The Project Gutenberg eBook of A Paranoia

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Title: A Paranoia

Author: Júlio de Matos

Release date: December 28, 2004 [eBook #14503]
Most recently updated: December 19, 2020

Language: Portuguese

Credits: E-text prepared by Miranda van de Heijning, Larry Bergey, and the Project Gutenberg Online Distributed Proofreading Team from images generously made available by the Bibliothèque nationale de France (BnF/Gallica) at http://gallica.bnf.fr

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E-text prepared by Miranda van de Heijning, Larry Bergey, and the Project

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A PARANOIA

Julio de Mattos

ENSAIO PATHOGENICO SOBRE OS DELIRIOS SYSTEMATISADOS

…Ci iroviamo proprio faccia a faccia col nudo querito della pura pazzia.

EUGENIO TANZI

Lisboa
Livraria Editora
Tavares Cardoso & Irmão
5, Largo de Camões, 6

1898

A MEMORIA AMIGA DO PROFESSOR SOUSA MARTINS

PREFACIO

Ao passo que na sua maioria as doenças hoje estudadas pelos alienistas pertencem no fundo á pathologia interna, e só pelo predominio, mais apparente ás vezes do que real, dos seus symptomas psychicos se apropriaram a designação de mentaes, os delirios systematisados, esses, pela ausencia de caracteristicas lesões, pela falta de privativas causas determinantes e pela carencia de symptomas funccionaes objectivamente apreciaveis, constituem a verdadeira loucura, a psychose por excellencia, n'uma palavra, o proprio e irreductivel dominio da psychiatria.

Isto é dizer que a observação clinica não póde, ella só, determinar a génese d'estes delirios, pois que o confronto dos dados psychicos com os somaticos e etiologicos é, no caso sujeito, impraticavel.

Foi, todavia, pelo exclusivo exame do hypocondriaco, do perseguido, do ambicioso, que os alienistas buscaram até ha pouco surprehender a pathogenia dos delirios essenciaes. D'aqui o natural insuccesso dos seus trabalhos, melhor do que nunca evidenciado nos ultimos debates das sociedades psychiatricas de Paris e de Berlim, em que se não fez, por confissão dos proprios oradores, mais do que obscurecer e confundir o problema posto.

Por outro caminho,—introduzindo no controvertido thema a criterio da evolução, seguiram, felizmente, na Italia contemporanea eminentes pshychiatras.

Inquiridos clinicamente os delirios essenciaes nos seus symptomas e na sua marcha, uma coisa resta ainda fazer para os interpretar: o estudo do delirante, considerado, não em si mesmo, como individuo, ou nos seus ascendentes immediatos, como membro de uma certa familia, mas anthropologicamente na sua vasta ancestralidade, como representante de uma especie em plena evolução.

Na sua marcha normal não segue o Espirito ao acaso, mas progressivamente por linhas de ideação desde muito entrevistas, senão inteiramente definidas; quem nos affirma que na sua marcha anormal elle não segue regressivamente pelas mesmas prefixas e inflexiveis linhas ideativas?

Se a dissolução da memoria se apagam primeiro os factos recentes e só depois os remotos, primeiro os nomes e só por ultimo os adjectivos e os verbos; se na dissociação da motricidade se perdem em primeiro logar os actos conscientes e só por fim os habituaes e instinctivos; se na desaggregação affectiva são os primeiros a fazer naufragio os sentimentos altruistas e só em derradeiro logar se extinguem os egoistas, é possivel e provavel mesmo que na esphera propriamente conceptiva a marcha pathologica se realise, ao menos em certos casos, n'um sentido tambem regressivo. Ora, segundo a escóla italiana, isto se dá, com effeito, nos delirios systematisados essenciaes, manifestação.

PRIMEIRA PARTE

Historia dos delirios systematisados

I—PHASE INICIAL

De Areteu a Esquirol—Confusão dos delirios systematisados com a melancolia—A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e expansiva.

Se conheceram os delirios systematisados, não deixaram d'isso documento os escriptores que precederam a nossa era. É sómente a datar do primeiro seculo, em Areteu e Celio Aureliano, que encontramos incontestaveis e inequivocas referencias aos perseguidos.

Occupando-se dos melancolicos, escrevia, com effeito, o primeiro d'estes medicos: «Muitos receiam que lhes propinem venenos; os seus sentidos adquirem um redobramento de finura e de penetração que os torna suspeitosos e de uma habilidade extrema em verem por toda a parte disposições hostis»[1]. Pelo seu lado, Celio Aureliano, fallando dos mesmos doentes, affirmava que muitos «experimentam uma desconfiança continua, um permanente receio de imaginarias armadilhas»[2].

[1] Areteu,De Melancholia, apud Trelat, Recherches historiques sur la folie, pag. 10

[2] Vid. Trelat, Obr. cit., pag. 38.

A confusão que n'estas passagens se nota entre perseguidos e melancolicos, subsistirá, como veremos, até muito perto de nós e merece explicar-se desde já.

Definindo a melancolia «animi angor in una cogitatione defixus», Areteu caracterisava esta doença por duas ordens diversas de factos a que dava igual valor: de um lado, o phenomeno emotivo, consistindo n'um estado de angustia animi angor, do outro, o facto intellectual de uma concepção, delirante absorvendo e fixando o espirito (in una cogitatione defixus). Pouco a pouco, porém, a consideração de um delirio limitado foi, talvez por mais apparente, predominando sobre a de um estado mental depressivo na caracterisação da melancolia, como se vê nos auctores que succederam a Areteu. Procurando, com effeito, differenciar a melancolia da mania, elles não o faziam pondo em contraste os estados emotivos que acompanham estas vesanias, mas proclamando que na primeira o delirio é limitado, unico e absorvente, ao passo que na segunda elle é multiplo, geral e dispersivo.

Repetindo-se atravez dos tempos, esta doutrina que faz prevalecer o elemento intellectual sobre o emotivo, conquista de tal modo as opiniões que no seculo XVII melancolia e delirio parcial tornam-se termos equivalentes. Assim Sennert a definia: «Uma concentração da alma sobre a mesma idéa ou um delirio que se exerce sobre um pensamento, falso quasi exclusivo».[1]

[1] Vid. Morel,Traité des maladies mentales, pag. 54.

Nenhuma idéa de emoção depressiva e dolorosa se encontra n'esta e analogas definições, em que, pelo contrario, a unidade do delirio figura como elemento exclusivo. O angor animi de Areteu desapparecera, restando apenas da antiga definição o conceito de um espirito absorvido in una cogitatione. Logicamente, pois, incluiram os medicos do seculo XVII o delirio de grandezas no quadro clinico da melancolia. Sob o seu ponto de vista, com effeito, tanto valem os perseguidos como os megalomanos, porque uns e outros são, no dizer de Sennert, doentes «cuja razão se acha pouco alterada ou apenas alterada em relação a um objecto», isto é, por definição, melancolicos. Entre estes collocava o auctor que acabamos de citar, um doente julgando-se monarcha do Universo e cuja razão, só parcialmente lesada, lhe permittia «dissertar perfeitamente sobre as mais graves questões». Plater, ao lado dos melancolicos sitiophobos «receiando envenenamentos e accusando de hostilidade e perfidia os seus mais intimos amigos», collocava doentes «possuidos das idéas de opulencia e de realeza».

A unidade do delirio e não a natureza d'elle ou das emoções que o acompanham, constituia no seculo XVII, como se vê, a caracteristica dos estados melancolicos. De resto, Sennert explicitamente affirmava que «na melancolia o delirio é muitas vezes alegre».

Os medicos do seculo XVIII acceitaram unanimemente a doutrina que no quadro clinico da melancolia fazia entrar a titulo de variedades os delirios de perseguições e de grandezas. Para Sauvages, por exemplo, o delirio exclusivo caracterisava a melancolia; mais explicito, Lorry descreveu como fórma d'esta vesania «um delirio parcial exaltado com paixão excitante».

A primeira metade do nosso seculo não trouxe modificação sensivel a estas idéas. Rusch descrevia em 1812 duas variedades melancolicas, uma triste, tristimania, outra alegre, aménomania. Pinel admittia igualmente duas fórmas de melancolia: uma depressiva e outra ambiciosa, caracterisadas por um delirio parcial. «Nada mais inexplicavel, diz elle, e, todavia, nada mais verificado que a existencia de duas fórmas oppostas da melancolia. É algumas vezes uma explosão de orgulho e a idéa chimerica de possuir immensas riquezas e um poder sem limites, outras vezes o abatimento mais pusilanime, uma consternação profunda e mesmo o desespero»[1].

[1] Pinel, Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale, pag. 165.

Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo, as idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de monomania o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou especies: uma, depressiva, a lypemania, outra, expansiva, a monomania propriamente dita. A lypemania, que não é senão a tristimania de Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende entre outras variedades o delirio de perseguições, ainda então innominado; a monomania propriamente dita, que equivale á aménomania de Rusch e á melancolia de fórma expansiva de Pinel, é por elle definida «um delirio parcial ou monomania alegre», e comprehende os delirios de grandezas, não só o idiopatico, mas, como se vê nos casos que aponta, o symptomatico da paralysia geral, ao tempo ainda não descripta.

Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente perigosa.

No seu Tratado das Doenças Mentaes affirma Esquirol que o termo monomania adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes, ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o mesmo que a melancolia dos antigos—uma affecção parcial do entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a palavra monomania foi insensivelmente generalisada pelo proprio Esquirol no sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de qualquer faculdade: ao lado de uma monomania intellectual, tem logar uma monomania affectiva e uma monomania impulsiva. Delirios systematisados, emoções procedentes de idéas obsediantes, impulsos cegos e irresistiveis, tudo entra no quadro da monomania—o mais amplo, diz Esquirol, de toda a classificação.

De sorte que, se os antigos, desviando a palavra melancolia do significado que Areteu lhe dera, chamaram a um só grupo delirios do caracter diverso e lançaram assim na sciencia uma grande confusão, Esquirol não fez senão augmental-a pela creação das monomanias.

Como quer que seja, o immenso e, por innumeros titulos, justificado prestigio d'este observador fez correr a palavra e a doutrina. Sem duvida, objecções foram bem cedo erguidas contra ambas por Falret, Delasiauve e outros, que negaram a existencia de delirios circumscriptos a uma só idéa, affirmados na palavra, ou pozeram em relevo a solidariedade das funcções mentaes, contradictada pela doutrina. «Todas as faculdades, escrevia Falret em 1819, participam em maior ou menor grau das desordens intellectuaes; de resto, sempre que uma idéa falsa invade a intelligencia, o seu poder contagioso exerce-se sobre as outras, de sorte que sob um delirio preponderante véem-se estabelecer delirios secundarios e derivados que não tardam a invadir todo o intendimento»[1]. Pelo seu lado, Delasiauve escrevia em 1829: «Póde acaso limitar-se o circulo d'acção em que uma idéa dominante deve exercer ou realmente exerce a sua influencia?» E mais tarde ainda: «O delirio dos monomanos não é nunca tão circumscripto como se pretendeu; a verdadeira monomania é rarissima!»[2] Todavia, a criticas d'esta ordem redarguiam Esquirol e os seus discipulos que nem a palavra monomania significava unidade de delirio, nem a doutrina necessariamente implicava que a lesão de uma faculdade não podesse fazer-se sentir sobre as outras; para elles, a monomania designava uma lesão parcial e preponderante, mas não unica e independente, das faculdades.

[1] Falret, Des maladies mentales

[2] Delasiauve, Les Pseudomonomanies

«Tem-se negado, escrevia Esquirol, a existencia dos monomaniacos, dizendo-se que os alienados não deliram nunca sobre um só objecto, mas que sempre n'elles há perturbações da sensibilidade e da vontade. Mas, se assim não fosse, os monomaniacos não seriam loucos.»[1] Pelo seu lado, Marcé escrevia: «Nunca os que crêem na existencia das monomanias pensaram em negar a solidariedade das faculdades intellectuaes no monomaniaco. Reconhecendo que o delirio é raras vezes limitado a um só ponto, crêem, no emtanto, dever conservar as monomanias a titulo de grupo distincto.»[2]

[1] Esquirol,Des maladies mentales, tom. II, pag. 4.

[2] Marcé, _Traité pratique des maladies mentales,_pag. 351.

Voltemos, porém, ao nosso restricto assumpto.

A monomania intellectual de Esquirol, caracterisada por um delirio limitado de natureza alegre ou triste, não é senão a melancolia dos antigos medicos. Para aquelle, como para estes, era a extensão dos conceitos falsos o criterio para classificar as loucuras em que ha compromisso da intelligencia: de um lado, a mania, manifestando-se por um delirio geral e dispersivo, do outro, a monomania, symptomatisada por um delirio parcial e fixo.

Se a estas duas especies accrescentarmos a idiotia e a demencia, entrevistas por Pinel, mas só definidas por Esquirol, a estupidez descripta por Georget, e a paralysia geral, estudada por Calmeil, encontramo-nos em face da classificação das psychoses que até ao meiado do nosso seculo a França inteira adoptou. Ora, dentro d'esta classificação, não teem logar distincto e proprio, como se vê, os delirios systematisados: o de perseguições é descripto como uma variedade lypemaniaca, e o de grandezas é confundido com as manifestações symptomaticas de outras doenças mentaes.

II—PHASE ANALYTICA

De Lasègue a J Falret e de Griesinger a Snell e Sander—O delirio de perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit secundaria; a Verrücktheit originaria—Começo de interpretação pathogenica.

Foi Lasègue em 1852 quem primeiro destacou do cahos da melancolia o delirio de perseguições para eleval-o á dignidade de «especie pathologica entre as alienações mentaes».

No seu memoravel trabalho sobre este assumpto, o eminente alienista começa por notar que as idéas de perseguição apparecem como episodio symptomatico e a titulo de phenomeno incidente no alcoolismo, nas loucuras provocadas por certas substancias narcoticas e em muitos delirios parciaes; na doença, porém, que elle descreve pela primeira vez essas idéas não são um syndroma fortuito, mas um facto constante e essencial, um phenomeno preponderante e fixo. A nova psychose tem, de resto, como titulos á autonomia nosographica, symptomas especiaes e uma evolução caracteristica.

Estudando a marcha do delirio de perseguições, Lasègue reconhece-lhe dois periodos: um, de incubação, consistindo n'um mal-estar indefinido e vago, mas absorvente e inquietante, em que o doente se suspeita victima de hostilidades cuja origem não sabe ainda determinar; outro, de estado, em que o delirio definitivamente se installa e systematisa. Ao principio o doente não exprime a idéa de uma perseguição senão com uma certa reserva, hesitantemente, tentando ainda provar a si mesmo que ella é absurda; mais tarde, porém, a duvida esbate-se e o systema delirante apparece definitivamente formado. A duração do primeiro d'estes periodos é essencialmente variavel: tão rapida em alguns doentes que a custo se lhe surprehende o primeiro grau, prolonga-se e arrasta-se em outros, que só muito gradualmente e por uma progressão bem sensivel e bem apreciavel attingem a construcção do seu romance delirante.

Do mal-estar caracteristico do primeiro periodo diz Lasègue que elle se não parece em nada com a inquietação ainda a mais viva do homem normal; é indefinivel, accrescenta, como os symptomas que annunciam e fazem presentir a invasão das doenças graves. O periodo de estado, esse, é como a floração da psychose: o romance systematico desenvolve-se pelo reconhecimento dos perseguidores—a policia, o jesuitismo, os magnetisadores, a maçonaria, os physicos, etc.

Passando ao estudo dos symptomas, Lasègue põe em relevo o papel que desempenham na doença as falsas sensações auditivas. «O orgão do ouvido, escreve o eminente professor, fornece as primeiras sensações sobre que se exerce a intelligencia pervertida. O doente ouve retalhos de conversas que interpreta e se applica; os mesmos ruidos que naturalmente se produzem,—a passagem de um trem, os passos de uma pessoa que sobe ou desce uma escada, uma porta que se abre ou fecha, são objecto dos seus commentarios».[1] Fallando, em seguida, das allucinações auditivas, declara-as as unicas compativeis com o delirio de perseguições; e accrescenta: «Basta que um doente accuse visões para que eu não hesite em affirmar que elle pertence a outra cathegoria de delirantes»[2]. Na mesma ordem de idéas escreve ainda: «Qualquer que seja a epocha em que ellas se declarem, as allucinações pertencem sempre ao quadro das auditivas; não é demais a minha insistencia sobre este caracter, que considero pathognomonico»[3]. Todavia as allucinações do ouvido, tão importantes e de tão vasto papel, não são para Lasègue um phenomeno constante na psychose que descreve: «A allucinação do ouvido, diz elle, não é nem a consequencia obrigada, nem o antecedente necessario do delirio de perseguições»[4]. Os perseguidos podem, segundo elle, não experimentar nunca allucinações; limitando-se a fundar inducções delirantes sobre sensações anditivas reaes, alguns ha que percorrem todos os periodos da doença.

[1] Lasègue, Le délire des persécutions in Ètudes médicales, tom. 1., pag. 554.

[2] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.

[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.

[4] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.

Lasègue não refere allucinações além das auditivas: «As outras sensações de que os perseguidos se queixam, diz elle, reduzem-se a impressões nervosas»[3]. De resto, estas mesmas impressões devem antes lançar-se á conta do hysterismo que á do delirio de perseguições: «As mulheres, diz elle, offerecem os exemplos mais frequentes—sopros internos, subitos calores, entorpecimentos, dores atrozes e passageiras e os outros accidentes tão moveis da hysteria»[4].

[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 556.

[4] Lasègue, Loc. cit., pag. 557.

Como a symptomatologia e a marcha da doença, a pathogenia d'ella mereceu tambem as attenções de Lasègue. Segundo elle, o delirio procederia sempre da necessidade que o alienado sente de explicar as sensações anormaes do periodo inicial, e resultaria, portanto, de uma consciente elaboração logica. «A crença n'uma perseguição, diz elle, não é senão secundaria; provoca-a a necessidade de dar uma explicação a impressões morbidas provavelmente communs a todos os doentes e que todos referem á mesma causa»[1]. Por um raciocinio, pois, passaria o perseguido do vago mal-estar do periodo prodromico ao delirio systematisado e quasi invariavel que caracterisa a doença em plena floração. O facto inicial seria um phenomeno confuso da sensibilidade, uma perturbação emotiva, o phenomeno intellectual, o delirio, seria ulterior e nascido do primeiro. «É, diz Lasègue, depois de um certo tempo de preoccupação e de resistencia que o alienado procura remontar á causa dos seus soffrimentos, e passa assim do primeiro ao segundo periodo. A transição faz-se então por este invariavel raciocinio: os males que soffro são extraordinarios; tenho experimentado bem mais duros golpes, mas concebia-os, descobria-lhes mais ou menos o motivo; agora encontro-me em condições extranhas que não dependem nem da minha saude, nem da minha posição, nem do meio em que vivo: é preciso que alguma coisa de exterior, de independente de mim intervenha; ora eu soffro e sou desgraçado: só inimigos podem ter interesse em me magoar; devo, pois, crêr que intenções hostis são a causa das impressões que experimento»[2].

[1] Lasègue, Loc. cit., pag. 552.

[2] Lasègue, Loc. cit., pag. 552.

Decorrido o periodo prodromico e attingida a systematisação delirante, a doença deixaria, segundo Lasègue, de acompanhar-se de grandes perturbações de sentimentos. Ha perseguidos que, mudando constantemente de casa, fatigando incessantemente magistrados e auctoridades com interminaveis queixas, conservam, todavia, uma certa egualdade de humor «Nunca vi nenhum, diz o auctor, cahir em melancolia continua, reagir por odios violentos ou meditar vinganças»[3].

[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 551.

Occupando-se da etiologia, Lasègue nota que o maximo de frequencia do delirio de perseguições se realisa entre os 35 e os 50 annos e que esta psychose ataca de preferencia as mulheres: segundo a sua estatistica, 25% das alienadas, comprehendidas as idiotas e imbecis, seriam perseguidas. As causas proximas seriam, em regra, de uma completa insignificancia: uma insomnia, uma phrase inoffensiva, uma refeição de sabôr desagradavel, etc. Emfim, estudando o delirio em relação ao caracter anterior do doente, Lasègue nota que «os espiritos mais timidos não são os mais predispostos»; no delirio de perseguições vê o eminente clinico, não o exaggero de uma prévia tendencia natural, mas um elemento pathologico novo introduzido no organismo moral e sem equivalente no estado de saude.

Procurando apenas «estabelecer um typo clinico e determinar os caracteres que devem entrar na sua definição», o notavel alienista declara abster-se de estudar «a marcha decrescente da doença e as suas indicações therapeuticas».

Tal é nos seus traços capitaes e na sua mesma essencia a extraordinaria memoria de Lasègue.

Sem nada accrescentar a este quadro clinico, Morel fez, todavia, desde 1853 umas importantes observações sobre a historia dos perseguidos, affirmando que muitos d'elles principiam por ser hypocondriacos e acabam por delirar n'um sentido ambicioso.

Exposta pela primeira vez d'uma maneira dogmatica e n'um certo grau de generalidade nos seus Estudos Clinicos, a observação de Morel tinha, contudo, precedentes na sciencia. Pinel, com effeito, illustrando o que elle chamava a transição da melancolia depressiva á melancolia ambiciosa, expozera em 1809 alguns casos de doentes que, tendo-se julgado por mais ou menos tempo victimas de hostilidades e de manejos criminosos, acabaram por crêr-se grandes personagens; pelo seu lado, Esquirol notára tambem desde 1838 que da hypocondria póde passar-se á lypemania e d'esta á monomania da vaidade, apresentando como exemplos alguns interessantes vesanicos primeiro hypocondriacos, depois perseguidos e por ultimo ambiciosos. Entre os casos de Pinel ha o de um alienado que durante oito annos delirou como perseguido, crendo-se em constante imminencia de morte por envenenamento, não ingerindo senão alimentos que furtava na cosinha do asylo, e que acabou por crêr-se igual ao Creador e soberano do mundo; entre as observações de Esquirol figura a de um doente que, excessivamente inquieto sobre o seu estado de saude durante mais de dois annos, entra em seguida no caminho das perseguições, imaginando-se objecto de tentativas de envenenamento por parte da familia, e termina, decorrido um anno, por crêr-se filho de Luiz XVI. Mas, por valiosas e instructivas que sejam em si mesmas, estas observações não desempenham nos livros de Pinel e de Esquirol mais que um papel episodico e sem alcance. Morel foi indiscutivelmente o primeiro a vêr n'uma tal successão de delirios, não apenas um curioso accidente, mas uma verdadeira lei de evolução vesanica, segundo a qual a passagem regular da hypocondria ao delirio de perseguições e d'este ao delirio ambicioso seria um facto constante nos alienados hereditarios. D'aqui a affirmar a existencia de uma psychose degenerativa de que os delirios hypocondriaco, persecutorio e ambicioso, succedendo-se, não constituiriam senão étapes ou phases evolutivas, vae uma pequena distancia que Morel percorreu, como veremos, desde a publicação dos Estudos Clinicos em 1853 até á do Tratado das Doenças Mentaes em 1860.

Outros auctores franceses, entre os quaes Renaudin, Broc e Dagonet, notaram a successão de delirios diversos, nomeadamente de perseguições e de grandezas, n'um mesmo alienado; todavia, por desconhecimento ou incomprehensão do alcance dos trabalhos de Morel, nenhum d'elles se preoccupou com a interpretação do phenomeno. Só em 1869 Foville, retomando a questão na sua excellente memoria sobre a Loucura com predominio ao delirio de grandezas, procurou interpretar, sobretudo, a passagem—tão frequentemente observada agora que a attenção dos clinicos incidia sobre ella—do delirio de perseguições ao de grandezas.

Marcando na historia dos delirios systematisados um periodo importante, o trabalho de Foville merece deter-nos um momento.

Depois de ter mostrado que o delirio de grandezas póde apparecer a titulo episodico na maioria das doenças mentaes e com mais ou menos relevo constituir um syndroma de algum dos seus periodos evolutivos, Foville estabelece que elle se torna preponderante e reveste inconfundiveis caracteres semeioticos em dois casos: na loucura parcial e na demencia paralytica. Pondo de parte, por alheio ao nosso estudo, este ultimo caso, vejamos o que Foville pensava do primeiro.

A loucura parcial, que importa não confundir com a monomania de Esquirol, representaria, segundo Foville, as alienações caracterisadas pelo conjuncto d'estes caracteres: presença de um delirio systematisado, ausencia de um estado habitual depressivo ou expansivo, existencia de perturbações sensoriaes, e chronicidade.

O delirio de perseguições descripto por Lasègue é um dos representantes d'este grupo; um outro seria, segundo Foville, a megalomania, que elle define como um delirio de grandezas logicamente coordenado, associando-se a allucinações chronicas e, no seu periodo de estado, a idéas de perseguição.

