz,
Que de lendas de amor encheu todo o paiz
Da sua bella Escocia, alcantilada e fria,
Onde o seu coração a neve derretia.
Soam trompas de caça, e em célere tropel
Passa o rei cavalgando o seu veloz corcel
Entre nuvens de pó; e seguem-no monteiros
E pagens de libré e mastins e rafeiros.
Do freixo á verde sombra, assentada no chão,
Glycera, de medrosa, ouvia o coração.
—«Bons dias, pegureira.»
—«Os mesmos vos desejo.»
Disse-lhe ella córando ou com medo ou com pejo.
—«Que fazes por aqui? Esperas teu pastor
N'este ermo pinheiral?!»
—«Não espero, senhor.»
—«Como te chamas tu?»
—«O meu nome é Glycera.»
—«Que linda e que gentil! Tu és da primavera
A mais formosa irmã!...»
—«Mercê que me fazeis.»
—«Se alguem te rouba aqui?»
—«Sou pobre, bem sabeis.
Ninguem rouba á pobreza. Ella de si é escassa.»
{120}—«Excepto quando é o rei que n'estes sitios passa...»
—«Piedade!»
E o louco rei, sem resposta volver,
Aos monteiros bradou:—«Prendei-me essa mulher,
Conduza-m'a um de vós sentada na garupa
Do cavallo. A galope! Ávante, corceis! Upa!»
E tudo se perdeu n'um turbilhão de pó
Ao longo do caminho. O pinhal ficou só.
Em noites de luar, noites de primavera,
Ouvia-se dizer:—«Onde estás tu, Glycera?»
N'esse ermo pinheiral, e um longo choro após.
Finda a verde estação, calou-se a triste voz,
E nunca se ouviu mais sahir d'entre os pinheiros.
Um dia, por acaso, um rancho de vaqueiros
Passou alli, e viu estendido no chão
Amyntas, o pastor. Chamaram-no em vão,
Que elle não respondeu. Era gelado, frio.
Dizem que succumbiu ao vêr chegar o estio
Sem Glycera voltar. E tinha a luz do sol
Por cirio funeral, e folhas por lençol.
Mas o rei James V, em seu palacio bello,
Ao pé do lago azul, que espelhava o castello,
Estranhava a Glycera esse tão louco amor,
Que nos braços de um rei pranteava um pastor.
I
Domingo, 23 de dezembro de 1888, á hora em que um bello sol de inverno doirava pallidamente o céo de Lisboa, convidando a despreoccupada população a fazer o trottoir da Avenida, achava-me eu na igreja do extincto convento de Agostinhas Descalças, no sitio do Grillo, em frente do caixão onde têm repousado esquecidos os restos mortaes de D. Luiza de Gusmão, rainha de Portugal.
Não vão suppôr que me estou dando ares de poeta funebre da realeza ou de philosopho merencorio dado a scismar no problema da morte: to be or not to be. Nada d'isso. Sou apenas um dilettante de estudos historicos; tenho por vezes o mau gosto de preferir os dramas do passado aos do presente, e as epopêas da historia ás partituras de S. Carlos.
Sabendo que se tratava de remover para S. Vicente de Fóra os restos mortaes da rainha D. Luiza de Gusmão, e que o feretro ia ser aberto para se verificar se havia sido violado como constava ás justiças da Boa Hora, não quiz perder a occasião de examinar por meus proprios olhos os ultimos despojos d'essa notavel dama do seculo XVII, tão energica junto de seu marido, tão resoluta na fragilidade do seu sexo, mas tão sincera na firmeza da sua justa ambição.
Fui.
Antes que o acto judicial principiasse, aproveitei o tempo visitando o convento, a que D. Luiza de Gusmão se recolheu a 17 de março de 1663, e onde tres annos depois fallecêra.
É vasto o convento, sem que todavia nada tenha de monumental. As Agostinhas Descalças não ostentavam pompas monasticas. Ha no interior do convento todo o aspecto de uma clausura severa: longos corredores sombrios, cellas estreitas e mal allumiadas, tendo sobre a porta e o fundo da parede alguma legenda biblica, alguma inscripção religiosa, por exemplo—Da cella ao céo—Não póde o servo servir a dois senhores.
A abundancia de altares—pois vimos n'um a designação de 193—denuncía que o culto era alli fervoroso, e que não se podia dar um passo no interior do convento sem ter diante dos olhos a imagem de um santo, de uma santa ou do Redemptor.
Mas os nichos dos altares estão vazios, as imagens e as reliquias desappareceram; convento e {123}igreja foram brutalmente despojados; diz-se que até o sino, apesar do campanario ser alto, desapparecêra!
A rainha D. Luiza de Gusmão, afastada duramente da côrte pelos conselheiros de seu filho D. Affonso VI, acabou por decidir-se a entrar n'aquelle convento, mas nada ha alli que denuncie grandeza de aposentos reaes. Pareceu-nos que esses aposentos seriam uns que ficam voltados ao Tejo—por serem um pouco melhores do que os outros—constando de uma sala com chaminé e uma pequena cella, contigua á sala, da qual recebe luz por uma janella interior.
D. Luiza de Gusmão vivêra pois modestamente entre as Agostinhas Descalças.
Poucos conventos, porém, teriam uma claustra mais vasta do que o do Grillo; todo o pavimento terreo, que é enorme, serve hoje de deposito de artilheria, está cheio de peças de campanha.
Algumas freiras, como as inscripçoes tumulares indicam, jazem sob as carretas.
Havia no Grillo só um côro, pequeno e modesto.
Mas, em compensação, a igreja, comquanto não seja grande, é boa, coberta de azulejos de valor e de quadros, hoje completamente estragados pela humidade. A teia do cruzeiro é magnifica, de ébano e mosaico florentino, com as armas de Portugal e da casa de Medina-Sidonia.
Era dentro da teia que estava o caixão da rainha, coberto com um rico panno, deteriorado pelo tempo, e {124}encimado pela corôa real, sobre almofada de estofo igual ao do panno.
Levantada esta cobertura com as formalidades judiciaes que o acto exigia, reconheceu-se que o caixão, de pau Brazil, excellentemente conservado, tinha sido violado nas fechaduras lateraes, pelo menos em duas que estavam encravadas com pregos de arame.
Aberta a tampa do caixão, forrada interiormente de sêda branca lavrada, apenas emergia de uma espessa camada de cal a caveira, a cuja fronte havia adherido a renda preta do véo, dando a impressão, á primeira vista, de que uns restos de cabello a povoavam ainda. A illusão era completa.
A cal estava remexida junto do hombro direito da rainha, e na altura da mão esquerda.
Verificou-se que o craneo se achava desarticulado da columna vertebral.
A cal afogava completamente as vestes do cadaver, e só por uma estreita orla, que ficára a descoberto na extremidade inferior do caixão, se pôde conhecer que o vestido era de seda côr de castanha.
Da energica e virtuosa rainha de outro tempo restava apenas aquillo!
A renda do véo dava a illusão, como já disse, de que a testa da rainha era de uma estreiteza simiana, quando em verdade D. Luiza de Gusmão, como se sabe pelo retrato existente na Bibliotheca Nacional de Lisboa, reproduzido por Benevides nas Rainhas de Portugal, fôra uma bonita mulher, de feições {125}muito regulares: testa espaçosa, olhos grandes e pretos, bocca pequena, rosto redondo.
O que nós hoje podêmos apenas estranhar n'esse retrato são as exaggeradas dimensões dos bandeaux, que eram moda n'esse tempo, sendo costume adornal-os com murabuths e estrellas de pedras preciosas.
D. Luiza de Gusmão não morrêra de idade que a velhice a tivesse podido deformar: tinha apenas 53 annos. E a proposito citarei um documento, por ser pouco conhecido entre nós: é a certidão de idade, que encontrei, segundo os meus apontamentos, na Huelva Illustrada, por D. Juan Agustin de Mora (Sevilha, 1762):
«Que en un libro de baptismos, que comenzó año 1602, y acabó en 1626, que no está foliado, como á la mitad de sus hojas está una partida, que á la letra, es como se segue:
«En la villa de Huelva, jueves veinte y quatro dias del mes de octubre, año de Nuestro Salvador Jesu Christo de mil y seiscientos y trece años, yo el Lic. Diego Muniz de Leon, Visitador General del Arzobispado de Sevilla, baptizé á la señora Doña Luiza Francisca, hija del señor D. Manoel Alonso Perez de Guzman el Bueno, y de la señora Doña Juana de Sandoval, condes de Niebla: fué su padrinho el señor D. Gaspar Alonso Peres de Guzman el Bueno, Marqués de Casaza, y le adverti la cognacion espiritual, y lo firmé: fecho ut supra.—Lic. Diego Muniz de Leon.»
Por este documento fica rectificado o nome do pai de D. Luiza de Gusmão, que o snr. Benevides diz chamar-se João Manuel Peres de Gusmão.
Os restos mortaes d'aquella mulher illustre, abstrahindo mesmo da sua qualidade de rainha, inspiravam respeito.
A sua vida não fôra uma inutilidade grandiosa. Não. Junto de seu marido, D. Luiza de Gusmão fôra uma conselheira cheia de coragem e de energia, indispensavel para completar o caracter irresoluto e medroso do duque de Bragança. Na regencia do reino, todas as côrtes estrangeiras faziam justiça ao seu animo forte, ao seu espirito esclarecido. Só como mãi fôra infeliz. Viu morrer o primogenito prematuramente, e os outros dois filhos não rodearam de carinhos filiaes os ultimos momentos da rainha, que morreu ao abandono da sua propria familia!
Nas Monstruosidades do tempo e da fortuna e na Catastrophe de Portugal vem transcriptas as cartas em que D. Luiza de Gusmão chamava do seu leito de agonia o rei Affonso VI e o principe D. Pedro para os abençoar.
Sabe-se que a Catastrophe é um livro parcial contra o rei, mas, descontada a paixão politica do author, o principe D. Pedro não se mostra muito superior ao rei em extremos de amor filial.
A historia fornece-nos sobejas provas de que D. Pedro II não sabia respeitar melhor do que seu irmão os vinculos de familia.
O bispo do Porto D. Fernando Corrêa de Lacerda {127}diz na Catastrophe que o rei e o infante acompanharam o cadaver da mãi até ao coche funebre:
«Na segunda feira se dispozeram os funeraes com religiosa, e decente pompa, e á terça á noite depois d'el-rei e S. A. lançarem agua benta ao cadaver, e o acompanharem á liteira, foi levado á igreja do mosteiro do Sacramento de religiosos Carmelitas Descalços, que havia edificado, d'onde se sepultou por deposito, até se acabar a igreja das religiosas Descalças da recolecção de Santo Agostinho, de que era fundadora, na qual tinha mandado escolher a ultima sepultura.»
Ora o desconhecido author da Anti-catastrophe (livro de que Camillo Castello Branco diz com razão: tem relanços que inspiram crença; mas lá vem outros que a desluzem) não menciona o nome do principe, como assistente á agonia da mãi, e a respeito do rei descreve-o gastando tres dias de Salvaterra a Lisboa, sem pressa nenhuma de chegar, porque mandava fazer paragens para ouvir os musicos; e conclue por dizer: «Foi para palacio, porque, nem ainda morta a quiz vêr.»
O auctor das Monstruosidades do tempo e da fortuna, qualquer que seja, diz que nenhum dos filhos lhe assistiu, supposto chegassem uma hora antes da rainha expirar, por estorvados de quem sabia que os conselhos d'aquella hora, como mais desenganados, são fielmente cridos e ficam na memoria mais estampados.
A verdade deve estar no meio termo: os dois filhos importaram-se pouco com a morte da rainha, quer lhe deitassem agua benta quer não.
Nós é que lh'a não podemos deitar a elles para absolvel-os de tão grave falta.
Pois esta illustre princeza que tanto luctára toda a sua vida, com o marido, com o cunhado D. Duarte[4], com Castella, com o irmão e com os filhos, alli estava reduzida aos seus ultimos despojos, tocados pela mão de vandalos que remexeram na cal para encontrar decerto alguma joia com que a rainha tivesse sido amortalhada. O marido, bem menos sympathico do que ella, está no pantheon real de S. Vicente, mas a benemerita Medina-Sidonia, que, ainda descontado o natural interesse egoista de antes querer ser rainha uma hora do que duqueza toda a vida, foi uma collaboradora importante na restauração da monarchia nacional, tem jazido no esquecimento e no abandono, tão sem repouso, que o seu cadaver vai agora fazer a terceira jornada, porventura definitiva[5].
II
O marquez de Cascaes é que fallou claro a el-rei D. Affonso VI.
Entrou, com uma faca na mão, na camara real, em occasião que o monarcha dormia profundamente.
Sacudiu-o, accordou-o, e pediu licença para dizer uma grande verdade.
D. Affonso VI, se fosse um rei a valer, teria mandado cortar immediatamente a cabeça ao ousado fidalgo que o ia accordar no melhor do seu somno, não para lhe levar um copinho de leite quente, mas para lhe dizer uma grande verdade muito fria!
Era coisa que um rei podesse soffrer! Nem um vassallo a soffreria de boa mente, quanto mais um rei! Imaginemo-nos accordados por um crédor, violentamente, para nos dizer que lhe devemos ainda o capital e os juros. É lá coisa que possa tolerar-se!
Mas D. Affonso VI, recebendo a faca que o fidalgo trazia na mão, limitou-se a dizer:
—Lá vem o marquez com alguma das suas!
Ora se tudo isto não basta para caracterisar um rei! Accordam-no de repente, e não se zanga! mettem-lhe uma faca na mão, e fica com ella! pedem-lhe licença, ainda por cima, para dizer-lhe uma grande verdade, e o rei responde bonacheironamente: «Pois diga lá!...»
É preciso não ter... alma!
Vai o marquez, e diz:
—Senhor, vós nascestes tolo.
E o rei continúa ouvindo, pacientemente, de faca na mão!
Podia o marquez ter-se ficado por aqui, que já não era pouco nem mau, mas carregou na tecla, visto ter achado brando o teclado.
—Sois doente, e cheio de enfermidades, accrescentou.
E o rei, sempre de faca na mão, pediu mais.
Então o marquez queimou o seu ultimo cartucho:
—Nem sois para casado.
Era o mais que se podia dizer! Como havia de servir para rei um homem que não servia para marido?! Rua com elle: era a traducção.
E o rei, diz o author das Monstruosidades do tempo e da fortuna, concordou com o marquez de Cascaes!
N'esse mesmo dia, 23 de novembro de 1667, D. Affonso VI assignou um termo de desistencia em favor de seu irmão.
Eis-aqui a synthese de um reinado.
A faca do marquez de Cascaes ha de ficar eternamente na historia portugueza como symbolo de boa administração: corte-se tudo o que não presta.
Fizesse-se assim sempre, e em tudo, e as coisas iriam melhor...
Sabe a gente estes e outros factos, que testemunhas contemporaneas deixaram memorados; sem {131}embargo, D. Affonso VI tem uma tradição galante, de aventuras amorosas... armadas no ar como os castellos de Hespanha.
Eu sei que me corre o dever de ser mais discreto do que a historia. Sei isso. Não irei revolver as monstruosidades escandalosas da nullidade do casamento de D. Affonso VI. Nada d'isso. Procurarei apenas, na vida do successor de D. João IV, o que possa haver de contavel em materia de galanteria com mulheres.
Supponham que nasceu n'um monturo uma flôr. Tem-se visto. Eu arrancarei delicadamente a flôr, sem tocar no monturo.
O snr. Andrade Corvo, n'um bello romance historico que eu anteponho, com muita proeminencia, a varios livros do mesmo genero, á Mocidade de D. João v por exemplo, conta as proezas galantes que D. Affonso VI fizera por amor da Calcanhares, uma hespanhola.
Agora, que estão publicadas as Monstruosidades do tempo e da fortuna, sabe-se que o facto é inteiramente verdadeiro, porquanto o author d'este livro, seja frei Alexandre da Paixão ou não seja, escreve com toda a sua authoridade de contemporaneo:
«Acabado o dia soube a rainha que em uma janella do Paço estivera vendo a festa uma mulher conhecida tanto pelo nome, como pela vida, celebrada pela alcunha de Calcanhares, sustentada para feitiço de sua magestade.»
A este simples periodo de um manuscripto do seculo XVII foi o snr. Corvo buscar habilmente todos os magnificos episodios a que, no seu romance, a Calcanhares serve de pretexto.
Muita gente, sempre de pé atraz com D. Affonso VI, perguntava, depois de ter lido Um anno na côrte: Mas esta Calcanhares existiu ou não existiu?
Ahi fica dada a resposta.
O sr. Corvo foi até excessivamente meticuloso como romancista historico. Andou procurando nos codices do seculo XVII, escrupulosamente, certas minucias, que então não estavam ainda divulgadas, como hoje, pela publicação das Monstruosidades do tempo e da fortuna.
Assim, por exemplo, o rei, referindo-se no romance do snr. Corvo á rainha D. Maria de Saboya-Nemours, trata-a por Brichota, com sem-ceremonia contraria á etiqueta.
Brichota era synonymo de estrangeira.
Pois bem. Lá diz o author do famoso codice: «Respondeu-lhe el-rei que lhe não desse nada da Brichota, que fosse, e estivesse, e se ella fallasse...» O resto não digo eu ainda que me queimem, mas disse-o el-rei D. Affonso VI.
Este monarcha não tinha papas na lingua, e por isso não estranhou a descompostura, núa e crúa, que lhe pregou o marquez de Cascaes.
Eu possuo um livro precioso como subsidio para a historia do reinado de Affonso VI. Intitula-se Vita di Maria Francesca di Savoia-Nemours, regina di {133}Portogallo, per il barone Gaudenzio Claretta. O meu exemplar, comprado no espolio do visconde de Borges de Castro, é ricamente encadernado, e tem uma dedicatoria do proprio author.
Pois ahi, a pag. 100, lê-se esta passagem, referente ao rei:
«... nan era privo di un tal qual spirito, quantumque non sapesse nè leggere, nè scrivere ed usasse basse espressioni, come, per esempio: vá bugiar... etc.»
Fiquemos por aqui.
Os grandes amores romanticos de D. Affonso VI tiveram por palco o convento de Odivellas.
Calumnia-se D. João V quando se diz que elle desacreditou Odivellas. Aquillo já vinha de traz.
D. Fernando Corrêa de Lacerda, bispo do Porto, conta que D. Affonso VI «se deu ao galanteio das religiosas, frequentando diversos mosteiros», e que «sem reparar no decôro que se devia aos lugares sagrados, fazia abrir as portas das igrejas, sendo alta noite», «succedendo muitas vezes que quando em outros conventos se levantavam os religiosos para louvar a Deus, o estava el-rei offendendo nas grades das suas igrejas.»
Umas d'estas freiras era D. Anna Angelica de Moura, conhecida em Odivellas pela alcunha galante de Flôr do Sol.
«Tomou el-rei amizade illicita com D. Anna de Moura, freira de Odivellas; fazia-lhe continuas assistencias com grande indecencia, e geral reprovação de toda a côrte. O dia em que D. Anna de Moura fazia annos, foi el-rei tourear no pateo de Odivellas: deu uma grande queda, de que esteve sangrado, fazendo-lhe D. Anna de Moura a fineza de se sangrar tambem, lhe mandou um grande presente, e quando a tornou a vêr, lhe disse que desejava fazel-a rainha de Portugal.» (Vida d'elrei D. Affonso vi, publicada por Camillo Castello Branco, e attribuida ao duque de Cadaval).
Pensa o leitor que esta dupla sangria foi uma galanteria original? Pois está enganado.
No auto do Mouro encantado, do quinhentista Antonio Prestes, vem citado o exemplo que a freira de Odivellas imitou:
... Foi como o meu,
que sou quem o arremendou
na guerra que a Pirro deu;
sendo o vencimento seu
uma mulher captivou
da qual vindo-se a vencer
por formosa, elle a amava,
cousa brava;
chegou ella a adoecer,
e se ella se sangrava
sangrava-se elle, que fava
de amor póde mais ser?
Decididamente: não ha nada novo n'este mundo. {135}O caso está em saber a gente onde os outros foram fazer mão baixa.
Ora havia em Odivellas outra freira, que D. Affonso VI deixou para fazer a côrte a D. Anna de Moura.
Mulher de talento mas com cabellinho na venta, est'outra freira, que se chamava D. Feliciana de Milão!
Dos seus desbragamentos de linguagem dão ampla noticia Perim no Theatro heroino e Suppico na Collecção de apothegmas.
As duas freiras rivaes descompozeram-se em verso... como se valesse a pena!
D. Feliciana desembestou com o rei:
Meu monarcha, o vosso amor
e vosso trato amoroso
tanto tem de primoroso
quanto de pai e senhor;
mas, ainda assim, causa dôr
e não com pouca rasão
vêr que esta vossa affeição
muito tem que a desdoura,
pois adorais uma Moura,
sendo vós um rei christão!
A Flôr do Sol respondeu:
Com rara desigualdade
vós murchaes, ella florece:
Anna deidade parece,
Feliciana de idade.
{136}Deixai pois essa vaidade
porque a todos nos enfada,
pois que sendo só chamada
ser escolhida queiraes,
maiormente quando estaes
affeita a ser engeitada.
Que tolas! tudo isto por que?! Façam favor de lembrar-se da historia da faca!
O calembour de D. Anna de Moura era, como hoje dizemos, uma piada á outra, que foi uma grande calemburista do seculo XVII.
Exemplo: D. Anna de Moura tinha um irmão, que se chamava Gil Vaz Lobo.
Um dia as duas freiras travaram outra das suas muitas pegadilhas. D. Feliciana disse á rival:
—Se vos não aquietaes, dou-vos com vosso irmão pela cara (Gilvaz).
O rei pediu a alguem que lhe fizesse versos desconsoladores para D. Feliciana, e mandou-lh'os. Vai ella, agastada, respondeu:
Mais que louco atrevimento
é disparate cantado
avaliar por cuidado
o que é só divertimento.
Tome lá, real senhor! Não foi só o marquez de Cascaes que lhe disse a mesma coisa.
Sempre a faca!
III
Em novembro de 1887, publicava um jornal de Lisboa a seguinte noticia, que transcrevo textualmente:
«El-rei o snr. D. Luiz acaba de receber um presente, que lhe devia ter sido em extremo agradavel.
«Existia em Londres um magnifico retrato da princeza D. Catharina de Bragança, rainha de Inglaterra, e mulher de Carlos II, pintado por um dos melhores pintores inglezes d'esse tempo. Esse retrato, depois da queda dos Stuarts, soffrêra fortunas varias, até que foi cahir ha pouco tempo, por venda em leilão, nas mãos do coronel americano Mac-Murdo, concessionario primitivo do caminho de ferro de Lourenço Marques.
«O snr. Mac-Murdo entendeu que devia presentear com essa tela historica el-rei de Portugal, e pediu-lhe licença para lh'o offerecer. Hontem o snr. Levis, ministro dos Estados-Unidos em Lisboa, devia ter entregado na Ajuda a el-rei D. Luiz a preciosa dadiva do seu compatriota.
«Dizem que este retrato, magnifico e muito bem conservado, desmente a lenda da fealdade da mulher de Carlos II, lenda que se fazia correr talvez para desculpar as numerosas infidelidades conjugaes do {138}amante da duqueza de Portsmouth. A rainha D. Catharina, tal como o retrato a apresenta, sem ser uma formosura, é todavia uma gentil senhora, sobretudo com uma grande expressão de bondade.»
Sem ser uma formosura, diz o texto da noticia, não era comtudo D. Catharina de Bragança, rainha de Inglaterra, uma dama despicienda, segundo o retrato feito por um pintor inglez contemporaneo.
É certo que em torno d'esta illustre dama da casa real portugueza, para quem o throno britannico fôra pouco menos de um calvario, se formára uma lenda de fealdade, que os historiadores inglezes confirmam.
Assim, David Hume, o author da historia dos Stuarts, pinta-nos D. Catharina de Bragança como princeza de uma virtude sem macula, a qual, todavia, não pôde nunca fazer-se amar do rei pelas graças da sua pessoa nem do seu espirito.
Dizia-se, até á apparição do retrato offerecido pelo snr. Mac-Murdo, que Portugal fôra obrigado a dotar a princeza de Bragança com Tanger e Bombaim como compensação dos dois defeitos que Carlos II notava na sua noiva: ser feia e ser catholica.
O que é certo é que o casamento custou a realisar-se, e que Portugal, para vêr no throno inglez a filha de D. João IV, teve que desapossar-se, effectivamente, de Tanger, que não aproveitou muito aos inglezes, e de Bombaim, de que elles vieram a fazer uma das primeiras cidades do mundo.
A infeliz princeza não tirou, porém, d'esse casamento as vantagens que se esperavam. Viveu humilhada pelas leviandades amorosas de Carlos II, preterida pelas amantes do rei, especialmente pela condessa de Castlemaine, e, guerreada pelos protestantes, chegou a ser accusada de querer envenenar o marido.
Tudo isso se sabe, e seria fastidioso recordar n'um artigo fugitivo os lances dramaticos da vida atribulada de D. Catharina de Bragança em Inglaterra.
O meu fito é outro.
Eu quero principalmente fazer notar, como curiosidade bibliographica, alguns opusculos, em prosa e verso, a que deu lugar o casamento da infanta portugueza com o rei inglez.
Principiarei por fallar de um escriptor que se desenfastiava dos seus trabalhos nobiliarchicos cultivando as musas.
Refiro-me a Antonio de Villasboas e Sampaio, que escreveu: Saudades do Tejo e de Lisboa na ausencia da Senhora Catharina, rainha da Gran-Bretanha.
Villasboas, na sua qualidade de poeta, tomou a liberdade, que n'essa qualidade lhe era permittida, de celebrar D. Catharina como um sol de belleza, uma maravilha de formosura.
Disse uma vez um notavel homem politico do nosso paiz que todas as princezas eram formosas. O poeta Villasboas justifica plenamente esta espirituosa affirmação. Ninguem dissera nunca que D. Catharina fosse uma dama formosa, nem mesmo o proprio {140}retrato, que apenas põe em evidencia uma grande expressão de bondade. No Peveril of the Peak, de Walter Scott, a rainha, que atravessa os ultimos capitulos d'este romance, resalta com essa mesma expressão de bondade, annuveada de melancholia. Mas Antonio de Villasboas não se prendeu com estas pequenas teias de aranha, e saudou em D. Catharina de Bragança a oitava maravilha do mundo, quanto a belleza.
Oiçamol-o:
Dita será que vejam lá no Norte,
D'onde o mal até agora ha procedido,
O bem melhor da lusitana côrte,
A bellesa maior, que hão conhecido.
Esta hyperbole é um pouco compromettedora para as damas portuguezas, visto que D. Catharina, não sendo bonita, era inculcada pelo poeta como o bem melhor da lusitana côrte, a bellesa maior!... O poeta offendia d'est'arte os creditos das damas portuguezas, que sempre tiveram fama de bellas. Aqui ha prejuizo de terceiro.
Mas os poetas, se lhes dá para serem lisongeiros, teem a vertigem da hyperbole. Villasboas continúa:
De dia, se a não via, me alegrava
Vêr o sol, que algum tanto a parecia,
Não em tudo, que a elle lhe faltava
Da bella infanta a graça e bisarria:
{141}De noite co'as estrellas conversava,
E de todo o meu siso lhe dizia:
Tendes estrellas, porventura, inveja
De que a infanta mais formosa seja?
As estrellas, provavelmente, nunca responderam nada.
Outro poeta, Antonio da Fonseca Soares, que veio a chamar-se na religião frei Antonio das Chagas, já tinha dito, saudando o anniversario natalicio da princeza:
Oy bellissima infanta
Del lusitano sol alba nascistes,
Y aurora apenas de sus rayos fuistes
Quando te jusgaron del futuro trono
Luz feliz, bello annuncio, ilustre abono.
Os poetas são como as Marias: vão uns com os outros.
Por occasião do casamento houve festas pomposas em Lisboa, e são hoje raros os opusculos que as commemoram.
Por exemplo:
Festas reaes na côrte de Lisboa ao feliz casamento dos reis da Grã-Bretanha Carlos e Catharina em os touros que se correram no Terreiro do Paço em outubro de 1661. Dedicadas a Europa Princeza da Phenicia e escritas por Izandro, Aonio e Luzindo, toureiros de forcado. Em Lisboa, 1661.
Epithalamio aos augustos desposorios de {142}Carlos II e a Senhora D. Catharina, Reys de Inglaterra, por Antonio Raposo, natural de Aviz. Em verso heroico.
Como se vê, os poetas não tiveram mãos a medir por occasião d'este casamento realengo.
A viagem da noiva tambem foi largamente descripta:
Relaçam dedicada á serenissima senhora rainha da Gran-Bretanha da jornada que fez de Lixboa athé Por-Tsmouth pello padre Sebastião da Fonseca, mestre, cappellão, e presidente em o hospital real de Todos os Santos na Cidade de Lixboa. Londres, 1662.
Amostra:
Serenissima senhora
a quem todo o mundo acclama
por bella Estrella do Norte
lusido Sol da Bretanha
Com lisonja,—mas sem pontuação.
Relaçam dedicada ás magestades de Carlos-Catharina reys da Grande Bretanha da jornada que fizerão de Portsmouth athé Antoncourt e entrada de Londres pelo P. Sabastião da Fonseca, etc. Londres, 1662.
É o mesmo padre, sempre com pello e sempre cappellão—com dobrada.
Relaçam das festas de palacio, e grandezas de Londres, dedicada á magestade da serenissima rainha de Gran-Bretanha. Londres, 1663.
É ainda padre Sebastião o author.
Dos vinte e tres annos que D. Catharina de Bragança viveu como rainha em Inglaterra, não consta deixassem poetas memoria alguma metrificada.
Mas conhecemos a Historia amorosa da côrte d'Inglaterra, pelo cavalheiro de Grammont, que chegou justamente a Inglaterra quando D. Catharina lá chegava tambem.
Depois de descrever a pessoa amavel do rei, diz o cavalheiro de Grammont com referencia á sua côrte:
«Quanto a bellezas, não se podia dar um passo sem as vêr. As de maior reputação eram as d'esta mesma condessa de Castelmaine, depois duqueza de Cléveland; madame de Chesterfield, madame de Shrewsbury, mesdames Roberts, madame Middleton, mesdemoiselles Brook e cem outras da mesma formosura que brilhavam na côrte, cujo principal ornamento eram, porém, mademoiselle de Hamilton e mademoiselle Stewart.
«A nova rainha em nada augmentou o brilho do palacio, nem pela sua presença, nem pela sua comitiva. O sequito da rainha compunha-se da condessa de Panetra, na qualidade de açafata; de seis monstros, que se diziam damas de honor, e de uma aia, outro monstro, que se inculcava governanta d'estas raras beldades.
«Os homens eram: Francisco de Mello, irmão da {144}Panetra; um certo Taurauvédez, que se appellidava D. Pedro Francisco Correo da Silva, feito ao pintar, mas só elle mais tolo do que todos os portuguezes juntos. Era mais altivo do seu nome que da sua boa figura; ora o duque de Buckingham, ainda mais tolo do que elle, e mais zombeteiro, atrambolhou-lhe a alcunha de Pierre du Bois. O pobre Correo da Silva indignou-se a tal ponto que, depois de muitas queixas inuteis e algumas ameaças sem effeito, teve que deixar a Inglaterra, ao passo que o feliz duque de Buckingham herdava d'elle uma nympha portugueza, que lhe tinha roubado, bem como dois dos seus appellidos, a qual nympha era ainda mais horrorosa que as damas da rainha. Completavam o sequito seis capellães, quatro padeiros, um perfumista judeu, e um certo official, apparentemente sem funcção, que se denominava o barbeiro da infanta (sic). Catharina de Bragança não se preoccupou de brilhar na côrte encantadora onde vinha ser rainha, se bem que mais tarde conseguisse evidenciar-se algum tanto. O cavalheiro de Grammont, desde longo tempo conhecido da familia real e da maior parte dos homens da côrte, não teve mais do que fazer conhecimento com as damas. Para isso não lhe era preciso interprete. Ellas fallavam o bastante para explicar-se, e entendiam o francez preciso para comprehenderem o que se lhes dizia.