Em rigor, nem o termo é novo, porque antes o tinham empregado, entre outros, Broc e Dogonet, nem a definição da doença absolutamente original, porque desde Esquirol se havia reconhecido a existencia de um delirio ambicioso idiopatico. O que de original e novo existe no trabalho de Foville é a maneira de estudar a génese do delirio de grandezas e as relações d'elle com a doença de Lasègue.

Segundo Foville, na loucura parcial, de que são escólas o delirio de perseguições e a megalomania, toda a symptomatologia essencial se reduz a concepções delirantes e erros sensoriaes, podendo estas duas ordens de factos manter entre si relações diversas, que importa muito considerar para a comprehensão da pathogenia. Ou as concepções delirantes se apresentam primeiro, apparecendo as illusões e allucinações como um facto secundario da doença, ou, pelo contrario, a esphera sensorial é primitivamente affectada e só depois irrompem as concepções chimericas.

Ora, segundo Foville, não é de modo nenhum indifferente para a natureza mesma da doença que a successão das duas ordens de symptomas se realise n'um sentido ou n'outro, porque o allucinado-delirante é, em regra, um perseguido que póde tornar-se megalomano, ao passo que o delirante-allucinado é mais vezes um megalomano que póde vir a ter idéas de perseguição. A razão d'isto, no dizer de Foville, vem de que na loucura parcial as allucinações primitivas são, como estabelecera Lasègue, preponderantemente, senão exclusivamente as do ouvido, de um caracter, em regra, penoso ao principio e de molde, portanto, a gerarem um delirio depressivo. Ora, sendo a hypothese do allucinado-delirante mais frequente que a do delirante-allucinado, é tambem mais vulgar o perseguido-megalomano que o megalomano-perseguido.

Posto isto, que serve para mostrar que não é meramente accidental a passagem de um delirio a outro, Foville, estreitando mais o assumpto, deriva á explicação do modo intimo por que ella se realisa.

A transição (mais frequente, como foi dito) do delirio de perseguição ao de grandezas opera-se, ao vêr de Foville, por um processo logico. «Depois, diz elle, de terem por mais ou menos tempo attribuido as proprias allucinações a inimigos desconhecidos, contentando-se com explical-as por uma palavra mais ou menos obscura e mysteriosa, certos lypemaniacos allucinados dizem a si mesmos: Factos d'esta ordem não podem passar-se, no estado social em que vivemos, sem a intervenção de pessoas influentes e altamente collocadas; essas só, portanto, são as instigadoras dos nossos tormentos. Outros, ao contrario, reconhecendo que não succumbem nunca de um modo completo aos perigos de que se sentem cercados; suppõem ter amigos occultos, mas de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte, desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam mensagens. No meio do delirio melancolico as idéas de grandeza adquirem realmente uma importancia preponderante. Mas as coisas podem ir mais longe ainda. Impressionados pela desproporção entre a sua posição burgueza e o poder de que devem dispôr os seus inimigos para os attingirem, a despeito de tudo; entre o apagado papel que desempenham no mundo e os moveis imperiosos que podem explicar o encarniçamento com que são perseguidos, alguns d'estes doentes acabam por a si proprios perguntarem se realmente são tão pouco importantes como parecem. Uma nova perspectiva se abre diante do seu atormentado espirito: não é já a dos outros, mas a propria personalidade que aos seus olhos se transforma. Para que os persigam d'este modo, dizem elles, é preciso que um alto interesse se dê, e isso só se comprehende porque elles façam sombra a gente rica e poderosa, porque tenham, elles proprios, direito a uma fortuna e a uma posição de que fraudulentamente os despojaram, porque pertençam a uma classe elevada de que foram afastados por circumstancias mais ou menos mysteriosas, porque não sejam seus verdadeiros paes os que como taes consideram, porque pertençam, emfim, a uma alta estirpe, as mais das vezes real»[1].

[1] Foville, La folie avec prédominence du délire des grandeurs, pag. 345.

E accrescenta: «Estas idéas terão, sobretudo, tendencia a produzir-se nos casos em que, já antes de doente, o individuo teve de soffrer no seu orgulho ou nos seus interesses pelo facto da irregularidade ou do mysterio do proprio nascimento. Assim, temos notado que esta fé n'uma origem illustre, que esta crença n'uma imaginaria fortuna é relativamente frequente nos filhos naturaes que véem a cahir na loucura. São elles principalmente os preparados para ás idéas de perseguição juntarem um novo romance em que dominam as concepções de grandeza, as substituições ao nascer, as confusões de pessoas»[1].

[1] Foville, Loc. cit., pag. 346.

Como se vê, Foville não faz senão seguir a orientação psychologica de Lasègue, que explicava pela intervenção de um raciocinio a passagem, no delirio de perseguições, do periodo prodromico ao de estado. Um processo logico, essencialmente deductivo e syllogistico preside tambem, segundo Foville, á génese das idéas ambiciosas que derivam de um delirio persecutorio.

Mas não é este, reconhece-o Foville, o unico modo por que o delirio de grandezas póde produzir-se; algumas vezes succede que as concepções ambiciosas se installam primitivamente, dando-se então o caso de surgirem depois idéas de perseguição, por uma sorte de propagação regressiva que, ao fim de um certo tempo, acaba por nivelar as situações. Qual é agora o mecanismo de transição? «É difficil, escreve Foville, crêr-se um doente na posse de direitos á fortuna e ao mando, figurar-se descendente de uma familia illustre, e não se sentir vexado pela modestia da posição que occupa ou pela exiguidade dos recursos de que dispõe. N'isto vê elle um signal de injustiça, que attribue á acção de inimigos poderosos; crê-se, pois, victima de manobras hostis e fabrica assim um systematico delirio de perseguições, secundario agora e consequencia das idéas de grandezas»[1].

[1] Foville, Loc. cit., pag. 347.

É ainda, como se vê, um processo logico o destinado; segundo Foville, a explicar a passagem do delirio ambicioso ao de perseguições; toda a vesania parcial, portanto, qualquer que tenha sido o seu ponto de partida e qualquer que haja de ser o seu termo, se desenrola sob a dependencia do raciocinio e dentro da esphera consciente da ideação.

Os casos em que o delirio de grandezas succede immediatamente a allucinações de caracter agradavel e lisongeiro, são extremamente raros; a interpretação dos erros sensoriaes, isto é, um processo consciente e reflectido, é ainda d'esta vez origem da doença.

Referindo-se á doutrina de Morel, Foville declara não a acceitar, porque o delirio hypocondriaco, ponto de partida necessario, segundo aquelle auctor, dos delirios de perseguições e de grandezas, só excepcionalmente o encontrou.

De quanto vem de ser exposto a conclusão a tirar é esta:

Existe um delirio systematisado de grandezas que, no seu periodo de estado, se combina sempre com idéas de perseguição, que é invariavelmente acompanhado de allucinações auditivas e que tanto póde originar-se, por via deductiva, de um preexistente delirio persecutorio, como nascer d'emblèe. Não sendo um episodio morbido, nem mesmo a phase evolutiva de uma vesania anterior, porque póde ser e é muitas vezes primitivo, esse delirio constitue uma doença com foros de autonomia e direitos a uma designação privativa: a megalomania.

Tal é, em resumo, a memoria de Foville na parte consagrada ao delirio parcial de grandezas.

Depois dos importantes trabalhos de Lasègue e Foville, a psychiatria franceza não nos offerece, dentro d'este periodo de analyse, estudo que tenha feito progredir pela interferencia de pontos de vista novos o conhecimento dos delirios systematisados. O livro publicado por Legrand du Saulle, sob o titulo de Delirio de perseguições, em 1871, valioso, certamente, pela copia de observações e pelos detalhes de analyse clinica, nada tem, no fundo, de original, embora tentem proclamar o contrario estas ambiciosas palavras do prefacio: «A despeito da sua extrema frequencia e dos seus tão claros caracteres distinctivos, o delirio de perseguições achou-se confundido com a melancolia de Pinel, com a lypemania de Esquirol, com a monomania depressiva de Baillarger; é ahi que eu vou buscal-o para o estudar nas suas diferentes phases, para o constituir de toutes pièces e fazer d'elle uma especie á parte»[1]. Dezenove annos antes fizera Lasègue, como vimos, o que n'esta passagem se annuncia. O trabalho de Legrand du Saulle, excepção feita dos capitulos consagrados ao tratamento, á medicina legal e ao contagio do delirio, que nada teem que vêr com a constituição scientifica da doença, não é senão um desenvolvimento da memoria de Lasègue, cuja ordem de exposição adopta e cujas expressões mesmo não raro se apropria.

[1] Legrand du Saulle, Le Délire des persécutions, pag. 11.

Como Lasègue, Legrand du Saulle descreveu dois periodos no delirio de perseguições: um, de começo, exteriorisado por uma inquietação indefinivel e de nenhum modo comparavel á do homem normal que tem um grande interesse compromettido; outro, de estado, caracterisado pela definitiva systematisação das idéas delirantes formando um romance invariavel para cada doente.

Como Lasègue, Legrand du Saulle caracterisa a inquietação do primeiro periodo comparando-a á cephalalgia e ao arrepio que são muitas vezes os precursores de graves doenças communs, mas que em si mesmos nada teem de preciso.

Como Lasègue, Legrand du Saulle explica a transição do primeiro ao segundo periodo por um acto de reflexão do perseguido, por um verdadeiro raciocinio. «O doente, escreve Legrand du Saulle, diz a si proprio e aos outros que não são naturaes as inquietações e angustias que experimenta, que lhes não encontra causa no meio em que vive, no estado da propria saude, no da propria fortuna. No seu passado experimento grandes infortunios, mas sabia o motivo d'elles e não eram os mesmos os seus soffrimentos, não tinham o caracter vago e indefinido dos actuaes. Este mal-estar tão grande, estas impressões tão penosas e tão injustificadas devem ter uma causa secreta. E é assim que o doente se sente naturalmente levado a pensar que inimigos occultos, interessados em perdel-o, se reunem e procuram fazel-o soffrer»[1].

[1] Legrand du Saulle, Obr. cit., pag. 17.

Como Lasègue, Legrand du Saulle dá na symptomatologia da doença um logar preponderante ás allucinações auditivas, precedidas frequentemente de illusões do mesmo sentido. «O doente, escreve o auctor, começa por dar uma falsa significação aos ruidos reaes que escuta: uma porta que se abre, pessoas que fallam na rua, uma palavra pronunciada ao pé d'elle, os passos de alguem, tudo é materia do delirio. As verdadeiras allucinações só começam, em geral, mais tarde e n'uma epocha variavel»[2].

[2] Legrand du Saulle, Obr. cit., pag. 43.

Como Lasègue, Legrand du Saulle admitte um periodo de declinação na doença, que, sendo, em regra, incuravel, póde terminar pela cura n'uma quinta parte dos casos. Na etiologia, Legrand du Saulle constata, como Lasègue, que a doença é mais frequente nas mulheres e se realisa preferentemente na epocha por excellencia das grandes luctas da vida. Algumas considerações que faz sobre a hereditariedade, o onanismo e as perseguições infantis são de um caracter vago. Como se vê, em tudo quanto póde servir para caracterisar como especie o delirio de perseguições—na symptomatologia, na marcha, na etiologia, Legrand du Saulle não faz senão seguir a memoria de Lasègue.

Vamos vêr que n'um ponto de maxima importancia, não tratado pelo eminente professor da faculdade de Paris no seu trabalho de 1852, Legrand du Saulle acompanha a memoria de Foville. Refiro-me á passagem do delirio de perseguições ao de grandezas, explicada, como vimos, por Legrand du Saulle acceita esta mesma pathogenia. «Depois, diz elle, de ter soffrido tantas hostilidades da parte de implacaveis inimigos, depois de ter sido victima de tantas intervenções devidas á magia ou ao electro-magnetismo, o perseguido recolhe-se por vezes e pensa: Como podem em pleno seculo XIX produzir-se factos d'esta natureza? É preciso admittir no fundo de tudo isto uma energica vontade superior, a de um alto personagem, a de um principe ou, talvez, de um rei! Deve ter sido necessaria, com effeito, para explicar o meu caso uma auctoridade verdadeira, que só póde existir nas mãos de millionarios, de ministros e de imperadores: quem ordenou tudo é, pois, um grande senhor ou um notavel personagem. Um outro perseguido pensará: Armam-me redes, mas eu evito-as; expõem-me a coalisões formidaveis, mas eu saio-me bem d'ellas; attentam contra a minha vida, mas eu resisto; alguem, pois, de um alto poder vela por mim e me protege; esse alguem é o chefe do estado. Eis, a partir d'aqui, toda uma ordem nova de idéas imprimindo uma outra direcção ás concepções delirantes e ás allucinações. O perseguido não cessa desde então de fallar em ministros, em familias reinantes, na côrte pontifical, desconhecendo o caracter real das pesssoas que o cercam e affirmando que Napoleão lhe envia mensagens, que Trochu o chamou, que Thiers vae recebel-o, que tal ou tal princesa vem visital-o. N'uma palavra, encontramo-nos em presença de idéas de grandeza pathologicamente juxtapostas, porque as perseguições não cessaram, os inimigos existem ainda»[1].

[1] Legrand du Saulle, Obr. cit., pag. 84.

«Acabamos de constatar, continua Legrand du Saulle, erros grosseiros sobre a personalidade dos outros; pois vamos vêr que uma nova transformação se opera agora e que erros mais grosseiros ainda vão dar-se d'esta vez sobre a personalidade de perseguido. Sigamos um pouco o raciocinio do doente: As operações dos meus inimigos, pensa elle, são tão desleaes como persistentes e perigosas; os meus inimigos são infatigaveis e poderosos; mas que interesse podem elles ter em me mortificarem d'este modo, a mim, homem ignorado, obscuro ou collocado n'uma situação modesta? O contraste entre os perseguidores e a victima é dos mais notaveis. Quem sou eu com effeito? Talvez um ser menos apagado do que se pensa, mais importante do que se imagina, mais temivel do que se suppõe. E nem póde deixar de ser assim. Enchem-me de humilhações odiosas, dirigem contra mim os mais tenebrosos attentados; ha, pois, um interesse em fazel-o. Esse interesse parte de millionarios, duques, principes ou imperadores, e é, portanto, dos mais consideraveis. Mas então faço eu sombra a alguem e esse alguem roubou-me necessariamente o meu nome, o meu titulo, a minha fortuna, o meu logar social, a minha corôa. Eu não sou, portanto, o homem humilde sob cuja mascara vivi até hoje: fui mysteriosamente posto de lado, iniquamente esbulhado; o nome de que uso não é o meu, os que teem feito de meus paes não são da minha familia; eu sou o neto de Luiz XVI ou o filho de Napoleão, sou o duque de Orleans ou chamo-me D. Carlos»[2].

[2] Legrand du Saulle, Obr. cit., pag. 85.

Para não deixar de seguir passo a passo Foville, que, como vimos, notara a relativa frequencia do delirio ambicioso nos perseguidos filhos naturaes, Legrand du Saulle accrescenta: «Se o perseguido não tem um acto de nascimento regular, se alguma vez soffreu pelo facto de uma situação indecisa, de uma paternidade não confessada ou de uma educação mysteriosa, se o seu orgulho foi torturado ou lesada a sua fortuna, com que perniciosos elementos não crescerá o seu delirio, com que apparencias de verosimilhanças não fallará elle a todos da sua imaginaria fortuna, do seu nascimento illustre?!»[1]

[1] Legrand du Saulle, Obr. cit., pag. 86.

Como Foville e Morel, Legrand du Saulle refere casos em que no delirio de perseguições se observam concepções hypocondriacas; estas, porém, como as de grandeza, não constituem para elle uma phase evolutiva, mas apenas um acompanhamento ou complicação da doença de Lasègue.

Uma parte nova e valiosa do trabalho de Legrand du Saulle é a que se refere ao diagnostico differencial entre o delirio de perseguições idiopathico e o que, como syndroma, apparece na demencia senil, na paralysia geral, no alcoolismo subagudo e nas intoxicações pelo chumbo e pelo sulfureto de carbone.

Não terminaremos esta rapida analyse do livro de Legrand du Saulle sem notar que elle soube pôr em relevo dois factos interessantes, ulteriormente notados por quantos se teem occupado d'este assumpto: a existencia em muitos perseguidos de allucinações auditivas bilateraes de caracter differente—vozes benevolas d'um lado, vozes hostis do outro, e a tendencia d'estes doentes á formação de neologismos e de um incomprehensivel vocabulario privativo de cada um.

* * * * *

Até aqui os trabalhos francezes. Vejamos agora, retrocedendo um pouco na ordem dos tempos, de que maneira os psychiatras allemães comprehenderam os delirios systematisados.

Foi Griesinger o primeiro entre elles a occupar-se d'este assumpto no seu Tratado de Doenças Mentaes cuja apparição remonta a 1845, mas que só vinte annos depois veio a ser conhecido em França pela traducção Doumic. N'esse livro, por muitos titulos notavel, descreve o eminente professor de Zurich, sob a denominação de Verrücktheit, os delirios parciaes que alguns annos mais tarde Lasègue e Foville haviam de elevar, dando-lhes nomes privativos, á cathegoria de especies em nosographia mental. Se bem que abreviada e n'um ou outro ponto confusa, a descripção de Griesinger abrange todos os pontos essenciaes da symptomatologia dos perseguidos e megalomanos, como facilmente se ajuizará pelas transcripções que seguem.

Referindo se ás concepções que são o nucleo mesmo do delirio e o seu mais apparente symptoma, Griesinger escreve: «São umas vezes idéas activas, exaltadas, maniacas; o doente occupa uma posição elevadissima e tem um grande poder: é Deus, as tres pessoas da Santissima Trindade, reformador do Estado, rei, um grande sabio, um propheta, um enviado de Deus ou descobriu o movimento perpetuo, é o dominador de toda a natureza e conhece os elementos de todas as coisas, etc. Outras vezes são idéas passivas: os doentes crêem-se lesados, dominados, submettidos ao poder d'outrem; julgam-se perseguidos, victimas de tramas hostis; mysteriosos inimigos atormentam-nos pela electricidade, os maçonicos fazem lhes mal, são possessos do diabo, estão condemnados a supplicios eternos, e roubados nos seus bens mais caros, etc.»[1]

[1] Griesinger, Traité des maladies mentales, trad. franceza, pag. 386.

Occupando-se dos erros psycho-sensoriaes, escreve: «As illusões e allucinações em nenhuma outra fórma de loucura são tão frequentes como na Verrücktheit; em grande numero de casos são ellas principalmente que alimentam e entreteem o delirio. Muitas vezes os doentes conversam com as vozes que escutam, ou discutem com ellas, entregando-se então a accessos de colera»[1]

[1] Griesinger,Obr. cit., pag. 388.

Sobre o caracter absorvente d'estes delirios e sobre as transformações de personalidade, diz Griesinger; «Involuntariamente o alienado refere tudo ao seu delirio, e é d'este ponto de vista que julga todas as coisas … As concepções falsas relativas ao proprio Eu chegam a attingir um elevadissimo grau, a partir do qual o doente não considera as coisas do mundo externo senão de um modo inteiramente pervertido … Alguns d'estes doentes parecem crêr que a sua verdadeira personalidade anterior deixou de existir»[2]

[2] Griesinger,Obr. cit., pag. 387.

Sobre a necessidade do neologismo nos delirios systematisados de uma longa duração, escreve o eminente alienista: «Por vezes a linguagem ordinaria não basta ao doente para exprimir o proprio pensamento, pelo que construe, ao menos para traduzir as suas concepções delirantes, um vocabulario especial, que elle crê ser a linguagem primitiva, a linguagem dos ceus»[3]. Ainda a proposito da exteriorisação do delirio, Griesinger nota que «por vezes o doente occulta cuidadosamente o seu systema geral de absurdos»[4].

[3] Griesinger,Obr. cit., pag. 388.

[4] Griesinger,Obr. cit., pag. 388.

Sobre o estado affectivo d'estes delirantes exprime-se assim o professor allemão: «Nunca estes doentes tomam parte, como outr'ora, nas coisas do mundo externo, ou são capazes de amar e odiar como antes; podem morrer-lhes os paes e os amigos, póde ser-lhes subtrahido o que mais estimavam, póde o mais terrivel acontecimento incidir-lhes sobre a familia sem que elles sintam mais que uma ligeira emoção, se alguma sentem. Um só ponto ha em que podem ser ainda emocionados, que póde abalar-lhes promptamente os sentimentos e provocar uma forte reacção da vontade: procurem-se combater pelo raciocinio as suas idéas fixas e logo elles se irritarão e entrarão em colera; acariciem-se, pelo contrario, as suas concepções e elles mostrar-se-hão contentes»[1].

[1] Griesinger,Obr. cit., pag. 388.

Crêmos que as citações precedentes bastam para demonstrar que Griesinger conheceu intimamente os perseguidos e ambiciosos. A descripção que d'elles faz, como quadro symptomatico d'après nature, é nas suas linhas capitaes e até em alguns detalhes a mesma que alguns annos mais tarde haviam de exhibir-nos os alienistas francezes que, não conhecendo os trabalhos do professor allemão, tinham, comtudo, diante de si analogos modelos.

Mas se a descripção symptomatica é a mesma, a interpretação nosographica e pathogenica é profundamente diversa, porque, ao passo que os francezes consideraram sempre os delirios parciaes como fórmas primarias da loucura, Griesinger julga-os, como vamos vêr, fórmas secundarias ou estados procedentes da mania e da melancolia.

O que é, com effeito, a Verrücktheit do psychiatra allemão? «Sob este nome, diz elle, designamos os estados secundarios de loucura, nos quaes, embora tenha diminuido consideravelmente ou mesmo desapparecido por completo a situação afectiva que caracterizava a fórma mental no seu começo, o doente não cura, e em que a alienação consiste n'um pequeno numero de concepções delirantes fixas que elle acaricia de um modo particular e constantemente repete»[2]. E accrescenta: «A Verrücktheit é sempre, pois, uma doença secundaria, consecutiva á melancolia ou á mania»[3]. Residuos de estados de exaltação ou depressão, diz ainda em outro logar, constituem a Verrücktheit que, por isso mesmo, elle colloca no grupo dos estados de enfraquecimento psychico, ao lado da demencia.

[2] Griesinger,Obr. cit., pag. 382.

[3] Griesinger,Obr. cit., pag. 382.

Na direcção de Griesinger e pelo caminho que elle abriu seguiram longo tempo os alienistas allemães. «O delirio parcial, escrevia Albers em sobretudo uma fórma de terminação da loucura com excitação ou depressão geraes; quando se encontra esta fórma, uma das duas existiu anteriormente e acabou por uma cura incompleta»[1]. Fallando da metamorphose do Eu que acompanha os delirios systematisados n'uma phase de adiantada chronicidade, Spielmann escrevia no mesmo anno «que ella suppõe a existencia anterior da melancolia ou da mania, sem uma das quaes não póde nunca produzir-se»[2]. Em 1859 Neuman considerava a Verrücktheit «uma cura com perda de substancia da intelligencia», isto é, uma cura incompleta da mania ou da melancolia, um estado secundario ou consecutivo, acompanhado de uma decadencia das faculdades.

[1] Albers, Memoranda der Psychiatrie.

[2] Spielmann, Diagnostik der Geisteskrankheiten.

Crêmos inutil proseguir em citações. As precedentes bastam a dar-nos uma clara idéa da doutrina pathogenica dos delirios, systematisados segundo a psychiatria allemã d'esta epocha. Suspensas na sua evolução para a demencia, a mania e a melancolia atardar-se-hiam nas fórmas expansivas ou depressivas da Verrücktheit, delirio de grandezas ou delirio de perseguições.

Em contraste, porém, com estas idéas, que durante vinte annos dominaram absolutamente a psychiatria allemã, descreveu Snell em 1865, baseando-se em dez casos de observação pessoal, uma nova fórma de loucura essencialmente caracterisada pela apparição primitiva de estados allucinatorios e conceitos delirantes de contheudo mixto, expansivo e depressivo.

Esta fórma, que Snell denomina monomania ou Wahnsinn, é inteiramente distincta da mania e da melancolia. N'ella podem as idéas de perseguição e de grandeza ser contemporaneas ou successivas; quando as ideias ambiciosas succedem ás de perseguição realisa-se uma metamorphose da personalidade vesanica. A evolução d'esta fórma é essencialmente chronica e o seu prognostico infausto. A adopção do termo francez monomania parece indicar a parcialidade do delirio que, segundo Snell, não conduz nunca á demencia, como a do termo allemão (derivado de Vahn: delirio, e Sinn: sentidos) põe em relevo a importancia das allucinações.