«A côrte era sempre numerosa junto da rainha; junto da princeza era menor, comquanto fosse mais escolhida.»
Esta narração carece de rectificações.
A condessa de Panetra (por pouco que a não faz condessa de Penetra) era a condessa de Penalva, irmã de D. Francisco de Mello que fôra agraciado com os titulos de conde da Ponte e marquez de Sande.
Esta senhora morreu solteira em Inglaterra.
Francisco Corrêa da Silva era o nome do outro fidalgo portuguez roubado pelo duque inglez; Pedro é que elle se não chamava, nem tão pouco Correo.
O cavalheiro de Grammont é apenas citado a titulo de curiosidade historica, porque, de resto, limita-se a estropear o nome das pessoas e a verdade dos factos. Acha os portuguezes tolos e as portuguezas monstros. Em compensação, falla sempre de si com encarecimento.
Morre Carlos II, depois de ter pedido perdão a sua esposa de todos os desgostos que lhe fizera soffrer, regressa D. Catharina a Portugal, e logo se reata a série, vinte e tres annos interrompida, dos panegyricos.
Temos pois:
Oraçoens gratulatorias na feliz vinda da muita alta e muito poderosa rainha da Gram Bretanha, compostas e recitadas na igreja da Divina Providencia á nobreza de Portugal nas trez ultimas tardes do mez de janeiro de 1693 pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa, 1693.
Seis annos depois, apparecia um folheto em latim, Agilulphus, impresso em Evora, cujo argumento é {146}o seguinte: Agilulfo, rei da Lombardia, idólatra e perseguidor dos christãos, feito christão pelas orações e industria de sua esposa, a rainha Teodolinda.
Este opusculo allude ao passamento de Carlos II, que, como conta Macaulay na sua History of England, morreu reconciliado com a igreja catholica, graças á piedosa intervenção da rainha e do conde de Castel-Melhor.
Fallece em Lisboa D. Catharina de Bragança, em 31 de dezembro de 1705, e os gemidos saudosos da poesia palaciana não se fazem esperar.
Gemidos saudosos entre a illustre e luctuosa côrte de Lisboa, e o poderoso e sentido reino de Inglaterra: aquella lamentando defunta a sua venerada Infante, e esta suspirando morta a sua melhor rainha a serenissima senhora D. Catharina, por Pedro de Azevedo Tojal. Lisboa, 1706.
Pobre rainha! como se lhe não bastasse soffrer um marido leviano, toda a sua vida teve que aturar os poetas lisongeiros!
Toda a gente tem mais ou menos ouvido contar aventuras amorosas do rei D. Miguel de Bragança. Chamo-lhe rei porque de facto, senão de direito, o foi. Escrevem falsa historia os authores de compendios que na lista dos reis portuguezes supprimem o nome de D. Miguel, por o considerarem rei intruso. Mas os tres Filippes, tambem intrusos, não deixam de apparecer em todos os compendios de historia elementar. Nós temos cá esta especie de critica, e já agora havemos de ir assim. Mas o que importa ao nosso proposito é dizer que as aventuras amorosas de D. Miguel, mais ou menos conhecidas de toda a gente, não deixam este rei n'um plano inferior aos seus collegas em absolutismo os galantes Henrique IV, Francisco I, Luiz XIV e Luiz XV. {148}Fico por aqui para não desdobrar um estendal de nomes... estrangeiros. N'isto é que eu sou patriota.
Ha meio seculo apenas, raro principe sahia lettrado. A educação, vasada ainda tradicionalmente nos moldes medievaes, tendia a fazer d'elles mais homens do que sabios. É certo que, mesmo entre nós, D. Diniz, D. João I e D. Duarte cultivaram as lettras, mas só de passagem. E assim aconteceu até ao tempo em que floresceram os filhos d'el-rei D. João VI. Equitação, caça, jogo de armas, alguma musica, e pouco mais como prendas de educação. Ora D. Miguel foi educativamente modelado á feição e similhança dos seus antecessores. Sahiu, pois, completamente, um principe do seu tempo.
De minguadissima illustração, exhibia com pericia os dotes da sua educação physica. Era excellente cavalleiro. Os soldados, quando o viam a cavallo, ficavam enthusiasmados, e, quando a cavallo tinham de seguil-o, ficavam estropeados.
D. Miguel partia de Queluz para Lisboa au grand galop, tomando uma dianteira enorme ao esquadrão que o acompanhava. E o seu cavallo, quando elle apeava, ficava com os peitos abertos.
As mulheres, sentindo a correria doida d'um cavallo, vinham á janella para vêr passar D. Miguel, que era joven, bem posto, e rei absoluto. Rei absoluto! A personificação viva de todo o poder terreno, emanado do poder divino! Era para deslumbrar os homens, quanto mais as mulheres!
Muitas trovas populares fallam ainda hoje da {149}belleza de D. Miguel de Bragança, conservando através dos tempos um como rescaldo do enthusiasmo popular com que o endeusavam:
O senhor D. Miguel,
Lindo diamante!
Elle já é rei
E não é infante.
Eu fui vêr a D. Miguel:
'Stava n'um somno profundo.
Cara mais delicada
Não a ha em todo o mundo.
D. Miguel é delgadinho,
Bonitinho e bem feito.
Prometteu aos realistas
Uma venéra p'r'o peito.
D. Miguel é bonito,
É bonito e bem feito.
Quebrou as pernas,
Ficou sem defeito.
Fôra n'uma d'essas correrias doidas, não a cavallo, mas em trem, que D. Miguel déra uma queda no dia 9 de novembro de 1828. Esse desastre, de que resultou para o rei fractura d'uma perna, foi, segundo uma versão vulgarisada, a origem de se dar a alcunha de malhados aos constitucionaes, porque as mulas infieis que tiravam a carruagem eram malhadas.
Sem embargo, encontrei outra versão, que é pouco conhecida, para não dizer desconhecida. É o caso de repetir: Se non é vero, e bene trovato. Achei-a no livro Don Miguel, ses aventures scandaleuses, ses crimes et son usurpation, par un portugais de distinction; traduit par J. B. Mesnard. Paris, 1833.
Ponho a citação em francez para que nada perca da sua inteira originalidade:
Comme D. Miguel aime beaucoup les combats de taureaux, et que l'on a remarqué que ceux qui sont tachetés sont les plus féroces, les absolutistes ont appellé les libéraux malhados, mais por indiquer que D. Miguel devait les traiter como les taureaux.
A fallar verdade, tanto importa, para a offensiva malicia da alcunha, que se tratasse de mulas como de touros.
Terei ainda que referir-me ao livro cujo titulo deixei indicado, mas, por agora, observarei, com a trova popular, que o rei galant'uomo, apesar da queda,
Ficou sem defeito.
Ha em Braga uma escadaria de pedra, que do Campo Novo sobe para a ermida da Senhora de Guadalupe, dividida por patamares, mas altissima e extensa.
Diz a tradição bracharense que n'um dos predios lateraes d'aquellas escadas vivia uma mulher galanteada pelo rei, e que D. Miguel, em 1832, quando de Lisboa sahira para Braga, ia todas as tardes vêl-a, subindo e descendo as escadas a cavallo.
Das suas faceis aventuras minhotas deve o leitor presumir. Braga estava completamente fanatisada pelo rei. As mulheres cobriam de beijos as medalhas e os anneis que se vendiam com o lindo retrato de D. Miguel.
Se fôres a Braga,
Traze-me um annel,
Que tenha o retrato
D'el-rei D. Miguel.
Braga era a cidade fiel, por excellencia, ao rei.
Nos campos ou nas ruas, mulheres, de lenço encarnado,—a côr miguelista,
Se fôres a Braga,
Traze-me uma fita,
Que seja vermelha,
Que eu sou realista,
cantavam trovas em que o nome de D. Miguel se confundia com o das plantas e das flôres mais rescendentes.
O alecrim é verde,
A rosa tem cheiro:
Viva D. Miguel,
D. Miguel primeiro!
E toda a pena das mulheres do Minho era não serem soldados, não serem granadeiros,
Para defender
D. Miguel primeiro.
Ainda ha pouco tempo recolhi em Mafra a tradição de um passatempo galante de D. Miguel, quando alli ia, e se demorava no convento, cujos corredores são, como se sabe, extensissimos.
O passatempo a que me vou referir tem todo o caracter d'esses jogos cavalheirescos da idade-média, que nós ainda hoje vemos com agrado através do prisma da elegancia antiga, para sempre quebrado.
O rei organisava nos corredores do mosteiro cavalhadas pittorescas. As damas montavam jumentos, e deviam partir em duas alas e em sentido inverso á direcção que D. Miguel tomava, tendo partido do extremo opposto do corredor.
O rei brandia uma tocha accesa, e as damas hasteavam uma roca abundantemente carregada de estopa. D. Miguel, sempre a galope, devia, ao passar pelas damas, incendiar-lhes a estopa das rocas,—o que poucas vezes falhava.
Imagine-se a ruidosa alacridade d'esse galante torneio, em que, não raras vezes, succederia ás damas o desastre de cahirem mal, como aconteceu uma vez a Marie Antoinette, proporcionando-lhe a queda um bello dito:
—Ah! dame! quand on monte à âne, il faut être en état d'en tomber.
Não me demorarei pela decencia devida aos leitores de menor idade, e aos outros, em considerações philosophicas relativamente á estopa das damas e ao fogo do rei.
Passarei agora a fallar mais detidamente do livro cujo titulo indiquei ha pouco.
O traductor Mesnard diz no prefacio que se propoz trasladar a francez um opusculo allemão no principio d'aquelle anno publicado em Hamburgo, e acaba declarando que Barreto Feio lhe permittira addicionar á versão interessantes notas, e enriquecel-a com excellentes informações. Agradece-lhe, reconhecido, esse serviço.
Uma justa curiosidade bibliographica penetrou logo no meu espirito: qual era o opusculo allemão que Mesnard traduzira em francez?
Um feliz acaso fez com que, volvido tempo, se me deparasse na Bibliotheca da Academia Real das Sciencias um opusculo escripto em lingua allemã, e intitulado D. Miguel i, usurpador do throno portuguez. Um documento para a historia contemporanea de Portugal por uma testemunha ocular, G. v. E. Hamburgo, 1832.
Era este decerto o opusculo, publicado em Hamburgo no principio d'aquelle anno em que Mesnard trabalhava na versão, que fez estampar no anno seguinte.
Com o auxilio do snr. Pamplona, official da bibliotheca da Academia e perito germanista, pude verificar que eu tinha diante dos olhos o original allemão, cuja traducção franceza possuia.
Restava saber quem era o allemão, G. de E., testemunha ocular, qualidade com que elle proprio se abonava.
De investigação em investigação, cheguei a apurar que a testemunha ocular era Guilherme de Eschwege, barão d'este titulo, de quem Innocencio dá noticia no seu Diccionario bibliographico, posto a não dê do opusculo relativo a D. Miguel.
Guilherme de Eschwege nasceu na Allemanha em 1778, entrou ao serviço de Portugal em 1802 com outros officiaes da sua nação, chamados pelo ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a fim de serem empregados nos trabalhos de mineração que se tratava de promover no Brazil.
Em 1822 ou 1823 regressou do Brazil a Lisboa, onde D. João VI o nomeou intendente geral das minas e mattas do reino, cargo de que tomou posse em agosto de 1824.
Demittiu-se em 1829 por não querer servir sob o governo de D. Miguel.
Partiu para a Allemanha, onde esteve até 1835, voltando então a Portugal e sendo reintegrado no exercicio de intendente de minas. Demittido no anno seguinte, el-rei D. Fernando empregou-o na direcção das obras dos palacios reaes.
Estava com licença na Allemanha, quando morreu em Wolfsanger, no dia 1 de fevereiro de 1855.
D. Miguel sae das mãos do barão de Eschwege com a figuração de um monstro sanguinario, que se refocillava na perpetração de atrocidades selvagens. {155}Outras testemunhas oculares fornecem depoimentos que podem servir de contestação a este. Guilherme de Eschwege era um ferrenho adversario de D. Miguel de Bragança e, para nol-o pintar horrendo de alma, deixa em silencio os actos que podem igualmente deslustrar o caracter de D. Pedro. Escreveu quando D. Miguel reinava em Portugal, isto é, escreveu para combatel-o como adversario irreconciliavel. É preciso que esta consideração entre em linha de conta.
Mas que subsidio nos póde fornecer o seu livro para uma ligeira monographia sobre a tradição galante de D. Miguel?
Eis o que importa saber.
Pequeno subsidio recebemos do opusculo do barão de Eschwege; sem embargo, a biographia galante do filho predilecto de D. Carlota Joaquina não carecia d'elle.
Diz-nos que D. Miguel não teve como rei nem como infante uma favorita, posto que em Vienna d'Austria se pensasse que a tivera. Gosta muito de variar, o que não pouco contribuiu para o engrandecimento do visconde de Queluz. São palavras do opusculo. Depois Eschwege conta que o visconde de Queluz fôra barbeiro, e que n'essa qualidade assistira ás enfermidades secretas de D. Miguel.
Noticía que as damas abundavam na côrte, durante os annos em que D. Miguel reinára; que nos serões do paço se faziam representações, n'uma das quaes o rei desempenhára o papel de D. Quichote, e {156}que outras noites se organisavam jogos de prendas, sendo sempre D. Miguel quem sentenciava, e sendo muito seu predilecto o castigo de dar palmatoadas.
Esta pena da palmatoria, aliás usada ainda hoje nos serões de provincia em que os jogos de prendas florescem, não constitue decerto uma das provas mais eloquentes e ponderosas para acreditar nos instinctos sanguinarios de D. Miguel de Bragança.
A fazer-se obra por isto, temos que reputar duplicadamente monstruosas, pela gaucherie de suas maneiras e pela crueza de seu animo, as damas da provincia que ainda hoje empregam nos joguinhos de prendas o castigo da férula, com grande risota dos assistentes, e até dos proprios condemnados.
Conta que D. Miguel dava duas recepções por semana, uma aos homens, outra ás damas. Estranha que de joelhos lhe beijassem a mão, mas informa que a concorrencia ás recepções era tamanha, que algumas vezes houve conflictos á porta. Esta accusação tambem me não parece capital. As damas e os cavalheiros queriam beijar a mão do senhor D. Miguel, e elle dava-lh'a a beijar. Quem corre por gosto não cansa. É mesmo possivel que o rei alguma vez retribuisse beijo por beijo. Que monstruosidade é esta?!
De D. Miguel infante refere uma aventura vulgarissima com uma franceza da rua des {157}Vieilles-Étuves em Paris. Esta mulher tinha uma vida tão aventurosa quanto escandalosa, e o infante, que não devia ficar extremamente encantado com a boneja, que era feia, pediu-lhe que reduzisse a escripta a autobiographia com que lhe prendera a attenção. A franceza annuiu ao pedido, que o infante provavelmente remunerou, e o autographo foi subtrahido em Vienna aos papeis de D. Miguel, como consta de uma nota. O facto denunciado é vulgarissimo na vida dos principes e dos outros; mas a subtracção de um papel particular, que andava na bagagem de um principe moço, não me parece grandemente abonatoria da seriedade de quem a praticou. D. Miguel, que restituiu á corôa portugueza as joias que usofruiu, não presumia decerto que lhe roubariam as memorias de uma rameira, escriptas por ella mesma, não podendo valorisar-se como joias nem a escriptora nem as memorias.
Refere o opusculo outra aventura do infante D. Miguel em Paris, e esta é mais consentanea á sua indole de principe estouvado e desenvolto.
Deu-se o caso com uma capellista da rua des Fossés-Saint-Germain. A franceza era encantadora: charmante, diz Mesnard. D. Miguel, não fazendo reparo ou não se temendo de um sujeito que estava á porta, e que era o amante da capellista, quiz, como pretexto para demorar-se, que ella deitasse a loja abaixo, que lhe mostrasse muitas das mercadorias guardadas nos armarios. A franceza trepou ao balcão para descer um pacote, e o infante beliscou-a ou {158}palpou-a. A capellista gritou, e o amante sovou D. Miguel, que teve de recolher-se ao leito no Hotel Meurice, onde se havia hospedado.
Isto sim, isto é verosimil e concorda com outra aventura que D. Miguel praticára, quando já desthronado, em Roma, e que logo contaremos.
Finalmente, o opusculo dá-nos noticia de que D. Miguel, antes de sahir de Vienna para Portugal, convidára officiaes e cortesãs para ceiarem com elle depois do theatro. A ceia, que começára á meia noite, terminou ao amanhecer, mas o infante lembrou, para remate da festa, que se queimasse um punch á franceza. Dito e feito. Um leque de chammas phosphorescentes irradiou da poncheira, e á volta, de mãos dadas, n'uma farandola patusca, o infante e os seus commensaes giravam n'uma especie de dança macabra, que tinha alguma coisa de satanica. Terpsichore não regeu tão ordenadamente a chorea, que podesse evitar o tombar a mesa e a poncheira. Era natural depois de libações capitosas. O liquido inflammado alastrou no soalho, e pelas frinchas das tabuas cahiu n'um palheiro que ficava nos baixos da casa, incendiando-a.
Duas mulheres e um official pereceram no incendio, e D. Miguel, cujo fato ficára queimado, correu grande risco.
Não serei eu que prodigalise elogios á patuscada e ao punch, se bem que honestos varões (já não direi o mesmo das donas concomitantes) teem, com o {159}baptismo do punch, sahido excellentes maridos. Mas tambem não lançarei á conta das responsabilidades de D. Miguel o desastre da mesa e a coincidencia de haver palha em baixo quando elles comiam em cima.
Aqui está o que pudémos obter da collaboração de tres homens: o barão de Eschwege, J. B. Mesnard e Barreto Feio.
É pouco, sobretudo se attendermos a que foram tres os informadores, todos elles dispostos a não ter complacencias respeitosas para com D. Miguel de Bragança.
Passarei agora a occupar-me da annunciada aventura, que corre parelhas com a da capellista em Paris. Vamos pois ao encontro de D. Miguel, que se passou a Roma depois da convenção de Evora-Monte, e admiremos-lhe o bom humor com que forçadamente desceu do throno.
Não me demorarei a meditar sobre o texto do celebre folheto D. Miguel em Roma (Londres, 1844), que pregôa as miserias que aquelle principe soffrêra na cidade do papa. E não me demorarei porque, sob o ponto de vista d'este artigo, tenho aquellas miserias por incompativeis com o desassombro de animo com que o snr. D. Miguel de Bragança refinava em galanterias audaciosas.
Não vou inventar um caso, mas unicamente apoiar-me n'uma pagina das Noites parisienses, de Méry, que, para maior escrupulo, traduzirei quanto possivel acostado ao texto.
Eis-aqui a narrativa do primoroso estylista francez:
«D. Miguel, este Tarquinio o Soberbo, expulso de Lisboa, continua agora em Roma a historia de Lucrecia e Collatino; com a differença de que procede insensatamente, e n'uma igreja! Nero violava as sacerdotizas no recinto do templo de Vesta; Nero deve ser em tudo o patrono de D. Miguel. Parece que o perfume d'um templo ou d'uma igreja é um aphrodisiaco no clima italiano; testemunhas Nero, o sobrinho de Paulo II e D. Miguel.
«Era a 20 de março, domingo da paixão, vide calendario: que paixão dominava D. Miguel? N'esse dia estava elle na tribuna, visinha do tumulo de Paulo II, perto do sarcophago onde dorme essa mulher divina que tanto inglez haveria desposado, se estatuas de marmore podessem desposar-se. D. Miguel, principe catholico, dava pouquissima attenção ao evangelho dominical, e devorava com o olhar madame Aldobrandini Borghese, joven huguenote que exhibia os seus encantos acirrantes aos olhos dos cantores effeminados da capella Sixtina. O papa Gregorio VII officiava sob o baldaquino de bronze, fronteiro ao tumulo de S. Pedro; os peregrinos beijavam o pé de Jupiter Stator, transformado em principe dos apostolos, segundo a metamorphose do raio em chaves; D. Miguel não via senão madame Aldobrandini.
«Ah! não conheceis esta mulher, cujo nome lêdes! Roma inteira se namorou d'ella! Figurai-vos {161}a Venus do museu secreto de Napoles; mas com am pé a mais, cabellos loiros, e uns contornos capazes de fulminarem os Sátyros nos bosques. D. Miguel ardia; escutava o ruge-ruge do setim inglez, e esse duo voluptuoso que canta a luva d'uma mulher quando acaricía as dobras ondulosas do vestido! Oh! que se eu estivesse em Lisboa! dizia D. Miguel em voz baixa e patois portuguez. Á força de contemplar o corpo flexivel da sua encantadora visinha, D. Miguel julgou-se transportado a Lisboa, deixou pender uma das suas reaes mãos até tocar no hombro de madame Aldobrandini.
«—Mylord! exclamou madame Aldobrandini, repellindo o contacto.
«O gonfaloneiro empallideceu, Gregorio VII interrompeu a ceremonia, e o principe Aldobrandini Borghese arrastou D. Miguel para junto do obelisco que Augusto dedicára ao Sol.
«—Monsieur, disse o esposo ultrajado, eu descendo em linha recta de Hildebrando, que mandou açoitar os cardeaes francezes Ossat e Duperron, representantes de Henrique IV; descendo de Paulo Borghese, o papa que concluiu esta basilica e, se duvidais, lêde aquella inscripção: Paulus Borghesius, etc. Sou pelo menos vosso igual; vinde cruzar a vossa espada com a minha, aqui muito perto, nos pinheiraes de villa Negroni. Vinde!
«D. Miguel respondeu:
«—Sou rei, e ungido do Senhor. Sou assaz bom {162}para vos poupar um sacrilegio e uma excommunhão. Boa tarde.
«Entretanto chegavam o commissario de policia e o cardeal Somaglia, com trinta suissos, vestidos de valetes de oiros.
«—Grande principe e grande rei, disse elle aos dois, é hoje o domingo do perdão. Estendei-vos a mão mutuamente. Sua magestade o rei de Portugal é joven e é preciso que a mocidade passe. Vou contar-vos a historia do sobrinho do pontifice Paulo.
«E os tres interlocutores desceram para a rua de Borgo Nuovo, rindo do sobrinho d'esse grande papa, esquecendo a historia que no momento os interessava; e o principe Aldobrandini convidou D. Miguel a jantar n'essa bella villa que se encontra á esquerda, antes de entrar a porta do Popolo.»
A historia do sobrinho de Paulo II é que eu não contarei, nem que me queimem.
Méry teve menos escrupulos do que eu, e o proprio Paulo II não teve mais quando, sabendo-a, exclamou: Il faut bien que jeunesse se passe!
Mas como o livro Nuits parisiennes é vulgarissimo, quem quizer que a procure lá.
Eu d'ahi lavo as mãos.
E, por não enfadar a paciencia do leitor, e por evitar algumas memorias de caracter escabrosamento pornographico, não irei mais longe.
As Memorias de Maximiliano foram pela primeira vez impressas em Vienna, em 1862.
Tiraram-se apenas cincoenta exemplares, destinados pelo archiduque ás pessoas da sua familia, a varios principes estrangeiros, e aos amigos mais intimos.
A idéa de fazer uma edição para o publico acudiu ao espirito de Maximiliano em 1863, pouco tempo antes de lhe ser offerecida a corôa do Mexico. Foi ao barão Münch-Bellinghausen, honrosamente conhecido na litteratura allemã pelo pseudonymo de Frederico Halm, que o archiduque confiou o trabalho da edição definitiva das suas Memorias, que principiaram a ser impressas em Leipzig.
No Mexico, apesar das incessantes attribulações que dolorosamente lhe preoccupavam o espirito, {164}Maximiliano reviu ainda algumas provas, indicou correcções especialmente motivadas pelas circumstancias politicas, que tinham variado desde 1851. Mas a tragica morte do imperador do Mexico roubaria á publicidade as suas Memorias, se o imperador Francisco José, por um terno movimento de piedade fraternal, não tivesse dado ordem para que se concluisse a impressão.
A obra, em allemão, consta de sete volumes e intitula-se Aus meinem Leben. Reiseskizzen. Aphorismen. Gedichte. (Recordações da minha vida. Impressões de viagem. Aphorismos. Poesias).
O ultimo volume comprehende as poesias escolhidas.
N'esta edição definitiva não foi porém incluida a Viagem á Grecia, que em 1868 sahiu impressa em Leipzig.
Eu vou servir-me da traducção das Memorias, unica traducção franceza authorisada, feita por Jules Gaillard, Paris, 1868.
Consta de dois volumes. O primeiro comprehende impressões de viagem em Italia, Hespanha, Lisboa e ilha da Madeira; o segundo,—na Algeria, Albania, além do Equador, Bahia, Matto-Virgem, e os Aphorismos.
Foi em julho de 1851 que Maximiliano sahiu da bahia de Trieste, a bordo da fragata Novara, para uma viagem de longo curso, seu ardente desejo. A mesma fragata o conduziu ao Mexico, quando já imperador. É notavel a coincidencia.
Jules Gaillard não traduziu integralmente as {165}Memorias de Maximiliano. Fez um apanhado do que lhe pareceu mais proprio a interessar o leitor francez, a caracterisar o espirito e imaginação do author ou a tornar conhecidas as suas relações com as côrtes estrangeiras.
Portanto temos que contentar-nos, relativamente a Portugal, com as impressões que a Jules Gaillard aprouve traduzir; mas reputamol-as bastantes a darem uma idéa precisa do modo de sentir e pensar de Maximiliano a nosso respeito.
Começa o archiduque recordando o proverbio Quem não viu Lisboa não viu coisa boa, com que a tradição celebra as bellezas de Lisboa, emparelhando a capital portugueza com as mais formosas cidades do mundo, Constantinopla, Stockolmo, Napoles e Rio de Janeiro.
Maximiliano não conhecia a lenda germanica, que Ferdinand Denis citou, de um cavalheiro que em Jerusalem quiz vêr n'um espelho magico a mais bella cidade da Europa, e viu Lisboa; se conhecesse, tel-a-ia citado conjuntamente com o proverbio para tornar ainda mais frisante a impressão não inteiramente agradavel que Lisboa lhe causou.
O archiduque descreve Lisboa, vista do Tejo, como uma agglomeração de casas sem o caracteristico de edificios distinctos e originaes, e sem o pittoresco que resulta da harmonia da perspectiva. Lamenta a falta de uma floresta onde a vista possa repousar, e acha que o ceu e a agua não possuem o colorido quente e brilhante dos paizes meridionaes.
«Não se vêem nem palmeiras, nem cyprestes, tudo é frio e monotono como em certas regiões da Allemanha; cidade por cidade, Praga é muito mais pittoresca. A Outra banda é a unica parte que resalta verdadeiramente bella, ainda que sem a grandeza precisa para que a impressão que produz aproveite ao conjunto.»
Ora Maximiliano veio a Lisboa em 1852, e é certo que no decurso de 37 annos a cidade tem tido um grande desenvolvimento material, mas o aspecto da casaria, disposta caprichosamente ao sabor das ondulações do terreno, quer-nos parecer de um bello effeito pittoresco, de uma variedade de perspectiva encantadora. É tambem certo que falta aos edificios de Lisboa a originalidade bysantina, a magnificencia oriental de Constantinopla, das suas mesquitas, minaretos, bazares e caravansérails, que se debruçam sobre as aguas do Bosphoro, produzindo uma impressão surprehendente, tanto quanto pela photographia se póde avaliar. Mas os edificios de Lisboa, se não teem uma architectura typica como os de Constantinopla, são comtudo, pela variedade da construcção e pela sua disposição irregular, mas graciosa, de um ensemble que alegra os olhos e impressiona agradavelmente o espirito.
A bahia do Tejo poderá ser inferior á vasta toalha de agua do lago Mœlar, mosqueada de mil duzentas e sessenta ilhas, que torna deslumbrante a situação de Stockolmo; poderá ser inferior ao golpho de Napoles, cuja belleza se opulenta com o {167}espectaculo maravilhoso do Vesuvio, quando em erupção; poderá ainda ser inferior á bahia do Rio de Janeiro com as suas grandes massas montanhosas, o Pão de assucar, o Corcovado, a Tijuca, ao fundo a Serra dos Orgãos, e com as suas ilhas numerosas e sorridentes. Não discutimos primazias pueris. Mas a bahia do Tejo é de uma belleza ampla e suave, de uma vastidão harmonica e dôce, que seguramente a torna uma das mais bellas do mundo.
O Tejo teve a infelicidade de ser visto por Maximiliano n'um dia brumoso e triste, que prejudicava os tons quentes e brilhantes dos paizes meridionaes. Não sei se o ceu de Lisboa é menos azul que o de Napoles, tão gabado; mas o que sei é que, nos dias claros, o nosso firmamento é de uma doçura de saphyra incomparavel, de um azul doirado que satisfaz plenamente as nossas almas de meridionaes.
Maximiliano estranhou a falta de arvoredo, mas, por Deus! não faltam arvores no conjunto panoramico de Lisboa, vista do Tejo. É verdade que é núa e arida a serra de Monsanto, pedregoso o corucheu da serra de Cintra, mas que opulencia de vegetação no pendor e na base d'esta serra famosa! E o arvoredo da Tapada da Ajuda? E o da cêrca das Necessidades? E ainda o do cemiterio dos Prazeres? E as manchas verdes com que tantos jardins particulares cortam a brancura alegre da casaria? Decididamente, o archiduque Maximiliano teve um mau dia de chegada, escuro e melancolico.
Mas o que eu admiro são as suas saudades pelo {168}cypreste, arvore funebre, de que todavia alguns exemplares poderia enxergar no cemiterio dos Prazeres, que aliás menciona. Quanto á palmeira, que é realmente uma bella arvore ornamental, Maximiliano deveria saber que essa arvore é filha dos climas orientaes, e que só exoticamente vegeta nos paizes do occidente.
Depois de poucas linhas consagradas á impressão geral que lhe causára o panorama de Lisboa, Maximiliano principia logo a descrever o interior da cidade.
Quanto ás ruas e ás praças, o testemunho do archiduque é-nos mais favoravel.
Falla de longas ruas regulares e bellas praças como não ha muitas nas capitaes europêas. «A Praça do Commercio é verdadeiramente magnifica, o centro da cidade nova; todos os seus edificios são uniformemente construidos em estylo neo-romano, e de uma brancura deslumbrante (éblouissante). Muitas largas ruas parallelas confluem perpendicularmente a esta praça: as mais bellas são a rua Augusta e a rua Aurea.»
Chamar o centro da baixa ao Terreiro do Paço é uma liberdade de poeta e de... principe, pois que uma e outra coisa era Maximiliano.
Á rua da Boavista chama-lhe de Buanavista, e menciona-a talvez pela circumstancia de conduzir ao palacio das Necessidades, onde a rainha D. Maria II habitava.
«N'estas diversas ruas encontram-se vastos {169}edificios, verdadeiramente dignos de uma grande cidade, com estabelecimentos ricamente adornados. Perto das Necessidades as casas tornam-se mais irregulares e menos bem alinhadas: conforme ao gosto portuguez, são pintadas a oleo em tons assanhados (criards) verdes ou azues.»
Maximiliano refere-se á cidade velha, dizendo que ella fórma um completo contraste com os novos bairros. Classifica-a de medonho zig-zag que sobe e desce: as ruas cheias de excrementos de animaes e de ratos mortos. Julga precisa uma grande coragem para habital-as, e ainda para transital-as.
Arde-nos? É pimenta. Mas, diga-se a verdade, devia ser assim em 1852, pela simples razão de que ainda o é em 1889.
Eu não sei bem a que Maximiliano chama a cidade velha, se se refere á collina oriental ou occidental, ao Castello ou ao Bairro Alto. Mas, em qualquer dos casos, a apreciação é fundamentada.
Ha trinta e sete annos os despejos faziam-se ainda da janella abaixo, depois da famosa prevenção do agua-vai. Ás vezes nem a prevenção se fazia. Uma anecdota de Bocage conta que, achando-se o poeta n'uma situação muito naturalista, recebêra sobre o dorso uma baldada d'agua chilra, que lhe despejára uma criada, a qual elle apostrophou n'este chistoso improviso:
Ó menina do toucado,
Já que tem a mão tão certa,
Venha buscar a offerta,
Que ficou do baptisado.
Mas nas tradições da antiguidade grega anda uma anecdota que prova ter existido entre os héllenos igual costume. Tendo Socrates fugido um dia para a porta da rua, por já não poder aturar sua mulher Xantippe, ella aproveitou a occasião para fazer os despejos e encharcal-o, ao que o philosopho respondeu com a sua habitual serenidade:
Que não era agua de rosa,
Mas outra menos cheirosa.
Já expungimos, é certo, o sujo costume do agua-vai, mas os ratos mortos e as cabeças de carapau perfumam ainda as ruas de Lisboa.
É porém injusto o archiduque quando diz que os portuguezes nem por todo o ouro do mundo quereriam vêr-se livres d'estas montanhas de immundicie. As narinas nacionaes protestam contra a phrase. Mas é que cêrca de quarenta annos de incessantes reclamações não teem conseguido ainda estabelecer uma policia municipal tão vigilante, que ponha cobro a este abuso. De mais a mais Lisboa é, a respeito dos gatos, uma cidade fetichista. Lisboa adora o gato, não só o gato domestico, mas tambem o gato vadio, callejero, como diriam os hespanhoes. Toda a {171}gente se julga constituida na obrigação de alimentar os gatos tunantes atirando-lhes para o meio da rua as cabeças dos carapaus e as miudezas das pescadas. Em Lisboa o gato não faz nada; quem caça os ratos não são os gatos, são as ratoeiras. E ao passo que se dá de comer aos gatos bohemios com uma piedade tradicional, toda a gente compra uma ratoeira para demonstrar a inutilidade do gato alfacinha. Na capital portugueza, o gato é um sultão, que tem o seu serralho de bichanas ao ar livre. Mas se houver uma camara municipal que se proponha arcar com o gato, não haverá gatos eleitoraes que a aguentem, n'uma reconducção, á bocca da urna.
Maximiliano impressionou-se em Lisboa com a abundancia dos papagaios. Parece, diz elle, que estamos n'uma floresta virgem do Brazil. E accrescenta que as parlendas dos papagaios são de ensurdecer a gente. Digam que tambem não é verdade, se são capazes! A abundancia de papagaios é talvez um vestigio do nosso antigo dominio colonial. Dos bons tempos em que fomos os primeiros a pôr o pé na costa d'Africa e no Brazil restam hoje apenas as chronicas e os papagaios. O que é certo é que rara casa não só de Lisboa mas tambem de todo o reino deixa de ter um papagaio, seja pardo ou verde, da Africa ou do Brazil. Cada brazileiro que chega, traz um papagaio para si, e tres papagaios para os parentes. E na tradição popular anda o estribilho dos papagaios, que tem passado de geração em geração com o Bernal francez e a Silvaninha:
Papagaio real,
Por Portugal,
Quem passa?
O rei que vai á caça.
No glossario nacional conservam-se algumas phrases attinentes aos papagaios, taes como: dá cá o pé, meu loiro, etc.; e não contentes com os papagaios authenticos, temos varios papagaios metaphoricos, as tabuas divisorias e pintadas de verde que separam as janellas de sacada; as estrellas de papel que os rapazes lançam ao ar.
Depois da abundancia dos papagaios, estranhou Maximiliano a dos negros e negras, que enxameam em Lisboa, notando que por um contraste, que parece ironico, todos os pretos são caiadores.
Aqui está decerto outro vestigio dos nossos bons tempos coloniaes: os pretos. Elles habituaram-se a Portugal desde o tempo em que vinham como escravos; a tradição estabeleceu-se, e hoje vêm como livres. Que diria Maximiliano se soubesse que os portuguezes antigos, incluindo os nossos primeiros poetas, davam o cavaquinho pelas pretas! Camões, o principe dos poetas portuguezes, arrastou a aza a uma escrava negra, a famosa Luiza Barbara:
Pretidão de amor,
Tão dôce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocára a côr.
Por isso, é certo, lhe fez troça um poeta anonymo da época:
Negrado, negrigorio, negregante,
Negrica, negraria, negramento,
Negrança, negração e negra dura.
. . . . . . . . . .
Luiz, retrato negro dos amores
Negros seus, aqui jaz; a endurecida
Luiza negra o fez, com negras dôres,
Mudar em negra sorte a negra vida.
Nos autos dos poetas comicos do seculo XVI, um preto ou uma preta são personagens obrigados. Gil Vicente diz na farça do Juiz da Beira:
Eu andava namorado
De ũa moça pretasinha.
No theatro do Prestes e do Chiado a preta ou o preto apparece sempre com a sua aravia, que era de um effeito seguro.
Na poesia popular ainda hoje vive uma quadra, aliás formosissima, em que o elemento chamita fornece a belleza do pensamento:
Os teus olhos são gentios,
São gentios da Guiné.
Da Guiné por serem negros,
Gentios por não ter fé.
Maximiliano falla de uma especie de equipagem, o sech, montada sobre duas rodas enormes, tirada {174}por dois cavallos, muito usada então em Lisboa. Ainda cá temos pouco mais ou menos o sech, mas hoje serve principalmente para conduzir os mortos ao cemiterio. É um dos espectaculos mais tristemente irrisorios de Lisboa.
Passa depois a occupar-se dos trajos nacionaes.
«O mundo elegante veste-se á franceza. As mulheres do povo usam lenço branco na cabeça e grandes capotes muito pezados: é uma precaução contra os inconvenientes do clima, porque, em pleno estio abrasador, um frio glacial cae sobre a cidade, e a corrente de ar do Tejo sopra frequentemente asperrima através das ruas.»
Tem razão quanto ao estrangeirismo dos trajos no mundo elegante. Dão-lh'a os proprios poetas portuguezes.
Rodrigues Lobo disse:
Por isso qualquer profano
Nos toma para entremez,
Porque fazemos cada anno
Te no trage portuguez
Mais mudanças que um cigano.
Não tomamos isto em grosso;
Vestimos por tantos modos
Cada hora, que dizer posso,
Que não temos trage nosso,
Porque o tomamos de todos.
E Simão Machado:
Vel-os-has, disse, á franceza,
Depois d'isso á castelhana,
Ámanhã á sevilhana,
Hoje andam á bolonhesa,
E já nunca á portugueza.
O capote preto e o lenço branco eram, de feito, um trajo nacional, mas não privativo das mulheres do povo. N'isto se enganou o archiduque. Tambem o usavam as fidalgas. Em Lisboa já não ha d'isso senão pelo carnaval. Mas nas provincias do norte ainda existe o capote. No sul, tenho-o visto muitas vezes em Setubal, sem exclusão das senhoras: capotes de panno finissimo e brilhante.
Os homens tambem uzavam capote antes da invasão da capa hespanhola e da capa á Santo Antonio; mas era ordinariamente de côr e com mangas. Chamavam-se estes capotes josésinhos.
Camillo Castello Branco diz na Engeitada: «Era de mulher o outro vulto encapotado n'um josésinho de mangas, como então se dizia d'uns capotes que tiveram em Portugal reinado longo.» E Nicolau Tolentino:
Se a pé, dando o josésinho,
Escoltou Alcino ledo
A Marcia todo o caminho,
Foi porque elle tinha medo
Que lhe cahisse o burrinho.
Isto, leitor, não póde ir de uma assentada. {176}Seguiremos a jornadas vagarosas o itinerario do infeliz archiduque.
«Faz-se entre nós uma idéa muito falsa de Lisboa. Figuramol-a uma cidade rica em monumentos historicos, graciosissimamente situada, e beneficiada por um clima dulcissimo: sonhamol-a em todo o brilho das tintas meridionaes, em toda a magnificencia de uma vegetação tropical; imaginamos que o Tejo deslisa sob um céo azul á beira de antigos palacios de marmore, navegado nas suas ondas argenteas por centenas de gondolas doiradas e por galeões carregados de metaes preciosos; o povo de Lisboa suppomol-o alegre, cantando estancias melodiosas ao som da guitarra. Pura phantasia tudo isso!»
A fallar verdade, que culpa podêmos nós ter do que os outros sonham a nosso respeito?! Que responsabilidade nos póde advir do facto de ter o archiduque Maximiliano, commandante da marinha austriaca, imaginado em Lisboa uma vegetação tropical?! Tropical! é forte. Pois não sabia sua alteza qual era a nossa situação geographica no mappa-mundi?! Suppunha-nos na Africa ou na America?! Imaginava-nos talvez em Borneo ou Sumatra, na Oceania? Ah! infeliz archiduque, que culpa tinhamos nós dos erros geographicos de sua alteza e dos seus compatriotas?!
E as gondolas doiradas?! Quem nos inculcou na {177}Austria como sendo o paiz das gondolas?! Vossa alteza sonhou! E nas memorias nublosas d'um sonho confundiu Veneza com Lisboa.
Quanto aos galeões carregados de metaes preciosos, bem poderia sua alteza tel-os visto, se se lembrasse de visitar Lisboa no seculo XVI. Com uma antecipaçãosinha de trezentos annos—uma bagatella!—teria sahido o sonho verdadeiro. Se vossa alteza, desventuroso archiduque, houvesse chegado a tempo de encontrar el-rei D. Manuel, poderia, visto que estamos em maré de anachronismos, apostrophar com Julio de Castilho os famosos galeões da India:
Lá vem galés Tejo acima!
lá vem as galés d'el-rei!
Quero ir vêl-as á Ribeira;
ó madre, comvosco irei.
Lá vem, lá vem Tejo arriba,
lá vem as galés d'el-rei.
Lá vem as naus da conquista
sobre os marinhos cachões;
conheço a nau do Almirante
entre os outros galeões,
abertas as azas brancas!
soberba co'os seus pendões!
Quanto a monumentos historicos, uma pirangaria! Já é ter falta de vista! Nem meio. O campo, um horror. A abundancia de moinhos de vento fez-lhe lembrar Leipzig, as longas cordilheiras de collinas recordaram-lhe a Allemanha. As laranjeiras {178}portuguezas, tão celebradas na Europa, cá estavam e não eram feias, mas não se podia parar um momento a olhar para ellas, porque era o mesmo que ter uma constipação no corpo, por causa de um golpe de sol tropical ou de um golpe de vento igualmente... tropical.
E tristes, muito tristes os lisboetas. Mas que diabo de teima a do Paulus em dizer ainda hoje que
Les portugais
Sont toujours gais!
Uma patranha de marca! Nós, os portuguezes, somos tão chorões, que até os reis não escapam ao chôro. Houve um que lagrimejou a ponto de ser metamorphoseado em chafariz, o qual ainda hoje conserva a denominação de Chafariz d'Elrei. Patranha por patranha. E ainda hoje conservamos tambem este proloquio lamuriante: A lagrima é livre. A alma portugueza é uma cebola que nos sobe aos olhos: por isso dizemos constantemente que os olhos são o espelho da alma.
Sua alteza achou-nos muito parecidos com os macacos. N'este ponto não podêmos deixar de fazer honra á orientação transformista de sua alteza. Chegamos a estar convencidos de que foi Portugal que suscitou a Darwin a concepção scientifica da sua theoria; o sabio inglez, tendo conhecido em Lamarck a lei da hereditariedade e a lei do desenvolvimento dos orgãos, pôde, graças ao estudo anthropologico que fizera dos portuguezes, ir além de Lamarck. Foi isto, por força.
E a lingua portugueza?! Como sua alteza a achou desafinada e charra! Tem graça, porque nós pagamos-lhe na mesma moeda, quanto a lingua. Não ha portuguez nenhum que não esteja de accôrdo com a opinião de Carlos V,—de que o allemão é uma lingua para se fallar aos cavallos. Mas para chamar desafinada á lingua portugueza já é preciso ter dureza de ouvido! E não dizia o pateta do Filinto:
Fallemos portuguez brando e sonoro!
Sua alteza estava com muita curiosidade de vêr a rainha D. Maria II, porque era sua proxima parenta e uma princeza reinante, cujo destino havia sido dos mais agitados.
Quem o archiduque encontrou primeiro a esperal-o no palacio das Necessidades foi o marechal duque de Saldanha, a quem chama o genio universal, o deus ex-machina, o sol do nosso paiz n'aquelle tempo. N'isto acerta. Triumphante o movimento politico da regeneração, Saldanha, coberto do prestigio que lhe haviam dado as campanhas da liberdade, succedêra no poder ao conde de Thomar. Quando o archiduque Maximiliano chegou a Lisboa, o ministerio era composto por Saldanha, presidencia e guerra; Rodrigo, reino; Seabra, justiça; Garrett, estrangeiros; Fontes, fazenda e obras publicas; Athouguia, marinha.
A Garrett faz o archiduque uma referencia especial, sem o nomear, dizendo: «Entre os ministros mencionarei o dos negocios estrangeiros que, {180}segundo me disseram, é o mais celebre escriptor de Portugal. Suspeito-o mais escriptor que estadista: de resto, falla perfeitamente o francez.»
Maximiliano esquissa o perfil do marechal: «um homem gordo, constellado de condecorações, com os cabellos crespos e brancos de neve, bigode retorcido, côr de azeitona e lunetas escuras com aro de aço.»
Finalmente, o archiduque encontra-se com a rainha, com o rei D. Fernando, e os tres principes mais velhos, D. Pedro, D. Luiz e D. João.
«Maria da Gloria, diz o archiduque, é alta e direita; as suas feições são nobres e graves, o cabello louro e fino. Tem os olhos azues dos Habsburgos, mãos pequenas e, por infeliz contraste, uma corpulencia genuinamente portugueza, horrivelmente exaggerada e realmente inaudita. Não obstante (o que faz o elogio das suas graças naturaes) e cheia de elegancia e vivacidade nos movimentos. Vi-a correr como uma donzellinha nos seus aposentos, e ouvi dizer que dança graciosamente e sóbe com ligeireza o estribo da carruagem. Vestindo com delicadissimo gosto, é ainda seductora a despeito da nutrição; poder-se-ia dizer até que, por momentos, é bella.»
Este esboço não destoa dos retratos que conhecemos da rainha e nos quaes é facil encontrar exacta semelhança com o perfil traçado pelo snr. D. Antonio da Costa na Historia do marechal Saldanha: «gentil, como os seus quatorze annos, a pelle, setim; a côr, alva; olhos, celestes; cabellos, como o oiro; porte, nobre; rosto, reflexivo; etc.»
Com taes predicados physicos não ha mulher feia, ainda mesmo que, no dobar dos annos, o embonpoint se torne um pouco exaggerado.
A principio, o archiduque achou a rainha hesitantemente silenciosa; não obstante, as suas poucas palavras eram agradavelmente pronunciadas em francez. Mas á medida que a intimidade se estabeleceu, a rainha revelou-se alegre e espirituosa, comquanto sempre reservada ou antes preguiçosa em fallar, e na apparencia um tanto brusca.
Maximiliano louva a rainha como mãi e esposa, considera-a um raro modelo de virtudes domesticas no meio d'este Portugal tão corrompido. Attribue um pouco isso á simplicidade allemã que o rei Fernando teria introduzido nos habitos do ménage.
«Ao lado de sua corpulenta esposa, o rei, que é de estatura elevada, parece um pouco effilé, revelando grande semelhança com Francisco I de Austria. Conta apenas trinta e sete annos, mas, como tem o costume de inclinar a cabeça, afigura-se-nos mais velho.»
Quanto a dotes de espirito e caracter, o archiduque não teve tempo para os estudar no rei D. Fernando, mas quiz parecer-lhe que não podia medir-se pela bitola de seu tio Leopoldo da Belgica.
Estranhou que o marido da rainha fosse rodeado por taes homenagens, que, n'uma viagem á provincia, o povo pediu-lhe a benção. E o rei deu-a. A fallar verdade, o beija-mão não se distanciava muito da benção.
«Os tres filhos mais velhos estavam presentes, cada um com seu uniforme: o principe D. Pedro, de general; D. Luiz, meu camarada, de official de marinha; D. João, de official de infanteria (aliás lanceiros).
«O principe real tem notavel semelhança com a casa d'Austria, o que desde logo lhe conciliou a minha sympathia. Possue um thesouro de excellentes disposições naturaes que, infelizmente, não têm sido bem exploradas; a despeito da boa vontade dos pais, não parece que tenha havido sufficiente cuidado em formar-lhe esse caracter energico de que um principe tanto precisa hoje, sobretudo na situação incerta em que se encontra Portugal.»
O archiduque fiava muito da influencia que teriam as viagens no espirito do principe real.
Quanto ao infante D. Luiz, depois rei, descreve-o como um rapaz alegre e ladino, propenso a expansões de bom humor. Falla muito, e bem, diz o archiduque: um jovial sangue viennense corre nas suas veias.
«D. João é a antithese de seus irmãos: silencioso e grave, pallido, cabello castanho, olhos negros, olhar profundo; nenhum traço de elemento germanico: um altivo Bragança dos antigos tempos.»
Conta o archiduque que assistíra com a rainha D. Maria II e com el-rei D. Fernando a um {183}espectaculo no theatro de S. Carlos, que, apesar das suas amplas dimensões, considera inferior ao San Carlo de Napoles.
Exhibia-se n'essa noite o panorama do Mississipi, que tinha já feito, diz Maximiliano, le tour du monde.
Ao passo que o panorama se desenrolava lentamente, a rainha conversava com seu primo o archiduque, fallando-lhe com saudade do Brazil, onde nascêra. Maximiliano estranha que D. Maria II exprimisse tamanho enthusiasmo por um paiz, como o Brazil, onde o calor é intenso. E observa: qualquer que seja o paiz em que se nasceu, o amor á patria é sempre o mesmo! Esta observação fica muito áquem dos meritos litterarios do archiduque. É de uma banalidade que lhe não faz honra.
Fallou-se tambem de Lisboa, de Portugal. D. Fernando citou com louvor o livro do principe de Lichnowsky[6], o unico que tinha por exacto, parecendo, diz Maximiliano, fazer pouco caso do que a condessa Hahn-Hahn escreveu sobre o mesmo assumpto.
A rainha mostrou-se resentida da surpreza com que a condessa viu na camara real o bastidor em que sua magestade costumava bordar. Uma pessoa que governa, havia dito a condessa, não deve occupar-se de taes coisas. A rainha, que é uma mulher da sua casa (une femme d'intérieur), diz o {184}archiduque, glosava a observação da condessa ironisando-a: «Queria talvez que eu escrevesse livros!»
Maximiliano teve occasião de assistir á festa do Coração de Jesus na basilica da Estrella.
«A rainha entrou na igreja ladeada pelo rei-esposo e pelo Deus ex-machina (o marechal Saldanha), os quaes exhibiam, sobre os seus respectivos uniformes, uma mantilha de rendas: é, nas ceremonias de apparato, a bizarra insignia dos gran-cruzes portuguezes. D. Maria collocou-se sob o docel, entre estes dois personagens, e assistiu de pé ao santo sacrificio da missa. S*** (Saldanha) que, além das suas funcções officiaes parece desempenhar tambem o papel de bobo da côrte, dizia infinitas jovialidades á rainha. Que effeito produziria no povo este mau exemplo! D'onde virão a obediencia e o respeito para com a magestade terrena, se ella propria se não souber curvar perante a magestade divina!»
É textual. Apesar de parente da rainha, o archiduque não lhe poupa este epigramma publico. Maximiliano ficou tão indignado, que chamou bobo ao marechal por estar fazendo espirito na igreja da Estrella. Nós, os portuguezes, não somos certamente o povo que mais compostamente assiste aos actos religiosos. Mas no seculo XVII ainda era peor. Foi preciso tomar medidas repressivas contra as liberdades que se praticavam nos templos.
«A mais encantadora e seguramente a mais espirituosa pessoa da côrte é a imperatriz viuva Amelia, segunda esposa de D. Pedro. Um cruel destino {185}tem perseguido com cega obstinação esta soberana desde a sua primeira mocidade. Ao tempo da minha viagem a Lisboa, a imperatriz vivia em Bemfico (masculinisação de Bemfica) com sua amavel filha, princeza distincta, peregrinamente prendada, e que a morte não tardou a arrebatar. Bemfico é uma deliciosa quinta, onde recebi o mais cordeal e o mais digno acolhimento de uma boa parenta.»
Maximiliano revela, em todas as suas apreciações, uma refinada intransigencia tudesca. Ora é sabido que a imperatriz Amelia era bávara, e é justamente a esta princeza que o archiduque elogia sem restricções. Não podendo deixar de reconhecer as virtudes domesticas da rainha D. Maria II, não se abstem comtudo de fazer esvoaçar sobre o seu retrato a sombra de mais de um epigramma. Nem mesmo lhe perdoou o ser nutrida, e chega a dizer que a rainha convidava sempre para os jantares de gala a duqueza de Palmella, que, por ser igualmente nutrida, servia para lhe fazer contrapeso.
Maximiliano assistiu com a rainha a uma tourada. Os principes não foram, mas as infantas, duas creanças encantadoras, acompanharam sua mãi.
O archiduque, a respeito das touradas portuguezas, dá inteira razão á propaganda que contra ellas tem feito no parlamento o snr. Carlos Testa.
Não as considera um combate cavalheiresco como na Hespanha. Chama a este divertimento, tal como ainda hoje o temos, um brinquedo ignobil e despiciendo; uma mascarada, uma jonglerie. Acha {186}cobardes os nossos picadores, e sente a falta do bello matador, que tão habilmente sabe provocar o enthusiasmo.
Ralha dos intervallos comicos dos pretos, que ficavam espapaçados na arena, e da exhibição dos forcados que, enchumaçados com almofadas, se atiravam á cabeça dos touros. Classifica de arlequinada insipida este espectaculo, onde a coragem brilha pela sua ausencia, e que faz rir o povo n'uma hilaridade boçal.
«Estes vis tormentos por que fazem passar o animal e os homens constituem um espectaculo que não póde deixar de exercer sobre o povo uma influencia perniciosa; é um alimento fornecido aos seus instinctos grosseiros, ao passo que em Hespanha uma lucta ardente e generosa põe em evidencia o homem. Lá, o touro empenha toda a sua força, o homem toda a sua coragem; combatem corpo a corpo, o sangue corre, e ha commoções extraordinarias n'essa lucta; o homem não desce até ao nivel da besta, e a besta até ao nivel das coisas inanimadas. Em Hespanha, onde ha um combate, aliás leal, este divertimento popular não chega a parecer cruel; mas aqui, onde apenas se trata de uma folia baixa e ignobil, a menor desgraça avulta revoltantemente. Em Sevilha vi cahir numerosos touros, sem que homem algum fosse ferido; aqui, dois dos luctadores, encarregados de pegar o touro, ficaram horrivelmente maltratados; cahiram entre as pontas do animal que os lançou por terra, rasgando-os no ventre e no peito com {187}temerosas marradas; finalmente, arrastaram-nos para fóra da arena todos ensanguentados e semi-mortos. Asseguraram-me, porém, que uma pouca de terra do circo, deitada n'um copo d'agua, bastaria a cural-os prodigiosamente, e que poderiam reapparecer na lide do domingo seguinte. Tudo isso me fazia horror, ao passo que em Hespanha senti-me, á vista do combate, emocionado e arrebatado.»
Mas o archiduque confessa que o divertiu muito o facto de um touro ter saltado duas vezes á trincheira, e de um outro touro ter investido com um cavalleiro, que se não desestribou, mas que no embate perdeu a cabelleira.
Então o archiduque riu francamente com o povo.
«N'esse momento, diz Maximiliano, todo o ardor hespanhol despertou em mim, e por bravos involuntarios, que não seriam talvez muito convenientes na presença da rainha, testemunhei a minha satisfação ao bravo animal, desejando-lhe um successo mais decisivo.»
Parece que Maximiliano quereria que o touro houvesse derrubado e amolgado o cavalleiro.
Como o infeliz archiduque haveria gostado, se lh'a tivessem dado a lêr, da Ultima corrida de touros em Salvaterra, de Rebello da Silva!
Aquillo é que eram touros á castelhana, no tempo do senhor D. José!
Maximiliano foi convidado para um dos grandes bailes do marquez de Vianna, n'aquella época tão faustosos. Viu ahi a primeira sociedade de Lisboa. {188}Mas o seu exclusivismo germanico não ficou lisonjeado com os cabellos negros e as faces morenas que se estadeavam no palacio do Rato. Poucas ou nenhumas bellezas viu.
Faz justiça á opulencia das salas, que eu proprio ainda pude vêr no dia do leilão. Por isso digo que faz justiça. Mas accrescenta que denunciavam uma absoluta falta de gosto, um verdadeiro luxo de «parvenu». Ora isto não é exacto. O que seria se Maximiliano tivesse entrado em salas menos remotamente fidalgas que as do marquez de Vianna!
Á chegada do archiduque e durante o baile, o hymno austriaco lisonjeou-lhe sobremodo os ouvidos patriotas.
Apesar de ter appellidado o nobre marquez de «grande senhor da época rococó» e de haver notado falta de gosto nas esplendidas alfaias do palacio do Rato, não pôde deixar de exclamar, graças ao hymno austriaco toda a noite soprado pela fanfarra: «Este simples traço basta a caracterisar o bom marquez.»
Maximiliano já antes tinha estranhado que no Paço das Necessidades as bandas militares não houvessem tocado o hymno austriaco, mas unicamente o hymno real portuguez, quando alli foi convidado a jantar duas vezes.
Muito hymneiro este infeliz archiduque!
E a proposito d'aquelles dois jantares de gala diz Maximiliano que, não obstante a parcimonia habitual da côrte, a mesa era esplendida, e a cosinha {189}primorosa; que, a ter que queixar-se de alguma coisa, seria da abundancia dos pratos.
Se não se houvessem esquecido do hymno austriaco, Maximiliano, apesar de declarar-se abstemio, ter-se-ia levantado da mesa trauteando mentalmente o antigo vaudeville:
Et la frouchette de Camus
Est le sceptre du monde.
Foi pena!
Maximiliano viu o cemiterio dos Prazeres, e pareceu-lhe uma imitação do Père Lachaise.
Impressionaram-n'o mal os mausoleos ostentosos, que se lhe afiguravam verdadeiros templos pagãos. E achou pouco christão o contraste d'estes moimentos faustosos com o systema de enterrar os pobres na valla,—como cães. As edificações arruadas do cemiterio dos Prazeres deram-lhe a impressão de um Corso funerario ou de um Boulevard dos mortos, sem caracter religioso.
Para Maximiliano, os cemiterios antigos, em cujos cyprestes e plátanos as avesinhas cantavam n'uma grande paz melancolica, eram o unico typo admissivel para necropole. Sob este ponto de vista encantaram-n'o o Campo Santo de Pisa e as sepulturas da Turquia.
Ora eu posso dar ao leitor dois traços descriptivos do Campo Santo. Fornece-m'os madame Colet, a notavel touriste que tão minuciosamente visitou a Italia: «O Campo Santo fórma um longo quadrado fechado por quatro galerias muradas exteriormente, e cobertas de frescos; interiormente, elegantes columnas cingem o recinto destinado aos mortos. Estas arcadas são de uma leveza maravilhosa, constituidas por duas finas columnas que emmolduram um pilar quadrado. A sua base assenta sobre a herva verde e cuidada; o fuste desabrocha em ogivas que recortam flôres sobre o azul do céo. Aos quatro cantos do prado elevam-se outros tantos cyprestes enormes figurando guardas taciturnos dos sepulchros. Ao meio uma roseira, opulentamente florida, balouça-se de encontro ao fuste de uma columna; sorri aos mortos como um derradeiro amigo. Comecei a minha visita entrando pela porta do occidente. Antes de examinar os frescos attentei nas sepulturas cavadas no solo que eu ia pisando: cavalleiros das cruzadas, nobres, principes, cardeaes e monges estão ahi confundidos na terra. Sarcophagos antigos descobertos nas escavações e mausoleos modernos avultam de cada lado da galeria, traçando uma especie de alêa sepulchral.»
Como se vê, o Campo Santo de Pisa não é tão despido de ornatos esculpturaes como a referencia de Maximiliano poderia fazer suppôr. Eu acho que o melhor de tudo seria adoptar a incineração, e ter cada um no seu proprio lar as cinzas dos seus {191}mortos queridos. Os romanos davam o nome de Columbaria aos nichos, abertos nas camaras sepulchraes, onde cabiam duas urnas com cinzas, á semelhança de dois pombos em um ninho. D'aqui a origem da palavra, que poderiamos traduzir por pombaes dos mortos. Sem embargo havia tambem em Roma os sepulchros faustosos, de dois e tres andares. Mas o que da civilisação dos romanos poderiamos adoptar era o systema da incineração. Emquanto o não fazemos, o meu ideal de cemiterio é muito mais exigente em simplicidade que o ideal de Maximiliano. Ha vinte e um annos publiquei n'um poemeto infantil, que Castilho se dignou prefaciar, o bosquejo de um cemiterio verdadeiramente christão, segundo o meu ideal:
D'aldeia o cemiterio era modesto,
Sem pompa e sem lavores:
Ao centro, a cruz a dominar c'os braços
O recinto dos mortos e os espaços...
De resto... algumas flôres!
Isto, ou então os tumulos aereos da Australia, que o infeliz poeta portuense Pedro de Lima descreveu por esse tempo:
São bellos os tumulos
D'Australia, suspensos
Nos plainos immensos
Á beira do mar.
Alli o cadaver
Pacifico dorme
E a lua—olho enorme—
O vem contemplar.
Para contrastar com a pagina melancolica em que discretêa sobre a morte, dá-nos Maximiliano a descripção de uma burricada em Cacilhas, a pretexto de um lunch, em que certamente foram convivas os officiaes da fragata Novara, porque o archiduque diz-nos que nem elle nem os seus companheiros de equitação sabiam uma palavra de portuguez.
Maximiliano não occulta os tormentos por que passaram as azemolas cacilheiras apertadas sob os joelhos dos cavalleiros austriacos. Era, diz elle, um steeple-chase furibundo, de collegiaes em gazeio. Volteavamos a galope—a galope! que sacrificio para um burro de Cacilhas!—punhamo-nos em pé sobre a sella (queria dizer albarda) fazendo proezas de equilibrio mais ou menos gracioso.
Os pobres burros é que não acharam decerto graça nenhuma á patuscada furiosa dos austriacos. Mas vingaram-se, olá! porque um burro vinga-se sempre. Cada burro de Cacilhas tem na vingança, mal comparado, o coração de D. Pedro I. Pregaram com os austriacos no chão, enrodilharam-n'os na poeira do caminho, fizeram d'elles, incluindo o archiduque, gato-sapato. Oh! triumpho do patriotismo asinino sobre a tyrannia estrangeira! Desconfio que os austriacos se deram finalmente por vencidos; pois que, desistindo da perigosa equitação, se agruparam n'um pinheiral para almoçar,—sur la verdure.
Quem imaginam os senhores que pretendeu estorvar-lhes o almoço? Os burros? Parece á primeira {193}vista, attendendo a que almoçavam sobre a verdura, e os burros deviam ter fome. Não, senhores: foi uma velha, uma megera, diz Maximiliano, que os descompoz e ameaçou. Faço idéa das bonitas coisas que a velha lhes disse, e que elles decerto entenderam se a philippica da heroina foi acompanhada dos respectivos gestos... philippicos.
Ora, naturalmente, a velha era a burriqueira, que vinha desaffrontar os sendeiros escalavrados. N'aquelle tempo não estava ainda organisada, com uma succursal em Cacilhas, a sociedade protectora dos animaes. A velha demosthenava pro domo sua: domo é synonymo de burro.
O que aconteceu? Os austriacos ouviram tudo a pé quedo, com a impassibilidade de sphynges de Memphis, e então a velha, reconhecendo que os estrangeiros não tinham... sangue nas veias, entendeu que seria cobardia, deshonrosa para a Lusitania, correl-os a pau ou a pá, como fez a sua compatriota Brites d'Almeida em Aljubarrota.
Mas quem sabe se a derrota soffrida em Cacilhas não contribuiu para azedar a impressão com que Maximiliano sahiu de Lisboa!