Acceitando este modo de vêr, Griesinger penitenceia-se em 1867 da excessiva e precipitada generalisação das suas idéas pathogenicas e acaba por admittir, ao lado da Secundäre Verrücktheit, uma Primäre Verrücktheit, analoga ao Wahnsinn de Snell. Na lição de abertura do seu curso n'esse anno exprimia-se assim o grande chefe da psychiatria allemã: «Áctualmente não considero já como fórmas secundarias as alterações peculiares, muito chronicas e mixtas do delirio persecutorio e ambicioso; ao contrario, convenci-me da origem protogenica d'estes estados que denomino Primäre Verrücktheit».

Perfilhando as idéas de Griesinger sobre a Primäre Verrücktheit, descreveu Sander em 1868, baseado em quatro casos clinicos, uma variedade congenita d'esta fórma sob a designação de Originäre Verrücktheit. Os delirantes perseguidos ou ambiciosos d'este sub-grupo são desde a infancia taciturnos, mysantropos, romanticos, excessivamente phantasistas, faltos de energia, onanistas, n'uma palavra, originariamente enfermos. É na puberdade que os delirios, de longa data preparados, fazem explosão. Sander nota as tendencias remittentes da Originäre Verrücktheit e observa que a demencia está muito longe de ser um dos seus modos de terminação.

Como se vê, a primitividade ou protogénese dos delirios systematisados, admittida desde todo o principio pelos alienistas francezes, é agora acceite pela psychiatria allemã, cujo dogmatismo desde 1845 a 1865 mandava admittir quand méme uma preexistente psychose maniaca ou melancolica em todos os delirios de perseguição e de grandeza.

Não morreu, como veremos ainda, a Secundäre Verrücktheit, a despeito de Koch e de Pelman que lhe negaram a existencia; mas a sua esphera clinica foi estreitecendo á medida que alargava a da Primäre Verrücktheit.

* * * * *

Voltemos aos trabalhos francezes.

Tendo tido a felicidade de sobreviver trinta e um annos á publicação da sua memoria sobre o delirio de perseguições, Lasègue foi conduzido pela ulterior observação clinica dos factos a modificar uma das affirmações que n'esse trabalho fizera. Assim, tendo escripto em 1852 que os perseguidos supportam resignadamente todos os seus martyrios—a ponto, dizia então, de não ter visto um só reagir por um acto de vingança, Lasègue constatou mais tarde a existencia de muitos que se apresentam armados para a lucta, represaliando energicamente, como Sandon, como Verger, como Teulot, as suppostas perseguições. Perito em mais de uma ruidosa questão medico-legal determinada pelas violencias d'esta ordem de doentes, o eminente professor foi ainda, elle proprio, victima das aggressões brutaes de um d'elles, que o appellidava chefe dos alienistas alienisantes. Modificando as suas primitivas idéas, o celebre psychiatra achou que o delirio de perseguições comporta duas variedades, correspondendo aos modos de reacção dos doentes: uma passiva, a mais commum, representada pelos perseguidos que apenas se defendem, fugindo ao convivio, mudando de logares, tomando nomes suppostos, cosinhando os proprios alimentos, queixando-se ás auctoridades, barricando-se dentro dos seus aposentos, suicidando-se mesmo; outra activa, representada pelos que acceitam a lucta e respondem ao mal com o mal, calumniando, ferindo, matando até. Aos doentes d'esta ultima cathegoria deu Lasègue o nome, depois consagrado, de perseguidos-perseguidores, consignando que a explicação do seu modo especial de reagir deve ser pedida, não a condições privativas do delirio, mas ao caracter moral preexistente á vesania.

Pondo no estudo da variedade activa do delirio de perseguições o mesmo espirito de analyse que desenvolvera na creação da fórma passiva ou commum, Lasègue fez a proposito as seguintes indicações de uma justeza clinica indiscutivel: que os perseguidos-perseguidores chegam á personificação do seu delirio em virtude de circumstancias accidentaes ou de factos sem importancia, mas exactos, que determinaram a sua antipathia por um dado individuo; que taes circumstancias ou factos reaes não são, em geral, recentes, mas antigos e evocados pela memoria, incessantemente occupada na revivescencia do passado; emfim, que os doentes, uma vez achado o seu perseguidor, não o esquecem mais, não o abandonam, nem o substituem, quando mesmo factos ulteriores e de maior valia justifiquem sentimentos de odio e de vingança contra outros individuos. Na escolha do perseguidor evidenceiam os perseguidos activos a mesma critica futil que os passivos demonstram na determinação dos factos que apontam como provas de perseguição: uma pedra achada á porta, um lençol esquecido na varanda de um visinho, a tosse de um sujeito que passa. De resto, Lasègue observou que, excepção feita do modo de reacção delirante, perseguidos activos e passivos se comportam identicamente, offerecendo o mesmo quadro de symptomas e a mesma evolução pathogenica.

Creando a variedade activa do delirio de perseguições, o notavel professor melhorou, pois, completando-a, a sua primitiva descripção clinica d'esta psychose, sem, todavia, a alterar na essencia; de facto, a unidade da doença persistiu, não tendo alcance nosologico, mas apenas medico-legal, o reconhecimento das duas variedades.

Ulteriores trabalhos, porém, vieram quebrar, dentro da propria França, essa unidade do delirio de perseguições.

Notou, com effeito, J. Falret em 1878 que ha entre os perseguidos activos ou perseguidos-perseguidores duas cathegorias de doentes que profundamente divergem; symptomas, evolução, etiologia—tudo n'elles é differente. Uns, em verdade (e são esses os que Lasègue notou), apenas no modo de reacção delirante se separam do typo classico dos perseguidos passivos, sendo-lhes em tudo o mais similhantes: nos symptomas, porque, como estes, offerecem idéas systematicas de perseguição alimentadas por erros sensoriaes constantes, sobretudo por allucinações auditivas; na marcha, porque, como os perseguidos communs, podem soffrer a alteração de personalidade caracterisada clinicamente pela passagem do delirio de perseguições, ao de grandezas; na etiologia, emfim, porque teem uma historia ancestral e pregressa identica á dos perseguidos vulgares. Com razão, portanto, fez Lasègue d'estes perseguidos activos os representantes apenas de uma variedade clinica do delirio de perseguições. Outros, porém, não offerecem do quadro d'esta psychose senão as idéas systematisadas de perseguição, divergindo em tudo o mais: na symptomatologia, porque as suas concepções morbidas não se apoiam em erros sensoriaes; na marcha, porque nunca o seu delirio se transforma, n'um sentido ambicioso; na etiologia, emfim, porque a sua historia ancestral e anamnestica não é a dos outros perseguir, dos, activos ou passivos, mas a dos degenerados hereditarios.

A doença de Lasègue não comporta esta cathegoria de perseguidos-perseguidores; forçoso é, pois, no dizer de Falret, acceital-os como representantes de uma outra especie nosographica.

Pottier desenvolve no seu Estudo sobre os alienados perseguidores as idéas do eminente clinico de Salpêtrière, seu mestre, insistindo no diagnostico differencial entre estes vesanicos e os outros perseguidos. A proposito da etiologia escreve: «Estes doentes, em vez de apresentarem desde a juventude um caracter desconfiado ou de passarem pela phase de hypocondria que muitas vezes precede o delirio de perseguições ordinario, teem quasi sempre manifestado na infancia, na adolescencia ou na idade adulta alguns dos symptomas physicos e moraes attribuidos hoje aos alienados hereditarios: alterações de caracter, desigual desenvolvimento das funcções intellectuaes, faculdades eminentes ao lado de enormes lacunas, accidentes nervosos ou perturbações mentaes passageiras, na puberdade, existencia movimentada, irregular, vagabunda, perversões genitaes e outras. O passado d'estes doentes é, n'uma palavra, não o dos perseguidos classicos, mas o dos alienados hereditarios»[1].

[1] Pottier, Ètude sur les aliénés persécuteurs, pag. 3

A proposito da ausencia de allucinações n'estes doentes, diz Pottier: «Imaginou-se que as allucinações auditivas, escapando a uma observação superficial, seriam encontradas n'estes doentes por um exame escrupuloso. Não é assim, porém. Nós crêmos, ao contrario, que, na direcção actual das idéas, se teem admittido allucinações não demonstradas ou se teem tomado como allucinações simples phenomenos de interpretação delirante, illusões ou mesmo impressões procedentes do mundo exterior e realmente percebidas pelos doentes, cuja acuidade sensorial se encontra muitas vezes exaggerada»[2].

[2] Pottier, Obr. cit., pag. 38.

Sobre a evolução do delirio n'estes doentes, diz ainda Pottier: «Ha periodos de remissão prolongada e de intensa exacerbação, mas nenhuma evolução progressiva … Estes alienados são, em regra, muito orgulhosos, mas não chegam, como os outros perseguidos, á megalomania, ao delirio de grandezas, emfim, a uma verdadeira transformação da personalidade»[1].

[1] Pottier, Obr. cit., pag. 39.

A estas notas differenciaes junta Pottier uma outra: a existencia, nos doentes de que nos occupamos, de accidentes cerebraes, congestivos ou convulsivos, produzindo-se a largos intervallos. «Observem-se attentamente, diz, o auctor, estes doentes durante o curso da sua vida, estudem-se as observações já publicadas, e chegar-se-ha a verificar que, nos perseguidores lucidos, accidentes cerebracs graves se dão de tempos a tempos e que, as mais das vezes, elles morrem cerebralmente, quer por um ataque, quer por influencia de lesões consecutivas»[2].

[2] Pottier, Obr. cit., pag. 41.

Ainda no capitulo do diagnostico, o mais completo do trabalho que vimos citando, observa Pottier a extrema facilidade com que os perseguidores conseguem fazer perfilhar as suas idéas por um grande numero de pessoas, chegando mesmo a interessar em sua defeza a propria imprensa. A explicação d'este contagio delirante procede sobretudo, segundo Pottier, da convergencia d'estes dois factos: de um lado, a intelligencia de ordinario muito viva d'estes doentes e a sua incansavel actividade; de outro lado, o colorido verosimil do seu delirio, que não é em si mesmo absurdo, que se não apoia em estados allucinatorios, mas que tem por base factos reaes, embora morbidamente interpretados, e circumstancias possiveis, cuja veracidade não é facil contestar ou mesmo pôr em duvida.

Os litigantes ou processomanos constituem a mais importante cathegori d'estes doentes; uma outra é formada pelos perseguidores hypocondriacos que, attribuindo os seus imaginarios males ao tratamento seguido, hostilisam o medico assistente.

As idéas de J. Falret fizeram carreira em França, onde os perseguidos-perseguidores são geralmente considerados como exemplares de loucura lucida (folie raisonnante), sub-grupo das degenerescencias psychicas hereditarias. Nas suas Lições clinicas sobre as doenças mentaes, Magnan presta um largo apoio á doutrina de Falret, fazendo apenas reservas sobre dois pontos: as allucinações, que elle admitte a titulo de excepção, e os accidentes cerebraes, que julga, em face da sua experiencia pessoal, muito menos frequentes do que se tem pensado.

De passagem faremos notar que na Allemanha o delirio processivo tem soffrido as mesmas vicissitudes theoricas que experimentou em França o delirio dos perseguidos-perseguidores. Ao passo que a maioria dos auctores, á maneira de Lasègue, consideram aquelle delirio uma simples variedade da Verrücktheit, descrevendo-o, como faz Krafft-Ebing, ao lado do delirio de perseguições, outros, como Arndt, Kraepelin e Schüle, fazem d'elle um sub-grupo da loucura moral.

III—PHASE SYNTHETICA

De Morel a Magnan; de Westphal a Cramer; de Buccola a Tanzi e Riva—A loucura hypocondriaca; o delirio chronico; a loucura parcial; a Verrücktheit aguda e chronica; a Paranoia; a delusional insanity—Determinação pathogenica.

Vimos precedentemente que Morel, quando ainda a psychiatria franceza se esforçava por elevar á cathegoria de fórmas nosographicas autonomas os delirios de perseguições e de grandezas, esboçara a doutrina segundo a qual taes delirios não seriam senão manifestações de uma doença ou, mais precisamente, transformações progressivas da loucura hypocondriaca.

Da idéa inicial de um compromisso da saude, caracteristica da hypocondria, passaria o doente, generalisando, á idéa de um compromisso da vida, da honra, dos interesses intellectuaes e moraes, caracteristica do delirio de perseguições. Este seria uma simples manifestação da hypocondria anomala ou, como elle proprio escreve, sublinhando, uma hipocondria de uma natureza mais intellectual. Em 1860 exprimia-se assim no seu Tratado o illustre psychiatra: «Fallando da hysteria, disse eu que esta nevrose póde percorrer as suas phases mais extraordinarias sem que a alteração das faculdades intellectuaes e afectivas se torne uma consequencia forçada. A hysteria larvada, se assim posso exprimir-me, offerece perigos muito maiores para o livre exercicio das faculdades, como provei com numerosos exemplos. A mesma reflexão póde applicar-se á hypocondria. Para d'isto nos convencermos, basta examinar até que ponto o temperamento dos individuos com delirio predominante de perseguições está sob a influencia d'este estado nevropathico»[1]. E mais adiante: «Quando elles (os hypocondriacos) chegam á supposição de que os seus alimentos teem venenos ou, pelo menos, substancias que lhes produzem as sensações de que se queixam; quando elles se imaginam expostos aos maleficios do que chamam potencias occultas, como a electricidade e o magnetismo, e pensam que a propria policia procura perdel-os, podemos estar certos de que vão entrar na phase d'este delirio especial que a designação de delirio de perseguições melhor do que todas exprime»[2].

[1] Morel, Traité des maladies mentales, pag. 706.

[2] Morel, Obr. cit., pag. 707.

Quanto ao delirio ambicioso elle seria, segundo Morel, uma terminação frequente do delirio de perseguições. Fallando dos megalomanos, escrevia: «E quando mesmo os doentes chegaram a este estado de contentamento e de vaidosa satisfação que é proprio das idéas systematicas de grandeza, elles não lograram collocar-se de um modo fixo e irremediavel sobre o pedestal da sua loucura senão com a condição de passarem por todas as peripecias do delirio de perseguições, e de terem, as mais das vezes, experimentado todos os soffrimentos dos hypocondriacos»[3].

[3] Morel, Obr. cit., pag. 716.

Para explicar a passagem do delirio de perseguições ao de grandezas, Morel não invocava, á maneira de Foville, o raciocinio e a logica, mas a physiologia morbida: era, com effeito, ao echo psychico de uma alteração no funccionalismo visceral dos hypocondriacos que elle ia procurar a chave d'este phenomeno tão frequente quanto assombroso para os homens alheios á medicina e desconhecedores das leis dos organismos doentes.

Esta doutrina, integrando os delirios de perseguições e de grandezas na hypocondria, representava uma tentativa de synthese clinica, naturalmente destinada a não encontrar seguidores entre os contemporaneos de Morel, porque o tempo era de analyse, e a tendencia geral a da multiplicação das fórmas nosographicas. O estudo minucioso dos symptomas absorvia as attenções, relegando a um plano subalterno o das causas e da evolução das doenças. Embora combatidas quasi desde a sua introducção na sciencia, as monomanias de Esquirol triumphavam ainda então: o delirio de perseguições era uma monomania, o delirio de grandezas, outra. O Tratado de Marcé, o mais cotado dos livros classicos da psychiatria franceza, consagrava esta doutrina em 1862; e a memoria de Foville, que atraz citámos, tem a data de 1869, como tem a de 1871 a monographia de Legrand du Saulle, de que tambem démos idéa no capitulo anterior.

Isto é dizer que não foi comprehendida a maneira de vêr de Morel sobre os delirios systematisados, como o não foram outros pontos de vista d'este homem de genio, que Morselli justamente denomina o Darwin da psychiatria. Fallava para o futuro o auctor das Degenerescencias Humanas, cuja alta originalidade rompe na historia da medicina mental franceza o parallelismo entre a ordem chronologica e a ordem logica das idéas.

É só em 1883, mais de vinte annos depois de publicado o Tratado de
Morel, que as idéas d'este psychiatra a proposito dos delirios
systematisados são retornadas e postas em relevo n'um trabalho de
Gérente.

Escripto sob a evidente inspiração de Magnan, esse trabalho destina-se a provar com o apoio dos factos, que não existe um delirio hypocondriaco, um delirio de perseguições e um delirio de grandezas, mas uma vesania, o Delirio Chronico, de que aquelles não são senão phases evolutivas. «Vamos, diz o auctor, estudar clinicamente todos os delirios da vesania; seguiremos n'uma observação attenta a génese e a evolução d'estes delirios; e, por conclusão d'este trabalho, esperamos que em vez d'essas monomanias, tão artificiaes e tão confusas, de certos auctores, appareça claramente, emfim, uma só e mesma especie morbida que chamaremos o Delirio Chronico»[1].

[1] Gérente, Le délire chronique, pag. 10.

O que é, verdadeiramente, este Delirio Chronico? Segundo Gérente, uma doença que, germinando sempre n'um terreno hypocondriaco, se denuncía nos seus casos typicos e eschematicos pela successão regular de tres periodos: um de concentração dolorosa do espirito; um de expansão; e um mixto ou de transição entre os dois. Se a doença se prolonga sufficientemente, a demencia é o seu termo natural.

O terreno hypocondriaco em que, segundo Gérente, o Delirio Chronico mergulha as suas raizes para constituir-se e crescer, é caracterisado essencialmente por uma impressionabilidade anormal, de origem quasi sempre hereditaria, por uma perversão dolorosa da sensibilidade mental, n'uma palavra, por uma hyperalgesia psychica; uma autoobservação permanente, uma sorte de habitual ruminação interior de estados physicos ou de estados moraes define a mentalidade prediposta, da qual, sob a mais ligeira causa determinante, ha de surgir a vesania. É, pois, um hypocondriaco o candidato ao Delirio Chronico; mas não é um alienado, emquanto sobre si mesmo poder exercer uma acção de contrôle. Sel-o-ha no dia em que esse exercicio se torne impossivel, no dia em que a preoccupação dos seus estados physicos e moraes venha a ser absorvente e o desligue das relações normaes com a sociedade. A hypocondria simples torna-se então loucura hypocondriaca. E é d'ela que vae sahir o periodo inicial ou depressivo do Delirio Chronico.

Este periodo é caracterisado por uma concentração dolorosa do Eu, de que procedem idéas delirantes de natureza depressiva e de um contheudo que varía com a intelligencia, a educação e o meio do doente. As falsas concepções hypocondriacas subsistem ainda; mas, ao lado d'ellas, outras germinam: a crença n'uma hostilidade dos homens (delirio de perseguições) ou de maleficos poderes sobrenaturaes (demonomania). Perturbações da sensibilidade geral e especial, sobretudo allucinações auditivas, dominam esta phase do Delirio Chronico, de uma duração que póde ser muito longa.

Mas, pouco a pouco, a dôr moral esbate-se; e na personalidade vesanica, enfraquecida pelo delirio depressivo, uma sorte de reacção se dá em sentido contrario. Então, no espirito enfermo, trabalhado por infinitas angustias, uma pouca de felicidade rompe, como n'um ceu enevoado uma restea de sol: entre as idéas depressivas surgem idéas de grandeza, ainda vagas, mas a que o futuro reserva uma preponderancia definitiva. Esta confusão de elementos apparentemente contradictorios, de idéas e sentimentos depressivos com estados expansivos, caracterisa o segundo periodo, chamado, por isso, mixto ou de transição.

Como a dôr moral e as idéas depressivas definem o primeiro periodo, a plena beatitude de espirito e as idéas ambiciosas definem o terceiro. Lentamente, as emoções e as concepções expansivas do periodo mixto vão tomando crescente logar no espirito vesanico á custa de uma reducção na intensidade e numero das emoções e idéas depressivas, que acabam por desapparecer. Então, um delirio de grandezas de colorido mystico ou humano, versando sobre a graça, sobre dotes pessoaes, sobre riquezas, sobre posição social, se estabelece definitivamente, caracterisando na sua exclusividade o terceiro periodo do Delirio Chronico.

Esta lenta evolução da vesania—tão lenta que póde cobrir dezenas de annos, não se faz sem que a mentalidade soffra nas suas forças vivas e productoras. E assim, o seu termo natural é a demencia, quer simples e apathica, se o delirio cessou absolutamente, quer agitada, se restam perturbações da sensibilidade e falsas concepções desconnexas e dissociadas.

Tal é, summariamente, a marcha typica do Delirio Chronico, segundo
Gérente,

Nem sempre, porém, faz observar o auctor, as coisas se passam d'este modo regular e eschematico; não raro apparecem casos em que a evolução descripta não tem logar: póde, por exemplo, o periodo depressivo, representado por um delirio de perseguições, extender-se por toda a vida do doente que não chega a fazer um delirio de grandezas, caracteristico do terceiro periodo; póde do periodo mixto passar um outro doente á demencia, sem que o periodo expansivo se tenha realisado em toda a sua pureza; póde acontecer que a doença suspenda a sua evolução n'um delirio hypocondriaco inicial, que se perpetua, systematisando-se e estereotypando-se; emfim, póde mesmo dar-se uma regressão, voltando o doente do delirio ambicioso ao de perseguições. Como todas as doenças, comporta o Delirio Chronico anomalias evolutivas, que compete á clinica registrar; esses casos, porém, não invalidam o typo descripto sobre exemplares completos.

Como se vê, n'esta synthese clinica retoma Gérente as idéas fundamentaes de Morel sobre os delirios systematisados, reduzindo-os a expressões symptomaticas e momentos evolutivos de uma vesania caracterisada pela successão de duas phases apparentemente oppostas: uma, inicial, angustiosa e depressiva; outra, final, expansiva e de beatitude, Toda a differença, entre os dois psychiatras, está em que Morel chamava Loucura hypocondriaca ao que Gérente denomina Delirio Chronico,

Vejamos agora a pathogenia da doença, tal como a comprehende este psychiatra.

De um lado, importa considerar o fundamento hereditario, commum a todas as psychoses funccionaes: «Não é vesanico, diz elle, quem quer: é precisa uma longa incubação; são precisas, pelo menos, duas gerações que preparem o terreno»[1]. Não, é claro, duas gerações de delirantes chronicos, mas de nevro e psychopatas. «São umas vezes, explica, nevroses, outras vezes intoxicações chronicas, outras ainda anomalias da intelligencia, do sentimento ou da vontade a que se não prestaria, talvez, attenção, mas que nem por isso deixaram de imprimir o seu cunho sobre o individuo e os seus descendentes»[2]. A tara hereditaria cria a predisposição; para determinar a doença qualquer abalo moral é bastante.

[1] Gérente,Obr. cit., pag. 8.

[2] Gérente,Obr. cit., pag. 9.

Mas, por outro lado, importa em relação ao Delirio Chronico attender á natureza especial do terreno predisposto. O que atraz dissemos, dispensa-nos de insistir sobre este ponto: é sabido que para Gérente, como para Morel, essa feição peculiar consiste na hypocondria.

Emfim, conhecidas as causas e o terreno morbido, importa conhecer a lesão, no sentido psychologico do termo.

Ora, segundo Gérente, nenhuma duvida póde existir a este proposito. «É sempre, diz elle, uma alteração do senso emotivo, é a alteração do sentimento, agora penosa, logo expansiva, que imprime tal ou tal direcção ás perturbações da sensibilidade e ás idéas delirantes; esta alteração é, pois, a lesão essencial e caracteristica ao delirio chronico»[3].

[3] Gérente,Obr. cit., pag. 24.

Cremos ter dado uma idéa sufficiente da doutrina exposta por Gérente. Uma psychose, de origem hereditaria, de evolução de ordinario regular e tendo por lesão primitiva uma perturbação do sentimento, integraria como syndromas os delirios systematisados, hypocondriaco, de perseguições e ambicioso, descriptos na antiga psychiatria como doenças autonomas, sob a designação de monomanias; Delirio Chronico é o nome d'essa psychose.

Dissemos que Gérente se inspirou nas idéas de Magnan; e talvez podessemos mesmo affirmar que aquelle não fez senão expôr no seu trabalho, que é uma these de doutoramento, os pontos de vista do mestre. De facto, não só a designação de Delirio Chronico tomada por Gérente para titulo do seu livro, foi creada por Magnan, que a vulgarisara nas suas lições oraes, mas foram colhidas no serviço e sob a direcção d'este, no asylo de Sant'Anna, as observações clinicas da these. Entretanto, nos debates que em 1887 se abriram sobre o assumpto na Sociedade Medico-Psychologica de Paris, Magnan apparece-nos, como mais tarde nas suas Lições Clinicas, publicadas em 1893, expondo uma doutrina do Delirio Chronico notavelmente diversa da proclamada por Gérente. Admittiremos que o insigne clinico de Sant'Anna concedesse ao seu discipulo uma absoluta liberdade de opinião? É isso possivel; mas não é provavel que Gérente abusasse de tal liberdade até ao ponto de cobrir com a designação consagrada pelo mestre uma doutrina propria e em mais de um ponto contraria á d'este. O que nos parece mais acceitavel é que o conceito de Delirio Chronico tenha soffrido no espirito de Magnan uma evolução durante o periodo que vem da these de Gérente á discussão da Sociedade Medico-Psychologica.