As suas ultimas palavras são accentuadamente pessimistas. Acha que Lisboa não tem caracter proprio. As edificaçoes apresentam aspecto allemão; as toilettes são parisienses; a educação nacional é ingleza. Lisboa, emfim, é uma cidade de Marrocos, morta e triste. Culpa de tudo isto: os nevoeiros frequentes, a frialdade do ar, e os capotes das {194}mulheres! Uma verdadeira descoberta do infeliz archiduque.
Achou-nos colonialmente decadentes, e n'isso não exaggerou. Mas, de descoberta em descoberta, pareceu-lhe que o abatimento nacional provinha da gordura hydropica dos nacionaes, que degenerava em lympha, e que nos arrastava á doença e á morte.
«Quando a decomposição começa, peróra Maximiliano, a vida evapora-se e, como diz o proverbio, «os ratos abandonam a casa que vai desabar.»
É uma ratice, que a historia desmente, porque nós ainda cá estamos, cada vez mais... gordos,—excepto eu.
Maximiliano tambem passou na ilha da Madeira, que descreve, mas eu cerro por aqui as suas impressões de viagem, para que o leitor não tenha motivo de se malquistar commigo pela monotonia do assumpto.
I
A viuva de Napoleão III é a filha mais nova do conde de Montijo, da familia hespanhola dos Guzman, originarios de Granada, e da condessa de Montijo, née Kirk-Patrick, de origem irlandeza.
Sua irmã, a filha primogenita do conde de Montijo, casou aos dezoito annos com o duque d'Alba, descendente dos Stuarts pelo marechal de Berwich. Foi uma das estrellas da côrte de Izabel II. Deixou tres filhos: o actual duque d'Alba, que casou com a filha do duque de Fernan-Nuñez: a duqueza de Tamamés e a duqueza de Medina Cœli, que morreu alguns mezes depois de casada.
Em 1860, a imperatriz Eugenia, estando na Algeria com o imperador, soubera, depois de sahir de um baile, que a duqueza d'Alba tinha morrido. As {196}duas irmãs estremeciam-se, a imperatriz sentira profundamente a morte da duqueza. Pela primeira vez experimentára a imperatriz uma dôr intima; fôra esse, em meio da vida faustuosa das Tulherias, o primeiro golpe da má fortuna.
Até ahi, a existencia de Eugenia de Montijo tinha sido um triumpho ininterrompido de formosura e felicidade, a marcha gloriosa de uma mulher incomparavelmente bella através da vida.
Fôra em 1840, depois dos acontecimentos de Strasburgo, que ella vira pela primeira vez o principe Luiz Napoleão, que entrava preso em Paris. A condessa de Montijo estava então com suas filhas na capital de França, e de uma das janellas da Prefeitura de policia viram, a convite de madame Delessert, mulher do Prefeito, chegar o principe.
A toilette de Luiz Napoleão era n'esse momento simplesmente desastrosa. O official da escolta, vendo-o desprevenido de roupa branca, offerecera-lhe uma camisa que parecia ser de onze varas, não só porque a situação era critica, mas porque, grande de mais para o principe, todo elle era camisa.
Ninguem poderia dizer, porém, n'esse momento, o que annos depois havia de acontecer.
Já Luiz Napoleão era presidente da Republica quando, por occasião de um baile no Elyseu, se encontrou com a condessa de Montijo, e com sua filha Eugenia, condessa de Teba. Foi n'essa noite que principiou o romance de amor. Luiz Napoleão ficou encantado com a bella castelhana.
Apesar de se estar em plena republica, o presidente fizera-lhe a côrte na côrte, porque o presidente rodeava-se de esplendores verdadeiramente realengos. Preparava elle então o golpe d'estado, e dissera a Eugenia de Montijo:
—Estamos em vesperas de grandes acontecimentos, e não quero sujeitar-vos ao perigo das eventualidades. Voltai para Hespanha e, se eu triumphar, convidar-vos-hei a vir occupar o throno da França.
Mademoiselle de Montijo respondera:
—Aconteça o que acontecer, serei vossa mulher. Se as vossas esperanças se mallograrem, viveremos no meu paiz, talvez mais felizes do que no throno da França.
Como se vê, a condessa de Teba respondera precisamente á pergunta... em verdadeiro genitivo amoroso. Voltando a Hespanha, mademoiselle de Montijo levava comsigo um talisman, que era o penhor da sua felicidade futura: um alfinete que representava uma folha de trevo em esmeraldas, contornada de brilhantes.
Tinha sido o premio com que a fortuna a favorecera n'uma loteria organisada pelo presidente da republica em Compiégne. Conservou-o sempre, e só se desapossou d'esse alfinete fatidico depois da morte do principe imperial. Então, vendo desmoronado todo o castello das suas esperanças de mãi, disse um dia, em Chislehurst, á duqueza de Mouchy:
—Considerei toda a minha vida este alfinete {198}como um talisman encantado. Era a minha mais querida reliquia. Não quero que fique abandonado: dou-vol-o como um penhor de felicidade e de terna amizade.
A duqueza de Mouchy nunca mais deixou de trazer o alfinete da imperatriz.
Ascendendo ao throno imperial da França pelo processo que toda a gente conhece, Luiz Napoleão, tres annos depois, em Janeiro de 1853, annunciava aos poderes do estado a sua resolução de casar por amor.
O imperador proclamou no sentido de mostrar a inconveniencia dos casamentos politicos, que serviam menos a estreitar as boas relações internacionaes do que os processos de uma politica leal, que elle, aliás, diga-se a verdade, nem sempre seguiu. A questão do Mexico é uma prova do que affirmamos. Occupar-nos-hemos mais tarde d'este desgraçado acontecimento, quando tivermos que fallar da imperatriz Carlota, a segunda imperatriz cuja biographia bosquejaremos.
A proclamação do novo imperador terminava por estas palavras:
«Venho, pois, meus senhores, dizer á França: Prefiro uma mulher que eu amo e que respeito a uma mulher desconhecida, cuja alliança apenas traria vantagens contrariadas por sacrificios. Sem desdenhar de ninguem, cedo á minha inclinação, mas só depois de ter consultado a minha razão e as {199}minhas convicções. Finalmente, antepondo a independencia, as qualidades de coração, a honra de familia aos preconceitos dynasticos e aos calculos da ambição, não serei menos forte, porque serei mais livre.
«Brevemente, dirigindo-me a Notre-Dame, apresentarei a imperatriz ao povo e ao exercito; a confiança que elles depositam em mim asseguram a sua sympathia por aquella que eu escolhi, e vós, meus senhores, desde que a conheçais, ficareis convencidos de que ainda d'esta vez fui inspirado pela Providencia.»
O casamento realisou-se na igreja de Notre Dame a 30 de janeiro d'esse anno.
Uma tradição hespanhola diz que as perolas, com que no dia do casamento se adornam as noivas, virão a converter-se em outras tantas lagrimas.
Eugenia de Montijo não deu importancia a esta tradição, e completou a sua toilette de noiva com um collar de perolas.
A tradição não mentiu d'esta vez.
A imperatriz vendeu o collar, com as suas outras joias, depois da guerra franco-prussiana.
Os imperadores foram viver para o pequeno castello de Villeneuve-l'Etang, que ainda está de pé no parque de Saint-Cloud.
Vinte e quatro horas depois do casamento, os noivos passeavam n'um phaeton, que o imperador guiava, através dos bosques estrellados de neve, que um bello sol de inverno doirava.
Que importava que a neve espelhasse a desolação do inverno, se os corações dos noivos, ardentes de amor e florescentes de esperanças, cantavam o epithalamio das suas nupcias, n'essa melopea intima que é a melodia do silencio!
Eu estou soccorrendo-me de um livro já este anno publicado em França, Souvenirs intimes de la cour des Tuileries. Authora madame Carette, née Bouvet. Madame Carette é neta do almirante Bouvet, e foi distinguida pela imperatriz com muitas attenções por occasião da viagem dos imperadores á Bretanha, em 1858. Mais tarde, madame Carette entrou nas Tulherias como segunda leitora da imperatriz, porque a primeira era a condessa de Wagner de Pons.
No fundo d'este livro revela-se uma pequena vaidade de mulher: a imperatriz fizera reparo na então mademoiselle de Bouvet, quando a viu na Bretanha, por a ter achado formosa.
Um traço final do livro trae um pouco a intenção da authora. Conta madame Carette que em 1865, por occasião da cholera morbus, indo a imperatriz visitar com a sua leitora os hospitaes, lhe dissera, no de Santo Antonio, ao entrar n'uma enfermaria de variolosos:
—Não quero que entreis. Poderieis ficar feia, e ser-me-ia difficil casar-vos.
Revela-se aqui a mulher, Chassez le naturel, il revient au galop.
As recordações de madame Carette teem, é certo, {201}o peccado original da parcialidade fanatica, da dedicação amavel, mas, em compensação, levantam o véo da vida intima das Tulherias, e põem em evidencia alguns factos interessantes do ménage imperial.
Madame Carette não é precisamente uma estylista. Nas Tulherias o seu cargo de leitora era apenas um pretexto. Não teve por isso occasião de cultivar estheticamente o espirito com os primores litterarios de que a França é tão opulenta. Mas escreve com a facilidade e elegancia que são proprias de toda a mulher franceza bem educada.
Sob o ponto de vista da contextura historica, o livro é ás vezes descosido, e outras vezes futil. Mas, descontado o que elle tem de parcial, de frivolo e de truncado, offerece ainda assim um pequeno filão, que se póde explorar com interesse.
Madame Carette, remontando-se a 1858, dá o seguinte retrato da imperatriz:
«Era de estatura mais do que média; podia dizer-se alta. As feições regulares, e a linha extremamente delicada do perfil tinha a perfeição de uma medalha antiga com alguma coisa de intraduzivel, um peregrino encanto pessoal, que fazia com que se não podesse comparar a outra mulher; a fronte, elevada, e rectilinea, escanteava-se apertada, as sobrancelhas, longas e delicadas, eram um pouco obliquas; as palpebras, muitas vezes descidas, seguiam a linha dos supercilios velando os olhos pouco distanciados, o que {202}era um caracteristico da physionomia da imperatriz: dois bellos olhos de um azul vivo e profundo, opulentos de sombra, de alma, de energia e de doçura; bastariam os olhos para dar relevo a uma physionomia. O nariz, descendo correctamente desde a raiz até ás fossas, finamente recortadas, denunciava uma raça aristocratica; a bocca, pequenissima, tinha contornos de uma graça exuberante, e um sorriso irresistivel animava essa bocca encantadora; os dentes eram brilhantes, o queixo descrevia uma curva delicada, que se dilatava contornando a face, nitidamente colorida, de uma brancura transparente. A pelle, muito fina, deixava vêr o tecido das veias, e fazia pensar no sangue azul da velha nobreza castelhana. O pescoço alto, esculptural. Os hombros, o peito e os braços lembravam uma estatua. A cintura estreita, mas redonda, os dedos afilados, os pés tão pequenos como os de uma creança de doze annos. O ar gracioso e nobre, cheio de distincção nativa. O andar facil, desembaraçado. Finalmente, uma completa harmonia entre a pessoa physica e a pessoa moral: n'isso estava, creio eu, o segredo do seu irresistivel encanto.»
Durante os primeiros tempos de casada, a imperatriz tivera dois móbitos. A razão de estado fazia com que o imperador desejasse ávidamente um filho.
Quando pela terceira vez a imperatriz se achou gravida, o drama da maternidade, chamemos-lhe assim, ameaçou, durante tres dias e tres noites, um {203}desenlace fatal. Para salvar o filho seria preciso arriscar a vida da mãi. Consultado pelos medicos, o imperador respondeu n'esta dura alternativa:
—Não pensem senão na imperatriz.
Como o momento fôsse decisivo, a obstetricia teve que ser precipitada, o que prejudicou grandemente o organismo da imperatriz. Soube-se isto fóra das Tulherias, e d'aqui nasceu certamente o boato calumnioso de que se não pudera salvar o filho para garantir a existencia da mãi. Disse-se por essa occasião que o principe imperial era uma creança qualquer que o imperador adoptára para acautelar a estabilidade da dynastia. Mas tudo quanto se passou depois, os carinhos da imperatriz para com o herdeiro do throno, a sua dolorosa heroecidade na viagem á Zululandia, quando o joven principe foi morto, provam ainda mais, e melhor; do que as affirmações de madame Carette.
O que é certo é que, depois de tão laborioso parto, a saude da imperatriz ficára muito affectada, a ponto de que sua magestade, segundo o testemunho da sua leitora, ne pouvait se soutenir que grâce à un appareil d'acier, dissimulé sous ses vêtements.
A fim de que a imperatriz podesse fazer a sua toilette o mais commodamente possivel, os vestidos desciam do andar superior por meio de uma especie de montecharge. Este descensor mecanico, e um tubo acustico que communicava com o guarda-roupa, poupavam muito tempo, e incommodo para a imperatriz.
Pois tambem o descensor serviu de cavallo de batalha para a maledicencia dos pamphletarios. Toda a gente sabe como o imperio de Napoleão III foi politica e pessoalmente atacado. Vive ainda a senhora que, alvo de crueis diffamações, se sentava a esse tempo no throno da França. Não está nos meus habitos faltar ao respeito a ninguem, muito menos a uma dama que a desgraça feriu. Mas nem mesma madame Carette se exime a recordar as calumnias que por muitas vezes foram morder o manto da imperatriz.
É visivel a intenção com que madame Carette, referindo-se á princeza de Metternich, embaixatriz de Austria, essa captivante jolie laide que tanta impressão causou em todo o Paris, escreve: «A imperatriz tinha uma grande sympathia por esta mulher seductora, attraía-a a vivacidade do seu espirito e conversava familiarmente com ella quando as circumstancias officiaes e mundanas as reuniam; mas não havia intimidade entre ambas. Com excepção de sua joven prima a princeza Anna Murat, depois duqueza de Mouchy, que a imperatriz estimava muito, nenhuma outra mulher, além das damas de serviço, a menos que se não desse uma circumstancia rarissima, era recebida nas Tulherias sem audiencia.»
Foi o principe de Metternich que no dia 4 de setembro offereceu o braço á imperatriz, que, como se sabe, teve que sahir precipitadamente das Tulherias.
Renunciando depois d'isso á vida diplomatica, o principe reside algum tempo em Vienna, com a princeza, ou nas suas terras da Bohemia. Hoje, a encantadora princeza de Metternich, que tanto ruido fizera em Paris, pela graça do seu espirito e pelo esplendor das suas toilettes, que mandava buscar a Vienna ou que encommendava a Worth, o celebre couturier do imperio, tem a cabeça corôada de cabellos brancos, é avó.
Madame Carette, depois de rebater delicadamente a calumnia que o nome da princeza de Metternich lhe suscitára, lembra que a imperatriz gostava de vêr-se rodeada por uma côrte de mulheres bonitas. Ora madame Carette fazia parte da côrte. Ah! nada se deve perdoar tão facilmente a uma mulher bonita como o lembrar-se de que o foi, mesmo quando não o é já!
A côrte das Tulherias, descripta por madame Carette, revela a vida um pouco frivola, e até um pouco mexeriqueira, de todas as côrtes, mas tinha a vantagem de ser, quanto á belleza das damas que rodeiavam a imperatriz, constituida em harmonia com a celebre phrase de Francisco I: uma côrte sem mulheres é um anno sem primavera, e uma primavera sem rosas.
A entourage feminina era numerosa, e gentil. Os lyrios da belleza floresciam nas Tulherias como n'um {206}jardim que a primavera esmalta. Madame Carette esboça o perfil de todas as grandes damas que rodeiavam a imperatriz Eugenia. Faz passar diante dos nossos olhos a viscondessa de Aguado, marqueza de las Marismas, bella e espirituosa, mãi da duqueza de Montmoreney, uma mulher elegante que morreu aos trinta annos. A insinuante condessa de Montebello, que tinha sido a amiga intima da duqueza de Alba, e que fôra embaixatriz em Roma, onde brilhára como estrella no corpo diplomatico. Madame de Malaret, de uma rara elegancia de linha. A marqueza de Latour-Maubourg, filha do duque de Trévise, sempre muito ciumenta do marido. Um dia perguntaram-lhe o que ella faria se soubesse que o marido a enganava. Morreria de espanto, respondeu a marqueza. A baroneza de Pierres, que era a mulher da França que montava melhor a cavallo. A condessa de la Bédoyère, uma virtuose distinctissima, que tinha a belleza das mulheres do tempo de Luiz XIV. Viuva em 1869, casou com o principe de Moskowa, porque a sua belleza chegava á vontade para fascinar dois maridos. A condessa de la Bédoyère tinha uma irmã, a condessa de la Poëze, e ninguem como estas duas irmãs possuia em grau mais eminente o que póde chamar-se l'esprit des cours. A condessa de Rayneval, formosissima, não casou nunca: era chanoinesse n'uma ordem da Baviera. Foi ella que serviu de modelo para a Musa, que no celebre quadro d'Ingres corôa a cabeça de Cherubini. A baroneza de Viry-Cohendier, em cujo rosto {207}brilhavam dois olhos, que pareciam carbunculos. A princeza Anna Murat, d'uma belleza loira, fresca, primaveril. A duqueza de Malakoff, o mais puro typo da belleza andaluza. A duqueza de Morny, uma flôr de neve da Russia, colhida pelo duque que alli fôra embaixador, e que representára olympicamente a França na coroação do czar Alexandre II. A duqueza de Persigny, loira como Daphne. A esta pleiade de mulheres encantadoras viera reunir-se, nos ultimos dez annos do imperio, a famosa princeza de Metternich. E occupando o centro d'este systema planetario de bellezas femininas, um sol: a imperatriz.
Havia nas Tulherias um salão azul que a imperatriz quizera dedicar exclusivamente á belleza, povoando-o com os retratos das mais formosas damas da sua côrte. Nas telas que revestiam as paredes, cada dama personificava uma das grandes nações da Europa. A princeza Anna Murat representava a Inglaterra, a duqueza de Malakoff a Hespanha, a duqueza de Morny a Russia, a condessa Walewska a Italia, e no meio de toda esta constellação desenhava-se o perfil da imperatriz sobre um medalhão sustentado por figuras allegoricas.
O incendio das Tulherias, depois da quéda do imperio, carbonisára essas notaveis télas, de que ficaram apenas, aqui, alli, fragmentos indemnes, vestigios d'esses retratos que resumiam toda a graça feminina da França imperial.
De resto a vida das Tulherias agitava-se nas mil intrigasinhas e rivalidades de que as mulheres, ainda {208}que sejam encantadoras, não sabem emancipar-se. Eram frequentes as tempestades n'um copo d'agua. Por exemplo. Um anno, no dia da festa da imperatriz, a 15 de novembro, resolveu-se fazer quadros vivos, reproduzir o Déjeuner champêtre de Watteau. Foi a princeza de Metternich, que tinha uma rara habilidade para este genero de divertimentos, quem ficou encarregada da distribuição dos personagens e dos costumes.
A duqueza de Persigny devia entrar no quadro, mas, não tendo gostado do costume que a princeza lhe distribuíra, declarou que se vestiria a capricho, e que appareceria com os cabellos soltos,—uns bellos cabellos loiros, opulentos como uma floresta.
—Quero, dizia a duqueza, que me vejam o cabello.
—É impossivel! replicava a princeza de Metternich. Isso desarranja o quadro!
A condessa insistia com a terrivel logica que até nos caprichos é um dos poderosos apanagios do seu sexo:
—Nós fazemos isto para nos divertirmos, e a mim diverte-me apparecer com o cabello solto.
—Nada, não! Ou a condessa ha de submetter-se como nós todas, ou não entra no quadro.
Mas a condessa continuou a reagir.
A princeza de Metternich, exasperada, correu ás Tulherias, foi levar ao conhecimento da imperatriz este grave negocio de estado.
A imperatriz sorriu, e aconselhou:
—Deixe lá, princeza. É uma novidade que talvez produza effeito.
—É uma festa estragada!
—Mas, princeza, o que quer fazer? A condessa, de qualquer modo que appareça, ha de ser sempre bonita. Seja indulgente com ella. De mais a mais sabe que a mãi de madame de Persigny está doida?
—Ah! ripostou a princeza. A mãi de madame de Persigny é doida? Pois meu pai tambem o é. Não cederei.
E assim era, realmente. O conde Chandor, pai da princeza de Metternich, que era o melhor sportman da Europa, avariou o cerebro á força de trambolhões com que se vingavam do seu calção audacioso os cavallos insubmissos.
Outro exemplo das mil coisissimas nenhumas que preoccupavam ás vezes a côrte das Tulherias.
A condessa de Wagner, que tinha setenta annos, mas que havia sido uma bonita mulher, appareceu uma vez nas Tulherias com uma cabelleira loira similhante á que a Schneider exhibia na Bella Helena.
Madame Carette desatou a rir quando a viu, e a imperatriz, que n'esse momento sahia do seu gabinete, quiz saber o motivo de tamanha hilaridade. Madame Carette disse-lh'o, e a imperatriz quiz vêr, através de uma vidraça, a cabeça de Medusa da condessa de Wagner. Viu, e tambem desatou a rir. Mas, passado o primeiro momento, ordenou a madame Carette:
—Diga da minha parte á condessa que lhe peço para tirar immediatamente a cabelleira. Que ridiculo para a minha côrte, se se soubesse!
Nem nas altas espheras sociaes o espirito feminino perde a fragilidade pueril que lhe é propria. A imperatriz, que dirigiu muitas combinações politicas, e que para esse effeito era sempre a mulher do imperador, deixava-se enleiar muitas vezes, como qualquer simples mortal, nas espiras d'essas duas serpentes graciosas que se enroscavam nos seus nervos de mulher: o sangue de hespanhola e a frivolidade parisiense.
Sempre que o ciume lhe cravava no coração a garrasinha adunca, apparecia na imperatriz a mulher, e só a mulher.
O imperador que, como sabemos, tivera pela imperatriz uma paixão de Romeu, principiára, dentro da primeira década da vida conjugal, a morder a maçã do paraiso terrestre.
Ora a condessa de Castiglione, filha das primeiras nupcias do marquez de Oldoini, ha pouco fallecido, fizera sensação quando pela primeira vez appareceu n'um baile costumé das Tulherias. A condessa ainda vive hoje. Deve estar velha, como todas as bellas damas d'aquelle tempo, mas a sua belleza era, em 1860, a de uma estatua grega, esculptural, posto que dura.
A imperatriz ardia em ciume por causa da condessa de Castiglione, que conseguiu distanciar da côrte. N'um dos ultimos bailes das Tulherias, em que {211}a imperatriz appareceu em costume de Marie Antoinette,—a imperatriz teve sempre uma viva sympathia pela memoria de Marie Antoinette,—a condessa de Castiglione, que não tinha sido convidada, foi reconhecida n'uma esplendida toilette negra, de viuva, representando Marie de Medicis. A imperatriz, sabendo que era a condessa, mandou-lhe ordem por um camarista para que sahisse immediatamente.
Em 1860, o principe Jeronymo déra uma festa no Palais-Royal em honra da imperatriz, que deslumbrou todos os olhos quando entrou na sala com um vestido de tulle branco e uma grinalda de violetas de Parma, porque a imperatriz fez da violeta a flôr imperial.
Á uma hora da noite sahiam o imperador e a imperatriz, encontrando-se na escada com a condessa de Castiglione.
—Chega muito tarde, condessa! disse-lhe galantemente o imperador.
—Sois vós, sire, que sahis muito cedo! respondeu a condessa.
Póde calcular-se a scena de ciume que se passára dentro do landeau imperial, caminho das Tulherias.
Li ha dois dias um livro de Philibert Audebrand, Un café de journalistes sous Napoleão iii, em que toda a historia dos amores do imperador com a condessa de Castiglione é contada sem refolhos, até com visivel acrimonia, que é a nota predominante de todo o livro.
Essas relações amorosas, segundo Audebrand, chegaram até ao ponto de a imperatriz partir precipitadamente para a Escocia com a duqueza de Hamilton, tendo voltado a Paris só depois da promessa formal do imperador de que romperia com a sua amante.
De passagem, um traço da vida conjugal da condessa de Castiglione. O marido não pudera nunca reconcilial-a com a sogra, a marqueza de Castiglione. Um dia em que ambos sahiram de trem, o conde dera secretamente ordem ao cocheiro para conduzil-os a casa da marqueza. A condessa percebeu a intenção reservada do marido e, descalçando furtivamente os sapatos, no momento de passarem uma das pontes do Sena, atirou-os ao charco.
E, voltando-se para o marido:
—Quero crêr que me não forçarás agora a fazer visitas descalça!
Mas, sempre que os nervos da mulher estavam tranquillos, a imperatriz reapparecia com todos os seus instinctos de interesse dynastico, porque a imperatriz adorava o filho.
Era ella que recolhia e colleccionava cuidadosamente, todos os dias, os papeis politicos do imperador.
—Eu sou, dizia a imperatriz referindo-se á correspondencia das Tulherias, como um rato que apanha as migalhas do imperador.
Toda a correspondencia pôde ser salva, e a imperatriz tem-n'a conservado religiosamente.
Deve ser interessantissima, mas, nas mãos da imperatriz, é uma arma partida. Não é preciso que a doblez dos caracteres se affirme por documentos: essa prova é inutil. Todos sabemos como em todos os tempos e lugares o caracter humano varía com a altura do sol. Mas no occaso da sua grandeza, a imperatriz ainda conseguia encontrar algumas dedicações inabalaveis. Citarei desde já dois nomes: o duque de Bassano, e mr. Rouher.
A imperatriz teve, na politica imperial, uma acção energica. O general Trochu attribue-lhe a desgraçada operação franco-hespanhola do Mexico, que desacreditou o imperio, e a desastrosa guerra de 1870, diante da qual Napoleão III recuava instinctivamente.
Mas, sob o ponto de vista politico, Trochu, apesar de ter procurado defender-se no tribunal do Sena, e n'um grosso volume, que tenho presente, de todas as accusações que o Figaro fizera ao governador de Paris, Trochu, repito, é um pouco suspeito.
A imperatriz viu sempre n'elle um orleanista. Não sei se tinha razão. Mas a impressão que me ficou de todo o livro de Trochu, um enorme volume de mais de 500 paginas, é que a imperatriz foi muito abandonada, na hora do perigo, pelos elementos officiaes que tinham feito a sua carreira á sombra das Tulherias. Só o almirante Jurien se offereceu para acompanhal-a; só madame Mebreton Bourbaki a acompanhou. O maior auxilio recebeu-o de dois estrangeiros: o embaixador de Austria, principe de Metternich, e o embaixador de Italia.
Não admira que a imperatriz, arrastada pelo seu caracter energico de hespanhola, se envolvesse nos negocios politicos. Ha uma phrase sua, que a define. Os prussianos avançavam sobre Paris, o general Trochu parecia desalentado, mas a imperatriz dissera-lhe:
—Eh bien, si les prussiens arrivent, j'irai moi-même sur les remparts, et là je montrerai comment une femme sait braver le danger, quand il s'agit du salut du pays.
Mas as horas do imperio napoleonico estavam contadas.
A Providencia ia ajustar as suas contas, em nome de Maximiliano, com Napoleão III e com o marechal Bazaine, e a imperatriz Eugenia, sobrevivendo a estes dois actores responsaveis da tragedia do Mexico, principiava a vêr cahir do ceu as primeiras sombras da sua longa noite de agonia.
Os aposentos particulares da imperatriz Eugenia, no palacio das Tulherias, compunham-se de uma série de dez salas, que davam sobre o jardim.
Entrava-se pelo salão dos alabardeiros, a guarda nobre da imperatriz, commandados por mr. Bignet, a quem as damas do palacio chamavam jovialmente la trezième dame du palais.
Era o chefe dos alabardeiros que inscrevia os nomes das pessoas que pretendiam ser recebidas pela {215}imperatriz e, se as damas de serviço faltavam, elle proprio dava conta a sua magestade imperial do numero e qualidade das pessoas que solicitavam audiencia.
Bignet era um homem discreto, e muito dedicado á imperatriz; guardava sempre rigoroso silencio sobre as resoluções que a imperatriz lhe communicava, mas as damas da côrte tiravam pelos domingos os dias santos, e penetravam ás vezes os segredos de Bignet.
Por exemplo. A imperatriz não dispensava nunca do seu serviço de meza alguns objectos de estimação, entre os quaes havia uma pequena caixa de chá, de prata dourada, que tinha pertencido a Napoleão I. Quando este elegante objecto não apparecia alguma vez, as damas subentendiam que a imperatriz projectava uma viagem, e que mr. Bignet já tinha preparado as bagagens. Mas a caixa de chá reapparecia, e as damas ficavam sabendo que o projecto de viagem havia sido posto de parte. Bignet acompanhou a imperatriz ao exilio; e morreu em Inglaterra, inconsolavel pela queda do imperio.
Ao salão dos alabardeiros seguia-se a sala das damas, pintada a fresco sobre um fundo verde. O tecto representava uma enorme corbeille de flôres. A mobilia, estylo Luiz XVI, era de madeira dourada com estofos Gobelins. N'esta sala, como o seu nome indicava, estacionavam lendo, conversando, bordando, as damas de serviço.
Passava-se d'este a outro salão, côr de rosa, profusamente ornamentado de flôres: o tecto, {216}representando Flora em triumpho, tinha sido pintado por Chaplin.
O salão rose communicava com o salão azul, a que já tivemos occasião de referir-nos, e cujas paredes eram revestidas pelos retratos das mais bellas damas da côrte, symbolisando as grandes nações da Europa.
Era n'este salão que a imperatriz dava audiencia, destacando-se a sua gentil figura n'uma atmosphera de saphira, que fazia lembrar o firmamento, porque a luz passava através de stores de gaze azul, adaptados ás janellas.
Seguia-se ao salão azul o gabinete da imperatriz. Era ahi que a primeira dama da França lia, escrevia, colleccionava os papeis do imperador, rodeiada de todos os objectos queridos que podiam fallar-lhe ao coração, avivar-lhe uma memoria, despertar-lhe uma saudade.
Forrado de sêda mate, com largas bandas de um verde suave, a mobilia capitonada, as cortinas côr de purpura, as portas de acajú com ferragens de cobre dourado, tal era o gabinete particular, o aposento predilecto da imperatriz.
Sobre o panno principal da parede pendia o retrato do imperador, corpo inteiro, de casaca, pintado por Cabanel. Exactissimo de semelhança. Á esquerda do fogão, um retrato da duqueza d'Alba coberto de gaze ligeira, como sorrindo através de uma nuvem. Entre as janellas, o retrato da princeza Anna Murat, pintado por Winterhalter. E por toda a parte, aqui, {217}alli, mil obras primas do Oriente e do Occidente, uma bella estatua de mulher em marmore branco—A Estrella,—porque tinha uma estrella na fronte e, entre as recordações carinhosas, muitos objectos que tinham pertencido á duqueza d'Alba, e o chapeu, todo crivado, que o imperador levava na noite do attentado Orsini. A pintura tinha, no gabinete particular da imperatriz, um grande dominio. Havia um notavel quadro de Hébert, representando mulheres italianas n'uma fonte subterranea; e um cordão de sêda, pendente da parede, esperára durante algum tempo por um quadro de Cabanel. Mas o pintor demorára-se e, n'um dia de recepção, a imperatriz, conduzindo-o ao seu gabinete, dissera-lhe:
—Esta lacuna contraria-me. Ou me mandais depressa um quadro ou eu vos mando pendurar n'aquelle cordão,—em vez do quadro.
Cabanel tomou em consideração esta jovialidade da imperatriz, e enviou-lhe um primoroso quadro biblico,—Ruth, de tunica azul, coberto o rosto por um longo veu negro.
A imperatriz gostava muito de lêr sentada n'um fauteuil, junto do fogão e contra a luz, com os pés pousados n'uma cadeira mais baixa e inclinada.
Um biombo de sêda verde resguardava-a das correntes da luz e do ar.
Era n'esta posição que a imperatriz escrevia ordinariamente, com uma penna de pato, pondo o papel sobre os joelhos.