Como quer que seja, as duas doutrinas, a de 1883 e a de 1887, differem muito. É o que vamos vêr.

Ao passo que Gérente, como foi dito, fazia derivar o Delirio Chronico de uma predisposição quasi sempre hereditaria e preparada atravez de gerações, Magnan affirma que um tal facto é excepcional e que, de ordinario, a psychose affecta individuos isentos de qualquer tara nervosa e absolutamente correctos no ponto de vista mental. «O Delirio Chronico, diz Magnan, fere em geral na idade adulta individuos sãos de espirito, não tendo até então apresentado perturbação alguma intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este importante ponto, porque tal particularidade basta para separar immediatamente os delirantes chronicos dos degenerados hereditarios que offerecem desde a infancia perturbações que os fazem reconhecer»[1].

[1] Magnan, Leçons cliniques sur les maladies mentales, pag. 236.

Ao passo que Gérente, seguindo a tradição de Morel, admittiu como constante uma phase inicial hypocondriaca na constituição do Delirio Chronico, Magnan não a acceita senão a titulo excepcional. «Para Morel, escreve o medico de Sant'Anna, é preciso que elles (os perseguidos que se tornam ambiciosos) tenham sido hypocondriacos primeiro; ora, sendo a hypocondria, como se sabe, as mais das vezes uma manifestação dos hereditarios degenerados, não parece provavel que o hypocondriaco-perseguido-ambicioso possa apresentar caracteres bastante fixos para entrar no quadro do Delirio Chronico»[2].

[2] Magnan, Obr. cit., pag 221.

Emfim, emquanto Gérente concedia irregularidades de marcha ao Delirio Chronico, admittindo a existencia de casos frustres em que a evolução se suspendia ou mesmo por algum tempo retrogradava, Magnan exclue do Delirio Chronico todos os casos d'esta natureza. Depois, com effeito, de ter admittido na evolução do Delirio Chronico quatro periodos nitidamente desenhados—o de incubação, o de perseguições, o ambicioso e o demente, Magnan escreve: «Estes periodos succedem-se irrevogavelmente da mesma maneira, de sorte que podemos sem receio pôr fóra do Delirio Chronico todo o doente que d'emblèe se torna perseguido ou ambicioso, ou que, primeiro ambicioso, se torna depois perseguido»[3].

[3] Magnan, Obr. cit., pag 237.

São estes tres os pontos em que as syntheses clinicas do Delirio Chronico, a de 1883 e a actual, differem. Quanto ao nome, julgou Magnan, depois dos reparos de alguns criticos, dever amplial-o para o tornar mais explicativo: Delirio Chronico de evolução systematica é a designação adoptada por este psychiatra nas suas Lições Clinicas.

Naturalmente occorre perguntar para que nova cathegoria são relegados os casos, tão numerosos, de delirios systematisados de evolução irregular que Gérente considerava como exemplares frustres de Delirio Chronico e que Magnan resolutamente aparta do quadro clinico d'esta psychose. A resposta vae o leitor encontral-a no resumo que em seguida fazemos dos debates a que deu logar na Sociedade Medico-Psychologica de Paris a doutrina do Delirio Chronico.

Digamol-o desde já: vigorosamente sustentada por Garnier e Briand, a synthese clinica de Magnan foi tambem rudemente combatida.

Ninguem contestou a existencia de alienados que, primeiro inquietos, suspeitosos, interpretando illusoriamente e n'um sentido pejorativo todos os actos e palavras d'outrem (periodo de incubação), se tornam depois allucinados, sobretudo do ouvido, e se lançam n'um delirio systematisado de hostilidades (periodo de perseguições), fabricam mais tarde ainda idéas de grandeza (periodo ambicioso), e, por fim, cahem n'um estado de enfraquecimento cerebral em que as concepções falsas se esbatem e dissociam (periodo de demencia). Ninguem contestou, repetimos, a existencia d'estes casos; contestou-se, porém, desde todo o principio, que elles fossem regra. A fatalidade do terceiro periodo do Delirio Chronico foi, por exemplo, negada. Assim, J. Falret sustentou que o delirio de grandezas só n'um terço dos casos succede ao delirio de perseguições. Facilmente se comprehende o alcance d'esta affirmação que varios alienistas—Christian entre outros—apoiaram: ao passo que para Magnan o delirio ambicioso é um periodo inevitavel do Delirio Chronico, para Falret elle não constitue senão um episodio fallivel da evolução vesanica, um delirio que apenas accidentalmente vem juxta-por-se ao de perseguições. Se todo o alienado que entrou, não d'emblèe, mas após uma phase mais ou menos longa de incubação, no delirio de perseguições, houvesse fatalmente de tornar-se ambicioso, Magnan teria, talvez, razão, affirmando a existencia de uma Psychose na qual o delirio de grandezas representaria, segundo a sua phrase, um papel evolutivamente similhante ao da suppuração n'nuna erupção variolica; mas se, como pretende Falret, esse alienado póde perpetuar-se no delirio de perseguições sem jámais esboçar uma idéa ambiciosa, tal Psychose não existe: a synthese clinica legitima não é o Delirio Chronico de evolução systematica, mas o Delirio de Perseguições, que póde ou não, sem mudar de natureza, complicar-se de um delirio ambicioso. Baseada em factos e apoiada na auctoridade de alienistas illustres, a objecção de Falret parece decisiva contra a doutrina actualmente professada por Magnan.

Notemos de passagem que o argumento de Falret não attingiria a doutrina de Gérente, segundo a qual o Delirio Chronico, á maneira d'outras doenças, comportaria casos de evolução irregular, anomala, entre os quaes estariam esses a que se reporta o sabio medico da Salpêtrière.

J. Falret contestou ainda a Magnan que a demencia constitua o termo irrevogavel de uma vesania que passou pelas phases dos delirios de perseguições e de grandezas: muitos perseguidos e ambiciosos ha, segundo elle, que, ao fim de trinta, de quarenta e mais annos de delirio, morrem sem ter attingido a demencia. É mister dizer-se, para avaliar este argumento, que Magnan não toma a palavra demencia no restricto sentido de abolição das faculdades, mas na accepção mais larga de enfraquecimento e falta de iniciativa mental. Desde que o delirio se estereotypa (o que é de regra na phase ambiciosa e muitas vezes se dá mesmo na phase persecutoria da vesania), o enfraquecimento cerebral é já, segundo Magnan, um facto, que a diuturnidade da doença não faz senão aggravar; chamar-lhe, pois, demencia, quando elle attinge um grau em que os conceitos delirantes, desde ha muito invariaveis, se dissociam, não deverá parecer senão legitimo. Em todo o caso, é n'este sentido que o medico de Sant'Anna toma a demencia quando faz d'ella a phase terminal da sua Psychose.

Manifestando uma grande incomprehensão das idéas do medico de Sant'Anna, alguns membros da Sociedade tentaram atacar a doutrina do Delirio Chronico, affirmando que muitos vesanicos são ambiciosos antes de serem perseguidos; que outros surgem com um delirio de perseguições sem terem passado por uma phase de incubação; que alguns, emfim, só intermittentememe deliram n'um sentido persecutorio ou ambicioso. Todos estes casos são conhecidos e de observação diaria; mas, desde que Magnan os colloca, pela irregularidade mesma da sua marcha, fóra do quadro do Delirio Chronico, é evidentemente absurdo invocal-os contra a legitimidade d'esta psychose.

Para Magnan, ao lado do Delirio Chronico de evolução systematica, ha os delirios que elle chama polymorphos ou d'emblèe. E as distincções entre aquelle e estes são, segundo o eminente alienista, tão profundas quanto possivel, porque derivam da marcha, da etiologia e do prognostico. Ao passo que o Delirio Chronico se caracterisa evolutivamente pela successão regular e irrevogavel de certos periodos, sendo o primeiro de incubação, os delirios polymorphos teem uma evolução irregular, imprevista, e rompem subitamente, sem preparação. Emquanto, sob o ponto de vista da etiologia, o Delirio Chronico prescinde para constituir-se de uma pesada tara ancestral, podendo installar-se em individuos psychicamente correctos, os delirios polymorphos são eminentemente hereditarios e só podem realisar-se em degenerados, quer dizer em individuos tendo antes offerecido signaes de um desequilibrio mental. Emfim, emquanto o Delirio, Chronico, na sua qualidade de psychose progressiva e cyclica, é absolutamente incuravel, os delirios polymorphos, de marcha remittente ou intermittente, curam muitas vezes.

É evidente, em face d'esta doutrina, exposta sem reticencias no seio da Sociedade Medico-Psychologica de Paris, que os casos, invocados por Dagonet e outros, de doentes que entram em delirio de grandezas para ulteriormente se tornarem perseguidos, de doentes que abruptamente, de um dia para o outro, apparecem allucinados do ouvido e se crêem victimas de injustificadas hostilidades, de doentes que após semanas de um delirio qualquer ambicioso ou de perseguições, surgem curados para recidivarem mais tarde, ou cahem rapidamente em demencia,—é evidente, diziamos que esses casos nada provam, em si mesmos, contra a existencia do Delirio Chronico, por isso que, segundo Magnan, elles pertencem a uma cathegoria diversa e não são senão episodios mais ou menos longos e interessantes da vida dos degenerados hereditarios.

A doutrina do medico de Sant'Anna não póde ser combatida senão pela demonstração de que as differenciações por elle feitas entre os delirantes chronicos e os delirantes degenerados, são infundadas. Mas como, sob o ponto de vista da marcha, a differenciação é, ao menos n'um certo numero de casos, indiscutivelmente exacta; como por consenso de todos os alienistas e por testemunho irrecusavel da experiencia, ao lado de doentes que incubam um delirio de perseguições e d'este passam para o ambicioso, cahindo por fim n'um estado de fraqueza mental (Delirio Chronico de Magnan), ha doentes que fazem bruscos, irregulares e mais ou menos ephemeros delirios multiplos, de que por vezes curam, embora para recidivarem mais tarde (delirios degenerativos de Magnan), o ataque á synthese clinica do medico de Sant'Anna só póde ser feito de um ponto de vista mais alto, demonstrando-se que as duas ordens de delirios, a despeito das suas allure diversas, procedem de uma causa commum e assentam sobre um mesmo fundo.

Séglas viu isto—e só elle parece tel-o visto—quando na Sociedade Medico-Psychologica affirmou que alguns delirantes chronicos de Magnan apresentam os estygmas physicos e mentaes dos degenerados hereditarios.

Demonstrar esta proposição seria evidentemente destruir á doutrina de Magnan o seu mais solido fundamento: o etiologico. Se os degenerados hereditarios podem delirar tanto de um modo remittente e anomalo como de um modo regular e progressivo, caminhando tanto para a cura como para a demencia, toda a differença entre o Delirio Chronico e os delirios polymorphos se reduz a accidentes de marcha e a possiveis variações de prognose, o que não é bastante para estabelecer especies morbidas distinctas.

Nos longos debates da Sociedade Medico-Psychologica sobre os delirios systematisados, tomaram parte os mais eminentes psychiatras francezes; cremos, porém, que só Falret e Séglas produziram contra a legitimidade clinica do Delirio Chronico argumentos de valor.

Mas não insistiremos sobre elles; por agora fazemos apenas historia.

Para completarmos o que na psychiatria franceza tem direito a menção especial em materia de delirios systematisados, resta-nos expôr a maneira de vêr de Régis.

Retomando uma doutrina exposta por Baillarger em 1853, o auctor do Manual pratico de Medicina Mental sustenta que uma natural distincção existe entre as loucuras generalisadas e a Loucura parcial: ao passo que as primeiras se caracterisam pela presença constante e essencial de um elemento affectivo, excitação na mania e depressão na melancolia, a segunda manifesta-se por simples perturbações intellectuaes e moraes sem participação, a não ser accidental e episodica, da emotividade. A excitação e a depressão, affirma Régis, são tanto a fundamental caracteristica das loucuras generalisadas que muitas vezes só ellas existem n'estas doenças: tal é o caso das manias e melancolias sem delirio, nas quaes, como se sabe, ha exaltação ou diminuição do tonus emotivo, sem compromisso grave da intelligencia e do senso moral. O contrario d'isto se dá na Loucura parcial: um delirio mais ou menos extenso caracterisa n'este caso a alienação, que só por momentos póde acompanhar-se de crises ephemeras de excitação ou depressão, analogas ás dos espiritos normaes em conflicto com causas externas. A mania e a melancolia, accrescenta Régis, sendo muitas vezes idiopathicas, são, não raro, meros symptomas d'outras doenças mentaes, como a hysteria, a epilepsia, a demencia paralytica; ao contrario, a Loucura parcial é sempre idiopathica, essencial.

Ora, é n'esta verdadeira loucura que os delirios systematisados se integram, segundo Régis, a titulo de manifestações e de estadios evolutivos.

No seu curso regular e typico, a Loucura parcial offereceria tres periodos: um, de analyse subjectiva, caracterisado pelo delirio hypocondriaco; outro de interpretação, revellado pelo delirio de perseguições ou pelo delirio mystico, segundo o doente attribue a pessoas ou a divindades os seus males; um terceiro, emfim, de transformação pessoal, exteriorisado pelo delirio ambicioso. As allucinações, sobretudo auditivas, são o symptoma dominante da Loucura parcial.

Quanto á etiologia, sustenta Régis que a doença é constitucional, faz parte do individuo e surge n'um dado momento sob a influencia de quaesquer circumstancias; isto é dizer que Loucura parcial é eminentemente hereditaria. Segundo este auctor, «ella attinge de preferencia os individuos sombrios, desconfiados, com tendencias á mysantropia e ao orgulho»[1]

[1] E. Régis, Manuel pratique de médecine mentale, 2º ed., pag. 228.

Como se vê, a Loucura parcial de Régis mantem relações profundas de similhança com a Loucura Hypocondriaca de Morel e o Delirio Chronico de Gérente. Um mesmo pensamento etiologico-evolutivo preside ás tres syntheses clinicas.

* * * * *

Expostos os trabalhos francezes sobre os delirios systematisados na sua phase de synthese clinica e de interpretação pathogenica, vejamos, retrocedendo na ordem dos tempos, o que se passou na Allemanha desde que, com Snell, Griesinger e Sander, a psychiatria d'este paiz assentou na existencia de delirios primitivos de perseguições e de grandezas.

Antes, porém, seja-nos licito dar uma explicação sobre a marcha a seguir.

Delimitar um assumpto é a primeira das condições a preencher para tratal-o scientificamente; a segunda, é possuir uma nomenclatura definida e precisa. Ora, não satisfazendo a uma só d'estas duas condições os trabalhos allemães sobre os delirios systematisados, a impressão que recebe quem d'elles procura tomar conhecimento, é, sem exaggero, a de ter penetrado n'um labyrintho. Não o dizemos nós: por esta ou analogas expressões disseram-no em 1887 Séglas e recentemente Kéraval, os alienistas francezes que com maior auctoridade se occuparam do assumpto; disse-o tambem, mais insuspeitamente, Pelman ao formular ha vinte annos esta queixa: «Acabaremos por nem mesmo entre nós, psychiatras, nos entendermos»; repetirara-n'o, emfim, em 1894 quasi todos os alienistas allemães que tomaram parte na discussão aberta sobre a Paranoia na Sociedade Psychiatrica de Berlim.

De facto, a extensão do assumpto varia de auctor para auctor; restricta para uns que, como Krafft-Ebing, lhe estabelecem os mesmos limites que os alienistas francezes, ella é tão vasta para outros, para Cramer, por exemplo, que parece estar contida lá dentro a psychiatria inteira. Por outro lado ainda, a nomenclatura é vaga e é confusa: vaga, pela multiplicidade de termos com que um dado auctor exprime um mesmo facto; confusa, pela variedade de significações de cada termo para cada auctor. Wahnsinn, Verrücktheit e Paranoia são as palavras com que na litteratura allemã apparecem designados os delirios systematicos descriptos pelos franceses; estes termos, porém, ora figuram como synonimos, ora como vocabulos de significados distinctos, succedendo ainda que o ultimo é pelo mesmo auctor tomado umas vezes n'um sentido restricto, outras vezes n'um sentido geral, infinitamente mais amplo.

N'estas deploraveis condições de maxima obscuridade, fazer n'uma ordem rigorosamente chronologica e sob a respectiva terminologia a exposição das doutrinas allemãs ácerca dos delirios systematisados, seria, evidentemente, deixar o leitor em conflicto com obstaculos e difficuldades que indeclinavelmente nos cumpre remover-lhe. E eis porque, abandonando este invio caminho, procuraremos, antes de fazer historia, fixar os limites do assumpto e o valor dos termos.

A expressão delirio systematisado, empregada por opposição á de delirio dissociado ou incoherente, significa apenas que certas idéas morbidas habitualmente adherem e se conjugam em grupos associativos; assim comprehendida, esta expressão não allude, nem mesmo remotamente, quer á origem d'essas idéas, quer á natureza e grau da affinidade que as liga, quer, emfim, á sua evolução. N'este sentido, tão systematisados são os delirios protogenicos como aquelles que succedem a estados affectivos, tanto os que constituem doenças como os que apenas representam syndromas, tanto aquelles em que as associações morbidas são activas e fortes como aquelles em que ellas são examines, passivas e frouxas, tanto os que marcham para a extincção pela demencia como aquelles que se perpetuam, tanto os continuos como os que procedem por accessos.

N'este sentido geral ha, pois, delirios systematisados primitivos e secundarios, idiopaticos e symptomaticos, continuos e intermittentes, agudos e chronicos. E assim, a não ser nos casos extremos de mania, de demencia, de confusão mental e de idiotia, todos os delirios serão mais ou menos systematisados, até os que se geram na imbecilidade, até os que, uma ou outra vez, se desenvolvem nos periodos iniciaes da paralysia geral, o que não fará espanto, se nos lembrarmos de que a systematisação associativa é o fundamento mesmo de toda a actividade mental. Verrücktheit é o termo empregado pela maioria dos auctores allemães para, exprimirem este sentido geral dos delirios systematisados; e se estes, como é de regra, se associam a illusões e allucinações, o termo Wahnsinn é synonimamente empregado, se bem que com menor frequencia.

Mas ao lado d'este sentido geral e vago, ha um outro limitado e restricto,—precisamente o que nas paginas precedentes vimos implicitamente adoptado pelos psychtatras francezes. Este novo sentido exclue os delirios secundarios, os symptomaticos e os agudos para comprehender apenas os primitivos, os idiopaticos e os chronicos. Na accepção restricta do termo, só são systematisados os delirios que não teem uma base affectiva em estados expansivos ou depressivos (mania ou melancolia), e que na sua evolução progressiva ou remittente, mas sempre continua e chronica, não offerecem tendencias para a demencia. Tal o delirio de perseguições, typo-Lasègue; tal o delirio ambicioso, typo-Foville; tal o delirio dos perseguidos-perseguidores, typo-Falret.

Este sentido restricto parece ser tambem o proprio, se attendermos a que o termo systema, pedido á technologia das sciencias physico-mathematicas, implica a idéa de uma força activa e persistente de attracção ou de affinidade (systemas planetarios, systemas de crystalisação); por analogia, na esphera psychologica o systema delirante deveria resultar de uma força viva e permanente de associação das idéas, tal como se dá sómente nos delirios primitivos, idiopaticos e chronicos,—delirios movimentados, activos, tenazes. Paranoia é o termo com que de preferencia exprimem os auctores allemães contemporaneos este sentido restricto dos delirios systematisados, quer isolados, quer succedendo-se, quer coexistindo no mesmo doente; e assim corresponde inteiramente á loucura systematizada dos francezes, na qual estão comprehendidas as syntheses de Morel, de Gérente e de Régis.

Entretanto, mesmo os auctores para quem o termo Paranoia tem esta accepção restricta e determinada, o desviam d'ella não raras vezes (o que é uma causa de confusão) para tomal-o no sentido geral e como synonimo de Verrücktheit ou Wahnsinn; é o que faz, por exemplo, Krafft-Ebing que, não admittindo na sua theoria da Paranoia (psychose degenerativa) senão a fórma primaria, idiopatica e chronica, não duvida empregar as expressões de Paranoia epileptica, de paranoia masturbatoria (delirios syntptomaticos), como não deixa de occupar-se em detalhe de uma Paranoia Secundaria (estado terminal das psychoneuroses). Note-se, porém,—e isto fará cessar toda a confusão—que o termo Paranoia, quando empregado n'um sentido geral pelos auctores a que me refiro, vem sempre seguido de um adjectivo que o determina; quando tomado no seu sentido restricto, ou vem só ou, quando muito, acompanhado de um termo que faz allusão a accidentes evolutivos de chronicidade ou ao contheudo das idéas delirantes, como nas expressões Paranoia originaria, Paranoia adquirida, ou ainda Paranoia persecutoria, Paranoia ambiciosa. No primeiro caso, sendo a Paranoia uma Verrücktheit, um Wahnsinn, um delirio systematisado, importa determinar-lhe a especie; no segundo, sendo uma Primäre Verrücktheit, um Cronicher Wahnsinn, um delirio systematisado primitivo e chronico, a sua especie está definida, o seu logar marcado na classificação, importando apenas, quando importe, designar-lhe a variedade.

Posto isto, diremos que é sobre a Paranoia como synthese clinica e doutrina equivalente em extensão á loucura systematisada dos francezes que primeiro vae recahir a nossa attenção. Claro está que este modo de limitar o assumpto e de fixar-lhe a terminologia, de modo nenhum nos inhibe de dar na historia das doutrinas um logar áquellas em que o assumpto se toma n'uma extensão maior; esse logar, porém, deve ser o ultimo, não só porque assim o exige a clareza da exposição, mas porque só depois de passados em revista os delirios systematisados primitivos e chronicos, ácerca dos quaes ha na Allemanha uma doutrina mais ou menos definida, poderemos com vantagem occupar-nos dos secundarios e agudos, cuja controvertida existencia é um thema de infinitas e obscuras divagações.

Quanto á terminologia por nós adoptada n'esta exposição, diremos que, podendo empregar indifferentemente as palavras Paranoia, Primäre chroniche Verrücktheit ou Chronicher Wahnsinn, faremos uso exclusivo da primeira, não só por um motivo de simplicidade, senão pelas razões que os italianos invocam para dar-lhe tambem preferencia: a sua origem grega, que a assemelha aos outros nomes da psychiatria; a sua expansibilidade internacional, que lhe vem d'essa mesma procedencia; emfim, a facilidade com que d'ella se fazem necessarias palavras derivadas, adjectivos e adverbios.

Depois dos trabalhos de Snell[1], de Griesinger[2] e de Sander[3], a doutrina da Paranoia foi retomada em 1878 por Westphal[4], que a desenvolveu e aprofundou.

[1] Über Monomanie, 1863.

[2] Arch. f. Psych., 1867.

[3] Über eine specielle Form der primäre Verrücktheit, 1868-69.

[4] Zeitschr. f. Psych., 1878.

Como os seus antecessores, elle insistiu na origem protogenica da Paranoia: a perturbação ideativa é o facto inicial, independente de estados affectivos preexistentes; os sentimentos depressivos ou expansivos que no curso d'esta psychose se observam, não são senão secundarios e determinados pelo contheudo das idéas hypocondriacas, de perseguição ou de grandezas. Ainda como os seus predecessores, Westphal insistiu na falta de tendencias da Paranoia para a demencia; a debilidade mental que por vezes se nota nos paranoicos, é prévia e não consecutiva, e não póde, por isso, servir para caracterisar a psychose, mas o terreno em que ella germina. Reconhecendo a frequencia das allucinações na Paranoia, Westphal notou, todavia, que ellas podem algumas vezes faltar; para elle a caracteristica fundamental da Paranoia reside na perturbação ideativa, na anomalia conceptual que, por si só e independentemente dos erros sensoriaes, gera as idéas delirantes destinadas a dominarem de um modo completo e absoluto o Eu vesanico. As idéas de perseguição e de grandeza podem, segundo Westphal, succeder, como notara Morel, á hypocondria, mas podem tambem nascer e organisar-se d'emblèe. De resto, segundo Westphal, o desvio paranoico está no modo de formar as idéas, não de as associar, o que explica a persistencia do raciocinio e a coherencia entre os actos e os pensamentos do doente.

Alargando a area extensiva da Paranoia, Westphal integrou no quadro clinico d'esta psychose as obsessões, que, não offerecendo a marcha e evolução das idéas delirantes dos paranoicos, teem, comtudo, como ellas, uma origem primitiva e espontanea; d'aqui a creação de uma variedade, Paranoia abortiva ou rudimentar ou frustre, para designar a loucura obsessiva ou das idéas fixas.

Até aqui, como se vê, a doutrina de Westphal não differe essencialmente das estudadas syntheses clinicas dos psychiatras francezes. Todavia na sua classificação da Paranoia produziu o eminente professor de Vienna uma idéa que o separa dos seus predecessores francezes e allemães: de facto, ao lado da fórma hypocondriaca, já conhecida desde Morel, da fórma originaria ou congenita, descripta antes por Sander, e da fórma chronica, de marcha progressiva ou remittente, em que d'emblèe se produzem idéas de perseguição e de grandeza, admittiu Westphal uma fórmia aguda, caracterisada pela subita eclosão de allucinações principalmente auditivas e muitas vezes aterradoras, acompanhando-se de idéas de perseguição e levando o doente ora á incoherencia e confusão mental (Verwirrtheit) com impulsões, ora ao stupor, á prostração e aos estados catatonicos de Kahlbaum.

A creação d'esta fórma aguda, que está fóra dos limites por nós traçados ha pouco á Paranoia, foi o ponto de partida, entre os allemães, das mais numerosas e mais graves dissidencias doutrinarias sobre este capitulo da psychiatria. Comquanto não tenhamos de occupar-nos agora d'este ponto, entendemos dever fazer-lhe desde já uma referencia, não só para não deixarmos incompleta a exposição das idéas de Westphal, mas para marcarmos a origem historica de uma corrente de idéas que teremos de estudar e precisar mais tarde.

Notaremos, por fim, que Westphal só á fórma originaria reconhece um fundo degenerativo.

Fritsch[1] em 1878 insistiu nas relações entre as idéas delirantes e os estados affectivos, comparando o que se passa na Paranoia com o que tem logar na mania e na melancolia.

[1] Psychiatr. Centralblatt, 1878.

Ao passo que n'estas psychoses o delirio surge secundariamente, e as idéas falsas podem, com Griesinger, considerar-se tentativas de interpretação das emoções iniciaes depressivas ou expansivas, na Paranoia, ao inverso, as idéas delirantes são primitivas e os estados emocionaes secundarios,—meras reacções do sentimento sob o contheudo das idéas. Adiante voltaremos a citar este auctor, que não acceita a fórma aguda da Paranoia.

Em 1879, Schaefer[1] continuou as idéas de Westphal, pondo, comtudo, n'um relevo maior o papel das allucinações e illusões.

[1] Alig. Zeitschr. f. Psych., 1879.

Se a Paranoia essencialmente consiste no facto de que as idéas delirantes são acceites pelo doente como realidades e n'este sentido constituem o alimento habitual e ordinario de toda a sua actividade psychica, não deve esquecer-se que os erros sensoriaes, mais frequentes n'esta psychose do que em todas as outras, activam o delirio, dão-lhe uma base, um ponto de apoio constante, e pela sua diuturnidade criam para o doente um mundo phantastico, falseam-lhe o juizo e acabam por n'elle abolir o senso critico.

Digamos de passagem que Schaefer acceita todas as fórmas da Paranoia descriptas por Westphal, incluindo a aguda, que teria por ponto de partida as allucinações.

No mesmo anno, Merklin[2] descreveu pela primeira vez o delirio processivo (Quaerulantenwahnn) como variedade ou sub-grupo da Paranoia, encontrando-se assim no terreno da theoria com Lasègue, para quem, como foi dito, o delirio dos perseguidores seria uma variedade (fórma activa) do delirio de perseguições.

[2] Studien über primäre Verrücktheit, 1879.

No seu Tratado, cuja primeira edição remonta a 1879, fez Krafft-Ebing da Paranoia um estudo completo, de uma rara e attrahente lucidez. Paranoia e loucura systematisada são termos e noções equivalentes; assim, separando-se de Westphal, regeita a fórma aguda da Paranoia e desintegra d'esta psychose a loucura obsessiva, no que procede á maneira dos auctores francezes. Mas o ponto original da sua doutrina está em dar á Paranoia um logar entre as degenerescencias psychicas. Duas ordens de considerações conduzem Krafft-Ebing a este modo de vêr; a génese e a evolução da doença, por um lado, os antecedentes psychopaticos dos doentes, por outro. Nem o modo de apparição, nem a marcha permittem considerar a Paranoia uma doença accidental, como o são as psychonevroses; pelo contrario, tudo a inculca uma psychose constitucional, uma doença de um cerebro tocado quer pela hereditariedade, quer por graves affecções capazes de irreparavelmente o enfraquecerem. De facto, sem obnubilação de consciencia, sem alteração fundamental de affectos, no goso habitual de um humor nem deprimido, nem exaltado, e a despeito da integridade das fórmas do raciocinio, o paranoico vê o mundo erradamente e é incapaz de corrigir quer as suas idéas, quer as suas falsas percepções. As idéas delirantes, não procedendo do exterior, nem resultando de emoções preexistentes pelo mecanismo psychologico da reflexão, vêem do inconsciente e impõem-se ao paranoico, do mesmo modo que se lhe impõem os erros sensoriaes: um excesso de subjectivismo e uma radical ausencia de senso critico, são, pois, as caracteristicas fundamentaes da Paranoia, cuja evolução, sem tendencias para a demencia ou para a cura, é essencialmente chronica. De resto, a banalidade das causas determinantes (que muitas vezes não são senão as phases physiologicas da vida: a puberdade, a menopause, etc.) implica uma forte predisposição congenita ou adquirida. Por outro lado, a historia de todos os paranoicos (e não só, como pretendia Westphal, a dos originarios de Sander) é a dos desequilibrados, dos candidatos á loucura, dos degenerados, n'uma palavra; de sorte que a doença representa apenas o exaggero ou hyperthrophia de um caracter preexistente, não podendo entre ella e o estado normal traçar-se, como nas psychonevroses, uma nitida linha divisoria.

Krafft-Ebing classificou a Paranoia pelo contheudo das idéas delirantes, descrevendo uma fórma persecutoria com o seu sub-grupo processivo, e uma fórma ambiciosa com as suas variedades religiosa e erotica; e notou o sabio professor de Graz que estas fórmas podem observar-se isoladas e podem ora coexistir, ora succeder-se no mesmo doente. Na descripção da Paranoia persecutoria insistiu na passagem gradual e progressiva das idéas hypocondriacas ás de perseguição e d'estas ás de grandeza. Segundo a pratica do grande alienista, esta ultima evolução dar-se-hia n'um terço dos casos da doença. É de notar que Krafft-Ebing, ao inverso da maioria dos auctores francezes, não concedeu ao raciocinio o minimo papel na transformação pessoal, que se realisa pela passagem do delirio de perseguições ao de grandezas; o inconsciente domina, segundo o eminente professor, toda a evolução da doença.

Póde seguramente affirmar-se que, com Krafft-Ebing, a doutrina da Paranoia, tomada como equivalente de loucura systematisada, recebeu na Allemanha os seus derradeiros desenvolvimentos. De facto, n'esta ordem de idéas, os psychiatras allemães que lhe succedem, nada accrescentam a esta construcção synthetica, ao mesmo tempo simples, elegante e profunda.

Ulteriormente veremos que logar assignala o eminente professor aos casos que Westphal, Schaefer e outros incluiam na fórma aguda da Paranoia.

Em 1880, Scholz[1] insistiu lucidamente nas idéas de Krafft-Ebing sobre o papel do inconsciente na génese dos delirios paranoicos. Os factos morbidos obedecem, no fundo, ás leis reguladoras dos factos normaes; ora, no estado physiologico, é da esphera inconsciente que procedem os factos psychicos destinados a tornarem-se conscientes; nos delirios primitivos é tambem d'essa esphera que naturalmente emergem as idéas e conceitos falsos. As idéas delirantes, como as idéas justas, não são, definitivamente, senão resultados finaes, complexos e conscientes de actividades elementares e inconscientes do cerebro; toda a differença está em que nas idéas delirantes a actividade molecular das cellulas corticaes se encontra pervertida. D'aqui resulta que, a não existirem, como não existem na Paranoia, modificações anatomicas profundas, os processos logicos do pensamento podem subsistir, e o doente não fará senão raciocinar justo sobre premissas falsas; a apparente lucidez dos paranoicos não é senão isto. Mas não são susceptiveis d'esta explicação os casos em que o delirio tem por base as allucinações e illusões; o inconsciente não representa aqui um papel. Para dar conta d'estes casos, é necessario admittir no cerebro um estado de enfraquecimento, que o predispõe á falsa interpretação das percepções ou das excitações sensoriaes; n'esta ordem de idéas, Scholz dá aos delirios de base allucinatoria um caracter eminentemente asthenico, notando que elles se desenvolvem frequentes vezes na convalescença das doenças febris.

[1] Über primäre Verrücktheit, 1880.

Em 1882, Jung[1] reeditou as idéas de Westphal e de Fritsch sobre a diversidade genetica dos delirios na Paranoia e nas psychoses depressiva ou expansiva. Notando a frequencia crescente da Paranoia, Jung attribuiu o facto á extensão que todos os dias toma a degenerescencia physica e mental da nossa especie. Isto denuncía um accordo entre este auctor e Krafft-Ebing sobre a pathogenia intima da doença.

[1] Zeitsch. f. Psych, 1882.

Kraepelin[1] em 1883, retomando no seu Compendio de Psychiatria as idéas de Krafft-Ebing sobre a Paranoia, definiu-a «uma profunda e duradoura transformação do Eu, essencialmente evidenciada por uma anomala comprehensão e elaboração das impressões internas e externas». Sem obnubilação da consciencia e sem vivas emoções que lhe perturbem o curso dos processos intellectuaes, o paranoico acceita as idéas delirantes, que se lhe impõem e que elle é incapaz de corrigir; esta invalidade psyquica—umas vezes congenita, adquirida outras—é, pois, a base e o terreno de evolução da Paranoia, que, porisso mesmo, não representa um mero accidente na vida de um homem são, mas uma doença constituicional, atacando nos seus mesmos fundamentos a personalidade psychica. Todas as relações do Eu com o exterior se encontram radicalmente pervertidas no paranoico; e isto não tanto pela interferencia das allucinações, que são apenas symptomas, como pela caracteristica tendencia do doente á comprehensão egocentrica do mundo. E não só as relações do Eu com o meio ambiente, mas as que elle mantem com o corpo, se encontram alteradas. Pelo que, ás fórmas persecutoria e ambiciosa de Krafft-Ebing, Kraepelin accrescenta, descrevendo-a minuciosamente, a fórma hypocondriaca,

[1] Comp. der Psych., 1883

Devemos notar que Kraepelin separa da Paranoia o delirio processivo, que considera uma fórma de loucura moral. Baseia-se para essa separação em dois factos: de um lado, a ausencia de allucinações nos alienados litigantes; do outro, a radical incapacidade destes enfermos para se elevarem á noção de direito, como facto objectivo, o que denuncía uma suspensão de desenvolvimento psychico nos dominios ethicos, tal como se dá nos criminosos.

Em 1883, Tuczek[2], fazendo o estudo da hypocondria, apeia-a do pedestal de fórma nosographica e considera-a um syndroma, ora da melancolia, ora da Paranoia, ora loucura obsessiva. A presença ou ausencia habitual de uma depressão primitiva indicará se a hypocondria symptomatisa um estado melancolico ou representa, pelo contrario, simples e primitivo desvio ideogenico. Este modo de vêr projecta uma luz intensa no assumpto, fazendo ás idéas hypocondriacas na Paranoia a parte que de todos os tempos vinha sendo feita ás idéas de perseguição e de grandeza, que não são, aliás, privativas da loucura systematisada. Um delirio de perseguições póde episodicamente symptomatisar um accesso de melancolia ou secundariamente estabelecer-se após elle, como um delirio de grandezas póde ser a expressão de um accesso maniaco; mas, ao lado d'estes delirios, ha uma Paranoia persecutoria e uma Paranoia ambiciosa. O que distingue estes casos é a lesão primitiva: da sensibilidade nos primeiros, da ideação nos segundos, com o delirio hypocondriaco, ora expressão de uma hyperesthesia dolorosa, essencial e primitiva, ora manifestação de um desvio ideogenico permittindo ao vesanico a habitual serenidade e igualdade de humor que caracterisa o paranoico. N'este ultimo caso a hypocondria, como justamente observara Kraepelin, não seria senão uma perturbação das relações do Eu com o corpo ou com as impressões internas, analoga á perturbação das relações d'elle com o mundo externo ou com as impressões sensoriaes. E assim se comprehende como, ao lado das fórmas persecutoria e ambiciosa, deva dar-se no quadro da Paranoia um logar á fórma hypocondriaca, a despeito de uma errada tradicção que espirito faz surgir como inseparaveis as idéas de hypocondria e de melancolia.

[2] Alig. Zeitschr. f. Psych., 1883

Meynert expôz, em 1890, nas suas Lições Clinicas uma interessante doutrina da Paranoia, diversa das perfilhadas pelos seus predecessores allemães. Para o sabio professor de Vienna esta psychose não representaria um especial desvio ideogenico de um cerebro invalido, mas a perturbação de um cerebro normal sob a influencia de impulsos morbidos que, como nos maniacos e melancolicos, dirigem as idéas. «Os affectos originarios, escreve, são os de defeza e de conquista. Os primeiros estão em relação com o sentimento de uma influencia externa; os segundos com o sentimento de uma força que actua sobre o exterior. São processos physiologicos ou, antes, indispensaveis funcções biologicas do organismo. Um ser animal incapaz de experimentar affectos conducentes a movimentos de defeza, apossar-se-hia da natureza para as suas necessidades, mas succumbiria sem resistencia ás nocivas acções d'essa mesma natureza; um ser sem movimentos de conquista, como resultados de affectos relativos, poderia subtrahir-se aos males da natureza, mas, por defeito de apropriação, morreria á falta de satisfação das proprias necessidades. Na illimitação das idéas de defeza da creança inexperiente e timida encontra-se esboçado physiologicamente o delirio de perseguições, como o de grandezas se encontra na mesma creança, quando tenta soprar á lua para apagal-a como se fôra uma vela. O delirio de perseguição inclue em si a angustia; na Paranoia, como na mania e na melancolia, isto póde representar uma relação restabelecida entre este sentimento e as circumstancias exteriores. Do sentimento de angustia conclue-se para a perseguição. Eu vou, porém, mais longe: o que immediatamente se associa ao sentimento de angustia, é o perigo. Perigo, antes de tudo, de uma doença illusoria, na hypocondria simples; perigos, nas idéas de violencia, em connexão com a chamada angustia neurasthenica; perigos, nas coisas da natureza morta—infecções, venenos; perigos, creados por nós proprios, como quando receiamos, por impulso d'outrem, cahir de uma altura. Este é o delirio de perigo. O delirio de perseguição refere-se, porém, a uma influencia procedente d'outrem, sendo certo que na Paranoia a angustia causada pelos homens excede a que determinam as coisas. O sentimento de defeza é n'este caso anthropomorphisado: como as suas aggressões procedem de um impulso humano, as que o doente receia, teem para elle analoga origem nos sentimentos dos homens, na vontade d'elles. Este modo de pensar não é especial de um estado de doença; o delirio que se lhe refere é popular, diffuso, quanto póde sel-o, por exemplo, a crença na religião natural. Todos os phenomenos favoraveis ou perniciosos, o ceu, o sol, as nuvens, o oceano, o fogo são assim comprehendidos n'um termo de analogia; e, como o homem explica as suas aggressões ou conquistas sobre o natureza como resultados de disposições que o estimulam, pensa elle que tambem as vantajosas ou maleficas influencias naturaes procedem de affectos de seres mais perfeitos. Com razão disse um dos mais profundos pensadores da época da encyclopedia que o homem creou os deuses à sua imagem»[1].

[1] Meynert, Lezioni cliniche di Psychiatria, trad. it., pag. 128.

Como do sentimento de defeza fez surgir o delirio de perseguição, Meynert faz derivar o delirio de grandezas do sentimento de conquista; e como as duas ordens de sentimentos physiologicos, longe de se hostilisarem, coexistem no mesmo individuo e mais ou menos se implicam n'um fim geral de conservação, as duas ordens de delirios, persecutorio e ambicioso, se agregam e formam corpo no mesmo doente.

D'onde vem ao paranoico o exaggero d'esses fundamentaes sentimentos de defeza e de conquista? Meynert não hesita em responder que elle procede de uma sorte da hypertrophia do sentimento pessoal, determinada por sensações hypocondriacas ou estimulos subcorticaes bulbares. O doente sentiria mais fortemente o seu Eu; e esta emoção intensa, associando-se a todas as percepções, crearia um estado particular de consciencia no qual tudo seria interpretado egocentricamente. Uma hyperesthesia psychica seria, pois, para Meynert, como vimos que o era para Gérente, o fundamento da Paranoia.

Ao contrario de Krafft-Ebing, Meynert não liga uma grande importancia á hereditariedade como causa da Paranoia; e junto d'elle a noção psychiatrica da degenerescencia não tem senão um frio e reservado acolhimento. Para Meynert a etiologia não fornece, nem fornecerá nunca a base de uma classificação natural das psychoses; essa base tem de ser procurada na anatomia pathologica, na lesão do cerebro. Na Paranoia essa lesão seria um processo atrophico do manto cerebral.

O conceito da degenerescencia psychica não encontra em Mendel[1] melhor acolhimento do que em Meynert. Occupando-se em 1883 da Paranoia, n'um extenso trabalho a que teremos de alludir ainda, Mendel apenas concedeu fóros de degenerativa á fórma originaria de Sander.

[1] Die Paranoia, 1883.

Pelo seu lado, Schüle[2], em 1886, só considerou francamente degenerativas as fórmas originaria e processiva, por elle descriptas no seu Tratado Clinico dentro do grupo das psychoses hereditarias, entre a loucura obsessiva e a loucura moral.

[2] Klinische Psychiatrie, 1886.

Mendel, distinguindo a obsessão da idéa delirante, separa da Paranoia a fórma abortiva de Westphal. Ao contrario, Salgo[3] vê na loucura obsessiva uma fórma frustre ou incompleta da Paranoia, porque para elle a obsessão e a idéa paranoica teem a mesma génese: uma e outra surgem primitiva e espontaneamente n'um cerebro fraco. Para este auctor, com effeito, a debilidade de espirito, no sentido do que outros chamam invalidade psychica e ausencia de senso critico, representa na Paranoia um papel fundamental. Poderiamos inscrever, ao lado dos nomes até aqui citados, os de Koch, Arndt, Weiss, Pelman, Samt, outros ainda, tão vasta é na Allemanha a bibliographia do assumpto que nos occupa; não accrescentariamos, porém, com isso o quadro doutrinario da Paranoia como conceito equivalente ao de Loucura Systematisada dos auctores francezes. Passemos, pois, á exposição dos trabalhos em que um tal conceito se altera pela integração de uma fórma aguda, sem precedentes quer em França, quer na Allemanha, antes de 1878.

[3] Compend. der Psychiatrie, 1887.

Foi Westphal, como dissemos, quem primeiro admittiu a existencia de uma variedade da Paranoia procedendo de estados allucinatorios primitivos e apresentando na sua marcha ora a confusão mental da mania, ora a depressão stuporosa da melancolia. Tal era a Paranoia aguda do professor de Vienna, desde logo perfilhada por Schaefer e tambem desde logo rudemente combatida por Fritsch e outros.

Sem extemporaneos intuitos de critica, mas n'um unico fim de ordenar idéas, accentuemos, antes de tudo, as differenças que separam as fórmas aguda e chronica da Paranoia.

Segundo as doutrinas recebidas de Snell, de Griesinger, de Sander, do proprio Westphal, dois factos caracterisam principalmente a fórma chronica: de um lado, a primitividade das idéas delirantes, que ao espirito se impõem á maneira de obsessões; do outro, a integridade da associação logica dos pensamentos, explicando a resistencia dos doentes á demencia.

Na fórma aguda, o contrario teria logar: as allucinações seriam o facto primordial, e a associação das idéas achar-se-hia fundamentalmente compromettida quer por um exaggero até á fuga, quer por um affrouxamento até á suspensão. Na fórma chronica, as allucinações, constituindo um symptoma secundario e mesmo fallivel, são tributarias das idéas delirantes a cujo contheudo se subordinam (depressivas e hostis no delirio persecutorio, expansivas e benevolas no ambicioso); na fórma aguda, pelo contrario, sendo um facto primitivo e essencial, as allucinações teriam sob a sua dependencia os conceitos delirantes (de perseguição sob vozes hostis, de grandeza sob audições lisongeiras). Quanto á associação das idéas, não ha na fórma chronica mais do que um desvio inicial de orientação, sem compromisso da consciencia e sem perda de lucidez; pelo contrario, na fórma aguda a precipitação das idéas poderia levar o doente á incoherencia e á dissociação da mania, como o affrouxamento do seu curso o poderia conduzir á fixidez melancolica ou mesmo, sob a acção inhibitoria de allucinações terrorisantes, a estados de catatonia. Estas differenças de marcha implicam naturalmente a de prognostico: a fórma chronica não cura e não conduz por si mesma á demencia; pelo contrario, a fórma aguda terminaria umas vezes pela cura, outras pela abolição das faculdades.

Assim, tanto a subordinação dos symptomas como a terminação separam as duas fórmas. O que as une então? O contheudo das idéas delirantes, que são sempre, n'uma e n'outra, reductiveis ás tres conhecidas cathegorias: hyponcondriacas, persecutorias e ambiciosas, sobretudo ás duas ultimas.

É este, com effeito, para todos os que admittem uma Paranoia aguda, o traço clinico de ligação entre esta fórma e a outra. Que exista uma perturbação de consciencia ou até mesmo uma inconsciencia mais ou menos duradoura; que o delirio se acompanhe de allucinações em massa de todos os sentidos; que haja manifesta incoherencia, pouco importa, desde que, como diz Mendel, se possam reconhecer os dois typos de ideação: persecutorio e ambicioso. Muitas vezes, como o mesmo Mendel o confessa, o diagnostico differencial entre a Paranoia aguda e a mania com predominio de allucinações seria difficil de estabelecer. D'esta sorte, no quadro da Paranoia entram não só os delirios systematisados, mas até os dissociados e incoherentes, uma vez que as idéas de perseguição ou de grandeza n'elles predominem ou mesmo tendam a predominar, como alguns escrevem.

É necessario, entretanto, reconhecer que Schüle, achando, talvez, demasiadamente frouxo, como unico laço de união entre fórmas por muitos symptomas diversas e até antinomicas, o contheudo das idéas delirantes, tenta a approximação das duas Paranoias sobre um terreno de evolução, notando que dos casos agudos aos chronicos e d'estes áquelles a transição se póde fazer sem violencia, antes insensivelmente. Depois, com effeito, de ter accentuado (como acabamos de fazel-o) todos os symptomas que separam as fórmas chronica e aguda, Schüle escreve: «Estas differenças, porém, caracterisam apenas os casos extremos do delirio systematisado chronico e agudo; ha casos intermedios em que manifestamente se revella o parentesco d'estas duas fórmas. De modo que o importante grupo da fórma aguda não é senão a repetição da fórma chronica: é um delirio de perseguição, uma interpretação delirante com erros sensoriaes e raciocinio falso que abre a scena, sendo ainda possiveis ao principio as percepções exactas. Ao mesmo tempo que a consciencia se torna mais obscura, produz-se um delirio expansivo de fórma mystica ou erotica; o Eu conserva-se, sem poder distinguir as percepções exactas das allucinações que se unem e entre si se prendem systematicamente. Este estado representa o delirio systematisado agudo por excellencia. Por vezes este aspecto clinico mantem-se, mas póde tambem mudar, como acontece nos casos de affeções agudas e febris: as allucinações tornam-se predominantes, variaveis, e trata-se então de um d'esses casos extremos de que fallamos. Por outro lado, a fórma chronica apresenta muitas vezes exacerbações que não são, pela fórma e pelo fundo, senão o delirio systematisado com allucinações; o começo, sobretudo, da doença offerece este aspecto. O delirio systematisado agudo, quando não cura, torna-se uma fórma chronica com allucinações e systematisação parcial. Todas estas transições demonstram que as differenças notadas não são essenciaes e que estas fórmas, apesar de variadas, são visinhas»[1].

[1] Schüle, Traité clinique des maladies mentales, trad. fr., pag. 122.