Ao alcance da mão havia uma pequena meza com {218}livros, os mais queridos e, não longe, n'uma grande meza aberta, todo o trem de desenho, os pinceis, papel, caixas de tintas, porque a imperatriz tinha grande facilidade para a aguarella.
Seguia-se um outro compartimento destinado a bibliotheca, povoado de obras escolhidas na litteratura franceza, ingleza, hespanhola e italiana, linguas que a imperatriz fallava com destreza. Á mistura com os livros, muitos primores artisticos: Wouwermans de um valor incalculavel. E numerosos retratos, do conde de Montijo, do imperador, do principe imperial, da rainha da Hollanda, da rainha Sophia, etc.
Sahindo-se d'este compartimento, atravessava-se uma ante-camara sem janella, apenas illuminada por uma lampada accesa de noite e de dia. Vinha dar a esta ante-camara, que era o esconderijo dos papeis das Tulherias, a pequena escada que descia directamente para os aposentos do imperador. Todos os papeis, numerados e alphabetados, estavam ahi guardados n'um armario secreto.
D'esta ante-camara passava-se a uma vasta sala, allumiada por tres grandes janellas rasgadas sobre um balcão: era o gabinete de toilette da imperatriz, todo coberto d'espelhos. A meza de toilette tinha guarnições de renda branca e sêda azul. E do tecto descia, por um engenhoso machinismo, a que já tivemos occasião de alludir, o monte-charge que trazia os vestidos de que a imperatriz precisava.
Uma saleta com uma só janella communicava o gabinete de toilette com o quarto de cama, dividido {219}em duas peças por um tabique em que, sobre um fundo de ouro, florejavam pinturas de delicado gosto. Era ahi que estava o oratorio particular da imperatriz, disfarçado, porque o tabique abria em dois batentes, para os actos do serviço divino. Foi n'esse oratorio que o principe imperial commungou pela primeira vez, e que, no dia 4 de setembro de 1870, a imperatriz ouviu missa, pela ultima vez, nas Tulherias.
O quarto de cama era de uma magnificencia verdadeiramente olympica. No tecto, grandes molduras douradas inquadravam antigas pinturas allegoricas. O leito, afofado de ricos estofos, e erguido sobre um estrado, era mais um throno do que um leito.
Reliquias preciosas velavam o somno da imperatriz: a rosa de ouro que lhe enviára Pio IX por occasião do baptisado do principe imperial, e o vaso, tambem de ouro, cheio de folhas e flôres do mesmo metal, finamente cinzeladas, que o Pontifice costumava offerecer aos seus afilhados de baptismo. Além de que, todos os annos, em domingo de Ramos, uma palma abençoada pelo Padre Santo vinha de Roma para o espaldar do leito da imperatriz.
Na côrte das Tulherias havia, como em todas as côrtes, um horario que apenas as grandes solemnidades officiaes faziam alterar.
Jantava-se ás sete horas e meia.
O pessoal de serviço esperava os imperadores no salão Apollo, illuminado por tres grandes lustres, que faziam reverberar o ouro do plafond,—uma glorificação de Apollo com as nove musas.
Este salão ficava entre o branco ou do primeiro Consul, assim chamado por ter um magnifico retrato do general Bonaparte, e a sala do throno, que era preciso atravessar para chegar ao salão de Luiz XIV,—a sala da meza.
Pouco depois das sete horas, o imperador subia aos aposentos da imperatriz, e desciam ambos ao salão de Apollo com o principe imperial, que tinha lugar á meza do estado desde os oito annos. A imperatriz dava ordinariamente a mão ao principe. Entrando no salão, a imperatriz cumprimentava com um sorriso e uma mezura as pessoas da côrte, como n'uma ceremonia official. Logo que o mordomo do palacio se inclinava silenciosamente diante do imperador, annunciando o jantar, o imperador, dando o braço á imperatriz, dirigia-se para a sala de Luiz XIV, e os dignitarios da côrte davam o braço ás damas, seguindo-o.
O imperador e a imperatriz sentavam-se á meza, junto um do outro. O principe imperial á esquerda do imperador, o ajudante de campo do imperador á direita da imperatriz, a primeira dama de serviço ao pé do principe imperial, a segunda dama á direita do general Rolin, seguindo-se os outros commensaes, entre elles os officiaes da guarda das Tulherias.
Por detraz da cadeira do imperador e do principe imperial postava-se um alabardeiro. Por detraz da cadeira da imperatriz, além de mr. Bignet, commandante da sua guarda, ficava Scander, um joven negro, que tinha vindo do Egypto, e que, emplumado e armado, produzia um bello effeito decorativo.
Scander tinha um grande orgulho da sua posição, e não obedecia a ninguem senão á imperatriz.
Um dia passeava elle no Jardim das Tulherias, e lembrou-se de macaquear os gestos e meneios de um desconhecido qualquer, que, não gostando da parodia, o admoestou. Mas Scander respondeu-lhe com um pontapé, e o desconhecido, filando-o por uma orelha, desancou-o com a bengala.
Furioso, mas poltrão, Scander gritava:
—Deixe-me, que eu sou o filho da imperatriz...
O serviço da cosinha era feito por meio de ascensores, e executado com grande regularidade e presteza.
O salão de Luiz XIV tinha uma grande meza, e ao fundo, sobre o fogão, um busto monumental d'aquelle soberano, além de um retrato do mesmo rei, pintado por Lebrun, de um retrato de Anna d'Austria, e de um quadro representando a apresentação do duque de Anjou aos embaixadores hespanhoes.
Depois do jantar, os imperadores dirigiam-se com a sua entourage para o salão d'Apollo, onde se servia o café, que Napoleão III tomava sem sentar-se fumando cigarrilhas.
Era geralmente n'esta occasião que o imperador conversava com os officiaes da guarda. Toda a côrte se conservava tambem de pé, mas o imperador convidava quasi sempre as damas a sentarem-se. Fazia-se então circulo, fallava-se principalmente dos acontecimentos do dia, o marquez de Havrincourt, o barão de Pieres, o duque de Trévise, dignitarios da côrte {222}e deputados, commentavam os episodios da sessão do dia. A imperatriz era a alma, a alegria, a graça d'este circulo de conversação. O imperador acabava por fazer paciencias, e, para entreter o principe imperial, a côrte jogava algumas vezes o loto, marcando o imperador os seus cartões com moedas de 50 centimes, novas em folha.
Oh! ceus! quem havia de dizer, nos tempos aureos do imperio de Napoleão III, que os pamphletarios descreviam como nadando nos prazeres de uma orgia ininterrupta, que ás nove horas da noite, no salão Apollo das Tulherias, estava a côrte, os imperadores á frente, entregando-se paradisiacamente ao patriarchal loto, como a essa mesma hora acontecia decerto, em Portugal, na botica de Castro Daire e no club de Olhão!
Ás dez horas os creados punham, n'uma pequena meza, o serviço de chá, que as damas faziam. Madame Carette escreve textualmente: «Havia um bulle de chá de laranjeira que tinha um grande successo entre os homens, e n'um canto do salão um plateau com refrescos e café gelado. Geralmente o imperador retirava-se depois de ter tomado uma chavena de chá.»
Então a conversação animava-se mais, estimulada pela imperatriz, que a prolongava até ás onze e meia.
Os adversarios do imperio atacaram vivamente as festas das Tulherias, os quadros vivos de Compiégne; aqui tenho eu ao pé de mim Philibert Audebrand, que me diz ao ouvido, applicando-a a {223}Nopoleão III, a celebre phrase de Agnés Sorel a Carlos VII:
—Não se perde mais alegremente um reino!
Mas, fóra das grandes festas, não me parece que o loto das Tulherias, marcados os algarismos com moedas de 50 centimes, seja babylonicamente escandaloso. Um certo conego conheci eu em Braga que, sem ter um throno na Sé, marcava os seus cartões com peças de 8$000 reis, e este mesmo conego tambem não desgostava de quadros vivos porque o vi, passados annos, assistir no Porto a um espectaculo de lanterna magica, realisado pelo Tasso (não confundir com o poeta nem com o actor) no theatro de S. João.
E o que aconteceu?
O conego—Deus o tenha lá!—morreu muito bem descançado na sua conezia. As gazetas nunca fallaram d'elle senão para lhe rezar uma necrologia louvaminheira. Mas Napoleão III perdeu a corôa, o que não aconteceu ao conego, foi descomposto pelas gazetas, crivado de epigrammas, e acabou no exilio.
Quanto a epigrammas, até os proprios parentes lh'os faziam. Lembro-me agora de um, que é do marido da princeza Clotilde, mais conhecido por uma alcunha grotesca.
Na noite do seu casamento com a condessa de Teba, disse-lhe Napoleão III que estava muito constipado.
O primo respondeu-lhe:
—Couche-toi avec tes bas (Tebá) cette nuit, et ça passera.
Foi talvez o unico epigramma que não soube mal a Napoleão III...
Conhece-se, nos seus pormenores, a desastrosa morte do filho da imperatriz Eugenia na Zululandia. Foi esse acontecimento que desfolhou no coração da viuva de Napoleão III o ultimo bouquet das suas esperanças, que ella podéra salvar na revolução de 4 de setembro. Restava-lhe apenas, a prendel-a ao mundo e a ligal-a ao futuro, esse joven principe que sempre adorou, e que bem poderia vir a rehaver um dia o throno dos Napoleões. O desejo de apressar a hora da revanche napoleonica, um sonho de mulher n'uma noite agitada, preparára, com mais precipitação do que acerto, a partida do principe Luiz para a Zululandia. Contou decerto a imperatriz com o effeito vantajoso que poderia despertar no animo enthusiasta dos francezes a noticia de que seu filho se havia batido com denodo, embora por um paiz estranho; e depois, como a Zululandia não estava precisamente na fronteira da França, mas era uma região longinqua da Africa, seria possivel exaggerar um pouco hyperbolicamente os triumphos do principe, sobredoiral-os com o prestigio que a distancia costuma dar ás pessoas e aos factos.
Mas este projecto de rehabilitação politica, que {225}tinha brotado no espirito ou no coração da imperatriz, offerecia perigos que a precipitação da partida não deixou antever. Foram porém os perigos que triumpharam sobre as esperanças. Foi o reverso da medalha, não devidamente estudado, que triumphou sobre o anverso. A catastrophe da Zululandia apagou o ultimo rescaldo do imperio napoleonico, e desde essa hora a imperatriz Eugenia, sem familia, sem esperanças que a prendam á existencia, vendo cahir a seu lado, velhos e doentes, os amigos mais dedicados do imperio, tem assistido, como Carlos V, aos seus proprios funeraes, porque sobrevive a si mesma.
Esta é a ultima phase dolorosa da sua vida, que resgata largamente os erros commettidos durante os dias gloriosos do fastigio do imperio.
Eugenia de Montijo amava ternamente seu filho, que tinha sido educado, ainda que com extremo carinho, na tradição militar de Napoleão I.
Fôra miss Schaw, uma ingleza, que recebêra o encargo de ser a aia do principe, por quem tinha uma dedicação fanatica.
Misturando o francez com o inglez, nunca o tratára senão por My Prince, e o pequeno Napoleão pagava-lhe exuberantemente a ternura com que miss Schaw o tratava.
De tudo quanto eu tenho lido a respeito do principe Luiz, infiro que era uma boa e nobre alma a sua. Não encontrei ainda nota discordante que depreciasse o seu caracter ou amesquinhasse a grandeza fidalga do seu coração.
Um dos jovens amigos do principe foi Luiz Conneau, filho de um medico muito estimado nas Tulherias. A amizade d'estas duas creanças passava ás vezes, como era natural, por pequenas tempestades, amúos infantis, que terminavam sempre por um abraço de reconciliação. N'um dia de banquete official nas Tulherias, a que o principe, em razão da sua idade, não devia assistir, foi-lhe permittido jantar, nos seus aposentos, com Luiz Conneau. O principe, sabendo que o seu amigo apreciava gulosamente um gelado de morango, pedira que lh'o servissem.
O dia, que era de feriado para ambos, havia corrido na melhor intimidade d'este mundo, mas, de repente, uma pequenina dissidencia explodira entre os dois amigos. Luiz Conneau amuou-se, e não houve forças humanas que o podessem deter nas Tulherias. O principe ficou muito sentido com a partida brusca do seu amigo, mas, quando ao jantar lhe serviram o gelado de morango, encheram-se-lhe os olhos de lagrimas, e ordenou ao criado que o servia:
—Leva d'este gelado ao Conneau, e dize-lhe da minha parte que elle foi um ingrato em deixar-me.
Toda a educação do principe Luiz obedecia ao desejo de continuar n'elle a gloria militar do primeiro Napoleão, porque o imperio reconhecia que, em face dos seus inimigos, precisava retemperar-se com a tradição historica.
Aos oito annos, o principe Luiz montava já a cavallo, e quando sobre um bonito poney Bouton {227}d'Or passava revista ás tropas ao lado do imperador, conhecia-se, na sua physionomia radiosa, que o lisonjeava esse bello espectaculo militar, com cujo prestigio haviam deslumbrado a sua imaginação infantil.
Como vestia o uniforme de caporal do primeiro regimento de granadeiros da guarda, tudo se conseguia d'elle, se fazia alguma maldadesinha, dizendo-lhe:
—Ne faites pas cela, Monseigneur; vous deshonoreriez l'uniforme.
E o principe aquietava-se.
Fôra seu mestre de equitação mr. Bâchon, homem alegre, de molde a fazer-se estimar d'uma creança.
Madame Bruat tinha na côrte o elevado cargo de gouvernante des enfants de France, era a preceptora do principe, mas a imperatriz seguia a par e passo a educação de seu filho.
Em 1867, estando a côrte em Biarritz, encontraram-se mãi e filho n'uma situação difficil, nada menos que um naufragio.
Tinha-se planeado um passeio a bordo do Faon, «pequeno aviso» a vapor, e o abbade Bauer, que fôra n'esse dia a Biarritz, quiz ser do numero dos excursionistas. O imperador não gostava de embarcar; não acompanhou por isso a imperatriz e o principe.
A primeira parte da viagem, ate S. Sebastião, correu sem incidente. Mas levantou-se vento, e o commandante do Faon declarou que não poderiam desembarcar senão em S. João da Luz. Por este {228}motivo a viagem teve que ser mais longa do que se esperava, e a noite principiára a cahir. S. João da Luz é um pequeno porto de pescadores, accidentado de rochedos, em que o Faon não poderia atracar. A imperatriz e o principe tiveram que ir para terra n'uma canôa, com o almirante Jurien e o abbade Bauer, mas a força do mar levara a pequena embarcação d'encontro a uma fraga, em que se despadaçou. A imperatriz conservou-se, dentro d'agua, abraçada ao filho, fluctuando com o auxilio de alguns dos marinheiros da canoa. E ternamente dizia-lhe:
—Não tenhas medo, Luiz.
—Não, mamã, respondia o principe. Eu sou Napoleão.
Como era natural que acontecesse, foi o abbade Bauer quem, na opinião dos marinheiros, aguentou a culpa do naufragio.
—Ou não trouxessemos padre a bordo!
A alma do principe Luiz era naturalmente affectiva.
Pela ama que o creára conservou sempre uma dedicação extrema. Até aos oito annos, não queria adormecer sem que lhe pozessem sobre o travesseiro um lenço de sêda da India e um retalho de velludo que tinham pertencido á ama. Era uma superstição de creança. Miss Schaw tinha o maior cuidado em não perder nunca de vista esses dois pequenos objectos tão queridos.
—My prince, dizia ella, serait inconsolable.
A respeito da ama do principe: Como todas as {229}amas, sobretudo quando o são de principes, tinha caprichos, velleidades. Mas como nas Tulherias houvesse uma outra ama para um caso de urgente substituição, intimidavam-n'a dizendo-lhe:
—Se está aborrecida, chama-se a outra.
Era como se se deitasse agua na fervura.
Aos oito annos, a entourage do principe deixou de ser feminina. Deu-se-lhe como preceptor mr. Monier, escolhido ainda segundo os velhos processos da educação principesca. Mr. Monier era um classico obstinado, que atravessava a côrte vergando ao peso da sua erudição um pouco fradesca. Foi substituido por mr. Filon, que dirigiu a educação do principe antes e depois da sua entrada na escóla militar de Woolwich.
Tendo cahido o imperio, o principe continuou o seu curso n'esta escóla, onde os condiscipulos o tratavam familiarmente por Luiz. Completos os estudos militares, foi residir com a imperatriz em Camden-House. Levantava-se ás seis horas da manhã, tomava uma chavena de chá, e abancava no seu gabinete d'estudo, até ás dez horas, com mr. Filon.
Em seguida dava um passeio a cavallo, com excepção dos dias em que acompanhava a imperatriz, a pé, através de Chislehurst-Common, á pequena igreja gothica de Saint-Mary. Ao domingo todas as attenções se fixavam na mãi e no filho que iam juntos ouvir missa. A imperatriz já então principiava a soffrer de rheumatismo articular; e o principe carinhosamente a ajudava a descer da carruagem, amparando-a nos braços.
Em 1887 publicou-se em Paris, assignado por Charles de Bré, um livro que se intitula Le roman du prince impérial. Supponho que com razão se denomina romance. Eu nem acredito na versão do padre Goddard, que, fallando do principe morto na Zululandia, dizia Virgo intacta, nem acredito na historieta, contada por De Bré, dos seus amores com miss Carlota Walkyns, que, segundo o romance, houvera do principe um filho, que está em França a educar.
Conta De Bré que as entrevistas do principe com miss Carlota se realisavam no magasin de mr. Floris, em Jermin street n.º 80, e que ella ignorára durante muito tempo a alta posição social do seu joven apaixonado.
Fôra por occasião do casamento do duque de Norfolk com lady Hastings que miss Walkyns tivera a revelação d'esse segredo, porque até ahi, como dissemos, ella desconhecia completamente a condição d'esse moço estrangeiro, que vira pela primeira vez na estação de New Cross.
Mas, no dia do casamento do duque de Norfolk, miss Walkins surprehendêra o seu bem amado a conversar familiarmente como o conde de Beaconsfield, e esse facto impressionou-a vivamente.
Parece que a imperatriz alimentava o projecto de casar o principe imperial com a princeza Beatriz, filha da rainha Victoria, mas por sua parte o principe imperial alimentava a esperança de desposar miss Carlota, casando por amor, como seu pai.
O romance de Carlos De Bré foi contestado por algumas folhas imperialistas, e, se assentasse n'um facto verdadeiro, esse facto teria tido em toda a Europa uma notoriedade insistente. Não aconteceu assim. O livro passou inspirando geral desconfiança sobre as affirmações que aventava, e eu persisto em consideral-o mais como uma especulação de livraria, protegida nos seus intuitos mercantis pelo nome de um principe desventuroso, do que como a expressão exacta da verdade.
Do supposto filho do principe Luiz nunca os jornaes francezes nos tornaram a fallar, e não é natural que a imprensa de Paris, tão ávida de reportage, abandonasse esse rico filão de noticiario.
Com este artigo, que chega até á vida actual da imperatriz Eugenia no melancolico retiro de Chislehurst, fechamos por agora a sua biographia.
Nas paginas seguintes occupar-nos-hemos da imperatriz Carlota do Mexico, que ha tantos annos envelhece na demencia com que os seus incomportaveis soffrimentos lhe obumbraram o cerebro.
A posição social aproxima estas duas illustres damas, ambas viuvas de imperadores. Mas ha uma differença profunda entre ellas. Eugenia de Montijo teve o seu dia de ruidosa gloria, viveu largos annos dominando a Europa na côrte mais faustosa dos tempos modernos. A imperatriz Carlota não conheceu nunca senão o conchego intimo do seu ninho de amor conjugal no castello de Miramar, e a sua passagem pelo imperio do Mexico foi uma agonia em que {232}principiou por perder a coragem e acabou por perder a razão.
V
A historia do imperador Maximiliano e da imperatriz Carlota parece moldada sobre a tradição biblica de Adão e Eva no paraizo terreal.
Todas as delicias da creação se accumulavam no éden n'aquella primitiva profusão de luz, de aromas, de flôres, de musicas, que, exuberantemente creadas, irrompiam ainda em tumulto desordenado, á espera da lei reguladora da existencia terrena. Todas as maravilhas paradisiacas, pujantes de vida, deviam ser eternas e imperturbaveis, e Adão e Eva, dominando, n'uma felicidade virginal, a esphera crystallina onde o sol ensaiava timidamente o primeiro vôo das suas azas de ouro, deviam viver eternamente n'uma felicidade casta e perenne. Mas a tentação viera, perfida serpente, espiralar-se na arvore do bem e do mal, enroscando-se no tronco, colleando para a fronde d'onde pendia o pomo prohibido, prematuramente sazonado pela intensidade do sol e pela força creadora da terra. Então o par ditoso, cuja felicidade devia ser absoluta e immutavel, attrahido pela cupidez da serpente tentadora, disputou-lhe o pomo, colheu-o, provou-o, e, julgando ter vencido a serpente, viu-se de subito vencido por ella. Desde essa hora foi marcado um limite terrivel á felicidade humana, a existencia {233}tornou-se ephemera e dura, e tudo quanto havia nascido para viver foi condemnado a viver para morrer.
O paraizo terreal de Maximiliano e Carlota era o castello de Miramar, a uma legua de Trieste, erguido sobre um promontorio pittoresco, que só avistava a pureza lucida do ceu infinito e a pureza cerulea do mar immenso. Nunca o vôo de uma ambição havia cortado o horisonte luminoso do firmamento e do oceano, nunca a aza de um sonho audacioso havia posto um traço negro no espelho nitido das aguas e do ar.
O archiduque Maximiliano, commandante da marinha austriaca, era um homem do mar, que, comquanto houvesse viajado desde o Oriente ao Occidente, desde a Asia Menor a Portugal, amava a solidão tranquilla, a concentração placida e meditativa a que a natureza, em pleno mar, convida o espirito. Um dia, encantado pelo aspecto do promontorio que, a pequena distancia de Trieste, parecia um throno de granito franjado de espumas, escolheu-o para construir ahi uma pequena cabana de pescador, emboscada n'uma florestazinha de plantas exoticas, que o sol não tardou a fazer germinar.
Desposando em 1859 a princeza Carlota, da Belgica, o archiduque Maximiliano pôde, graças ao dote que lhe trouxera a filha do velho rei Leopoldo, traçar por sua propria mão o projecto de um castello que nascia da cabanazinha florida como a opulenta cabaia de sêda de um rajah nasce da folha verde da amoreira.
O archiduque era apaixonado pela architectura; fôra elle que desenhára o risco da famosa igreja Votiva de Vienna; póde pois calcular-se com que alegre e dedicado enthusiasmo veria ir apparecendo, debaixo do seu crayon, as torres denticuladas do futuro castello de Miramar.
Mais feliz do que a snr.ª Porhoet, do Romance de um rapaz pobre, cuja velhice era alimentada pela phantasia de fazer edificar uma cathedral estupenda, o archiduque vira realisado o seu sonho, e o castello de Miramar fôra nascendo á beira do oceano, avultando, subindo, fazendo lembrar a lenda do rei de Thule e da
... torre herdada que havia
ao rés das marinhas aguas.
Emquanto o castello de Miramar se edificava, o archiduque fôra habitar um chalet que provisoriamente tinha mandado construir no alto da collina, e que para os dois felizes esposos se convertêra n'uma estancia encantada, que a madresilva cingia n'um abraço de verdura e de flôres, e envolvia na atmosphera inebriante de um beijo de perfume. O archiduque gostava immensamente de flôres, de modo que os jardins de Miramar, que vieram a contornar o palacio, pareciam realisar o sonho de um poeta que, como Castel ou Lacroix, vivesse para cantal-as.
Fôra no chalet da collina que o archiduque, mesmo depois de edificado o castello, permanecêra sempre com a archiduqueza; nas salas do castello {235}recebia elle os homens de lettras, os artistas, os sabios, os principes que procuravam a sua companhia, que uma illustrada conversação e uma sumptuosa hospitalidade tornavam appetecida.
N'este paraizo terreal, n'este éden do Adriatico, insinuára-se um dia a serpente da ambição, e a França, personificada em Napoleão III, fôra o espirito do mal que se transformára em serpente para realisar a tentação do par feliz de Miramar.
Os mais dedicados amigos do imperio de Napoleão III não podem dissimular as responsabilidades que pesam sobre a memoria do imperador na desgraçada questão do Mexico. Madame Carette, que pertence a este numero, não achou meio de desculpar essa fatalidade do imperio, que veio a chamar-se a expedição do Mexico.
«É bem difficil, diz ella, encontrar o fio subtil de toda esta aventura, em que tanta gente se enleiou e arruinou, que custou tantas victimas e tanto dinheiro, que teve por desfecho o fatal drama de Queretaro, e que foi talvez a origem dos acontecimentos que precipitaram a quéda do imperio.»
Como nasceu no espirito de Napoleão III a desastrosa idéa da intervenção da França nas questões internas do Mexico? Como, e por quê?
O que até ha pouco tempo se sabia, e logo voltaremos ao assumpto, era que algumas familias mexicanas e alguns membros das colonias estrangeiras emigraram para a Europa fugindo ás continuadas perturbações politicas d'aquelle paiz. Essas familias, {236}muitas das quaes vieram estabelecer-se em Paris, pensavam decerto em voltar á patria, e manobraram n'esse sentido, auxiliadas pelos estrangeiros repatriados que levaram os seus respectivos governos a realisar uma conferencia internacional em Londres. Accordou a diplomacia em pedir indemnisações para os emigrados, mas o governo mexicano, à bout de ressources, declarou que não podia pagar o que lhe era exigido.
As potencias interventoras, a França, a Inglaterra e a Hespanha, julgando-se desconsideradas por esta resposta do Mexico, combinaram entre si fazer uma demonstração energica que impozesse o exacto cumprimento das deliberações tomadas na conferencia de Londres.
Foi o almirante Jurien de La Gravière que, com poderes discricionarios, tomou o commando da expedição franceza, aggregando-se-lhe, como adjunto technico, mr. Dubois de Saligny, antigo ministro no Mexico, que devia occupar-se do contencioso. A esquadra hespanhola já estava fundeada em Vera-Cruz quando a esquadra franceza lá chegou. A Inglaterra, reconhecendo talvez o erro politico d'esta aventura, enviou alguns navios com visivel hesitação.
Os mexicanos, concentrando-se logo que os hespanhoes chegaram, deixaram-n'os como que isolados n'uma vasta zona do littoral. Foi pois n'um deserto que a expedição franceza desembarcou, posto que o governo do Mexico manifestasse uma certa sympathia pela expedição franceza, considerando-a como um {237}obstaculo a quaesquer demasias dos hespanhoes, antigos occupadores e, portanto, antigos inimigos dos mexicanos. Assim, pois, pôde o almirante Jurien assignar uma convenção que permittia aos francezes o internarem-se em condições favoraveis de hygiene e abastecimento, com a clausula de que, se as hostilidades se rompessem, retrocederiam para o littoral.
É n'este ponto que começa a urdir-se uma vasta rêde de intrigas.
O general Prim, commandante da expedição hespanhola e casado com uma senhora de origem mexicana, parecia aspirar, protegido por Serrano, á realeza do Mexico. Mr. de Saligny, estomagado pela sua posição secundaria, escrevia para Paris cartas sobre cartas queixando-se da prudencia com que procedia o almirante Jurien. A França, dando ouvidos a mr. de Saligny, enviava novos reforços, e, como adjunto do almirante Jurien, o general Lorencez. Mas a Hespanha, picada pela supremacia que a França pretendia accentuar, retirou a sua esquadra, e a Inglaterra, que tratava de procurar um pretexto, fez o mesmo. Ficou a França isolada, desde esse momento, na questão do Mexico.
Seria fastidioso enumerar n'uma chronica fugitiva todos os pormenores que occorreram até ao dia em que o general Forey tomou o commando do exercito francez, e alcançou sobre as guerrilhas mexicanas de Juarez alguns faceis triumphos militares.
Foi então que Napoleão III teve o sonho de realisar a transformação politica do Mexico para {238}contrabalançar na America a influencia dos Estados-Unidos, e que obedecendo aos manejos da França, uma deputação mexicana, em outubro de 1863, chegava ao castello de Miramar a fim de offerecer a corôa imperial do Mexico ao archiduque Maximiliano.
Napoleão III tomára o compromisso de conservar no Mexico, durante tres annos, um exercito de vinte e cinco mil homens, commandado pelo general Forey, succedendo-lhe Bazaine, que tinha feito toda a campanha como commandante da 1.ª divisão; e o Mexico o de pagar immediatamente sessenta milhões de francos a titulo de indemnisação de guerra, e mais vinte e cinco milhões por anno, para o que foi levantado nos bancos da Europa, por emprestimo, o dinheiro necessario, sob garantia do governo francez.
Esqueçamos por um momento a desditosa imperatriz Carlota, para, como promettemos, indicar o mais que se tem averiguado sobre as razões politicas que determinaram a intervenção da França.
Uma das ultimas novidades litterarias, que lograram maior successo, é com certeza o livro de Paul Gaulot: Rêve d'empire.
Este livro occupa-se da famosa questão do Mexico, o ephemero imperio de Maximiliano, e basêa-se em documentos inéditos. D'aqui o seu principal interesse: um clarão de revelações, importantes e novas, illumina as trezentas paginas d'esta brochura que {239}tem já terceira edição, comquanto haja apparecido ha poucos dias.
Envolvia-se até hoje nas sombras de um tal ou qual mysterio a causa da intervenção da França na questão do Mexico.
Presumia-se que Napoleão III tivera em vista dar um golpe mortal nos Estados-Unidos, mas o que não passava de uma hypothese adquire agora, graças ao livro de Paul Gaulot, fóros de certeza.
É comtudo certo que, apesar de conhecida, a intervenção de Napoleão III, a intervenção da França na questão do Mexico não perde completamente o caracter de uma aventura perigosa, e um pouco phantasista.
Conta-se que n'um serão das Tulherias, em 1868 ou 1869, a familia imperial passára a noite jogando aux petits papiers. N'um dos papelinhos, que coube em sorte ao imperador, lia-se a seguinte pergunta: «Qual é a vossa occupação favorita?» Napoleão III respondeu: «Procurar a solução de problemas insoluveis».
Esta phrase define até certo ponto o espirito do imperador dos francezes, sempre propenso á aventura, sempre enthusiasta de emprezas arrojadas ou, se antes querem, um pouco visionario na politica.
Girando em torno da phrase escripta por Napoleão III, Paul Gaulot lembra que na sua mocidade o futuro imperador dos francezes fôra filiar-se nas sociedades secretas d'Italia; que, sendo elle o representante da idéa napoleonica, isto é, do principio {240}d'authoridade, duas vezes tentou derrubar o regimen estabelecido; que, subindo ao throno, deteve a acção da Russia no Mar Negro e no Mediterraneo, sem comtudo querer que a Inglaterra ficasse senhora d'esses mares; que combateu a Austria para permittir á Italia que realisasse a sua unidade, impedindo-a porém de attingir este ideal politico porque elle proprio protegia a conservação dos Estados da Igreja; que, finalmente, se lançou na expedição do Mexico para contrariar os Estados-Unidos, sem todavia querer declarar a guerra a esta potencia; que, nos ultimos annos do seu reinado, tentou unir ao regimen imperial o regimen parlamentar, abrindo pessoalmente uma brecha na cidadella que tinha construido desde 1848.
Estes sonhos ousados, e por vezes contradictorios, constituiam o caracter phantasista de Napoleão III. Como elle mesmo disse, o seu destino parecia consistir em procurar a solução de problemas insoluveis.
«O pensamento que guiou Napoleão III no negocio do Mexico, diz Paul Gaulot, era grande, generoso e politico.»
Qual fosse esse pensamento, dil-o tambem Gaulot, confirmando de uma maneira nitida a hypothese, até hoje vagamente formulada, de que elle pretendia ferir a republica norte-americana.
«Sobresaltado pelo immenso desenvolvimento que tinham tornado os Estados-Unidos, depois que com o auxilio dos francezes haviam sacudido o jugo da {241}Inglaterra e conquistado a independencia, o imperador previa nos destinos de uma nação, que não tinha cem annos de existencia e que já possuia a supremacia no seu continente, uma ameaça e um perigo para o mundo antigo.»