A citação que acabamos de fazer, synthetisando as idéas de quantos acceitam hoje na Allemanha a Paranoia aguda, dispensa-nos de toda uma erudita, mas inutil étalage de nomes proprios; por ella se fica sabendo o que pensam do parentesco das duas fórmas os que, desde Westphal, as admittem ambas. Entretanto, não será ocioso fixar idéas sobre este ponto por uma nova e caracteristica citação de Schüle: «Uma analyse minuciosa, escreve este psychiatra, revella differenças entre todos os casos que entram n'este grupo tão consideravel de psychoses, direi mesmo, d'este grupo que é de todos o maior. Assim, devem distinguir-se casos intermediarios n'este vastissimo grupo dos delirios systematisados. Os casos chronicos approximam-se tanto, no ponto de vista dos symptomas, do delirio systematisado dos degenerados, de que muitas vezes offerecem a physionomia clinica, quanto os casos agudos se approximam das psychonevroses (melancolia e certas fórmas de stupor com allucinações). Estas relações devem ser cuidadosamente notadas. Assim, distingue-se, em regra, nitidamente o delirio systematisado agudo, da melancolia, pela mediocre importancia da perturbação primitiva do humor, que é n'esta, pelo contrario, um elemento psychico duravel, que produz e domina toda a doença; entretanto, o delirio systematisado agudo contém tambem um grupo demonomaniaco, o qual não só apresenta um sentimento depressivo intenso (panophobia), mas succede a um estado de verdadeira depressão, de caracteristica diminuição do sentimento da personalidade, de illusões e de allucinações de caracter triste. O mesmo acontece com o stupor. Em regra, o stupor typico (atonito) póde nitidamente distinguir-se do delirio systematisado agudo, que não apresenta as caracteristicas ausencia de percepção e falta absoluta de vontade; mas o stupor com allucinações (pseudo-stupor) está evidentemente ligado á variedade do delirio systematisado agudo em que a intelligencia obscurecida tem phases passageiras de semi-lucidez. Poderiamos chamar a este estado a fórma estupida do delirio systematisado agudo tanto como o stupor com allucinações; a génese e a marcha da doença permittiriam uma e outra coisa. Assim, póde definir-se e conceber-se todo este grupo do delirio systematisado agudo como sendo, em summa, a repetição de certas psychonevroses melancolicas, maniacas e estupidas em que a consciencia se acharia completamente perturbada pelo delirio (estado do sonho)»[1].

[1] Schüle, Obr. cit., pag. 123.

Estas palavras de Schüle, pondo em relevo a immensuravel extensão da Paranoia no conceito de alguns psychiatras allemães, permittem-nos interpretar expressões, aliás frequentes, que parecem meros jogos de termos, que um accidente de composição typographica juntou: tal, por exemplo, a da Paranoia dissociativa, de Ziehen. Só quem tiver em vista que a fórma aguda integra situações mentaes que vão desde a obnubilação até á fuga das idéas, desde a somniação até á catatonia, póde comprehender que um termo creado para exprimir a idéa de systematisação se adjective por uma palavra synonima de incoherencia.

Como já dissemos, a idéa de uma Paranoia aguda, primeiro enunciada por Westphal e logo acceite por um grande numero de alienistas allemães, foi vivamente combatida desde todo o principio por muitos outros. Defensores e adversarios d'essa idéa constituem hoje duas escólas nitidamente separadas, como temos tentado mostrar nas paginas precedentes. O nosso estudo d'este assumpto seria, comtudo, incompleto, se não dissessemos de que maneira os adversarios da Paranoia aguda interpretam os casos clinicos expostos como pertencendo a esta fórma. Que pathogenia teem e que logar occupam na classificação das psychoses, uma vez eliminada a Paranoia aguda, os delirios, tão numerosos, em que idéas de perseguição e de grandeza surgem sem systematisação completa, sem coherencia até, acompanhadas de vivos estados allucinatorios, seguindo uma evolução irregular e marchando tantas vezes para a cura?

A resposta a esta questão, já formulada, talvez, no espirito do leitor, vae permittir-nos completar a differenciação das duas escólas, pondo em mais alto relevo o caracteristico espirito das doutrinas de cada uma.

Dizer que esses delirios persecutorio e ambicioso de marcha aguda estão fóra da Paranoia, porque são diversos d'ella pelo começo, pela terminação, pela hierarchia mesmo dos symptomas, não basta, porque precisamente se discute se a Paranoia deve ter a limitada extensão que uma tal doutrina lhe assignala ou, pelo contrario, alargar-se para abranger novos grupos de factos clinicos. Schüle, Mendel e Cramer (para não citarmos senão os principaes e mais modernos defensores da Paranoia aguda), acceitando como perfeitamente distinctos e até apparentemente contrarios os casos extremos das duas fórmas, sustentam, comtudo, que a fusão d'ellas se estabelece pelo exame dos casos de transição, em que os motivos differenciaes se esbatem.

Ora, sabendo-se que em sciencias naturaes, desde que n'ellas penetrou o criterio evolutivo, deixaram de existir grupos definitivos e fechados, importa considerar este argumento. E é por isso que não podemos prescindir de saber como interpretam os pretendidos casos de Paranoia aguda aquelles que apenas admittem uma Paranoia chronica.

Fritsch, um dos primeiros a combater a noção da Paranoia aguda, designou esses casos sob o nome Verwirrtheit ou confusão mental, fazendo-os depender de uma fraqueza irritavel ou esgotamento nervoso dos hemispherios cerebraes, que póde observar-se como syndroma ou como complicação da maior parte das psychoses e, portanto, da Paranoia. Decerto, a Verwirrtheit offerece, como a Paranoia, idéas delirantes e allucinações; estes symptomas communs, porém, não são da natureza, segundo Fritsch, a permittir a confusão entre uma doença, de marcha gradual, em que se dá uma transformação da personalidade, e um simples estado transitorio, um mero syndroma de innumeras psychoses funccionaes e organicas.

Pelo seu lado, Krafft-Ebing, que á Paranoia dá um logar entre as degenerescencias psychicas ou psychoses constitucionaes, relega os pretendidos casos de Paranoia aguda para o delirio sensorial, Hallucinatorischer Wahnsinn, que elle colloca entre as psychonevroses ou psychoses accidentaes, ao lado da mania e da melancolia.

Como Fritsch, Krafft-Ebing faz esses casos tributarios de uma asthenia cerebral. De facto, segundo elle, o Hallucinatorischer Wahnsinn reconhece por causas as doenças febris, infecciosas, neurasthenisantes; a sua caracteristica é um enfraquecimento cerebral d'emblèe, ou passageiro e curavel ou rapidamente demencial, impedindo todo o trabalho de systematisação delirante. A passagem do Hallucinatorischer Wahnsinn á Paranoia é, pois, impossivel.

Para Kraepelin os pretendidos casos de Paranoia aguda entrariam quer na Hallucinatorische Verwirrtheit, quer no Hallucinatorischer Wahnsinn. A primeira d'estas psychoses é uma confusão mental devida a um esgotamento agudo do cerebro; a segunda é um delirio pouco coherente, da marcha rapida e terminação favoravel, em que as allucinações representam o principal papel, subordinando a si o estado emotivo e as idéas falsas. A distincção entre estas duas doenças não parece muito nitida; como quer que seja, ambas se distinguem profundamente, segundo Kraepelin, da Paranoia, que consiste n'uma lenta e intima transformação da personalidade, sem obnubilação da consciencia e sem perturbações fundamentaes do humor.

Mayser[1] considera os mesmos casos de Paranoia aguda como exemplares de Delirio asthenico, analogos aos produzidos pelas intoxicações medicamentosas ou outras; a obnubilação da consciencia e a confusão mental, devidas a um esgotamento do cerebro, seriam as caracteristicas d'este delirio.

[1] Zur sogennanter hallucinatorischer Wahnsinn.

Meynert[2] pertence ao numero dos que contestam a existencia de uma Paranoia aguda. Os casos expostos como taes, são por elle estudados sob o nome da Amencia, especie de confusão mental, ora idiopathica, ora symptomatica, tributaria de uma fraqueza irritavel, de um exhaurimento do cerebro e podendo manifestar-se tanto por symptomas de stupor, como por excitação acompanhada de vivos e multiplos estados allucinatorios. O predominio de phenomenos neurasthenicos sobre os irritativos explicaria os casos que difficilmente se distinguem da melancolia, como, inversamente, o predominio de phenomenos irritativos sobre os depressivos explicaria os casos que a custo se distinguem dos delirios maniacos, agudos e sobreagudos.

[2] Obr. cit., pag. 27 e seg.

As causas da Amencia seriam todos os accidentes capazes de produzir mais ou menos rapidamente o esgotamento cerebral: choques moraes intensos n'um individuo debilitado, onanismo abusivo, doenças febris, puerperio, intoxicações, traumatismos, molestias infecciosas, outros ainda. A hereditariedade não exerceria senão um papel subalterno. A marcha da Amencia seria sempre aguda e a terminação far-se-hia pela morte, pela demencia ou pela cura ao fim de um tempo variavel entre algumas semanas e alguns mezes. As recidivas seriam para receiar. De resto, a Amencia póde complicar grande numero de psychoses, não sendo raro que surja como um episodio na marcha da Paranoia. Meynert insiste, porém, sobre o diagnostico differencial entre a Amencia e a Paranoia que, mesmo coincidindo temporariamente, conservam a sua physionomia propria. Da Amencia não póde passar-se a outra psychose que não seja à demencia, termo natural das psychopatias que não curam.

Tal é, pela voz dos seus mais illustres representantes, a theoria que rejeita a existencia de uma Paranoia aguda. Esta designação representaria um mal-intendido, pois que os casos clinicos por ella cobertos não seriam senão expressões de uma asthenia cerebral, quer idiopatica e primitiva, quer symptomatica e secundaria, profundamente diversa, não só pelos symptomas e pela marcha, mas ainda pelas causas, da Paranoia. Que essa, asthenia com todo o seu cortejo de phenomenos ora stuporosos, ora maniacos, venha intercalar-se na marcha da Paranoia em algum dos periodos d'esta, é incontestavel; que devamos confundir as duas entidades morbidas é, porém, insustentavel, porque, desde os symptomas até ás causas, desde a marcha até á terminação, tudo se conspira para as separar.

Os casos de delirio agudo em que retalhos de conceitos persecutorios e ambiciosos apparecem de mistura com erros sensoriaes, não seriam, pois, exemplares da Paranoia; seriam casos de Verwirrtheit, de Hallucinatorischer Wahnsinn, de Hallucinatorische Verwirrtheit, de Amencia, n'uma palavra, de confusão mental asthenica. E a mistura possivel dos symptomas agudos d'essa confusão com os symptomas chronicos da Paranoia, não significam, como pretende Schüle, a passagem ou transição entre duas fórmas de uma mesma doença, mas a coexistencia de duas psychoses distinctas n'um unico doente.

Duas palavras ainda sobre a Paranoia secundaria antes de fecharmos a historia dos trabalhos germanicos.

Vimos quanto esta noção dominante nos inicios da psychiatria allemã, foi perdendo terreno á medida que se elevava a de Paranoia primitiva. O nome não chegou nunca a desapparecer, graças á tradição; mas o conceito de Paranoia secundaria foi posto em contraste como o de Paranoia primitiva. Esta seria uma doença; aquella, um estado terminal, apenas, da melancolia ou da mania, uma étape d'estas psychoses na sua marcha para a extincção definitiva. Tal em Krafft-Ebing, por exemplo, nos apparece a Paranoia secundaria: um prefacio da demencia vesanica, uma situação mental pouco definida e transitoria, correspondendo ao que os psychiatras francezes denominaram em todos os tempos a demencia incompleta.

E assim devia ser. Entre o formidavel processo da Paranoia primitiva, tão movimentado, tão independente, tão cheio de cambiantes evolutivas, e o estado predemencial, tão pallido que os seus symptomas não são já senão residuos de psychoses moribundas—pedras de um edificio em ruinas, taboas de um navio em naufragio—nenhuma approximação pathogenica ou nosologica era, com effeito, possivel.

Mas comprehende o leitor que esta situação tenha variado a partir do momento em que o conceito da Paranoia primitiva foi remanuseado e os seus severos moldes partidos pelos iconoclastas, introductores da fórma aguda. Desde que não repugna admittir que da confusão mental se passe á Paranoia, menos repugnará crêr que a ella se trasite da mania e da melancolia. E, de facto, os auctores que admittem a fórma aguda da Paranoia, acceitam igualmente a secundaria.

* * * * *

Datam apenas de 1882 os trabalhos da psychiatria italiana sobre os delirios systematisados; são elles, porém, de um tão grande valor intrinseco e de uma tão alta originalidade, algumas vezes, que o seu logar na historia contemporanea está definitivamente marcado.

A primeira memoria a citar sobre o assumpto é a de Buccola: Sui delirii sistematisati. Não tanto pela novidade das proprias idéas como pela clareza com que expõe e commenta as doutrinas germanicas, ainda então quasi desconhecidas fóra do paiz originario, é notavel este trabalho do mallogrado escriptor italiano.

Na debatida questão da génese do delirio, Buccola hesita em affirmar com Krafft-Ebing a constante prioridade das idéas sobre as allucinações, do desvio conceptual sobre os erros sensoriaes. «A génese do delirio, escreve, não é em todos os casos nitidamente delimitada e não sabemos definitivamente se as allucinações precedem ou succedem sempre o desenvolvimento das idéas delirantes e se estes devem considerar-se tentativas de interpretação ou antes, á maneira de Samt, productos da vida psychica inconsciente»[1]. Quanto ao especial terreno sobre que assentam os delirios systematisados, é Buccola decisivo, affirmando com Weiss que elles traduzem uma invalidade mental; e este modo de vêr, apoia-o Buccola sobre o criterio etiologico, vista a preponderancia da hereditariedade na loucura systematisada, e ainda no prognostico, porque a doença é, maioria dos casos, estereotypada e insusceptivel de cura, comquanto capaz de remissões.

[1] Buccola, Sui delirii sistematisati, in Rivista di Freniatria, vol. VII.

O estudo de Buccola, que fizera na Allemanha o seu noviciado psychiatrico, foi para a sciencia italiana, adormecida sobre os conceitos francezes, a denuncía de um mundo novo a explorar. E desde logo, com effeito, um fecundo movimento de inquerito aos delirios systematisados surgiu e se affirmou por estudos de uma profundidade e originalidade imprevistas.

Pondo de parte todos os trabalhos (e são numerosos) que se limitam, como o de Buccola, a expôr ou a commentar as idéas germanicas, faltaremos sómente dos que, pela novidade dos seus pontos de vista, implicam modificações evolutivas no conceito da Paranoia. N'esta ordem de idéas são a mencionar, sobretudo, as memorias de Tanzi e Riva e de Tonnini.

O trabalho dos dois primeiros escriptores é dos mais importantes e, como vae vêr-se, dos mais originaes.

Para estes auctores Paranoia e delirio systematisado são conceitos diferentes, noções que importa não confundir: o delirio systematisado é um syndroma clinico, um grupo symptomatico apenas, ao passo que a Paranoia representa uma constituição morbida, que o atavismo explica. Exteriorisando-se as mais das vezes por um delirio systematisado, a Paranoia póde, todavia, existir sem elle; d'aqui a variedade que os auctores denominam Paranoia indifferente, isto é, desacompanhada de delirio.

O que é então a Paranoia, segundo Tanzi e Riva? De dois modos a definem e fazem comprehender estes auctores: descriptivamente, pela menção dos seus symptomas, da sua etiologia e da sua marcha; pathogenicamente, pelo exame das suas origens.

Descriptivamente definida, a Paranoia é para Tanzi e Riva «uma psychose funccional de fundo degenerativo, caracterisada por um particular desvio das mais elementares operações intellectuaes, não implicando nem uma gravissima decadencia nem uma desordem geral; que se acompanha quasi sempre de allucinações e idéas delirantes permanentes mais ou menos coordenadas em systema, mas independentes de qualquer causa occasional constatavel ou de qualquer condição morbida emotiva; que tem uma evolução nem sempre uniforme ou continua, mas essencialmente chronica; e que, em geral, não tende por si mesma para a demencia»[1].

[1] Tanzi e Riva, La Paranoia, in Rivista di Freniatria, vol. x, pag. 293.

A analyse d'esta definição, que a pathogenia tem de completar, permitte reconhecer, antes de tudo, a posição dos auctores em face das diversas doutrinas allemãs. Declarando a Paranoia uma psychose degenerativa, de marcha essencialmente chronica e sem precedentes de emotividade morbida, Tanzi e Riva excluem resolutamente do quadro da doença os delirios systematisados secundarios, que succedem á mania e á melancolia, e bem assim os agudos, admittidos pela escóla de Westphal. Constatando, além disso, a ausencia, na génese da psychose, quer de causas occasionaes apreciaveis, quer de perturbações morbidas de sentimento, os auctores affirmam a origem inconsciente do desvio intellectual, que não póde tomar-se, porque é primitivo, á conta de interpretação de estados emotivos. Emfim, declarando que a Paranoia não implica uma desordem geral, mas ideativa, não tendendo por si mesmo para a demencia, Tanzi e Riva accentuam que ella consiste n'uma degenerescencia intellectual.

Como se vê, é ao lado de Krafft-Ebing e em opposição a Schüle e a Mendel que os escriptores italianos se collocam. Mas no que elles se desviam de todos os psychiatras, assim franceses como allemães, é na affirmação da não essencialidade das idéas systematisadas na Paranoia; esta é a parte original e absolutamente imprevista da definição. Contrariamente ás idéas recebidas, o desvio ideativo que caracterisa a Paranoia não é sempre, segundo Tanzi e Riva, embora o seja na maioria dos casos, um delirio systematisado. É uma coisa diversa, em que pensaram Lombroso, creando a designação de mattoide, Maudsley, fallando de um temperamento vesanico, Moreau, traçando a zona indisdincta das fronteiras da loucura. O que é, pois? Um excesso de subjectivismo alterando fundamentalmente as relações do individuo com o mundo exterior, comprehendido o social, e tomando, n'este assumpto, radicalmente impossivel toda a justeza da critica. Lucido bastante para interpretar as coisas e os homens nas suas relações objectivas, o paranoico, uma vez em jogo a sua personalidade, vê tudo erradamente, como por interposta lente deformante. O Eu, medida de todas as coisas, é no paranoico um instrumento infiel e falso, porque vicia aquellas que o interessam, as que com elle directamente se relacionam; a egocentricidade é, pois, o essencial desvio e o incorrigivel erro do Eu paranoico. Accentuando-se de ordinario n'um delirio systematisado persecutorio, ambicioso ou erotico, elle póde ficar áquem, no dominio das idéas falsas, mas não absurdas, chimericas, mas não ainda inverosimeis ou repugnantes; d'aqui a Paranoia indifferente, que os auctores illustram de uma maneira magistral.

D'onde procede esse desvio que nenhuma causa occasional explica? Se pensarmos que a evolução intellectual da humanidade se faz no sentido de um subjectivismo decrescente, isto é, de uma subordinação cada vez maior do Eu ao mundo exterior, de que somos apenas uma parcella, o excesso de subjectivismo apparecer-nos-ha como um retrocesso, uma regressão, e o paranoico, portanto, como um documento de atavismo.

Tal é, na sua essencia, a doutrina de Tanzi e Riva a que cremos dever applicar a designação de anthropologica, porisso que, segundo ella, o paranoico é muito menos um doente, no sentido commum d'este termo, do que a revivescencia intellectual de velhos typos ancestraes da especie.

«Não é em si mesma, escrevem Tanzi e Riva, mas em relação ao tempo em que se produz, que uma idéa póde considerar-se morbida; a pathologia do conceito delirante reside sobretudo no anachronismo» [1]. E, de facto, idéas e opiniões que hoje são delirantes, foram modos de vêr correntes em épocas mais ou menos afastadas. Mas não se conclua d'aqui que é paranoico todo o homem que n'um dado assumpto pensa como o fizeram remotos antepassados.

[1] Tanzi e Riva, Loc. cit., pag. 305.

Que um negro, uma creança ou um inculto camponez tenham do Universo uma grosseira concepção anthropomorphica, nada mais natural; que a tenha, porém, um branco de maior idade e scientificamente educado, eis o que denuncía um desvio paranoico da ideação. Que um rude marinheiro analphabeto responsabilise o seu santo de um naufragio ou lhe agradeça com offerendas uma viagem feliz, não é caso para espanto; que faça o mesmo um almirante, eis o que revellaria uma ideação paranoica. As raças, as idades e as classes (que são raças sociaes) teem cada uma a sua psychologia; e é dentro d'ella e pelos principios d'ella que os conceitos teem de ser afferidos. Um homem tendo as crenças dos da sua raça, do seu paiz, da sua idade, da sua classe e do seu nivel cultural, não é um paranoico, por falsas que essas crenças sejam; para que possa fallar-se da Paranoia é preciso que uma regressão ideativa se realise.

Na parte critica do nosso trabalho insistiremos sobre este e outros pontos. Por agora resta-nos sómente resumir a documentação do atavismo paranoico, tal como a apresentam os dois illustres psychiatras.

Tanzi e Riva fazem notar em primeira linha a crença profunda e inabalavel dos paranoicos nas suas concepções delirantes, mau grado todos os raciocinios que as demonstram falsas, mau grado a evidencia dos factos, que as contradicta, e a realidade das coisas, que as choca; essa crença, inaccessivel a argumentos, superior a controversias, resistente ás suggestões do mundo objectivo, é verdadeiramente uma —tão integral e tão pura como a das velhas almas religiosas em face dos dogmas e das doutrinas revelladas. De uma intensidade inversamente proporcional ao seu fundamento logico, a fé paranoica não encontra hoje equivalente a não ser nos povos barbaros ou nos simples de espirito.

Um novo documento da natureza degenerativa e atavica da Paranoia encontra-se no proprio contheudo do delirio, sobretudo nas idéas de perseguição, que representam uma phase de lucta incompativel com os tempos actuaes e apenas possivel e necessaria em épocas anteriores á constituição do direito e ao reconhecimento das garantias individuaes.

Como importante caracter degenerativo e prova de que o paranoico representa um producto inferior, referem os auctores o conjuncto de anomalias psycho-sexuaes que só nos imbecis se encontram com a mesma frequencia e fórma. Indo do onanismo ao horror feminae por innumeras cambiantes, essas anomalias, se não produzem o effeito da impotencia material, tornam o paranoico inadequado ao amor e ao matrimonio. «A extracção forçada de esperma por machinas electricas, a copula imaginaria com pessoas reaes, os mysticos commercios carnaes com entes nebulosos e imaginarios representam outros tantos aspectos, escrevem os auctores, das condições de inferioridade sob o ponto de vista da existencia da especie, em que se despenha o paranoico muitas mais vezes do que qualquer outro alienado»[1].

[1] Tanzi e Riva, Loc. cit., pag. 307.

Emfim, ha na symptomatologia da Paranoia um grupo particular de factos de procedencia atavica evidente: taes são os que se designam pelas expressões syntheticas de symbolismo e allegorismo. «Os complicados arabescos, as figuras allegoricas, os gestos e altitudes cabalisticas, as interpretações phantasticas de factos naturaes, os jogos de palavras, os neologismos, e o argot individual que na Paranoia pullulam, dão ao delirio uma côr tão viva e tão grotesca, dizem os escriptores italianos, que o fazem reviver nas mais remotas phases da evolução historica da cultura. Lembram a escripta cuneifórme e hyerogliphica exprimindo material e figuradamente os conceitos abstractos, a conservação dos amuletos symbolisando as almas dos santos, a vivificação dos phenomenos naturaes, as evocações d'alemtumulo, os themas da alchimia medieval e da magia arabe, as cerimonias hyeraticas de velhos tempos, importadas do mysticismo oriental. Cada uma d'estas duas séries de factos, encontrando-se, de um lado, nos paranoicos, do outro, nos povos primitivos, exprime uma condição psychica commum»[1].

[1] Tanzi e Riva, Loc. cit., pag. 307.

Tem a data de 1884 o trabalho eminentemente original que acabamos de resumir.

A idéa de uma constituição paranoica, essencialmente degenerativa, recebe n'elle a consagração pathogenica. A Verrücktheit de Krafft-Ebing e da sua escóla é ainda um delirio systematisado, cuja primitividade, estabelecida pela clinica, não encontra uma clara interpretação; a Paranoia de Tanzi e Riva é pura e simplesmente uma degenerescencia intellectual, que a doutrina da evolução permitte comprehender. A Verrücktheit era com os allemães um conceito medico; a Paranoia, que d'elle deriva por natural desdobramento historico, tornou-se com os italianos, uma doutrina anthropologica.

Mas não se esgotou com a memoria de Tanzi e Riva, a cujas idéas, seja dito de passagem, deram a sua adhesão Amadei, Tamburini, Morselli e outros, a fecundidade original da psychiatria italiana n'estes dominios. Tres annos depois, em 1887, surge o estudo de Tonnini sobre a Paranoia secundaria—um velho thema visto a uma nova luz. De facto, não é a primitiva concepção de Griesinger que Tonnini reedita: a Paranoia secundaria do auctor italiano não é Secundäre Verrücktheit do allemão, uma psychonevrose prefaciando uma demencia, um delirio systematisado feito dos residuos ideativos da mania e da melancolia; é antes uma fórma hybrida, participando ao mesmo tempo dos caracteres da psychonevrose e da degenerescencia.

Demos, porém, a palavra ao escriptor italiano: «A Paranoia secundaria diz elle, é uma psychopatia que se affirna por delirio e caracter paranoico mais ou menos accentuados sobre um fundo de debilidade mental invasora, como terminação de uma psychonevrose que, desarranjando o equilibrio de um cerebro já de si invalido, reforça processo degenerativo, abreviando-lhe a evolução e concentrando n'um mesmo individuo os caracteres de um série pathologica»[1].

[1] Tonnini, La Paranoia Secundaria in Rivista di Freniatria, vol. XIII, pag. 61.

Como d'esta definição se vê, a Paranoia secundaria implica uma inicial degenerescencia, uma invalidade mental primitiva, que a psychonevrose; mania ou melancolia, não faz senão aggravar e tornar manifestas. Sem a intervenção accidental da psychonevrose, a degenerescencia, menos avançada que na Paranoia primaria, não se accentuaria n'um delirio systematisado; dado, porém, o abalo maniaco ou melancolico, pronuncia-se o estado degenerativo por um complexo symptomatico especial em que ha concepções delirantes e tendencias para a demencia.

«Estabelecido, diz Tonnini, que uma psychonevrose por recessivas evoluções morbidas produz a degenerescencia (Paranoia primaria) n'um ou mais individuos da especie, póde admittir-se que a Paranoia secundaria representa n'um só individuo o que faz a psychonevrose na especie. A Paranoia secundaria seria o resultado tardio (Paranoia tardia) de uma disposição precedente, apressado por uma doença mental qualquer, as mais das vezes de base affectiva. Segundo este conceito, a Paranoia secundaria não seria, como se pretende, uma psychonevrose que, caminhando para a demencia, deixa observar systematisadas as idéas falsas da mania ou da melancolia cessantes; ao contrario, a Paranoia secundaria offereceria um terreno degenerativo, naturalmente ligeiro em si mesmo, não chegado ainda ao de dar por maturidade propria o producto da Paranoia genuina; sobre este terreno, em si mesmo degenerado, a apparição de uma psychonevrose traria um profundo desequilibrio a um espirito já invalido, occasionando a manifestação de um processo com apparencias degenerativas, que por si só talvez se não accentuasse. Aconteceria, n'uma palavra, como nas fórmas de Paranoia illustradas por Leidesdorf, que se originam em graves doenças da infancia, em traumatismos, etc., e nas quaes, todavia, é necessario admittir uma predisposição, porque, na grande maioria dos casos, nem os traumatismos, nem as doenças infantis ou outras determinam ulteriormente a apparição da Paranoia. Por maioria de razão, uma doença mental como a mania ou a melancolia poderá determinar o apparecimento de uma doença affim, baixando os poderes de critica, introduzindo o elemento allucinatorio e guiando á demencia, que terá sempre o caracter paranoico. O exhaurimento cerebral psychonevrotico (demencia) n'um terreno mais ou menos degenerado produz o fructo hybrido da Paranoia secundaria, que não é a verdadeira demencia, mas tem alguma coisa da demencia e da Paranoia»[1].

[1] Tonnini, Loc. cit., pag. 60.

Tal é a doutrina da Paranoia secundaria, segundo Tonnini,—profundamente diversa, repetimol-o, da theorisação de Griesinger.

Vejamos agora como o alienista italiano documenta a sua tão original concepção.

Fazendo da Paranoia secundaria uma fórma hybrida, Tonnini procura demonstrar que ella não é uma psychonevrose genuina e que não é tambem uma degenerescencia pura e simples, mas participa dos caracteres de uma e de outra.

Que não é uma psychonevrose genuina, demonstram-no segundo o escriptor italiano, tres ordens de razões: a primeira, não faltar nunca ao delirio o ar extranho da Paranoia e os neologismos, que são seus habituaes companheiros; a segunda, ser ás vezes o delirio muito menos a continuação do que se gerou durante a mania ou a melancolia precedentes, do que um delirio novo procedente de disposições paranoicas, como se vê n'um caso, que o auctor publica, de delirio exaltado succedendo á melancolia; terceira, emfim, a impossibilidade muhas vezes constatada de fazer-se um diagnostico differencial entre a Paranoia secundaria e a Paranoia primaria, a não ser pela consulta dos anamnesticos.

Que a Paranoia secundaria não é uma degenerescencia pura e simples, resulta das seguintes considerações: a primeira é a presença do elemento affectivo, de expansão ou depressão, que falta na Paranoia primaria, evidentemente degenerativa; a segunda é a marcha e terminação, que são diversas das observadas na Paranoia primaria; a terceira, emfim, refere-se á hereditariedade que é sempre menos pesada na Paranoia secundaria que na primaria.

 conclusão geral do trabalho de Tonnini é esta: «Não sendo uma psychonevrose genuina, nem uma pura degenerescencia, a Paranoia secundaria compendia e resume n'um mesmo individuo os elementos d'estes dois processos, Constitue um traço de união entre elles e demonstra que os estados morbidos, como todos os factos naturaes, se não sujeitam a uma rígida classificação, mas teem entre si relações variaveis, que podem verificar-se associadas n'um mesmo typo pathologico»[1].

[1] Tonnini, Loc. cit., pag. 67.

* * * * *

Poderiamos, sem grave inconveniente, suspender n'este ponto a parte historica do nosso estudo, por isso que só a França, a Allemanha e a Italia teem no assumpto que nos occupa litteraturas psychiatricas originaes; completal-a-hemos, todavia, por uma ligeira noticia dos trabalhos inglezes, norte-americanos e russos.

A psychiatria ingleza, orientada n'um sentido eminentemente analytico e, sobretudo, caracterisada pela investigação minuciosa dos symptomas e das causas, tem-se conservado quasi sempre alheia aos problemas de pathogenia que tão apaixonadamente sollicitam os paizes continentaes.

A noção de monomania, com a significação que lhe davam Esquirol e os seus discipulos, foi propagada na Inglaterra por Prichard, que a definia nos seguintes termos: «A monomania ou loucura parcial é caracterisada por uma illusão particular ou erronea convicção do intendimento, determinando uma aberração do juizo; o monomaniaco é incapaz de pensar correctamente sobre objectos relacionados com a sua illusão especial, embora sobre outros assumptos não manifeste apreciaveis desordens do espirito»[1].

[1] Prichard, Treatise on Insanity, 1833.

Mercê dos escriptos classicos de Hack Tuke e Bucknill, o termo monomania, começou em 1858 a ser substituido pela expressão delusional insanity, hoje correntemente empregada para indicar os delirios systematisados. Mas a designação nova não implica uma pathogenia definida, porque o termo delusion significa apenas concepção falsa ou idéa delirante, sem referencia a origem. Segundo Tuke e Bucknill, a delusional insanity poderia ser secundaria, como algum tempo pretendeu Griesinger. É o que manifestamente exprimem estas palavras: «A concepção falsa (delusion) é muitas vezes o ultimo symptoma na morbida successão dos phenomenos mentaes; ella póde ser, com effeito, o reflexo de uma emoção, e, embora estrictamente signifique desordem intellectual, póde ser o resultado e o mero symptoma de uma desordem de sentimentos. Na verdade, a loucura affectiva (emocional insanity) não raro termina por uma perturbação conceptual (delusional disorder)»[1]. Explanando esta passagem, que tem a data de 1879, os auctores apresentam como exemplos de delusional insanity casos que poderiam entrar no grupo germanico da Paranoia secundaria.

[1] H. Tuke and Bucknill, A Manual of Psychological medicine, 4.º ed., pag. 204.

Sob o ponto de vista pathogenico, Maudsley conservou-se fiel á tradicção dos seus predecessores inglezes, como o demonstram estas palavras da Pathologia do Espirito: «Comquanto a monomania intellectual succeda muitas vezes á mania aguda, nem sempre isto acontece; por vezes este desarranjo do espirito desenvolve-se primitivamente e de um modo progressivo, como exaggero de um defeito fundamental do caracter»[2].

[2] Maudsley, Pathologie de l'Ésprit, trad. fr., pag. 441 (1883).

O que em Maudsley se encontra de verdadeiramente notavel com relação ao assumpto que aqui versamos, é a descripção que elle faz, sob o nome de nevrose vesanica, da Paranoia sem delirio de Tanzi e Riva. Os portadores d'esta nevrose ou temperamento louco, de origem sempre hereditaria, são seres originaes e excentricos, de um grande egoismo, de uma excessiva vaidade, seres desequilibrados, que, não delirando, constituem, todavia, alguma coisa de extranho no meio social a que se não subordinam, antes constantemente chocam.

Em Clouston, cujas interessantes Lições remontam a 1883 e tiveram nova edição em 1887, a delusional insanity apparece como synonimo de monomania ou monopsychose. Buscando as origens da doença, Clouston encontra-lhe quatro: a predisposição individual, a mania aguda, as intoxicações e traumatismos, e, por ultimo, as sensações falsas. Como se vê, a delusional insanity é tanto um delirio systematisado primitivo como secundario, tanto essencial, como apenas symptomatico.

O que em Clouston merece attenção é a sua maneira de definir a delusion ou conceito delirante á maneira dos italianos, isto é, fazendo intervir o criterio evolutivo. «A educação, a idade, a classe e mesmo a raça, até um certo ponto, determinam se uma crença errada é ou não um conceito delirante»[1]. Assim, a noção morbida, a idéa pathologicamente falsa (insane delusion) deve definir-se «uma crença n'aquillo que seria inacreditavel para gente da mesma classe, educação e raça da pessoa que a expressa»[2].

[1] Clouston, Clinical lectures on mental diseases, 2º ed., pag. 243.

[2] Clouston, Obr. cit., pag. 244.

Na America do Norte, Spitzka[3], servindo-se do termo monomania, expõe em 1883 a doutrina da Paranoia, tal como a comprehendem alguns alienistas allemães, assignalando-lhe uma origem primitiva e fazendo-a assentar sobre um fundo de fraqueza mental. Na classificação dos delirios, que divide em expansivos e depressivos, reconhece as variedades descriptas por Krafft-Ebing, excepto a processo-maniaca.

[3] Spitzka, A Manual of Insanity, 1883.

No mesmo anno, Hammond[4] occupa-se dos delirios systematisados, sem, todavia, se pronunciar sobre a sua pathogenia.

[4] Hammond, A Treatise on Insanity, 1883.

Não conhecemos, senão por ligeiras noticias de Tanzi e de Séglas, a litteratura russa da Paranoia. A julgar por essas noticias, não é ella nem mais abundante, nem mais original que a ingleza e a norte-americana.

Parece que os mais importantes trabalhos são os de Rosenbach, em 1884, e de Greidenberg, em 1885.

O primeiro d'estes auctores sustenta, como a maioria dos allemães, a génese expontanea dos delirios paranoicos, que teem por base a debilidade mental. As illusões e allucinações seriam secundarias e não primitivas na evolução d'estes delirios. As idéas de grandeza não derivariam, por um processo logico, das idéas de perseguição, mas seriam contemporaneas destas; de resto, o exaggero da personalidade, que as idéas ambiciosas põem em relevo, está já indicado nas idéas de perseguição.

O segundo dos auctores citados reconhece uma Paranoia allucinatoria aguda, em que distingue duas variedades: uma hereditaria, e outra adquirida, asthenica. Esta seria a mais frequente, e terminar-se-hia quer pela cura, quer pela demencia, quer por um certo grau de enfraquecimento cerebral.

SEGUNDA PARTE

EXAME CRITICO DO CONCEITO DE PARANOIA

METHODO A SEGUIR

Dados resultantes do estudo historico dos delirios systematisados—Exame critico dos conceitos clinicos de Delirio Chronico e de Verrücktheit aguda e secundaria—Determinação final do conceito anthropologico de Paranoia.

Todo o extenso caminho ascensional até agora andado nos apparece, da altura attingida, como uma linha de ideação que, partindo do exame dos delirios systematisados, se dirige para o conhecimento da constituição intellectual dos delirantes.

Nas phases iniciaes da sciencia e quando ainda um exclusivo criterio symptomatico a orienta, é cada delirio uma doença—que se chama melancolia, monomania intellectual, lypemania, delirio de perseguições ou megalomania, segundo as modalidades clinicas de fixidez, de extensão, de contheudo ou de marcha das idéas delirantes. Mais tarde, a preponderancia do criterio etiologico, imposto á psychiatria pelo genio incomparavel de Morel, modifica e alarga a visão do assumpto, fazendo pensar no terreno especial de que as concepções falsas emergem; não ha então tantas doenças distinctas quantos os delirios, mas, formada pela convergencia da noção symptomatica de delirio e do conceito causal de predisposição, uma só doença de variaveis aspectos clinicos, successivamente denominada loucura hypocondriaca, delirio chronico, loucura parcial, delusional insanity e Verrücktheit. Emfim, a tentativa de explicar pela doutrina geral da evolução psychica a natureza da predisposição delirante origina o conceito de Paranoia como expressão de um desvio regressivo, de uma constituição atavica da intelligencia.

Analyse, synthese e interpretação pathogenica—taes foram, pois, na marcha historica do assumpto que nos occupa, as étapes seguidas pelo espirito scientifico.

Mas esta linha evolutiva, que abstractamente nos apparece rectilinea, foi na realidade irregular e ondulante. Conhecidos, á maneira de dois pontos, o primeiro e o ultimo termo das séries de doutrinas, traçamos entre elles a mais curta distancia, como se a filiação das idéas se houvesse dado n'um mesmo cerebro; na verdade, porém, as theorias nasceram, como vimos, em litteraturas diversas, independentes por vezes e accusando cada qual o genio particular e as tendencias especiaes da respectiva nacionalidade. Assim, por exemplo, quando ainda o pratico espirito francez se occupava em fazer pelas pennas de Lasègue e de Foville a minuciosa descripção clinica dos delirios systematisados de perseguição e de grandezas, já o cerebro allemão, que os tinha entrevisto, prematuramente lhes assignalava pela voz de Griesinger urna hypothetica pathogenia. Por outro lado, dentro do mesmo pais, potentes organisações intellectuaes quebraram por bruscos saltos de genio o parallelismo entre as evoluções logica e chronologica das idéas, misturando assim n'um dado momento, como vimos succeder em França com Morel, o espirito de analyse e a tendencia synthetisadora. Emfim, o inevitavel desejo de explicar, coevo da humanidade, indisciplinada e temerariamente semeou de fragmentarias notas pathogenicas o proprio periodo analytico do nosso thema, como se viu em Lasègue e em Foville, tentando filiar n'uma autoobservação consciente as idéas delirantes.

É, pois, por um artificio do espirito que figuramos como perfeitamente definidas e succedendo-se rectilineamente as phases evolutivas da questão que nos occupa. Mas esse mesmo artificio, aliás necessario e legitimo, está indicando que a historia, não sendo aqui, como as sciencias exactas, uma simples exposição chronologica dos erros e illusões que precedem a conquista definitiva da verdade, mas uma complicada e suggestiva revista de opiniões, carece de ser completada pela critica. Já no que apenas parece uma núa e secca exhibição de doutrinas, o espirito critico intervem, procurando no labyrintho de contradictorias affirmações a filiação das idéas; é preciso, comtudo, que elle se affirme ainda mais larga e mais activamente, julgando as theorias e os pontos de vista individuaes ou de escóla em face dos factos clinicos e dos principios de psychologia normal e pathologica.

Eis o que explica a necessidade d'esta segunda parte do nosso trabalho.

Acceitando nos seus traços fundamentaes a doutrina anthropologica da Paranoia—inevitavel corollario da theoria geral da evolução psychica—tentaremos demonstrar, aqui, que ella explica todos os factos e synthetisa todas as verdades incompletas das doutrinas que a precederam; n'este sentido reforçaremos e ampliaremos com novos dados e novos pontos de vista a argumentação dos psychiatras italianos.

Antes, porém, uma tarefa se nos impõe: a de examinar as questões do Delirio Chronico e das variedades aguda e secundaria da Verrücktheit, sobre as quaes são ainda hoje em França e na Allemanha tão vivos e accesos os debates como antes dos trabalhos italianos que, uma vez comprehendidos, deveriam tel-os, a meu vêr, definitivamente encerrado.

I—O DELIRIO CHRONICO

A etiologia; a marcha; o prognostico—Confronto com os delirios polymorphos—A passagem do periodo persecutorio ao ambicioso não e vulgar; a passagem á demencia é excepcional—O delirante chronico é um degenerado; importante observação pessoal—A prognose dos delirios polymorphos é muitas vezes a do Delirio Chronico—Dois conceitos de Delirio Chronico no espirito de Magnan; génese do segundo.

O delirio chronico de evolução systematica, tal como nas paginas, anteriores o descrevemos, não é no espirito de Magnan uma formula eschematica ou uma abstracta construcção destinada a fazer comprehender um certo grupo de factos, mas uma doutrina concreta que a observação não faria senão confirmar.

Recordemos que duas circumstancias—uma d'ordem etiologica, outra de natureza symptomatico-evolutiva, caracterisam a psychose: a primeira consiste em que ella ataca na idade média da vida individuos até então perfeitamente normaes, embora predispostos; a segunda, era que ella segue na sua marcha quatro periodos distinctos, succedendo-se n'uma ordem invariavel—o de incubação, o de perseguições, o megalomano e o demencial.

Pelo que respeita á primeira d'estas caracteristicas, diz Magnan: «O delirio chronico fere em geral na idade adulta individuos sãos de espirito, não tendo até então apresentado nenhuma perturbação intellectual, moral ou affectiva. Insisto sobre este facto que tem sua importancia, por isso que por esta particularidade os delirantes chronicos se separam immediatamente dos hereditarios degenerados, que desde a infancia apresentam perturbações que os fazem reconhecer»[1]. Em relação á marcha dos symptomas não é menos explicito o medico de Sant'Anna: «Estes periodos (incubação, delirio de perseguições, megalomania e demencia) succedem-se, diz elle, irrevogavelmente do mesmo modo, de sorte que póde excluir-se do delirio chronico todo o doente que d'emblèe se torna perseguido ou megalomano, ou que, primeiro ambicioso, vem a ser depois perseguido»[2].

[1] Magnan, Obr. cit., pag. 236.

[2] Magnan, Obr. cit., pag. 237.

Os delirios systematisados que pela etiologia ou pela marcha se desviam dos severos moldes traçados, ou são meros symptomas de uma affecção mental definida ou, se essenciaes, traduzem e denunciam a degenerescencia psychica, merecendo n'este ultimo caso os nomes de polymorphos ou multiplos, em attenção ao seu contheudo, de delirios d'emblèe, em vista da sua brusca apparição, ou ainda de delirios degenerativos, olhando á etiologia. Derivada d'estas, mas de uma alta importancia pratica, existe ainda, segundo Magnan, uma nova caracteristica differencial entre os delirios polymorphos e o Delirio Chronico: emquanto este é absolutamente incuravel, comportariam aquelles, na maioria dos casos, um prognostico discretamente favoravel, pois que, expressões de um desequilibrio mental, podem desapparecer, embora possam tambem recidivar.

Estamos, como se vê, em face de uma doutrina clara, precisa, de contornos bem definidos e de uma estructura mathematicamente regular. Isto nos facilita a critica.

É indiscutivel a existencia de doentes que, durante algum tempo inquietos, preoccupados e irritaveis, cahem a seguir no delirio de perseguições, de que passam, decorridos annos, para o de grandezas, acabando pela demencia. Até ao segundo d'estes quatro periodos da evolução morbida, não differem taes doentes dos perseguidos de Lasègue e de J. Falret, que tambem passam, antes de constituido e systematisado o delirio, por uma phase preparatoria de concentração e de inquietude mental; o que os separa d'estes é a ulterior passagem ao delirio ambicioso, já observada por Foville, e, por fim, á demencia. Ora, se esta passagem é, como pretende Magnan, fatal e necessaria, só o Delirio Chronico é nosographicamente legitimo: se, ao contrario, ella é fortuita e precaria, a legitimidade nosographica pertence ao Delirio de perseguições.

O que diz a observação clinica? Vamos vêr que o seu depoimento está longe de ser favoravel a Magnan.

Pelo que respeita á passagem do delirio de perseguições ao de grandezas, affirmou J. Falret que ella não só hão é constante, mas está longe de ser vulgar, pois apenas se realisa n'um terço dos casos; pelo seu lado, Krafft-Ebing assegura tambem que uma tal transição se observa sómente n'um terço dos casos de Verrücktheit, isto é, do conjuncto dos delirios systematisados de evolução chronica; e Christian pretende mesmo que nunca attingem a megalomania os perseguidos cujo delirio se alimenta exclusivamente de perturbações da sensibilidade genital. A longa experiencia d'estes alienistas garante a realidade das suas affirmações; de resto, são conhecidos em todos os velhos manicomios alguns casos de delirio de perseguição durando vinte, trinta e mais annos e terminando pela morte do doente, sem que em tão largo periodo tenham surgido idéas ambiciosas.

Mas, se nos perseguidos a passagem ao delirio de grandezas está longe de ser constante, nos perseguidos-megalomanos a queda na demencia é um facto excepcional. Feriu, com effeito, em todos os tempos a attenção dos alienistas francezes a extrema resistencia dos delirantes systematicos á dissolução mental que é o termo vulgar das outras vesanias; e os observadores allemães e italianos consideram mesmo tão caracteristico este facto do não abaixamento de nivel intellectual na Verrücktheit e na Paranoia que, como vimos, o fazem intervir na propria definição da psychose. Por nossa parte, alguns casos conhecemos de paranoicos, perseguidos e perseguidos-megalomanos, tendo mais de vinte annos de delirio e mais de cincoenta de idade, em que nenhuma decadencia mental se observa. Um d'esses casos é um official reformado do exercito que conhecemos em delirio ha, pelo menos, vinte e dois annos, e que ha quatorze se encontra no manicomio do Conde de Ferreira; são tão inexcediveis as subtilezas da sua dialectica quanto cheias de finura e de ironia as suas criticas sobre os acontecimentos politicos, que elle segue e interpreta sob um criterio de perseguido-ambicioso. Muitos annos de delirio systematisado são impotentes, no dizer de grande numero de observadores, para provocar a demencia; e, se esta excepcionalmente apparece, é antes aos progressos da idade ou a uma psychonevrose intercorrente que deve attribuir-se.

Resumindo: não é fatal, nem mesmo vulgar a passagem ao delirio ambicioso nos perseguidos que, aliás, incubaram o seu delirio; é excepcional a terminação pela demencia, quer dos perseguidos, quer dos megalomanos, quer, emfim, dos systematisados que passaram n'uma longa evolução vesanica pelas successivas phases persecutoria e ambiciosa.

O perseguido-megalomano-demente é, pois, menos commum que o perseguido, tal como vem sendo descripto desde Lasègue e J. Falret; pelo que, fazer do Delirio Chronico um typo destinado a conter o Delirio de perseguição, seria inverter abusivamente as noções recebidas em nosologia, tornando especie o que é apenas variedade.

Examinada a questão do lado da marcha dos symptomas, encaremol-a do ponto de vista da etiologia.

Como foi dito, o delirante chronico não é, no dizer de Magnan, um degenerado: póde ser um predisposto, mas não é um candidato á loucura; póde ter antecedentes hereditarios, pois que a hereditariedade radia sobre todas as doenças mentaes, mas não apresenta até á invasão do delirio o desequilibrio caracteristico dos degenerados. O delirio d'estes é sempre polymorpho, d'emblèe, frouxamente systematisado, não tendo a longa duração do delirio chronico, nem o seu córte regular em periodos de irrevogavel successão.

Esta maneira de vêr, em radical opposição com as affirmações dos psychiatras allemães e italianos sobre a Verrücktheit e a Paranoia (em que o delirio chronico de Magnan, como todos os delirios systematisados, se acha contido) merece ser examinada.

É evidente que uma critica profunda d'este novo aspecto da questão só póde fazer-se discutindo a noção da degenerescencia, que não é identica para todos os psychiatras, que não tem o mesmo alcance em todos os livros e que representa para o medico de Sant'Anna um grupo de factos muito diverso do que representa para Krafft-Ebing ou para Tanzi e Riva, por exemplo. Ulteriormente examinaremos este assumpto. Notemos, porém, desde já que J. Séglas combateu vivamente, em nome da observação clinica, a etiologia de Magnan, referindo casos de Delirio Chronico em doentes portadores de estygmas physicos da degenerescencia; que Legrain, discipulo de Magnan, admitte a possibilidade da evolução caracteristica do delirio chronico nos degenerados hereditarios; que Respaut, outro discipulo de Magnan, descreve um caso de delirio chronico n'um epileptico impulsivo; que Dericq considera aptos a realisarem o delirio chronico os proprios fracos de espirito (degenerados inferiores, na technologia da escóla de Sant'Anna); emfim, que Marandon de Montyel, acceitando a doutrina de Magnan emquanto á evolução do Delirio Chronico, se afasta resolutamente do mestre emquanto á etiologia, affirmando que grande numero de delirantes chronicos se fazem notar desde a infancia ou desde a juventude por anomalias de caracter, que Magnan reputa indicios seguros da degenerescencia e que não desdizem da pesada herança que muitas vezes incide sobre estes doentes.