Pensava Napoleão que a Europa viria a ser esmagada pela concorrencia, especialmente agricola e industrial, da florescente republica do norte da America.
Os Estados-Unidos estavam novos, vigorosos, ricos, e a sua acção, encaminhada para a Europa, viria tolher o passo ás grandes nações europêas.
O momento pareceu azado a Napoleão para intervir. O sul dos Estados-Unidos estava em guerra com o norte. Pensou pois Napoleão III que não poderia ageitar-se melhor occasião para estabelecer, n'aquelles estados, uma scisão definitiva, e formar no Mexico um grande imperio latino, que supplantasse a republica americana, fraccionada e dividida.
Este foi, portanto, o pensamento, embora arrojado, exequivel, do imperador dos francezes.
A seu lado, nas Tulherias, a imperatriz Eugenia animava o plano audacioso de Napoleão III, não tanto por previsão politica como por sentimentalidade. Os exilados mexicanos iam levar ao conhecimento da imperatriz os seus desgostos e as suas lagrimas, pedir protecção e auxilio. Fallavam-lhe em hespanhol, a lingua patria da imperatriz, que decerto lhe avivava saudosas recordações de infancia, predispondo-a á benevolencia. Membros do partido clerical, os exilados identificavam a sua causa com a da {242}religião e do clero, attrahindo assim o espirito catholico da imperatriz, captando-o sentimentalmente.
No seu exaggero partidario, os exilados diziam que tudo se conseguiria com um simples passeio militar, e que o Mexico e a religião ficariam devendo á França uma gratidão eterna pelo restabelecimento da paz interior.
De mais a mais os antecedentes historicos favoreciam a propaganda dos exilados.
O antigo imperio do Mexico contára treze monarchas astecas desde a sua fundação até á conquista hespanhola.
Depois, durante a laboriosa gestação da independencia, o Mexico fôra governado por vice-reis, seguindo-se-lhe o ephemero imperio do general Iturbide, de modo que a formula monarchica encontrava, em seu favor, uns restos de tradição.
Á frente do partido que desejava o restabelecimento da monarchia estava Gutierrez de Estrada membro de uma familia illustre, o qual, sendo ministro dos negocios estrangeiros, em 1840, tinha escripto uma carta ao presidente da republica, Bustamante, propondo-lhe, como solução ás crises incessantes que desolavam a patria, a constituição de um governo monarchico.
Esta audacia acarretára-lhe a proscripção.
Gutierrez de Estrada viera refugiar-se na Europa, cada vez mais exaltado na sua propaganda.
Em 1854 subira á presidencia da republica o general Sant'Anna, que commungava as mesmas {243}idéas politicas de Gutierrez, e que lhe dera plenos poderes para tratar, nas côrtes de Paris, Londres, Vienna e Madrid, a questão do restabelecimento da monarchia no Mexico.
Gutierrez de Estrada dirigiu-se então ao duque de Montpensier, que declinou o offerecimento.
O presidente Miramon, successor de Zuloaga em 1859, confirmou o mandato dado por Sant'Anna a Gutierrez, e foi n'este momento que Napoleão III, informado do que se passava, chamou a attenção de Gutierrez para o archiduque Maximiliano.
Gutierrez acceitou com enthusiasmo esta indicação do imperador, tanto mais que uma antiga convenção do Mexico, conhecida pela designação de Iguala, e datada de maio de 1821, estabelecia que se adoptasse o principio da monarchia constitucional, e que se offerecesse a corôa aos infantes de Hespanha, irmãos do rei Fernando VII, e, no caso d'estes recusarem, ao archiduque Carlos d'Austria.
Portanto, apresentar a candidatura de Maximiliano era, de algum modo, fazer reviver uma tradição antiga.
Aqui estão, succintamente historiados, os fundamentos da intervenção da França na questão do Mexico.
D. Gutierrez de Estrada, presidente da deputação mexicana que foi a Miramar offerecer a corôa imperial ao archiduque Maximiliano, dissera-lhe:
—Vimos pedir a vossa alteza que se digne subir ao throno do Mexico, aonde vos chamam os votos de um paiz ha longo tempo dilacerado pela guerra, pois que possuis o segredo de conquistar os corações e a sciencia difficil de governar.
O archiduque respondeu:
—Que accedia aos desejos do povo mexicano, ao qual daria um governo liberal e constitucional, e que mostraria que a liberdade é compativel com o regimen da ordem.
Em seguida a esta troca de pequenos discursos, houve permutação de juramentos sobre o Evangelho: o imperador jurou fazer a felicidade do Mexico; D. Gutierrez, em nome do Mexico, jurou fazer a felicidade do imperador.
Como são falliveis e fallazes, tantissimas vezes, estes juramentos solemnes, cuja realisação não depende dos homens, que os fazem, mas apenas de Deus, que possue o segredo do futuro!
Maximiliano fiou mais de Napoleão III que d'essa mysteriosa força reguladora dos destinos humanos, que uns chamam Providencia, outros Acaso.
O deus das Tulherias promettia protegel-o, e tanto bastava n'uma época em que Bismarck não monopolisava ainda a direcção politica da Europa. De mais a mais, havia ao lado de Maximiliano uma gentil mulher que o amava, e que se ufanava de que o marido podesse cingir a cabeça com a corôa de um novo imperio, de que elle viria a ser o creador ostensivo.
A serpente da tentação silvára o perfido hymno, que já tinha sido escutado por Eva no Eden. E, pondo os olhos nos sonhados deslumbramentos do futuro, o par ditoso de Miramar começou a esquecer o seu dôce passado desambicioso, o chalet florido da collina, as salas tranquillas do castello, o mar azul, que, mais leal do que o povo mexicano e que o imperador dos francezes, nunca lhe tinha suggerido a idéa de uma aventura perigosa.
O dia da partida chegára, a fragata austriaca Novara e a fragata franceza Thémis fundearam no porto de Trieste, todo um enxame de archiduques e archiduquezas concorrêra ao bota-fóra, o burgomestre, em nome dos habitantes da cidade, significára ao novo imperador a viva saudade que elle deixava, e Maximiliano, abraçando o burgomestre, sentira os olhos inundados de lagrimas, e o coração atormentado por um vago presentimento de desgraça.
—Parece-me que não voltarei mais! dissera o imperador.
Mas a salva festiva de cem tiros, no momento em que o imperador embarcava, viera suffocar as suas palavras. A Novara, desfraldando as côres do Mexico, esperava baloiçando-se. As archiduquezas atiravam, na ponta dos seus finos dedos patricios, beijos alados que iam, adejando, procurar a face da imperatriz. Os archiduques acenavam ao imperador com os seus lenços brancos, que fluctuavam como outras tantas azas de garça. A multidão seguia com um olhar attento, curiosamente interessado, todo {246}esse extraordinario movimento de bateis que ondulavam em torno da Novara. E no chalet da collina de Miramar,—o dôce ninho de amor agora solitario—a madresilva chorava em lagrimas de perfume insinuante o abandono em que a deixavam os dois ingratos coroados. E o castello, na grandeza lutuosa das suas ameias, parecia comprehender as lagrimas da madresilva saudosa, e responder-lhe agoirentamente: «Como é louca a ambição! como é cega a cobiça!»
A Novara, seguida da Thémis, levantou ancora, e de pé, no tombadilho, tanto quanto os oculos de longa vista podiam abranger, Maximiliano, immovel como uma estatua, voltado para Miramar, devorava com os olhos o seu bello castello solitario.
Com a prôa na Italia, a Novara navegava desfraldando a bandeira do Mexico.
Maximiliano queria desembarcar em Italia para ir a Roma. Fazer o quê? Regular questões religiosas do Mexico, disse-se então. Pedir ao Padre Santo que abençoasse uma empresa aventurosa, porque não? As almas apprehensivas, como a sua, precisam, nos lances arriscados, procurar na fé um ponto de apoio, quando a esperança lhes sorri duvidosa.
Mas em Roma um aviso anonymo, affixado nas ruas da cidade santa, devia ter soado aos ouvidos de Maximiliano como uma prophecia terrivel, que vinha do seio mysterioso do incognoscivel.
Dizia o aviso que Roma inteira lêra com surpreza:
Maximiliano non ti fidare,
Torna sollecito a Miramare!
Il trono fradicio di Montexuma
È nappo gallico, colmo di spuma.
Il «Timeo Danaos» qui non ricorda
Sotto la clamide trova la corda.
O que, traduzido em portuguez, dirá, pouco mais ou menos:
Maximiliano, a Miramar
Deves solicito voltar,
Que o throno fragil de Mont'zuma
É como a taça cheia d'espuma,
Um laço armado pela França.
Do Timeo Danaos a lembrança
Quem a não pesa e a não recorda
Em vez da purpura acha a corda.
Com que funda e dilacerante angustia não sahiria de Roma o imperador do Mexico, a cujo encontro affluiam as felicitações festivas e as saudações lisonjeiras!
O diario de viagem de Maximiliano accusa claramente o desalento intimo da sua alma. «O mundo, escrevia elle, é pequeno, e todavia como se é baldeado de uma a outra extremidade da terra! Felizes os que se encontram!»
A Novara, sempre seguida pela Thémis, passou na ilha da Madeira, onde Maximiliano havia estado em 1852. Então, doze annos antes, consignára nas suas Memorias uma impressão deleitosa, de {248}despreoccupada felicidade: «Surge-me das ondas uma ilha encantada, resplendente dos raios de um sol tropical. O mar era transparente, ceruleo, o ar impregnado de perfumes inebriantes. Collinas basalticas, côr de violeta, relevavam d'entre o arvoredo cuja folhagem, de um verde brilhante, accentuava todas as energias da primavera. A minha alma, extasiada, inundava-se de alegria. Uma celeste pureza dominava o quadro...»
Agora, doze annos corridos na existencia placida de Miramar, a impressão que Maximiliano recebêra na ilha da Madeira fora bem differente. A corôa do Mexico, que não começára ainda a ser de espinhos, era já, comtudo, um fardo pesado. Vindo a terra, o imperador visitara os mortos, entrára no cemiterio do Funchal, e colhêra de uma campa solitaria uma rosa triste, que conservou toda a sua vida, mais como uma reliquia, do que como uma simples recordação.
A 28 de maio de 1864 a Novara avistou a costa do Mexico.
Em Miramar deviam florir áquella hora, em toda a pompa da primavera, os jardins do castello abandonado.
No Mexico uma faxa de areia, arida como um deserto, desenrolava-se ardente, apesar do fluxo refrigerante das ondas.
Á aridez da terra correspondêra a aridez da recepção. A Thémis tinha-se adiantado para annunciar a chegada dos imperadores, mas, apesar dos esforços {249}que o almirante Bosse empregára para salvar as apparencias, o povo do Mexico conservou uma attitude indifferente, porque não diremos, hostil? Que contraste entre esta recepção glacial e a despedida affectuosa de Trieste!
Maximiliano começou a comprehender a terrivel verdade que o pasquim de Roma lhe annunciára.
A administração franceza, a fim de tranquillisar o espirito sobresaltado do imperador, comprou talvez a peso de oiro um enthusiasmo postiço, que tibiamente principiou a manifestar-se desde a estação de Loma Alta, a ultima do caminho de ferro.
D'ahi por diante os imperadores viajaram n'uma caleche ingleza, que não seria digna de hospedes menos qualificados. E a sua comitiva pernoitava ao desabrigo, como uma caravana de bohemios, que apenas podiam contar com uma hospitalidade desconfiada.
A 12 de junho, os imperadores fizeram a sua entrada solemne na capital. Todo o apparato d'esse acto official orçou por uma mise-en-scène mediocre. Em nenhuma parte encontrou Maximiliano a franqueza que devia corresponder ao convite que lhe fôra feito para acceitar a corôa do Mexico.
Á noite houve espectaculo de gala, a que os imperadores assistiram, mas a maior parte dos camarotes conservou-se fechada.
Um protesto eloquente, posto que tacito, contra a invasão de um soberano estrangeiro.
A melhor sociedade do Mexico brilhava pela sua ausencia.
O melancolico palacio de Chapultepec, que fôra destinado para residencia dos imperadores, contrastava dolorosamente não já com a opulencia, senão tambem com o conforto do castello de Miramar.
E quando os dois esposos coroados quizeram, á volta do theatro, confidenciar as suas doloridas impressões d'aquella primeira noite do imperio, acharam-se isolados n'um velho casarão desguarnecido, que tinha sido residencia dos monarchas astecas e dos vice-reis[7].
Tal era o palacio de Chapultepec, que devia hospedar os fugitivos do poetico castello de Miramar!
A installação do imperio devia fazer prever a sua existencia ephemera e o seu fim desastroso.
O Mexico não poderia ser regenerado por um só homem, por maiores que fossem a energia e a dedicação d'esse homem. Paiz devastado pelas guerras civis, estava atrophiado, desorganisado, inculto. Não havia escólas, estradas, agricultura. Maximiliano {251}teve occasião de o reconhecer quando emprehendeu, arrostando com grandes perigos e incommodos, uma viagem através do seu novo imperio.
O roubo parecia guindado á altura de uma instituição nacional. E não eram só os leperos, especie de lazzaroni do Mexico, que roubavam; do palacio imperial desappareceram por vezes objectos preciosos.
Maximiliano, recolhendo á capital, projectou estradas, fundou escólas, concedeu caminhos de ferro. Creou uma academia de sciencias e bellas-artes, e traçou o plano da construcção, sobre o golfo do Mexico, de uma grande cidade industrial e commercial, a que daria o nome de Miramar.
N'este fervoroso trabalho era auxiliado corajosamente pela imperatriz, que passava os dias escrevendo a correspondencia politica do imperio, destinada ás côrtes da Europa.
Entretanto, os perigos que rodeiavam Maximiliano cresciam como uma onda temerosa. O partido juarista engrossava, as guerrilhas augmentavam, os {252}bandoleiros faziam audaciosas incursões até ás portas da capital. Bazaine casára com uma senhora mexicana; creára, portanto, ligações e interesses no Mexico, a sua sinceridade devia tornar-se suspeita a Maximiliano que, para conservar-se no throno, não tinha outro ponto de apoio senão a França.
Fôra Bazaine que aconselhára o imperador a decretar uma lei severa contra todos os bandos armados que infestavam o Mexico.
Era o rastilho que devia incendiar, contra Maximiliano, o espirito nacional. Mas o imperador dependia exclusivamente de Bazaine, e fez-lhe a vontade.
Foi leal o conselho de Bazaine? Tudo faz acreditar que não foi. Elle contava com o effeito seguro d'essa lei sanguinolenta. De facto, no 1.º de setembro de 1865, descobriu-se uma conspiração contra Maximiliano. Um dos cabeças da conspiração era o general Uraga, ajudante do imperador. Quinhentas pessoas foram presas, o corpo de dragões da imperatriz dissolvido, e Bazaine convidado a occupar militarmente o palacio imperial.
Que triste realeza a de Maximiliano, rodeiado de bayonetas no seu proprio palacio!
Coincidiu com este deploravel estado de coisas o termo da occupação franceza. Tres annos haviam passado. Napoleão III, que principiára a medir todo o alcance d'essa louca aventura do Mexico, procurava um pretexto desleal para mandar retirar a expedição franceza. Os Estados-Unidos deram-lhe o pretexto. E Maximiliano, vendo-se perdido, enviou á Europa, a {253}implorar a protecção de Napoleão III, a imperatriz Carlota.
Foi em agosto de 1866 que a desventurosa imperatriz chegou a Saint-Cloud. Os imperadores vieram recebel-a ao fundo da escada, com esse requinte de cortezia palaciana cuja intenção nem sempre é sincera. Feitos rapidamente os cumprimentos do estylo, o imperador e as duas imperatrizes encerraram-se em conferencia n'um gabinete particular.
Oiçamos agora o testemunho insuspeito de madame Carette:
«A imperatriz do Mexico, que contava então apenas vinte e seis annos, denunciava longas angustias, profundas inquietações. Alta, de um porte elegante e nobre, o rosto redondo, os olhos negros e salientes, as feições graciosas, a imperatriz trajava um longo vestido de sêda preta, ainda vincado das dobras da mala em que fôra acondicionado durante a viagem e de que fôra tirado á pressa, sem ter havido tempo de o arejar; um mantelete de rendas pretas, e um chapeu branco muito enfeitado, que tinha sido comprado n'essa manhã em casa de uma das primeiras modistas. O calor era n'esse dia asphyxiante, e fôsse por effeito do longo trajecto em carruagem, ao sol, desde Paris a Saint-Cloud ou por effeito das commoções que a agitavam, as faces da imperatriz estávam vivamente rosadas.
«Acompanhavam-n'a duas damas de honor, mexicanas, muito feias, morenas, pequenas e {254}desgraciosas, que fallavam o francez com difficuldade. Ao passo que os soberanos conferenciavam largamente e sem testemunhas, esforçavamo-nos por entreter estas duas estrangeiras, que pareciam muito perturbadas. Eu consegui trocar algumas phrases com uma d'ellas, e, para matar o tempo, offerecemos-lhes alguns refrescos.
«A dama mexicana pediu-me que mandasse uma laranjada á imperatriz Carlota, que, segundo me disse, costumava, áquella hora, tomar esse refresco. Dei immediatamente ordem na ucharia para que servissem a laranjada. A imperatriz Eugenia, contrariada com a entrada do criado, perguntou quem lhe tinha dado a ordem. Respondeu que fôra eu, e foi a propria imperatriz Eugenia que serviu a laranjada á imperatriz Carlota, tendo que insistir para que a tomasse, porque a imperatriz do Mexico parecia hesitar.»
Duas horas durou essa entrevista dos tres personagens. Não valeram razões, supplicas, rogos. O imperador Napoleão fôra de pedra, elle, o inventor do imperio do Mexico, elle, a serpente que tentára Maximiliano!
Carlota sahiu de Saint-Cloud pedindo á imperatriz que ao menos interpozesse o seu valimento para demover Maximiliano a sahir do Mexico.
Foi chorando copiosamente que a imperatriz Carlota deixára Saint-Cloud. Pobre coração de mulher, que uma dôr incomportavel dilacerava! Entrára em Saint-Cloud uma imperatriz; sahira uma louca.
De Paris, essa desgraçada senhora fôra para Roma, implorar o auxilio do chefe da igreja catholica. Receiosa de que a quizessem envenar, depois que lhe serviram a laranjada em Saint-Cloud, apenas se alimentava de fructas. Entrou no Vaticano no momento em que Pio IX almoçava. Arrancando da mão do Papa uma chavena de chocolate, tomou-o soffregamente exclamando:
—Ao menos este não estará envenenado!
Sempre receiando uma cilada, não quiz recolher-se ao hotel. Foi preciso consentir em que pernoitasse no Vaticano, n'uma camara visinha á de Pio IX. A loucura era completa, manifesta. Maximiliano estava perdido. Fôra esse crudelissimo desengano que esmagára a razão da pobre imperatriz.
Conduziram-n'a a Miramar, na esperança de que o aspecto de lugares conhecidos e queridos lhe restituisse a razão. O povo de Trieste, supersticioso como todo o povo, começou a consideral-a uma santa. Sim, santa de martyrio, santa de soffrimento. Mas louca para toda a vida. A dôr santificára-se n'ella em loucura. Deus fôra mais piedoso do que os homens creados á sua imagem e semelhança.
Bazaine, sahindo do Mexico, abandonára o imperador ás represalias dos juaristas. Antes de sahir, fizera lançar ao rio Sequia e ao lago Texcoco todas as suas munições. Que refinada perversidade a d'esse homem, que a Providencia castigou tão justa e sabiamente! Diz-se até que Bazaine tinha proposto a Juarez entregar-lhe Maximiliano por 50:000 dollars. {256}Naturalmente, Juarez, visto que Maximiliano ficava indefeso, achou caro. Podia tel-o de graça logo que o exercito francez retirasse. E assim foi. Juarez era mais esperto do que Bazaine, mas não menos ambicioso.
O que fazia entretanto o imperador Napoleão? Nada. Pedia a Maximiliano que fugisse. Maximiliano respondia nobremente que um Habsburgo não sabia fugir como um cobarde. Apenas consentiria em sahir como um imperador, renunciando á corôa.
Foi n'este proposito que Maximiliano partiu para Vera Cruz, onde a corveta Dandolo o esperava. Mas ahi, quando pensava em restituir ao povo mexicano a menos invejavel das realezas, o partido conservador fizera-lhe promessas de homens e dinheiro. Maximiliano acreditou, com essa estranha credulidade dos espiritos combatidos pelas grandes dôres. A esse tempo já tinha recebido a noticia da loucura da imperatriz. Naufrago desesperado, agarrou-se á primeira taboa de salvação, embora fragil, e talvez perfida, que lhe offereciam.
A Providencia, sempre justa, preparava para Napoleão a derrota de Sedan, e o exilio; para Bazaine o carcere, a infamia, o homizio. Poucas vezes a historia nos assignala um ajuste de contas tão rapido e completo; uma liquidação de responsabilidades que tanto satisfaça a consciencia humana.
A retirada da expedição franceza déra alento a Juarez, que ameaçou ir cercar a capital.
Maximiliano, querendo poupar os habitantes da cidade aos incommodos e perigos do assedio, retirou-se para Queretaro, onde, com o auxilio de alguns generaes, que se lhe conservaram fieis, pudéra reunir um pequeno nucleo de tropas defensivas.
A sorte das armas deveria decidir da victoria entre o exercito do imperador e o de Juarez. Os acontecimentos futuros dependiam pois da vantagem que o azar dos combates désse a um ou a outro dos dois contendores. Mas o coronel Lopez, ajudante do imperador, apressou, dizia-se, o desfecho do drama com uma traição ignobil: vendêra Maximiliano aos juaristas por 2:000 onças de oiro. E todavia Lopez havia sido extremamente beneficiado pelo imperador com generosas dadivas, sabia-se[8].
Na madrugada de 15 de maio de 1867, o imperador, que costumava levantar-se muito cedo, viu Queretaro em poder dos juaristas. Graças ao general Rincon, pôde ainda ir refugiar-se na pequena collina de Cerro de las Campanas, que domina a cidade.
Escobedo, general juarista, deu-se pressa em sitiar a collina. O imperador, reconhecendo que toda a tentativa de resistencia seria um sacrificio inutil, mandou atar um lenço branco na bayoneta de uma espingarda. Capitulava. Pouco depois entregava a sua espada ao general Corona, e era conduzido, com os outros prisioneiros, ao convento de Santa Theresita, d'onde foram transferidos para o convento dos Capuchinhos.
Juarez mandou reunir o conselho de guerra para julgar os prisioneiros. Maximiliano recusou-se a comparecer. Durante tres dias funccionou o conselho: no {259}banco dos réos estavam sentados os generaes Miramon e Méjia, imperialistas. A sentença foi de morte: o imperador e os dois generaes deviam ser passados pelas armas. Marcou-se a execução para o dia 19, e de nada valeram os esforços empregados junto de Juarez pelos embaixadores da Prussia e da Inglaterra para obterem o perdão dos condemnados.
Na noite anterior, Maximiliano pediu uma tesoura ao carcereiro. Foi-lhe recusada. Supplicou então que lhe cortassem uma madeixa do seu cabello e incluiu-a n'esta carta que escreveu á imperatriz:
«Minha querida Carlota. Se Deus permittir que melhores um dia e que leias estas linhas, conhecerás a crueldade do destino que não deixou de perseguir-me desde a tua partida para a Europa. Levaste comtigo a minha felicidade e a minha alma. Por que {260}te não ouvi eu?! Tantos acontecimentos, tantas catastrophes inesperadas e immerecidas me teem esmagado, que, desamparado da esperança, vejo na morte o anjo da redempção. Morro sem agonia. Cahirei com gloria, como um soldado, como um rei vencido... Se não tiveres forças para arrostar com tamanho soffrimento, se Deus em breve te reunir a mim, abençoarei a sua mão paterna e divina que tão rudemente nos feriu. Adeus! adeus!
Teu pobre—Max.»
Max era o diminutivo de familia, com que tambem assignou outras cartas, escriptas em francez, e dirigidas a sua mãi, á archiduqueza Sophia e a muitos amigos.
Como se vê, Maximiliano conservou, em frente da morte, uma attitude serena e calma.
Ás seis horas da manhã do dia 19, um official veiu abrir a porta do carcere.
—Estou prompto, disse o imperador adiantando-se.
E ao sahir a portaria do convento dos Capuchinhos, erguendo os olhos para o céo:
—Que bello dia! Sempre esperei morrer n'um dia de sol.
Entrou na carruagem descoberta que lhe era destinada. Os generaes Miramon e Méjia, cada um em sua carruagem, seguiam a do imperador. Eram escoltados por quatro mil homens. O funebre cortejo poz-se a caminho para o Cerro de las Campanas. Os {261}condemnados iam de pé, serenos, tranquillos. As ruas e janellas estavam cheias de gente. Maximiliano, diz Tissot, nunca pareceu mais bello do que n'essa occasião. As mulheres desviavam o rosto para occultar as lagrimas.
Houve um momento em que o general Méjia se perturbou: foi quando sua esposa, com o filho, recem-nascido, nos braços, rompeu d'entre a multidão, os cabellos em desordem, o gesto allucinado. Méjia escondeu o rosto entre as mãos. Foi esta a unica fraqueza no espectaculo heroico d'aquelle triplice fuzilamento.
Quando a primeira carruagem chegou ao Cerro da las Campanas, Maximiliano apeiou-se com ligeireza, distribuiu a cada soldado uma onça de ouro, e disse-lhes:
—Apontai bem, meus amigos; tomai por alvo o meu coração.
Um dos soldados chorou. Maximiliano entregou-lhe a sua carteira de cigarros, cravejada de pedras preciosas. E, como o official que devia dar a voz de fogo lhe pedisse perdão, o imperador respondeu:
—Um soldado deve sempre obedecer ás ordens que recebe: cumpre o teu dever.
Em seguida abraçou os generaes Miramon e Méjia, como elle condemnados á morte.
—Dentro de alguns minutos, vêr-nos-hemos no céo, disse-lhes.
Apertou a mão de Miramon, em primeiro lugar, dando a razão da preferencia:
—General, ao mais bravo, o lugar de honra.
E a Méjia:
—Os que soffrem injustamente são recompensados n'outro mundo.
Depois, subindo a uma pedra, fallou ao povo:
—Mexicanos! Os homens da minha condição e da minha raça são destinados a fazer a felicidade dos povos ou a serem victimados por elles. Não foi um pensamento illegitimo que me trouxe ao vosso paiz. Fôstes vós que me chamastes. Antes de morrer, quero dizer-vos que empreguei todos os esforços para vos felicitar. Mexicanos! possa o meu sangue ser o ultimo que façaes derramar e possa o Mexico, minha desgraçada patria adoptiva, ser feliz. Viva o Mexico!
Um sargento veiu ordenar a Miramon e a Méjia que se voltassem de costas: deviam ser assim fuzilados como traidores.
—Até á vista, disse-lhes Maximiliano.
E, afastando as suas longas suissas louras, apontou para o coração, exclamando: Aqui!
Á voz de Apontar, um murmurio de indignação sahiu d'entre a multidão dos indios, em cuja raça é antiga a superstição de que um homem da raça branca os ha de libertar um dia.
Os officiaes voltaram-se brandindo a espada para reprimir a multidão. Ouviu-se a voz de fogo.
—Viva o Mexico! disse Miramon.
—Carlota! Carlota! exclamou Maximiliano.
E quando a fumarada se dissipou, tres cadaveres {263}ensanguentados jaziam ao sol no Cerro de las Campanas.
O drama do Mexico, preparado por Napoleão III, tinha tido o seu ultimo acto.
O general Lopez, o Judas de Maximiliano, a ser verdadeira a tradição antiga, não recebeu as duas mil onças de ouro que lhe tinham sido promettidas, mas apenas sete mil piastras. A execração publica amaldiçoou-o... pelo menos durante vinte annos.
Napoleão III morreu exilado em Inglaterra, e seu filho acabou ás mãos dos zulus na Africa.
Bazaine, tendo podido fugir do carcere depois da guerra franco-prussiana, com o labéo de traidor, expirou em Hespanha, onde se homiziára.
A imperatriz Carlota vive ainda, se dos loucos se póde dizer que vivem. Tem hoje quarenta e nove annos de idade. Está habitualmente no castello de Laeken, onde nasceu. Seu irmão e sua cunhada, os reis da Belgica, fazem-n'a rodear dos maiores carinhos por meio de uma assistencia dedicada e vigilante. Todos os caprichos da pobre louca são pontualmente satisfeitos. Ás vezes sonha ella ser ainda imperatriz, quer dar recepções solemnes, festas magnificas. E os convivas que n'esses momentos a rodeiam são bonecos vestidos á côrte, que ella saúda com uma longa mesura, arrastando magestosamente sobre o tapete a cauda roçagante do seu manto imperial.
Um viajante que esteve ha pouco tempo em Laeken viu-a encostada a uma janella do castello. {264}Scismava. Quem sabe se, através do nevoeiro que lhe envolve a razão, não avistaria ao longe, muito ao longe, vaga e confusamente, o seu antigo castello de Miramar, como no fundo de um sonho doloroso uma memoria truncada!
Graças aos esforços empregados pela Russia, o corpo de Maximiliano foi restituido em 1867, sendo por essa occasião libertados alguns soldados austriacos que se conservavam prisioneiros, e perdoado o principe Salms-Salms, que tinha sido condemnado á morte com o imperador.
De toda a catastrophe do Mexico restam hoje tres viuvas: a de Maximiliano, de Napoleão III, e do marechal Bazaine.
No Mexico, além da tradição historica que a auctoridade de Juarez não pôde supprimir, existe uma recordação, tão saudosa quanto delicada, do ephemero e infeliz imperador: são os rouxinoes que cantam nas florestas de acajú, e nos chinampas, ilhas fluctuantes. No dia em que Maximiliano foi fuzilado, chegavam ao Mexico, em vez de munições de guerra que elle bem poderia ter encommendado para se entrincheirar no throno, dois mil rouxinoes que havia mandado comprar na Styria para com elles povoar as arvores das florestas.
I
É costume portuguez dizer-se por graciosidade ou disfarce, segundo a idade da pessoa com quem estamos fallando, que as creanças recemnascidas vieram de França.
Os loiros babys, que aguardam impacientemente a chegada de mais um irmão pequenino, contentam-se ingenuamente com a resposta que lhes damos—de que o menino viera de França—e, annos volvidos, quando a malicia do mundo lhes revelou o segredo da procreação da especie humana, elles mesmos continuam a tradição dizendo por sua vez aos filhos curiosos—que viera tambem de França aquelle lindo menino, que lhes offerecem para irmão.
Mas... ó triste idade a nossa, em que já se não acredita em quasi nada, e muito menos em meninos {266}que vêm de França!... mas por que razão se escolheu a França como paiz ideal de onde todos os meninos portuguezes são oriundos! A phrase ficou lendaria entre nós, a tradição subsiste com a mesma intensidade, com ella ludibriaram a nossa curiosidade infantil, e com ella, por nossa vez, respondemos á pergunta, por igual curiosa, de nossos filhos.
Não haveria um facto historico que determinasse a origem d'esta tradição? Aposto que o leitor nunca pensou n'isto! Nunca! É celebre! Tanto mais celebre, se é certo que já alguma vez encommendou para França meninos recemnascidos.
Pois, verdade, verdade, eu nunca tinha pensado tambem, e não o pensaria jámais, se o licenciado Duarte Nunes de Leão, nas suas chronicas de reis portuguezes, especialmente na de Affonso III, não tivesse chamado a minha attenção para uma antiga lenda portugueza, que bem póde ter dado origem á tradição de que é de França que chegam os meninos recemnascidos.
É possivel que eu esteja em erro, mas como isso não prejudica os meninos, nem os pais, e menos ainda a França, afoito-me a emittir uma opinião, que as academias talvez ingratamente repillam, mas que não deixará comtudo de ter uma tal ou qual apparencia de verosimilhança.
Posto este brevissimo exordio, entremos no assumpto, quero dizer na chronica de Duarte Nunes.
Depois de ter contado como o infante D. Affonso casára em França com a condessa Mathilde de {267}Bolonha, viuva de Filippe o Crespo, e como, sendo acclamado rei de Portugal, a repudiára para desposar a filha do rei de Castella, empenha-se Duarte Nunes em demonstrar, por documentos authenticos, que a condessa de Bolonha não houvera filhos de D. Affonso de Portugal.
A dissertação do chronista tem por fim rebater uma lenda, que se enraizára entre o povo portuguez, e sobre a qual assenta a hypothese que eu pretendo formular.
Escreve, pois, o historiador:
«... resta satisfazer ás fabulas da gente popular, que ficaram por historia de mão em mão, e que o chronista Fernão Lopes conta na vida do dito rei, não sabendo o que seguisse, nem o que fugisse, por a pouca informação que d'aquelles tempos rudes pôde alcançar, e por o pouco discurso que elle n'isso podia fazer por falta de noticia das historias estrangeiras. Primeiramente diz que passados alguns annos depois de o infante D. Affonso partir de Bolonha, soube a condessa sua mulher como el-rei D. Sancho era fallecido, e o conde D. Affonso seu marido levantado por rei. E que não sabendo ser elle casado, armou uma frota, em que veiu a este reino. E que aportando a Cascaes, soube do casamento de seu marido com a filha d'el-rei de Castella, e estar com ella recreando-se na aldeia de Friellas, termo de Lisboa. E que fazendo-lhe saber de sua vinda, e requerendo-lhe a recebesse a ella, e se apartasse {268}d'aquella mulher, com que estava em peccado, el-rei lhe mandou que se fôsse fóra de seu reino. Contam mais que a condessa se tornou para França, deixando-lhe um filho que trazia, segundo a opinião de alguns; e outros diziam que o tornou a levar, e de lá o mandou depois a Portugal.»
Aqui é que bate o ponto.
O facto era importante como questão politica: tratava-se da successão á corôa. Uns davam razão ao rei; outros á condessa de Bolonha. E discutia-se a hypothese de existir um filho do primeiro casamento de D. Affonso III; fallava-se muito de um menino que viera de França.
Duarte Nunes de Leão trata de desmentir a lenda com documentos e razões chronologicas. Mas a lenda enraizou-se e floresceu em Portugal, a ponto de sobreviver ao menino que viera de França, e que teria morrido de morte natural ou violenta.
O povo, pelo que se infere de Duarte Nunes, acreditava que o menino estava sepultado na igreja de S. Domingos.
Diz a chronica:
«E para que a gente vulgar, que não se move tanto por razões, quanto pelos sentidos de vista e ouvida, se satisfaça, é necessario declarar-se que sepultura era a de S. Domingos de Lisboa, em que havia fama no povo que estava enterrado um menino filho da condessa Mathilde e d'el-rei D. Affonso {269}seu marido, que diziam que era o que trouxera comsigo ou mandára de França.»
Duarte Nunes viu a sepultura, e descreve-a. A caixa era de marmore branco, com varios ornatos esculpidos á roda, figurando arvoredo e montaria de porcos e cães. As lettras do epitaphio eram gothicas. Mas as dimensões da sepultura denunciavam o cadaver de um adulto, não de um moço de pouca idade. Vinte annos antes de Duarte Nunes escrever a chronica de D. Affonso III, querendo o prior de S. Domingos «despejar o cruzeiro (onde a sepultura estava) ou por não lêr aquellas lettras, porque constava jazer alli um filho do rei, que fundou aquella casa, ou por cuidar que seria algum menino», abriu-se a sepultura e achou-se um corpo incorrupto, sanissimo, diz o chronista, reconhecendo-se que era de homem grosso. Os ossos foram trasladados para outra sepultura, proxima á capella de Santo André.
«De maneira, escreve o chronista, que a fama de alli estar um menino filho de Mathilde, era falsa e vã, e era certo estar alli o infante D. Affonso, irmão inteiro d'el-rei D. Diniz, que morreu de grande idade com muitos filhos e netos.»
Como se vê, a lenda do menino que viera de França generalisou-se entre o povo portuguez, e atravessou os seculos sem perder uma parcella da sua popularidade. O proprio prior de S. Domingos, que devia ser homem ilustrado, teve duvidas, e só se desenganou depois de ter mandado abrir a sepultura.
A lenda cahiria então em algum descredito, que aliás não foi completo, como logo veremos, mas, a locução, havendo-se tornado tradicional, permaneceria, chegando até nós. Para de algum modo satisfazer á curiosidade ingenua das creanças, dir-lhes-iam que todos os meninos vinham de França, como o da lenda. E assim o phenomeno physiologico da maternidade ficaria na imaginação das creanças envolvido no mesmo mysterio, que pesou sobre o nascimento de um filho de D. Affonso III e da condessa de Bolonha até ao dia em que na igreja de S. Domingos foi aberta a respectiva sepultura.
E quantos espiritos populares não passaram d'esta para outra vida com a convicção de que effectivamente um menino, filho do rei portuguez, viera de França, por ordem de sua mãi! Similhantemente, os espiritos infantis dos loiros babys acreditam ingenuamente que os seus irmãos pequeninos, como elles proprios, vieram de França por ordem de sua mãi e... de seu pai. A differença, que é insignificante, está apenas na parceria da encommenda.
O menino de S. Domingos era um mysterio, um segredo, como aquelle que para as credulas creaturinhas deve envolver o facto da gestação e do nascimento, em toda a sua verdade physiologica.
Com o reconhecimento do cadaver desfez-se o mysterio, mas a lenda subsistiu conservando a locução, tanto mais que ficou a perpetuar a lenda um monumento em que a imaginação popular a materialisou.
Sabe o leitor que monumento é esse? Não sabe, decerto. São alguns rochedos que afloram do mar na barra de Lisboa.
Dil-o Duarte Nunes:
«E para que não fique coisa a que se não responda, outra historia como esta andava entre as velhas, e gente popular, porque contavam que quando a condessa veiu a Cascaes e foi desenganada d'el-rei seu marido, que a não havia de recolher, tornando-se para França, estando já para dar á vela, lhe deixou dois filhos, dizendo que dissessem a el-rei que tomasse lá seus cachopos, e que por isso se chamou Cachopos áquelle lugar do mar, onde os deixou, não entendendo aquella gente vulgar que cachopos é palavra portugueza de homens rusticos, por que chamam aos moços de pouca idade, e que a condessa Mathilde, franceza da Gallia Belgica, não podia fallar por aquelles termos da lingua portugueza, que não sabia, e que aquelle lugar da barra de Lisboa, de penedia e bancos, que vão por debaixo da agua, onde as naus perigam, se diz cachopos, corrupto o vocabulo latino scopulus, como se corromperam pela successão dos godos e dos mouros outros infinitos vocabulos, que temos da lingua latina, d'onde a nossa tem a origem. Isto é coisa de graça...»
Graciosos na sua elegante singeleza são tambem este e os outros relanços da chronica de Duarte Nunes.
Não sei se o leitor ficará inclinado a acreditar que a lenda do menino de S. Domingos haja dado origem á locução proverbial de que os meninos recemnascidos vêm de França.
Se não ficar, releve-me a innocentissima conjectura pelo prazer que decerto lhe deram as transcripções que fui buscar a Duarte Nunes e que, aproveitando-lhe a phrase, diga complacentemente com o chronista: Isto é coisa de graça.[9]
II
(Março de 1887)
E a proposito...
Toda a semana se fallou muito de um principesinho que ha de vir de França, n'um bercinho de verga doirada, deitado n'uma almofadinha de sêda, entre rendas e flôres, sobrescriptado para o Paço de Belem.
Os jornaes não teem fallado de outro assumpto, e os pais de familia vêem-se sériamente entalados para explicar aos bebés o motivo por que esse lindo principesinho que ha de vir de França (e que deve ser lindo como todos os principes) não chegou ainda, a despeito de fazer-se esperar por toda a familia real e por todos os habitantes do paiz.
Tem sido realmente preciso dar tratos á imaginação para explicar phantasiosamente o caso d'essa demora imprevista, para satisfazer a justa curiosidade dos bebés, e se o accouchement da princeza Amelia tardar ainda mais alguns dias, receio muito que chegue a esgotar-se a imaginação dos pobres pais de familia.
Um dia são os pastores dos Pyrenéos que, sabendo que por alli passa um principesinho, se juntam para vêl-o, obrigando o portador a parar e a mostrar-lh'o.
Não tem o portador outro remedio senão parar, descobrir o bercinho, mostrar o principe.
Então os pastores querem beijal-o por força, e pedem ao portador que se demore emquanto elles vão buscar a melhor rez do seu rebanho para offerecel-a áquella linda creança.
Outras vezes é o portador que se enganou no caminho, por ser a primeira vez, depois de muitos annos, que traz um principe a Portugal.
Outras vezes é ainda o portador que, por ter caminhado com muita pressa, ancioso de chegar, cansou a meio do caminho e parou.
Finalmente, são as andorinhas que reclamaram para si o direito de vir trazendo o principesinho nas suas azas, mas como as andorinhas sejam pequenas ainda mais pequenas do que o principe, o emissario vê-se forçado a dar-lhes frequentes descansos.
Durante vinte e quatro horas, os bebés, não tendo ouvido os foguetes, acreditam na desculpa que {275}se lhes dá, mas no dia seguinte, como a demora vá continuando, é preciso inventar uma desculpa, e um pai de familia, por muito amor que tenha aos seus filhos, póde não ter tanta imaginação que chegue para cada um d'elles...
Entretanto, os bebés e os adultos vão esperando pelo principesinho que ha de chegar de França n'um bercinho de verga doirada, deitado n'uma almofadinha de sêda, entre rendas e flôres, sobrescriptado para o Paço de Belem.
Já tudo está a postos para o receber. Os condes de Paris esperam, o principe D. Carlos mostra-se impaciente, e a princeza D. Amelia pergunta ás flôres dos jardins de Belem se ellas sabem o motivo por que o principesinho não chega. Nem as flôres, nem o dr. Ravara, nem o dr. Greneau, nem a snr.ª Prévot teem sido capazes de responder a esta pergunta. Passa-se o dia em interrogações no Paço de Belem. De vez em quando ha um rebate falso, é chamada a côrte a toda a pressa, os artilheiros correm a postar-se junto ás peças, as damas de honor principiam a desdobrar as alfaias do enxoval, os sineiros sobem aos campanarios, vai emfim chegar o principesinho, faz-se um grande silencio respeitoso, olha-se para a porta da rua, a sentinella chama as armas...
E o principesinho não chega!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O dr. Ravara encolhe os hombros, a snr.ª Prévot {276}consulta os guias de viagem, o dr. Greneau pergunta se não estará sonhando, mas o que é certo é que a pequenina alteza, sabendo talvez que já vai sendo um pouco amargo ser principe, parece não ter pressa nenhuma de o ser!
Aposto que sua possivel alteza está talvez dizendo a esta hora:
—Querem-me lá para começarem desde logo a discutir-me! Pois vão esperando por mim. Que o Magalhães Lima vá aguçando a penna, e o Consiglieri Pedroso vá ensaiando a voz. Eu bem sei que elles não são meus amigos e o meu coração é tão pequenino que não comporta odios contra ninguem. Como não saberei odial-os, não estou para os aturar por ora. Que vão esperando. Teem lá muito que discutir, encham os jornaes republicanos como pudérem, que eu não estou para me aborrecer. Se eu fosse filho de um saloio de Alcabideche ou de um piloto de Cascaes, não teria duvida em chegar depressa. Ninguem daria pela minha chegada, e eu poderia regaladamente dormir o meu primeiro somno. Mas como sou filho do herdeiro da corôa de Portugal, como eu sei que tenho de aturar os republicanos e as peças de artilheria, os foguetes e os jornaes, os repiques de sino e os repiques dos poetas, como eu calculo que tudo isso deve ser muito massador, vou-me deixando estar onde estou, no paiz dos possiveis, gozando da regalia que tenho de me fazer esperar, visto que, depois que eu fôr crescido, todos ralharão se me fizer esperar cinco minutos em qualquer parte...
O dr. Ravara continúa a vêr-se embaraçado com as perguntas que lhe fazem, o snr. conde de S. Miguel deixa de jantar, a snr.ª Prévot vê-se sériamente atrapalhada, mas a verdade é que o principesinho não chega porque não tem vontade nenhuma de chegar.
E o principesinho tem razão.
—Aqui, dirá sua pequenina alteza, todos os anjos me tratam por tu e brincam commigo. Está-se muito bem, e elles proprios me informam de que lá em baixo ha um monstro terrivel, que devora a paciencia, e que se chama a Pragmatica. Eu tenho medo d'esse monstro, em respeito ao qual todas as pessoas passarão a tratar-me por alteza, a mim, que sou mais pequenino do que ellas!
E emquanto sua alteza assim monologava, sem querer chegar, Lisboa, desesperada por esperar, ia olhando para o Tejo para vêr subir as aguas da grande maré tão annunciada.
Mas a maré passou, só não chegou ainda a maré de sua alteza chegar n'um bercinho de verga doirada, deitado n'uma almofadinha de sêda, entre rendas e flôres, sobrescriptado para o Paço de Belem!
Pobre dr. Ravara!
Pobre snr.ª Prévot!
E pobres pais de familia, porque ámanhã, talvez, já os seus bebés não acreditarão em desculpas!
(Outubro de 1887)
A viagem de el-rei D. Luiz I á serra do Gerez foi durante esta semana objecto de uma copiosa reportage, que diluviosamente inundou todos os jornaes do paiz.
Para as pessoas que apenas teem feito á roda de Lisboa pequenas excursões de recreio, a viagem da familia real ao Alto Minho foi motivo de tamanha surpreza, que muitas d'essas pessoas inclinam-se a pensar que não passa tudo de uma historia fabulosa, similhante ás que Julio Verne conta nos livros interessantissimos, posto que phantasticos, das suas Viagens maravilhosas.
Mas a verdade é que o Alto Minho existe realmente com todos os seus segredos de ethnographia pittoresca, de uma simplicidade primitiva, quasi {280}prehistorica, e que a familia real portugueza acaba de passar tres dias n'essa região ignorada, defendida da contacto das gentes pela altitude penhascosa das suas montanhas alpestres, pela torrente espumosa das suas rapidas cataractas, e pelo accesso difficil das suas quebradas profundas, dos seus picos ingentes, e dos seus barrocaes pavorosos.
O Gerez não é precisamente uma serra que os snrs. reporters tenham mais ou menos phantasiosamente recortado sobre os contornos das montanhas alcantiladas da Escocia ou da Suissa, eriçadas de sarçaes, esmaltadas de lagos argenteos e povoadas de raças autochtones, que se manteem na plenitude da sua originalidade rudimentar.
Os snrs. reporters podem ter, e teem decerto, prendas litterarias para isso e muito mais, mas ao menos d'esta vez teem sido de uma veracidade immaculada, de que podem dar testemunho as poucas pessoas que, em relação á população total do paiz, conhecem a provincia do Minho para além do rio Cavado e do seu irmão siamez o rio Homem.
O Gerez não é uma fabula, não senhores, é uma cordilheira que existe tão realmente como a podem vêr os povos confinantes do Minho e Traz-os-Montes, estendendo-se na direcção de nordéste para suduéste e na extensão de sete leguas, desde Pitões até Rio Caldo.
Esta serra notavel, cujo terreno é de uma formação geologica primitiva, conserva, em harmonia com o seu granito silicioso, uma bella mise-en-scène por {281}igual primitiva, movimentada por actores montesinhos, que parecem representar alli o drama sacro de um genesis eterno.
Toda a fauna conserva um cunho de selvageria aborigene, porque os lobos, os javalis, os veados, as cabras montezas, os bufos, as aguias reaes são ainda hoje os dominadores incontestados das mattas cerradas e dos invios labyrinthos alpinos das florestas virgens do Gerez.
Houve tempo em que o urso completou o elenco da troupe animal do Gerez, mas desde que os pastores pensaram em afugental-o com o clarão sinistro das fogueiras para esse fim accesas durante a noite, o urso, a datar do seculo XVII, fugiu para não mais voltar.
Toda a serra está povoada de lendas supersticiosas guardadas, de seculo para seculo, pela inviolabilidade das suas proprias florestas, e pelo estranho caracter da sua flora e da sua fauna, ainda hoje defendidas pelos sete sêllos de um segredo por igual inviolavel.
Está por acaso estudada a flora do Gerez em todos os arcanos da sua vegetação luxuriante? Não está decerto. Pois o mesmo acontece com relação a essa outra flora, deixem-me assim dizer, das tradições ou das lendas locaes, de que apenas se conhece vagamente um ou outro specimen.
Sobre o penedo da Santa raros olhos terão visto impressos na rocha os vestigios que os serranos contam ser os dos joelhos e pés de Santa Eufemia, que {282}alli vivêra vida eremitica, quando andava fugida á perseguição de seu pai, governador romano da cidade de Braga.
N'um valle de Covide poucas pessoas terão examinado um eito de pedras lavradas, que lá denominam fileiras, e que, segundo a tradição local, foram alli collocadas de proposito para obstar a que os ursos atacassem as colmêas, porque os ursos usavam abraçar-se aos cortiços, rolal-os até encontrarem agua e ahi, afogando as abelhas, comer tranquillamente o mel dos favos.
Por onde se vê que é injusto chamar urso a um individuo pouco esperto.
Mas todas estas tradições, de que ha memoria escripta, são em tão pequeno numero, que bem se póde presumir que o Folk-lore da serra do Gerez está apenas prefaciado por dois ou tres dos nossos chorógraphos.
D'esta quasi absoluta ignorancia em que todos vivemos a respeito da ethnographia das nossas provincias mais sertanejas e remotas, resulta a surpreza com que o paiz está lendo as descripções da viagem da familia real através do Alto Minho, e da sua excursão venatoria na serra do Gerez.
Todo o bom lisboeta, mesmo aquelle que por engano costuma dar excellencia ao rei, ficou hilariantemente surprehendido de que um montanhez minhoto saudasse o snr. D. Luiz dando vivas ao reverendo snr. rei, que é um bom homem.
N'aquellas regiões alpestres, onde a pureza dos {283}costumes é ante-diluviana, ainda o ser bom constitue o supremo elogio de quaesquer homens, incluindo os reis.
Em Lisboa, na baixa ou na alta, tanto monta ser bom como ser mau. Mas no Gerez a ignorancia de formalismos e pragmaticas é tão profunda como a ignorancia de tudo o mais.
Riram-se poetas alfacinhas de que as camponezas de Lago ensoassem em honra d'el-rei uma trova de toantes gallaicas, ao sabor dos primeiros monumentos da litteratura portugueza:
Vamos, vamos depressa,
Corramos p'r'a varanda,
Vêr o rei de Portugal,
Que vai para a caçada.
Mas é que os parnasianos de Lisboa esqueceram, para rir, as memorias historicas do passado e as condições autochtones d'essa especie de bascos da Lusitania, chamados minhotos.
Lembrassem-se elles do seu Frei Luiz de Souza e da pagina que rememora a visita de Frei Bartholomeu dos Martyres á serra de Barroso.
«Correu a voz, pela serra—diz o classico dominicano—da vinda do arcebispo. Abalou-se toda; foi o alvoroço e alegria sem medida. Juntavam-se a recebel-o pelos caminhos com suas danças e folias rudes, que era o extremo da festa que podiam fazer. E, porque não fossem julgados por menos agrestes que {284}os seus mattos, nas cantigas, que entoavam entre as voltas e saltos dos bailes, publicaram logo a quanto chegava o que sabiam do ceu e da fé. Um dizia assim: Benta seja a santa Trindade, irmã de Nossa Senhora.»
Chamar á Santissima Trindade irmã de Nossa Senhora não é menor desacerto do que chamar reverendo ao rei.
Mas tudo isto denuncía que entre Frei Bartholomeu dos Martyres e o arcebispo D. Antonio Honorato o Alto Minho tem continuado a dormir, sobre as coisas da religião como sobre tudo o mais, e que, surprehendido pelos foguetes dos ultimos dias, accordou estrenoitado, confundindo a personificação do primeiro poder do estado com o maior poder que o serrano minhoto tem conhecido até hoje: o clero.
Porque a verdade é que justiças de el-rei não são conhecidas no Alto Minho, nem lá chega a irradiação constitucional do grande foco da administração publica chamado governo.
Não se lembram do livro de D. Antonio da Costa, intitulado No Minho? Pois elle lá descreve a communa de S. Miguel de Entre os Rios, que ao nascente prende com o Gerez e ao norte com o Suajo.
A freguezia está dividida em cantões, governados por um juiz que os habitantes elegem d'entre si. O povo entrega ao juiz a carrapita (o busio), e quando o juiz entende que é preciso reunir assembléa geral, para tomar qualquer deliberação, convoca o povo tocando o busio.
Então, de todas as casas principiam a sahir os homens vestidos de burel, com calções, polainas e barrete, as mulheres vestidas de lã, colletes curtos, cabello cortado, lenço de linho na cabeça, e, assim reunida a communa, resolve, como outr'ora faziam os lusitanos e como ainda hoje costumam fazer os bascos, representantes dos primitivos iberos.
Eu digo francamente que, se não existisse o Gerez, teria sido conveniente invental-o, a fim de que el-rei o podesse visitar; como Potemkin inventou, para illudir Catharina II, panoramas phantasticos ao longo das desoladas steppes da Russia.
Fizessem muito embora um Gerez de lona, comtanto que o povoassem com os bons serranos do Minho, que fallam ao rei com o coração nas mãos calosas, ao contrario dos cortezãos de Lisboa, que fallam ao rei com o coração nos giolhos postos em terra.
Os de lá curvam-se ao snr. D. Luiz como se curvavam ao arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres, cheios de sincera reverencia e de humildade respeitosa. Os de cá curvam-se para que as dadivas do rei lhes possam acertar mais facilmente nas mãos abertas. A distancia moral não é menor do que a que geographicamente existe entre o Gerez e Lisboa.
O rei tem agora visto o que talvez ignorava,—que ha homens bons no Alto Minho, de uma innocencia paradisiaca, que se governam sem incommodar o governo, e que cantam lôas á realeza sem rima, mas tambem sem interesse.
D'isto só no Gerez!
(Outubro de 1867)
A doença do sultão de Marrocos, Muley Hassan, envolve-se n'um veu romantico, através de cuja gaze a imprensa europêa tem descoberto uma intriga de serralho.
O sultão, que, de resto, parece revelar maiores tendencias para cultivar a monogamia do que o harem, affeiçoou-se a uma só mulher tão absorventemente, que todas as outras, reduzidas a uma ociosidade desprezivel, ter-se-iam lembrado talvez de deitar um veneno qualquer na taça de café do sultão.
Se assim foi, deveria ter havido interessantes e secretos conciliabulos, que os eunuchos, apesar de toda a sua vigilancia, não lograriam surprehender.
Estou d'aqui a ouvir uma oradora do harem discursando, cheia de indignação, ás suas companheiras de desgraça.
—Senhoras, diria porventura ella, um sultão que não faz uso do seu harem, por amor de uma só mulher, póde ser um bom marido, mas é com certeza um detestavel sultão.
Longos e repetidos apoiados.
—Se Muley Hassan está apaixonado, mande-nos embora, e case. Que fique fazendo uma vidinha santa com a sua querida mulhersinha e os seus meninos; que saia a passeio com a madama pelo braço; que vá orar á mesquita com ella e que, inclusivamente, pegue nos pequenos ao collo servindo de ama sêcca...
Hilaridade geral.
—Mas que seja para nós ama sêcca, como o poderia ser para os seus meninos, não se admitte.
Novos e prolongados applausos.
—Porque a verdade, senhoras, é que nós somos de carne e osso como a favorita, e que o sultão não chega senão para marido...
Uma voz, com sobresalto:
—Silencio!
—O que é?
—Parece-me que vai passando no corredor a ronda dos eunuchos...
A oradora, intrepidamente:
—Deixal-os! Não ha nada que eu repute n'este mundo tão insignificante como um eunucho.
Interrupção:
—Ainda ha alguma coisa mais insignificante talvez.
—O que é?
—São dois eunuchos.
Hilaridade.
Uma outra voz:
—Pois eu digo que ainda ha uma coisa peor do que dois eunuchos...
—São tres?
—Nada, não. Vejam lá se adivinham...
—Diga, diga!
—É um sultão eunucho.
Hilaridade geral.
No meio d'esta assembléa tumultuosa, uma das odaliscas puxa d'um jornal francez.
—O que é isso? perguntam.
—É o Temps, uma folha da republica franceza.
—Mas o que tem isso com o sultão?
—Esperem, senhoras! O general Boulanger foi preso.
—Preso!
—Por ter proferido em Clermont-Ferrand umas palavras que o ministro da guerra julgou attentatorias da disciplina militar.
Vozes:
—Mal feito!
Outras vozes!
—Bem feito!
A mesma odalisca, com o Temps na mão:
—Segue-se que o ministro da guerra ordenou que o general Boulanger soffresse trinta dias de detenção.
Uma voz:
—E depois?
—Depois Boulanger submetteu-se.
Outra voz:
—O que eu admiro é a energia do ministro da guerra!
Muitas vozes:
—Pois isso é que é!
Uma voz:
—Como se chama o ministro da guerra?
—É o general Ferron.
—Velho?
—Decerto.
—Não importa. Ahi está um general que ainda servia para sultão.
A odalisca do Temps:
—Ahi mesmo é que eu queria chegar...
Muitas vozes:
—Apoiado! Apoiado!
A discussão entre as mulheres do harem prolongar-se-ia decerto cada vez mais animada e cortada de repetidos incidentes.
Quando porventura se tratou da especie de droga que se devia lançar na taça de café do sultão, é provavel que as opiniões se dividissem,—querendo estas que fosse veneno, querendo aquellas que fosse outra coisa.
Afinal decidiram pelo veneno, allegando talvez alguma odalisca que um sultão retirado difficilmente readquire os seus antigos habitos, seja qual fôr a droga que se lhe propine.
E emquanto as odaliscas conspiravam, é provavel que a favorita, depois de ter enfiado na cabeça do sultão o barrete de algodão branco, e de lhe haver conchegado aos sovacos a roupa da cama, principiasse a cantar-lhe qualquer canção terna que o acalentasse, como por exemplo:
Dorme, que eu vélo, seductora imagem,
Grata miragem que no ermo vi!
E o sultão, espirrando:
—Ora esta! Estou constipado!
A favorita:
—Não é nada, meu maridinho. Se queres, mando o primeiro ministro á botica comprar borragens para tomares um suadouro.
—Deixa vêr se isto passa.
—Pois sim. Pois sim...
E cantando:
Dorme, dorme, meu sultão rurú,
Canta Mafoma, e dorme tu.
E o sultão, como um bom chefe de familia, apesar de constipado:
—Os pequenos?
—Deixa lá os pequenos, que já estão recolhidos.
—É que, tendo havido hontem um caso de variola no imperio, preciso mandar vaccinal-os.
—Então! snr. meu marido! Deixe lá isso e durma, quando não ralho muito comsigo.
E o sultão, espirrando de novo:
—Atchi! Atchi!
A favorita:
—Queres um lenço?
—Quero. Tira alli da gaveta. Agora, como já não atiro lenço nenhum ás odaliscas, devo ter ahi muitos.
A favorita, fingindo-se zangada:
—Não quero que se torne a lembrar de aguas passadas. Pegue lá o lenço, e cale-se. Vamos, faça óó.
E o sultão:
—Pois sim, mulher, pois sim; vou vêr se durmo.
Ora, francamente, sendo assim, as odaliscas tiveram razão.
Não se é sultão para isto, porque a nobreza obriga, e um sultão, que se prese de o ser, tem deveres a cumprir.
Ouvissem-me as odaliscas agora, e não me faltariam apoiados.
O rei Milan da Servia é que não pensa precisamente como o sultão de Marrocos.
Agora mesmo, que parecia estar a ponto de se reconciliar com a rainha Natalia, uma nova aventura veio de subito carregar de nuvens o ceu conjugal, que promettia tornar-se azul e sereno.
Estão em Pesth duas cantoras de Café-Concerto, mesdemoiselles Morgot e Elisa Roger, duas irmãs.
Por occasião da sua recente passagem em Pesth, o rei Milan da Servia, ouvindo elogiar a belleza das duas «chanteuses», manifestou desejo de as vêr {293}pessoalmente, e, acompanhado do conde Eugenio Zichy, foi visital-as. Um jornal de Pesth, sabendo da visita, alludiu ao caso, em breves palavras, no seu noticiario. O incidente não fizera ruido e estava já esquecido, quando, tres semanas depois, as duas irmãs appareceram subitamente na redacção do jornal e intimaram o redactor indiscreto a dar-lhes explicações. O redactor riu-se e gracejou. Resolveram então intentar um processo,—que sem duvida será picante: o rei Milan e o conde Zichy serão citados a comparecer para testemunhar que a visita que fizeram ás galantes e formosas cantoras foi «pura e simples visita de delicadeza».
A rainha Natalia, que é curiosa de mais para deixar de lêr gazetas, teve naturalmente conhecimento do facto, e, agastando-se de novo, oppoz-se á reconciliação, que parecia estar em bom terreno.
Quando a gente ás vezes começa a pensar sobre as coisas do mundo, pasma de que a Providencia ou o acaso, que tão sabiamente regula a maior parte dos negocios terrenos, tenha de quando em quando desacertos verdadeiramente inexplicaveis.
Ora digam-me uma coisa:
Com quem devia ter casado a rainha Natalia?
Com o rei da Servia decerto não.
Vamos, adivinhem.
Não dizem! Pois digo eu: com o sultão de Marrocos.
E quem deveria ser o sultão de Marrocos?
Agora é facil a resposta.
—Quem deveria ser o sultão de Marrocos era o rei Milan da Servia.
Exactamente.
Porque, sendo assim, nem a rainha Natalia nem as odaliscas do harem tinham razão para protestar—pelo mesmo motivo.
Um rei dos paizes do norte, o soberano da peninsula scandinava, veio a Lisboa em maio de 1888, hospedando-se no Paço da Ajuda, que domina, do seu largo ponto de vista, a corrente do Tejo, o bello rio do sul...
Viagem poetica, cheia de encantadoras antitheses por certo, emprehendida por um rei poeta, em cuja familia ainda ha poucos dias fallou com insistencia a Europa inteira a proposito do casamento romantico do duque de Gothland, segundo filho do rei Oscar.
Na familia real da Suecia os principes conservam não só os ideaes cavalheirescos da Idade-média, mas até as alcunhas graciosas dos livros de cavallaria. Assim, o principe Carlos, terceiro filho do rei Oscar, {296}é conhecido pela designação de principe azul, por usar sempre um uniforme d'essa côr; e o principe Eugenio, o mais novo dos irmãos, é denominado o principe vermelho, em razão dos seus avançados principios liberaes.
Comprehende-se que, dada a influencia do meio geographico, a situação deliciosa da Suecia haja actuado no espirito do principe Oscar para contrahir um casamento que não teve como mobil senão o amor.
Paiz de montanhas e de lagos, de cascatas e de rios, de golfos e de florestas, como que está pondo diante dos nossos olhos a photographia do amor n'aquellas regiões, amor inabalavel como a dureza dos Alpes scandinavos, umas vezes sereno como um lago, outras vezes torrentuoso como uma cascata, resistente como as florestas de pinheiros aos vendavaes gelados, ousado como a onda dos golfos que rasgam, no seu labutar constante, os contornos da peninsula...
Paiz das auroras boreaes, comprehende-se que o coração dos seus habitantes seja de algum modo o espelho onde se reflecte o fogo do ceu.
Stockolmo, a capital que a familia real habita, é, para que assim o digamos, a synthese de toda a bella natureza scandinava. Disposta sobre o lago Mœlar, occupa algumas das mil duzentas e sessenta ilhas que mosqueam toda a feérica superficie do lago. É a Veneza do Norte.
Madame Leonie d'Aunet, a intrepida viajante do Spitzberg, sentiu-se vivamente impressionada pelo {297}aspecto do palacio dos reis da Suecia, uma residencia encantadora onde se comprehende que todos os sonhos da imaginação exaltada possam atear-se.
«O palacio dos reis da Suecia, como a cidade, tira da posição em que se acha situado, entre o mar e o lago, a sua principal belleza. Quadrado, uma das fachadas do palacio domina uma soberba ponte de pedra lançada sobre o Mœlar. Esta ponte, cujo arco central repousa sobre uma pequena ilha transformada em delicioso jardim, é de um aspecto encantador. A architectura do palacio recorda a do Louvre, modificada pelo gosto pesado, sobrio e frio do seculo XVIII; apenas as proporções do conjunto podem ser gabadas sem reserva; a fachada que olha para o mar, precedida de um jardim, ornada de um largo balcão de pedra, é de um bello effeito, sobretudo vista de longe.»
Ahi, d'esse largo balcão de pedra que olha para o mar, diante de um vasto horisonte sem limites, comprehende-se que os principes romanticos da casa real da Suecia enviem o seu pensamento alado a emprehender as viagens mais ousadas e mais audaciosas do amor.
Foi ahi certamente, n'esse largo balcão de pedra que olha para o mar sem limites, que o principe Oscar, duque de Gothland, pensou uma e muitas vezes na enorme difficuldade da empreza que o seu coração namorado tentára.
Mademoiselle de Munck, filha de um antigo official do exercito sueco, era a sua bem amada, e o {298}principe pensava exclusivamente no modo de poder desposal-a, ainda que para isso fosse preciso arremessar ao mar, do alto do largo balcão de pedra, a sua corôa de principe, o seu titulo de duque.
Mas o mar ensinava-o a ser forte, embora, para vencer, tivesse de parecer sereno.
Descendo do seu largo balcão de pedra, o principe Oscar passearia decerto na collina de Mosebakkan, d'onde toda a cidade de Stockolmo se avista a vôo de passaro, e desejaria porventura poder depôr aos pés de Ebba Munck toda essa bella cidade pittoresca como um estranho presente de nupcias.
Se de todo perdesse a esperança de poder realisar o seu sonho de amor, iria porventura refugiar-se na solidão gelada da Noruega, em Hammerfest talvez, a cidade mais septentrional do mundo, a dois passos do cabo Norte, habitando uma d'essas casas exoticas, feitas de troncos de arvore, que os seus habitantes occupam.
Mas todo o aspecto do paiz o enchia de confiança e de estimulo. Os Alpes scandinavos diziam-lhe que fosse inabalavel como elles; as torrentes que fosse impetuoso como ellas; as florestas de pinheiros que as imitasse na firmeza; os golfos que teimasse, a seu exemplo, em vencer os obstaculos. Tanto mais que o principe Oscar sabia que era amado...
Dissera-lh'o Ebba Munck, a quem elle abrira o seu coração.
Era certo que ella fugira da côrte, para evitar o {299}olhar do principe que a dominava, mas amava-o, era amada, eis tudo.
Dama de honor da princeza real da Suecia, fôra outr'ora galanteada, requestada. Um moço official de cavallaria estivera para desposal-a, chegára a fazer-se o enxoval, mas o coração de mademoiselle Munck, por um d'esses presentimentos extraordinarios que se não podem explicar, retirára á ultima hora o seu consentimento.
Não era aquelle o homem que ella devia amar.
Enfastiada da côrte, pensando já talvez no principe Oscar, como no impossivel, quando a obrigaram a voltar a Stockolmo, a sua belleza reapparecêra velada por um veu de dôce melancolia.
Foi então que o principe Oscar fez reparo na belleza de mademoiselle de Munck,—essa belleza triste das violetas.
Mas as almas namoradas, se avançam um passo para o seu ideal, deliciam-se em recuar dois passos, como para se atormentarem deliciosamente.
Ebba Munck fugiu da côrte, talvez com o proposito de não voltar mais.
Fez-se irmã da caridade n'um hospicio de Stockolmo, quiz consagrar a Deus o seu pensamento, mas o amor do principe foi ahi procural-a para adquirir a certeza de que era correspondido.
Uma affirmação categorica, tanto mais desafogada quanto parecia irrealisavel, exaltou a paixão do principe, que desde esse dia não teve senão um unico pensamento: desposar mademoiselle de Munck.
Adivinham-se facilmente as difficuldades que um tal projecto suscitaria a principio.
Mas, á força de insistencia e de pertinacia, os obstaculos foram abrandando, e o tempo acabou por consummar a sua obra.
Do alto do largo balcão de pedra, que olha para o mar sem limites, o principe Oscar, para desposar mademoiselle de Munck, arremessára através do espaço, para o abysmo das aguas, os seus direitos ao throno, os seus titulos de duque e de alteza real, e a pensão annual que lhe era votada pela Dieta.
N'esse dia ficou sendo o mais feliz dos homens, apenas Bernadotte, um official da marinha sueca, simplesmente.
Em março de 1888, celebrava-se o casamento, baseado na declaração authentica que o principe, mezes antes, havia dirigido a seu pai.
«Segundo a constituição, nenhum principe da casa real póde casar, sem consentimento do rei. Como depois d'um exame da minha consciencia me acho penetrado do mais ardente amor por mademoiselle Ebba Henrietta Munck, filha do fallecido coronel Charles Jacques Munck de Tulkila e da sua viuva, née baroneza Coderstrom, e como estou convencido da sua fidelidade ao meu amor, vejo-me obrigado, tanto pelo respeito e dedicação filial, como pela obediencia ás leis, a pedir humildemente o consentimento de vossa magestade, meu augusto pai, á {301}minha união com mademoiselle Munck. Toda a minha felicidade depende d'esse consentimento.
«Por este casamento perco evidentemente, segundo o §. 5.º da lei da successão, para mim e meus descendentes, todo o direito de successão ao throno dos Reinos-Unidos. E como, segundo a minha opinião, não conviria á minha situação futura aproveitar as altas dignidades que me teem sido concedidas na qualidade de principe herdeiro, peço humildemente auctorisação para renunciar não só ao titulo de alteza real e de duque de Gothland, mas tambem, por mim e meus descendentes, a todos os outros privilegios de que tenho gosado, na qualidade de membro da casa real.
«Junto a este humilde pedido o desejo de conservar a minha nacionalidade sueca e de gosar, depois do meu casamento, dos direitos civicos, que pertencem a todo o subdito. Pela vossa benevola auctorisação, sahirei da posição excepcional que constitue, segundo a declaração de vossa magestade ao conselho de estado, inserida no protocolo de 6 de março, a razão que dictou o apanagio dos principes, filhos segundos.
«Considero portanto o apanagio de 26:000 corôas, que a dieta de 1887 me votou, como deixando de existir; renuncio portanto a este apanagio para ser restituido á lista civil.
«Peço igualmente, em virtude do artigo 34.º da Constituição noruegueza, para ser isento de todos os meus deveres de subdito norueguez.
«Stockolmo, 18 de Janeiro de 1888.
Oscar.»
O rei communicou o pedido do principe Oscar ao conselho de ministros e accrescentou:
«Não attendi ao pedido do meu amado filho, sem madura reflexão. Estando assegurada, segundo todas as apparencias, a successão dos Reinos-Unidos, não hesitei em não impedir a sua felicidade, concedendo-lhe a auctorisação, que me pediu, como seu pai e seu rei.»
Ao casamento de Oscar Bernadotte assistira sua mãi, a rainha da Suecia, Sophia de Nassau, o principe azul, o principe vermelho, a princeza da Dinamarca e a duqueza de Albany.
N'aquelle dia o Almanach de Gotha perdia um nome, mas a chronica do amor inscrevia mais uma pagina.
E o mundo inteiro fallou d'esse acontecimento ruidoso, que attrahira todas as attenções para a côrte do rei Oscar, o soberano da Scandinavia, que, vindo hospedar-se no Paço real da Ajuda, alongou o seu olhar azul de poeta do norte pela corrente magestosa do Tejo, o bello rio da Europa do sul...
«Apesar dos desmentidos officiosos, a saude da imperatriz da Austria de fórma alguma tem melhorado.
«As crises terriveis a que está sujeita inspiram graves inquietações.
«Segundo o diagnostico já estabelecido, a imperatriz está atacada de «loucura lucida» caracterisada por uma confusão enorme de idéas.
«Está constantemente balouçando uma almofada e pergunta ás pessoas que a rodeiam se o novo Kronprinz é bonito. Depois cae em grande prostração, parecendo de tempos a tempos melhorar para propôr um novo casamento ao imperador.»
Ha nas ultimas linhas d'esta noticia o que quer {304}que seja que faz passar vagamente pelo nosso espirito essa flebil melodia de Meyerbeer, chamada a valsa da sombra, da Dinorah.
A bella camponeza de Ploermel, julgando que Hoel a abandonára, perde a razão e, faltando-lhe a sua cabrinha branca, unica companhia que lhe restava no mundo, procura-a por entre as moitas floridas até que, suppondo havel-a encontrado, faz menção de acalental-a nos braços, chorando e cantando, n'uma loucura ternissima, emquanto o luar cae do ceu n'uma tristeza saudosa.
Assim a imperatriz da Austria, balouçando a almofada em que imagina vêr adormecido o Kronprinz, que uma catastrophe fulminára, parece cantar, no silencio concentrado d'uma loucura melancolica, a ombra leggiera do filho querido que não mais voltará.
A valsa de Meyerbeer passa certamente soluçando no coração da louca imperatriz.
De mais a mais ella teve sempre o culto da musica, foi a imperatriz que poz em moda, tanto em Pesth como em Vienna, a zither, a dôce guitarra rustica dos Alpes tyrolezes.
O seu coração conhece, pois, toda a magia d'essa divina arte capaz de fazer mover as proprias pedras, segundo a tradição mythologica, e porventura esse balsamo celeste, que se chama a musica, tivera o condão de ungir durante algumas semanas as feridas da sua alma, como a harpa de David abrandava as coleras sombrias de Saul.
Mas a loucura em que a razão brilha ainda como um crepusculo explodira finalmente.
A catastrophe que lhe roubára o filho primogenito apunhalára-a na fibra mais delicada de seu coração de mãi.
Apesar das excentricidades que constituem a lenda da imperatriz, o que é certo é que ella foi sempre uma extremosa mãi.
Quando os seus filhos eram pequeninos, ella propria os acalentava no berço, cantando, bailando, beijando-os, atirando o fardo da etiqueta para traz dos moinhos. A imperatriz desapparecia; ficava apenas a mãi.
Quando, com dois annos de idade, lhe morreu a segunda filha, abraçou-se n'uma effusão de lagrimas ao pescoço de um grande Terra-Nova, que era o companheiro dilecto da mallograda creança.
Dinorah não teria sido mais carinhosa com a sua cabrinha branca do que a imperatriz o foi n'esse momento para com o seu Terra-Nova.
***
E todavia ouvia-se dizer muitas vezes em Vienna que a imperatriz, amazona infatigavel, pensava mais nos cavallos que montava do que nos filhos que havia gerado.
Uma calumnia revoltante. Victor Tissot, que esteve em Vienna, e que estudou escrupulosamente a {306}capital austriaca na côrte e na rua, desmente-a categoricamente.
D'onde veio essa má vontade dos viennenses, tantas vezes manifestada, contra a imperatriz?
Veio do tempo em que ella, creança de dezeseis annos, tinha, sem o haver sonhado, cingido a corôa da Austria, e esquissava nos seus albuns a caricatura mordente dos cortezãos que detestava.
Um cortezão não perdôa nunca: vinga-se curvado e sorridente. Foi o cortezão de Vienna que principiou a fazer a lenda injusta da imperatriz, que, por sua vez, aborrecendo o mundo palaciano em que a calumnia serpejava por entre as alcatifas, preferia as florestas ás salas, e os cavallos aos cortezãos.
***
E depois a imperatriz fôra creada em plena natureza, á beira do lago de Traun. Como as outras suas quatro irmãs, que vieram a denominar-se a rainha de Napoles, a princeza de Tour e Taxis, a condessa de Trani e a duqueza d'Alençon, vivêra até aos dezeseis annos como pastora nas montanhas. Seu pai era um velho gentil-homem da provincia, que jámais havia pensado em que as suas cinco filhas, embora formosissimas, podessem vir a respirar n'outra atmosphera que não fosse a das collinas que circumdavam o lago azul.
Mas Francisco José amára sempre a caça como {307}um bom montanhez do Tyrol, cujo fato vestia nas suas excursões venatorias por montes e valles.
Ás vezes os quinteiros ouviam a distancia a grita do hallali, e o seu pensamento não podia ser outro senão o que o nosso velho Castilho soube exprimir n'uma quadra:
Voam corceis e sabujos;
Apupa, apupa, clarim,
Que esta sina de fragueiros
Não tem descanço nem fim.
E as gandaras e os montes tremiam como no rimance da Nazareth; não valiam os pés ao gamo, nem valia a furia ao javali.
Os caçadores passavam como um tufão ardente.
Era o imperador que andava monteando, tal como nas valladas da Idade-média usavam fazer os velhos reis sagrados, de que a imaginação popular se lembra ainda.
Pois bem! Francisco José havia chegado á beira do lago de Traun e, por descançar das fadigas da caça, sentára-se á porta, de uma casa de campo. Quatro filhas do velho gentil-homem que alli morava, sahiram a cumprimentar o imperador, que ficára encantado de encontrar um bouquet de rosas primaveris perdido entre montanhas, á beira de um lago. Qual d'ellas lhe parecia mais formosa? Não o saberia dizer. De repente surge na clareira do bosque uma visão encantadora, vestida de branco, e acompanhada de um fiel molosso. Então os olhos de Francisco {308}José cegaram deslumbrados. Era Izabel, a quinta filha do velho gentil-homem: a futura imperatriz da Austria. Alguns dias depois, n'um baile em Ischl, o imperador, que amava doidamente a valsa, dançára durante toda a noite com essa deslumbrante creança de dezeseis annos, que desde logo passou a ser denominada a fada da floresta.
O coração um pouco selvagem de Izabel revoltou-se naturalmente contra a doblez da côrte. Ella preferia os aromas acres do bosque ás lisonjas perfumadas de cortezanismo. Ave das montanhas, amava o ceu azul, os alcantis agrestes, os lagos dormentes. Durante os primeiros tempos de noivado, um cavalleiro e uma amazona galopavam nas planicies, cortando as florestas, batendo os bosques. Eram o imperador e a imperatriz.
Tudo ia em redemoinho,
Homens, corceis e mastins,
Ladridos, brados, relinchos,
Fragor d'armas e clarins!
***
Francisco José é, em toda a extensão da palavra, um homem amavel,—qualidade indispensavel aos principes.
Tissot decreve-o em dois traços:
«O som da sua voz é cheio d'encanto, como toda a sua pessoa. O seu olhar revela a lealdade e a doçura que seduzem. A testa é alta e larga, o nariz {309}bem proporcionado, os dentes brancos, e o labio inferior menos saliente que no typo ordinario dos Habsburgos. Quando monta a cavallo, ha no seu aspecto elegancia e magestade; mas é preciso vêl-o curvetear no meio de uma nuvem de pó, ao estrondo das fanfarras, á frente do exercito!»
Este homem amavel fez-se amado desde os primeiros annos da mocidade, em que elle proprio escolhia entre as damas do salão a que preferia para sua parceira de valsa. Quando o seu uniforme branco ondulava nos circulos vertiginosos das valsas de Strauss, as mulheres, exaltadas, adoravam o gentil Habsburgo, de quem costumavam dizer:
—Encanta vêl-o valsar!
Á medida que se foi evolando n'uma saudade longinqua o perfume da flôr de laranjeira, que engrinaldára a cabeça da bella do lago de Traun, o coração da imperatriz, no seu egoismo montanhez, gotejára sangue.
Acaso o tronco ferido da arvore alpestre não chora, em bagas de resina, o attentado de que foi victima?
Tenho aqui, entre os meus papeis, um notavel artigo que ha annos appareceu n'um jornal de Lisboa e foi traduzido por mão desconhecida. Fallando da imperatriz Izabel, diz:
«Ella passa caracolando no seu cavallo, como a Diana de Vernon, essa imperatriz d'Austria, firme e direita no selim do seu baio fogoso, o veu azulado {310}enrolado á copa do seu chapeu alto, não reconhecendo outro sceptro além do seu flexivel chicotinho. Toca-se o hallali, o animal é encurralado na clareira dos bosques, Izabel é a primeira a despedir o tiro mortal; galopa com as faces incendidas, as narinas dilatadas e frementes, vêde-a bem—o vento apagou na corrida o vestigio das lagrimas que ainda ha pouco lhe inundavam o rosto; o seu cavallo passou o rio a nado, e o seu vestido de amazona-caçadora embebeu-se na agua gelada; parece-lhe que é sangue do seu coração que vai cahindo, gotta a gotta, no caminho, e que poderiam seguil-a através d'esse rasto; sabe que os latidos das matilhas impacientes, as trompas dos seus caçadores, e o tropel dos cavalleiros não ensurdecerão a sua dôr; a imperatriz da Austria tem a certeza de que já não é amada!»
***
Natureza fogosamente selvagem, a imperatriz da Austria, tendo visto passar o idyllio de amor que a fôra arrancar ao lago de Traun, não pôde resistir á morte desastrosa do filho querido, que era a seus olhos não só a revivescencia de um passado feliz, mas tambem, certamente, a esperança de uma gloria futura.
E, similhante á Dinorah da opera de Meyerbeer, balouçando nos braços a almofada que presume ser o berço do Kronprinz, a sua voz soluça a dolente melodia de uma valsa que acaricia ainda a sombra ligeira de tudo o que não voltará mais.
(Outubro de 1889)
Edgar Quinet sentiu pulsar na igreja de Belem a alma navegadora do Portugal manuelino. São profundamente verdadeiras as suas observaçoes. De feito, todos os caracteres da vida do mar alli estão, em Belem. Cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros; altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas: a igreja é o navio que vai largar para os ousados descobrimentos. No claustro ha já espalhadas com mão profusa as primicias dos continentes recentemente descobertos: pendurados nos baixos relevos, os côcos e os ananazes; os macacos do Ganges trepando baloiçados pelos cabos; os papagaios do Brazil esvoaçando festivamente em de redor da cruz; elephantes de marmore que conduzem em triumpho a urna funeraria do rei {312}Manuel. Uma igreja maritima, finalmente, com tão raro primor descripta por Quinet, erguida no proprio local d'onde Vasco da Gama partira para ir descobrir a India.
***
No dia 8 de julho de 1497 ninguem trabalhára em Lisboa, apesar de ser um sabbado. Toda a gente corrêra a vêr partir as naus do ancoradouro do Rastello. Eram quatro os navios que compunham a esquadra: S. Gabriel, nau-almirante, S. Raphael, Berrio, e uma barca com mantimentos.
Vasco da Gama tinha ido de vespera, com os seus companheiros, fazer vigilia na ermida de Nossa Senhora de Belem, fundada pelo infante D. Henrique. Ahi commungou pela mão de alguns freires do convento de Thomar. O vento norte, que no estio costuma soprar em toda a costa da peninsula, era favoravel á navegação.
No sabbado, logo pela manhã, encheu-se de povo o caes do Rastello. A multidão, ávida de sensações, esperava anciosamente que os navegantes sahissem da ermida. Finalmente Vasco da Gama e os seus companheiros assomaram á porta, com cyrios na mão. Seguiam-se-lhe os freires e os sacerdotes que da cidade tinham ido expressamente para dizer missa. O povo, em massa, fechava o prestito, respondendo á ladainha que os padres cantavam.
Havia n'este espectaculo o que quer que fosse {313}de vaga tristeza, aliás justificada. Uma numerosa tripolação ia affrontar os perigos do oceano, lançar-se nas incertezas de uma navegação aventurosa.
Chegados junto aos bateis Vasco da Gama e os seus companheiros, o vigario da ermida, com voz solemne, proferiu uma allocução piedosa, acabando por lançar a absolvição.
«No qual acto, escreve João de Barros, foi tanta a lagrima de todos, que n'este dia tomou aquella praia posse das muitas que n'ella se derramam na partida das armadas que cada anno vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir: de onde com razão lhe podêmos chamar praia de lagrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfraldar das velas que os mareantes segundo seu uso deram aquelle alegre principio de caminho, dizendo boa viagem: todos que estavam promptos na vista d'elles, com uma piedosa humanidade dobraram estas lagrimas: e começaram de os encommendar a Deus, e lançar juizos sobre o que cada um sentia d'aquella partida!»
Eram oppostos os juizos e as vozes que commentavam a empreza. Muitas pessoas se mostravam contrarias a ella. De modo que o velho da Praia do Rastello representa uma prosopopêa historica quando exclama pela bocca de Camões:
Oh gloria de mandar! Oh vã cobiça
D'esta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudento gosto que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
{314}Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão, que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade n'elles experimentas!
***
Mas Deus protegêra a audacia dos portuguezes, os mares abriram passagem á frota de Vasco da Gama, e a India, descerrando de par em par as portas crystallinas dos seus golphos, desde Cambaya a Bengala, inclinava, rainha do Oriente, a fulva cabeça, radiante de auroras, ao dominio colonial do nauta do Occidente.
As lagrimas choradas na praia do Rastello, quando a frota levantava ferro, vieram-nos devolvidas em perolas arrancadas ao oceano Indico no golpho de Manaar e nas costas de Ceylão.
A melancolia que avassallava os espiritos, na hora em que Vasco da Gama partiu, transmudára-se, só com passar pelo chrysol da India, no oiro luminoso de Quiloa, que mestre Gil Vicente ou outro qualquer notavel artifice do seculo XVI arredondára n'um disco—a famosa custodia dos Jeronymos—, tão bello como o sol, tão resplendente como elle.
E depois de terem dobrado duas vezes o Cabo das Tormentas, depois de terem vencido Adamastor duas vezes, as galés d'el-rei subiam em triumpho a corrente do Tejo, á volta do Oriente, e toda a alma {315}portugueza vibrava de alegria e de orgulho na impaciencia dos animos e na avidez dos olhos.
Lá vêm galés Tejo acima!
lá vêm as galés d'el-rei!
***
Por vocação ou educação, por qualquer d'estes dois factos que constituem toda a orientação do espirito, el-rei D. Luiz fizera-se marinheiro, passára no oceano os annos desenfadados da vida, impregnára a sua alma d'essa antiga tradição maritima, que fôra o maior florão de gloria da dynastia d'Aviz.
Infante de Portugal, como D. Henrique, tinha o culto da navegação, a religião do mar. No convez do Pedro Nunes ou da Bartholomeu Dias, recordaria por noites de luar, ao som das aguas, toda a nossa epopêa maritima, de que esses dois nomes, o do inventor do nonio e o do descobridor do Cabo, eram como duas estrophes gravadas nos marmores eternos da Historia. Rei, constrangido a viver em terra como um marinheiro aposentado, dessedentava saudades contemplando o Tejo do seu miradouro da Ajuda ou o Atlantico do alto da bateria de Cascaes.
E fôra Cascaes, uma pequena villa de marinheiros, Cascaes, a patria do aventuroso piloto Affonso Sanches, que recebêra o extremo alento d'esse bom rei que tanto vivêra profissional e espiritualmente da {316}nossa gloria maritima. Fôra o mar que soluçára em torno do seu athaude o primeiro cantico funebre, fôra o mar que, marulhando nos muros da cidadella, viera receber o seu espirito para o restituir a Deus.
***
Antes de entrar definitivamente no sarcophago de S. Vicente de Fóra, este rei marinheiro devia, se podesse resuscitar, querer descançar alguns dias no templo dos Jeronymos,—esse bello navio de pedra, ancorado na gloriosa praia do Rastello, d'onde Vasco da Gama partira. Fizeram-lhe a vontade, adivinharam-lhe os desejos. Deram-lhe, por uma semana, a melhor companhia que podia lisonjear o seu espirito. Alli jazem, se a nossa fé nos não atraiçoa, as cinzas do proprio Vasco da Gama, o primeiro almirante do mar das Indias, e de Luiz de Camões, o Homero de toda a vasta epopêa maritima no seculo aureo de Portugal.
E na sua capella silenciosa e monumental alli jaz Alexandre Herculano, o ultimo grande historiador das glorias de Portugal, o ultimo varão forte d'essa extincta raça de chronistas, que principiou em Fernão Lopes e se continuou em Azurara, Pina, Castanheda, João de Barros e Goes.
Para um rei como D. Luiz I, que amou o seu paiz na tradição mais saliente dos fastos nacionaes, nada poderia completar melhor a sua physionomia {317}historica de rei marinheiro, do que esta posthuma étape de alguns dias, na igreja dos Jeronymos, em caminho do pantheon de S. Vicente.
Se o rei podesse acordar por momentos do somno da morte, adormeceria de novo dôcemente, demorando o olhar embevecido nos cabos de pedra que ligam os pilares uns aos outros, e nos altos mastros de mesena que sustentam as ogivas, os florões, as abobadas...
(Outubro de 1889)
Só faltava no vosso diadema,
Que na côrte offuscou pompas e galas,
Uma joia, uma bella e fina gemma,
Das perolas irmã, e das opalas.
Era a lagrima santa, muda e calma,
Que encerra em sua esphera crystallina
Toda a magua que vai minando uma alma...
A lagrima,—essa perola divina.
Rainha que choraes, e em regio manto
Vos sentis mais viuva que princeza,
Vosso vulto é maior! que o vosso pranto
Engrandece, na dôr, vossa grandeza.
FIM
Pag. 80, onde se lê—Francamente, a interpretação que o sr. illustre escriptor Theophilo Braga, etc.—deve lêr-se—Francamente, a interpretação que o illustre escriptor snr. Theophilo Braga, etc.
Pag. 125, linha 6, onde se lê—murabuths—, deve lêr-se—marabuths.
Como explanação ás ultimas linhas da pag. 131 e ás primeiras da pag. 132, importa accentuar que, embora a Catastrophe de Portugal se refira aos amores d'el-rei D. Affonso VI com uma mulher publicamente exposta (Pag. 111 e 112), essa mulher só nas Monstruosidades do tempo e da fortuna apparece nomeada pela alcunha de—Calcanhares.
Pag. 189, linha 7, onde se lê—Et la frouchette de Camus—, deve lêr-se—Et la fourchette de Camus.
Pag. 206, linha 6, onde se lê—de Montmoreney—, deve lêr-se—de Montmorency.
Documento que encontrámos na Torre do Tombo, gaveta 25, maço 1.º, n.º 47, de fol. 184 a 187.
Existente na Torre do Tombo, cella M, maço 1:104, fol. 381.
Torre do Tombo, cella M, maço 1:163, fol. 495.
Na Historia do Infante D. Luiz, recentemente publicada pelo snr. José Ramos Coelho (1889) vem indicadas, de pag. 148 a 150, as razões que motivaram a discordia entre D. Luiza de Gusmão e D. Duarte de Bragança.
O cadaver da rainha foi em 1666 transferido da igreja do Grillo para a de Corpus Christi; em 1691 foi mudado, dentro d'esta igreja, de um lugar para outro; em 1713 trasladaram-no da igreja de Corpus Christi para a do Grillo. Duas jornadas e tres mudanças. No principio d'este anno (1889) fez a terceira Jornada, do Grillo para S. Vicente.
Recordações de Portugal.
«Entre os pittorescos arrabaldes da cidade destaca-se pela sua melancolica belleza o sitio de Chapultepec. Na cumiada de uma collina de pequena elevação, a cinco ou seis kilometros distante da cidade, levantava-se n'outros tempos uma especie de castello. Era o lugar de recreio dos reis astecas, e do alto dos muros avistavam a sua grande cidade, e todo o valle em que ella assenta. Em torno d'este castello, pelas vertentes da collina, e n'uma grande extensão da planura, quasi occultava esta pittoresca vivenda uma floresta mui densa de elevados e corpulentos cedros (cupressus distica), que já n'essa época representavam muitos seculos. O antigo castello desappareceu, e em seu lugar se levantou com grande dispendio em 1785 um novo palacio, que tem servido de residencia de verão aos vice-reis e presidentes, de escóla militar e de observatorio astronomico.» Estas impressões de viagem foram colhidas por um portuguez, o snr. visconde de S. Januario, na sua missão diplomatica ás republicas da America do Sul (1878-1879).
Já depois de escripto este artigo, que foi suggerido pelo livro de madame Carette, appareceu no Gil Blas (de 25 de setembro de 1889) a cópia de um relatorio que o general Escobedo dirigiu ao general Porphirio Diaz, presidente da republica do Mexico, e que primeiro fôra estampado no Novo Mundo, jornal officioso do governo mexicano em Paris. O coronel Lopez, que ficára reduzido a viver do producto de uma casa de banhos que estabelecêra no Mexico, soffrêra durante vinte annos a accusação de traidor, que geralmente lhe era feita, e que sua propria esposa acreditou, porque, quando elle voltou ao Mexico, depois do fuzilamento de Maximiliano, ella esperára-o á janella, com um filho pequeno nos braços e, vendo-o chegar, gritára: «Tu és um traidor e eu não quero que esta creança seja o filho de um traidor». Dizendo isto, deixou cahir o filho á rua. Lopez tragára em silencio todas estas affrontas e injustiças, e só se resolveu a fallar, a pedir um testemunho rehabilitador ao general Escobedo, vinte annos depois! Escobedo respondeu officialmente com o relatorio, no qual declara que o coronel Lopez o procurara a 14 de maio de 1867 para lhe dizer que Maximiliano pedia que o deixassem embarcar, devidamente escoltado, no porto de Tuxpam ou Vera-Cruz, sob palavra de que jámais voltaria ao Mexico. Seria pois para occultar este acto do imperador, que Miguel Lopez teria guardado segredo. Lopez abonou a sua declaração com este bilhete, que Maximiliano lhe escrevêra, e cuja authenticidade o general Escobedo reconheceu: «Mon cher colonel Lopez. Nous vous recommandons de garder un profond silence au sujet de la commission dont nous vous avons chargé près du général Escobedo, car si ce secret était divulgué, notre honneur serait entaché. Votre très affectionné, Maximilien.»
Custa a acreditar que o coronel Lopez atravessasse silencioso vinte annos de descredito, mas, se assim foi, o seu nome está rehabilitado. E a fraqueza do imperador, na situação desesperada em que se achava collocado, não excede os limites da comprehensão humana, posto diminua ao perfil historico de Maximiliano o cunho da heroicidade, que o engrandecia na desgraça.
Esta hypothese, que aventamos humoristicamente, tomou maior vulto no nosso espirito desde que, procedendo a averiguações, soubemos que só na peninsula iberica se diz que o menino veio de França. Hay venido de Francia, diz-se em Hespanha, e esta communidade de locução explica-se satisfatoriamente n'este caso, como em muitos outros modismos, adagios e gnomas, pelas relações frequentes, que sempre houve, entre os dois paizes da peninsula. Mas já nos Açores, que communicam menos facilmente com Portugal do que a Hespanha, comquanto sejam territorio portuguez, se não emprega a mesma locução. Na Terceira diz-se que o menino veio do Pico. Mostra isto, talvez, que os Açores não receberam a impressão do facto historico occorrido em Lisboa com a mesma insistencia e intensidade com que a recebeu a Hespanha, por ser nossa visinha, paredes meias.
As variantes de expressão, que vamos reproduzir, tendem a demonstrar que a locução portugueza proveio de um facto privativo a Portugal.
Em França diz-se que o menino nasceu nas couves, qu'il est né dans les choux; e até em algumas participações de nascimento se vê representada uma creança emergindo d'entre folhas de couve.
Em Italia a expressão é outra: que a mamã comprou um menino:—che la mammá ha comperato un bambino. Em Inglaterra a locução tem o mesmo sentido que na Italia: to buy a baby.
Na Allemanha ha uma phrase, que corresponde a uma lenda. A phrase é esta: Der Storch bringt die Kinder aus dem Milchbrunnen. (A cegonha traz os meninos do poço de leite). A lenda conta que as creanças jazem n'um poço, chamado—das creanças—, o qual é muito fundo. Se os meninos querem uma irmãsinha ou um irmãosinho, pedem á cegonha que os vá tirar do poço com o seu comprido bico, o que ella faz de noute, mettendo-os pela janella da casa, onde as respectivas mamãs os vão buscar.