Por nossa parte, cremos dever apontar um caso clinico de observação pessoal que póde juntar-se aos de Séglas.

Trata-se de um antigo empregado commercial, celibatario, tendo actualmente 45 annos de idade, e a quem já em outra publicação nos referimos. O periodo de incubação delirante, a que accidentalmeme assistimos, mercê das relações que então mantinhamos com um irmão, remonta a 1878; no anno immediato o delirio de perseguições achava-se installado, fazendo-se acompanhar de allucinações auditivas e provocando da parte do doente reacções violentas: chamavam-lhe, na rua e nos cafés, pederasta, onanista, devasso, ao que elle respondia aggredindo os suppostos insultadores. Refugiando-se successivamente em casas de amigos, em pequenos hoteis e em hospitaes particulares, o doente veiu, por fim, a dar entrada no manicomio do Conde de Ferreira, em abril de 1883, apresentando então, de mistura com o delirio de perseguições, idéas ambiciosas que apenas exhibia em cartas e só um anno depois começou a exteriorisar oralmente: tinha descoberto um novo systema do mundo, pretendia reformar toda a sciencia astronomica e todo o systema social; as perseguições soffridas e a sequestração, o mais infame de todos os crimes até hoje praticados, vinham-lhe do Papa, que assim defendia os dogmas christãos, e do Rei, que defendia a ordem social existente. Lentamente, as idéas ambiciosas foram dominando o delirio de perseguições, que hoje se alimenta exclusivamente no prolongamento da sequestração; livre, este doente seria o typo perfeito do megalomano.

Eis aqui um caso a que nada parece faltar do que Magnan exige para o diagnostico do Delirio Chronico: iniciada aos 30 annos n'um individuo apparentemente são, que era um bom guarda-livros, que sustentava a mãe, que mantinha regulares relações sociaes, que se governava financeiramente bem, a psychose atravessou, na successão assignalada por Magnan, os periodos de incubação, de perseguições e de megalomania, sem a presença episodica de idéas hypocondriacas, eroticas ou outras que podessem fazer pensar n'um delirio polymorpho. Pois bem; este doente é um degenerado incontestavel, ainda para os que acceitam a mais estreita noção da degenerescencia. A hereditariedade é n'elle convergente e das mais pesadas: o pae, prematuramente morto, foi um louco moral; a mãe, de uma fealdade pathologica, morreu em estado de demencia senil aos 70 annos; um tio materno é disforme; um outro tio materno, mal dotado de sentimentos de probidade, passa por ter feito uma fallencia fraudulenta; um irmão, prematuramente morto de tuberculose, foi um louco moral, dipsomano, bulimico e de uma vaidade exaggerada; emfim, uma irmã, louca moral e impulsiva, prostituiu-se. Na historia pregressa do nosso doente figura uma febre typhoide grave na puberdade. Apparentemente ponderado, elle foi sempre, no dizer dos seus intimos, de uma susceptibilidade excessiva, de um grande orgulho; entregava-se a leituras para que não tinha preparação e evitava o commercio das mulheres. Como estygmas physicos, apresenta o nosso doente hypospadias e uma notavel asymetria facial.

Este caso, que em nossa propria experiencia é o mais nitido, senão é mesmo o unico de um delirio paranoico offerecendo a evolução precisa e irrevogavel da entidade de Magnan, longe de confirmar as idéas d'este psychiatra em materia de pathogenia, infirma-as eloquentemente.

Encaremos agora a duração e prognose comparadas do Delirio Chronico e dos delirios polymorphos.

Como foi dito, na doutrina de Magnan a demencia faz parte do Delirio Chronico a titulo de phase terminal da sua evolução; é dizer que a psychose se installa definitivamente e o seu prognostico é sempre infausto. Ao contrario, os delirios polymorphos teriam por habituaes sahidas a cura e, menos vezes, a demencia precoce, seriam de uma duração limitada e comportariam, portanto, um prognostico discretamente benigno. Será isto absolutamente exacto? Responde negativamente a clinica. De facto, se muitas vezes se obtem a cura dos delirios multiformes e se, algumas outras, uma demencia vem precocemente fechar a sua evolução, não é menos verdade que ha, ao lado dos que assim terminam, um formidavel numero de casos de uma duração perpetua, tendendo, se tendem, para a demencia tão lentamente como o Delirio Chronico. Os proprios discipulos de Magnan o reconhecem; e Legrain não hesita em descrever delirios polymorphos ou degenerativos de marcha essencialmente chronica. É, de resto, o que a experiencia nos ensina: ou se fixem n'um pequeno numero de idéas ou percorram toda a gamma dos conceitos morbidos, ha degenerados que deliram perpetuamente. Como distinguil-os prognosticamente dos delirantes chronicos? O invariavel e tranquillisador ça guérira de Magnan e dos seus discipulos em face dos delirios d'emblèe, reserva-nos por vezes decepções crueis; muitos casos conheço, por minha parte, em que ça n'a jámais guéri. De resto, as pretendidas curas dos delirios systematisados não são, as mais das vezes, senão apparentes, quer porque o doente esconde as suas concepções para obter a liberdade, o que não é excessivamente raro nos manicomios, quer porque, desapparecendo realmente as idéas morbidas, subsiste a disposição a creal-as de novo, isto é, subsiste a mentalidade paranoica—a verdadeira doença, no fundo.

Que Magnan tenha podido descriminar nos delirios systematisados evoluções diversas e justificativas de sub-grupos clinicos do que em França se chama a Loucura Parcial e na Allemanha a Verrücktheit, é perfeitamente incontestavel; que elle tenha proseguido com rara sagacidade analytica estudos anteriores sobre a successão dos delirios n'um mesmo alienado, é tambem indiscutivel; mas que o Delirio Chronico, tal como nos ultimos annos o descreve, seja uma especie morbida e um grupo nosologico bastantemente differenciado—pela evolução, pela pathogenia e pelo prognostico—dos delirios systematicos dos degenerados, eis o que não póde acceitar-se.

Fechariamos aqui a nossa analyse da pretendida psychose de Magnan, se não crêssemos dever insistir n'um ponto, só ao de leve tocado na parte historica d'esta monographia: que anteriormente á concepção actual do Delirio Chronico existiu no espirito de Magnan uma outra, a exposta por Gérente, mais conforme com a realidade clinica e mais proxima da Verrücktheit de Krafft-Ebing.

É certo que, quando na Sociedade Medico-Psychologica Séglas punha em evidencia as contradições entre as duas doutrinas, citando trabalhos dos discipulos de Magnan, este se defendeu declinando a responsabilidade de taes trabalhos e cathegoricamente affirmando que aos respectivos auctores concedera sempre a mais inteira independencia. Ora, sem de modo algum pretendermos que o medico de Sant'Anna imponha os proprios pontos de vista aos seus discipulos, é licito acreditar que estes os acceitam e propagam nos seus escriptos. Não é só Gérente que n'uma these de 1883, escripta no serviço da admissão e feita de casos clinicos ahi colhidos, expõe, sob a designação de Delirio Chronico, uma doutrina que em pontos capitaes se oppõe á que Magnan apresentou em 1887 á Sociedade Medico-Psychologica e reeditou em 1893 no seu livro de Lições Clinicas. N'um trabalho publicado em 1884, Boucher procede como Gérente, chamando aos delirantes chronicos predispostos mal equilibrados, declarando que toda a etiologia do Delirio Chronico reside na hereditariedade, e constatando n'um caso de Delirio Chronico, diagnosticado pelo proprio mestre, anomalias de caracter degenerativo na evolução da infancia; e, n'um artigo publicado já em 1889, o meu collega Magalhães Lemos, que aliás viveu perto de dois annos na intimidade scientifica de Magnan, descreve como exemplar clinico frustre de Delirio Chronico um caso que se iniciou por idéas ambiciosas de colorido erotico. E nenhum dos escriptores que acabamos de citar se declara em opposição com o mestre, antes crê cada um interpretal-o; nem descobrindo signaes de degenerescencia nos portadores do Delirio Chronico, nem achando possivel a inversão evolutiva das phases habituaes d'esta psychose, pensa qualquer d'elles afastar-se da mais pura orthodoxia d'escóla. Tendo seguido o ensino de Sant'Anna e conhecendo as idéas de Magnan, Bajenoff escrevia tambem em 1885 que o Delirio Chronico é o equivalente da Verrücktheit e da Paranoia.

A inevitavel conclusão a tirar d'estes factos é que realmente no espirito de Magnan o conceito de Delirio Chronico se modificou a ponto de apparecer-nos duplo á distancia de alguns annos. Infelizmente, o actual não vale o antigo.

Mas, porque passou Magnan da larga concepção de 1883 para a de hoje, tão estreita, tão geometrica e tão rígida que os factos se lhe não acommodam? Tornando a degenerescencia como synonimo de desequilibrio, o medico de Sant'Anna estabeleceu como dogma fundamental que o degenerado só póde delirar de um modo conforme a esse desequilibrio: o seu delirio tem de ser, quanto á génese, improvisado; quanto á marcha, irregular e descontinuo, ora remittente, ora intermittente; quanto ao contheudo, caleidoscopico e multiforme; quanto á duração, ephemero ou pelo menos curto, porque a mesma persistencia seria um equilibrio; emfim, quanto á associação das idéas, de uma frouxa systematisação, porque esta, quando completa, representa uma demorada concentração d'espirito, incompativel com a ideação salturaria do degenerado. Pertencem, pois, á degenerescencia os delirios d'emblèe, os polymorphos, os agudos e sub-agudos e, por fim, os que não revellam senão uma fraca tendencia á systematisação. Os não-degenerados só podem delirar de um modo diametralmente opposto: o seu delirio tem de ser preparado, incubado; de marchar por étapes de irrevogavel successão; de durar a vida do doente; de circumscrever-se a um numero limitado de idéas; de ser, emfim, contínuo e francamente systematisado. O Delirio Chronico é a antithese completa e integral do delirio dos degenerados e só n'estas condições póde subsistir em face da doutrina; o conceito de 1883 dissociou-se, pois, não em vista dos factos, mas da theoria, passando o que n'elle havia de eschematico a beneficio do Delirio Chronico actual, e os casos frustres,—a grande, a formidavel massa dos casos clinicos, ao lote dos delirios dos degenerados.

Mas, por outro lado, não sendo o desequilibrio mental senão a consequencia de uma grave tara ancestral ou, como diz Magnan, de uma impregnação hereditaria, o Delirio Chronico só deve realisar-se em individuos normaes e válidos para que, ainda no ponto de vista da etiologia, elle realise o typo contrario ao dos delirios degenerativos. «Delirio chronico e degenerescencia, diz Magnan, oppõem-se totalmente».

Tal é, a meu vêr, a génese da actual noção de Delirio Chronico. Tentando impôr-se em nome dos factos, como inducção clinica, ella procede realmente, por via deductiva, de uma doutrina presupposta da degenerescencia, que está longe, como adiante veremos, de poder acceitar-se sem restricções.

II—A VERRÜCKTHEIT AGUDA

Dois grupos de psychoses sob a mesma designação: a confusão mental e os delirios polymorphos—A Verrücktheit e os delirios incoherentes; critica das opiniões de Schüle—A Verrücktheit e os delirios systematisados de marcha aguda; critica das opiniões de Krafft-Ebing—Observação pessoal—Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.

Duas ordens de factos, a meu vêr inteiramente distinctos, se encontram englobados na Verrücktheit aguda: de um lado, delirios systematisados que sómente pela rapidez da sua marcha, pela curabilidade e, ás vezes, pelo excessivo predominio de allucinações differem da Verrücktheit chronica; do outro, delirios incoordenados, asystematicos e eminentemente sensoriaes que, no dizer mesmo de Mendel, de Schüle e de Cramer, não se descriminam bem, quer da mania, quer da melancolia estuporosa. É isto o que resulta da leitura attenta dos auctores que defendem a Verrücktheit aguda.

Os primeiros d'estes delirios, não implicando nem uma obnubilação da consciencia, nem permanentes estados emocionaes de expansão ou depressão, separam-se nitidamente das psychonevroses; e, se bem que o predominio do elemento sensorial lhes imprime um caracter caleidoscopico e uma evolução irregular, é certo que elles manteem sempre aquella activa coordenação logica das idéas que constitue o systema delirante. Os segundos, pelo contrario, implicando a perda de lucidez e acompanhando-se de alterações affectivas, impõem-se pela anormal associação das idéas, que ora se precipitam e dissociam, como na mania, ora convergem na determinação de estados catatonicos, segundo a imprevista direcção das allucinações, sempre renovadas.

Confundir estas duas cathegorias de delirios, sob pretexto de que é identico o seu contheudo e de que em ambas se realisa uma intervenção preponderante do elemento allucinatorio, é, ao que penso, cahir n'um erro grosseiro, porque os invocados elementos de analogia são infinitamente menos valiosos que os caracteres differenciaes. A identidade das idéas morbidas não é razão para que confundamos, por exemplo, os delirios de perseguição da melancolia e da Paranoia ou os delirios ambiciosos da paralysia geral e da mania; tambem o predominio de allucinações, ainda quando identicas, como as zoopsicas, não é razão para que não distingamos, por exemplo, os delirios alcoolico e hysterico. As idéas delirantes e as allucinações da Verrücktheit são as de todas as psychoses; fazer, pois, d'esses elementos um criterio diagnostico e nosographico seria regressar ao cahos de que a pathologia mental só conseguiu sahir por successivos esforços de analyse. Não são os symptomas, mas as suas origens pathogenicas, a sua coordenação e a sua marcha que no actual momento orientam a diagnose psychiatrica.

Assim, o rigor scientifico exige que estudemos em separado os dois grupos de delirios, que alguns auctores allemães reunem sob a designação de Verrücktheit aguda.

Comecemos pelos delirios systematicos.

A psychiatria allemã, creando os termos de Verrücktheit e Wahnsinn para designar os delirios, teve sempre em vista accentuar differenças entre os que se impõem pela coordenação dos conceitos morbidos e os que se denunciam por um grau maior ou menor de incoherencia. Decerto, mudou cem vezes o valor d'estes termos, que teem uma historia tão complicada e tão longa como a da propria sciencia mental; decerto, a Verrücktheit d'hoje não é o delirio estereotypado dos cerebros enfraquecidos, descripto por Griesinger, como o Wahnsinn não é o delirio exaltado e optimista de que o mesmo auctor traçou um quadro clinico inteiramente analogo ao da monomania intellectual de Esquirol;—mas sempre, desde Griesinger até Westphal, os dois termos conservaram, através de todas as vicissitudes, um vestigio inapagavel dos primitivos significados. A confusão principiou sómente quando o professor de Vienna, creando a variedade aguda da Verrücktheit, integrou no quadro d'esta psychose delirios systematicos e até dissociados em que as allucinações desempenham um papel dominante. Será licito manter uma tal confusão?

Já na parte historica d'este Ensaio expozemos em detalhe não só os argumentos com que os adversarios de Westphal rejeitam da Verrücktheit o hallucinatorischer Wahnsinn, mas os motivos por que fazem d'este um grupo das psychonevroses. Não reeditaremos essa vigorosa critica; examinaremos, porém, os argumentos com que Schüle pretende justificar a opinião contraria.

Não contesta este eminente psychiatra que entre os casos typicos ou, para me servir da sua propria linguagem, entre os casos extremos da Verrücktheit e do Wahnsinn existam realmente as profundas notas differenciaes apontadas por Fritsch e Krafft-Ebing, entre outros; sustenta, porém, que ha casos de transição em que ellas se esbatem, ficando então a descoberto a fundamental identidade dos dois processos.

A confissão, por parte de Schüle, de que são justas as differenciações notadas pelos adversarios da escóla de Vienna entre a Verrücktheit e o Wahnsinn que n'ella se pretende incorporar a titulo de variedade aguda, é um facto importante e que deve registar-se, porque essas differenciações referem-se, como vimos, à coordenação dos symptomas, à etiologia, à marcha, à pathogenia, n'uma palavra, a quanto serve para definir uma entidade nosologica. A coordenação symptomatica, porque, enquanto na Verrücktheit as idéas delirantes formam systema e as allucinações occupam um logar secundario ou até nullo, no Wahnsinn o delirio é incoherente e os erros sensoriaes teem o primeiro plano; á etiologia, porque, emquanto a Verrücktheit se installa sem causa exterior apparente, o Wahnsinn reconhece como determinantes todas as causas capazes de provocarem uma asthenia profunda dos centros nervosos; á marcha, porque, tendo a Verrücktheit uma evolução essencialmente chronica, o Wahnsinn termina agudamente pela cura, pela demencia ou pela morte; á pathogenia, porque, emquanto a Verrücktheit se interpreta como um processo constitucional ou degenerativo, o Wahnsinn é uma doença accidental ou psychonevrotica. A estes multiplos elementos differenciaes outros se juntam ainda: ao passo que na Verrücktheit as allucinações, predominantemente auditivas, são determinadas pelo curso do delirio, dependendo o erethismo sensorial da absorvente fixidez das idéas, que provocam a apparição das imagens, no Wahnsinn succede que é o automatismo dos centros sensoriaes que determina as idéas delirantes, por esse facto variaveis, movediças, dissociadas; tambem, ao passo que na Verrücktheit o elemento affectivo não só é secundario, mas tende a apagar-se com os progressos mesmos da doença, no Wahnsinn, embora igualmente secundario pela génese, pois é determinado pelo contheudo das idéas, esse elemento representa um papel importante, mercê das vivas allucinações emergentes de todos os sentidos.

Para diminuir o valor d'este quadro de differenciações nosologicas, ao mesmo tempo numerosas e profundas, argumenta o medico de Bade affirmando não só que na chronica evolução da Verrücktheit se observam phases agudas de Wahnsinn, mas que d'este se póde passar áquella, o que, a seu vêr, demonstra a identidade nosologica dos dois processos morbidos.

Examinemos o valor d'estes argumentos.

Quanto ao primeiro, sem de modo algum contestarmos a realidade clinica dos factos invocados por Schüle, pois mais de uma vez temos observado episodicos delirios asystematicos no curso da Paranoia, seja-nos permittido notar, na excellente companhia de Krafft-Ebing, de Fritsch, de Kraepelin e de Meynert, que esses factos comportam uma interpretação muito diversa da que lhes dá o celebre medico de Bade.

Qualquer que seja a physionomia que apresentem, depressiva, expansiva ou mixta, esses delirios asystematicos podem conceber-se como não fazendo parte integrante da evolução da Verrücktheit, mas coexistindo com ella a titulo de complicações ou de intercorrencias psychonevroticas, tendo uma etiologia e uma marcha autonomas. Porque não? «Nenhuma razão há, dizem Tanzi e Riva, para crêr que o cerebro de um paranoico possa oppôr ás causas das doenças intercorrentes uma immunidade de que muitas vezes o individuo normal é incapaz, antes tudo conspira para nos fazer admittir que elle apresenta a essas causas uma resistencia menor»[1]. Assim pensamos tambem, recordando os casos de observação pessoal.

[1] Tanzi e Riva, Loc. cit., vol. XII, pag. 417.

Um d'estes, notavel entre todos, é o de um paranoico-originario, que já aos 17 annos se cria victima de tentativas de envenenamento e em quem sempre uma exaggerada autophilia se notou. Mas, nem as idéas de perseguição, nem a hyperbolica opinião dos seus meritos lhe embargaram o passo no curso de direito, que concluiu. Ridiculo e profundamente desequilibrado, de grande memoria e de pequena reflexão, desconfiado, phantasista e discursador, foi fazendo o seu caminho até delegado de procurador regio na India Portuguesa. Ahi, excessos de toda a ordem, juntos a uma febre biliosa, aggravaram-lhe o mal; regressando, muito fraco, á metropole, systematisava o seu delirio até ao ponto de viver só e de passar habitualmente a ovos e a agua, que elle proprio ia colher de noite ás fontes. Um dia, tendo chamado a casa um operario para lhe encadernar uns livros, foi por este traiçoeiramente aggredido, recebendo na cabeça um extenso e profundo traumatismo. A partir d'esse dia, allucinações auditivas, que até então parecia não terem existido, irromperam com extranha violencia; ao mesmo tempo apossou-se do doente um sentimento intenso de terror e de anciedade que o levou, poucos dias depois do traumatismo, a projectar-se de uma janella abaixo, fazendo uma luxação. Simultaneamente, illusões visuaes, confusão constante de pessoas, rejeição de alimentos e absoluta insomnia. Trazido ao hospital, persistiu algum tempo n'esta situação; rapidamente, porém, idéas de grandeza, se juntaram. O encadernador, tentando matal-o, foi apenas um instrumento de quem, por inveja do seu alto genio incomparavel, buscava desfazer-se d'elle. Tornou-se aggressivo então, fabricando uma nova religião, crendo-se superior a Christo, e começou a manifestar idéas eroticas e allucunações visuaes: masturbava-se, dizia obscenidades, proclamava as excellencias da pederastia, dos amores lesbicos, e via mulheres núas em attitudes lascivas. Mas, subitamente, derivou a idéas hypocondriacas e d'estas a um delirio de humildade, rojando-se no chão, beijando os pés dos companheiros, chorando, pedindo perdão a todos, rejeitando os alimentos n'um intuito de penitencia. Pouco a pouco resvallou no mutismo, a physionomia tornou-se-lhe parada, inexpressiva, contrahiu habitos immundos, apresentou, n'uma palavra, o quadro da demencia com accentuada desnutrição. Por mezes persistiu n'este estado, indifferente a sollicitações naturaes, deitado sobre bancos ou no chão da enfermaria, movendo-se como um automato, não respondendo a ninguem. Julguei-o então perdido e cheguei a consignar com segurança esta impressão clinica. Mas um dia, abruptamente, o doente dirige-se a mim, cumprimenta-me polidamente e diz-me que se sente, emfim, restabelecido, que deseja sahir, que quer escrever uma carta a um irmão para que venha buscado. Do pseudo-demente nada restava; a datar d'esse dia ficou o primitivo delirante, o perseguido-ambicioso quasi sem allucinações, que podia viver fóra do hospital e que eu, com effeito, deixei sahir algum tempo depois. Isto passou-se em 1884; de então até hoje fez o doente duas novas entradas no hospital, reproduzindo quasi sem variantes o quadro que vimos de esboçar. Conta-me um irmão que o aggravamento da doença se manifesta sempre por uma subita explosão de allucinações, succedendo a excessos venereos e alcoolicos.

Como interpretar este caso? É evidente que os defensores da Verrücktheit aguda veriam n'elle um excellente exemplar d'esta fórma clinica; os que a combatem, porém, pensariam no hallucinatorischer Wahnsinn de Krafft-Ebing, na Amencia de Meynert, na Verwirrtheit de Fritsch, no Asteniche Delirium de Mayser, na confusão mental, emfim.

Os primeiros invocariam, com Werner, o caracter egocentrico das concepções delirantes do nosso paranoico; os segundos poriam em evidencia o contraste entre um delirio de humildade e os delirios de perseguições e de grandezas, notariam a phase de estupidez ou demencia aguda que não pertence ao quadro da Verrücktheit, fariam valer o estado de anciedade, salientariam o phenomeno somatico da desnutrição, appellariam, emfim, para a etiologia asthenica do caso.

Ora, emquanto no quadro clinico descripto tudo se reduz a uma acuidade maior dos delirios persecutorio e ambicioso, que a insistencia das allucinações explica de sobra, não seria difficil acceitar o diagnostico de Verrücktheit, pois que nem a systematisação dos conceitos se perdeu, nem o seu caracter egocentrico e autophilico deixou de fazer-se notar; e a mesma anciedade poderia acceitar-se como secundario symptoma de reacção em face dos erros sensoriaes.

Mas é já muito difficil explicar n'esta ordem de idéas a phase de espirito que conduz o nosso doente a rojar-se no chão, a abater-se diante dos companheiros, a recusar os alimentos para se penitenciar e a pedir perdão de imaginarias culpas. Por outro lado, pensando na etiologia d'este caso, em que concorrem formidaveis elementos de esgotamento e de asthenia, é mais facil explicar por ella do que pela acuidade do delirio a demencia funccional que por mezes observei. Segundo a minha pratica pessoal, o onanismo abusivo seria frequentemente o responsavel de subitas invasões allucinatorias, acompanhadas de reacções emotivas de uma viva feição depressiva e anciosa em paranoicos averiguados. Assim, na interpretação do caso que citei, como de todos os de igual physionomia, julgo mais consentaneo com os dados da sciencia invocar uma complicação psychonevrotica (seja qual fôr o nome preferido para exprimil-a) do que alargar o quadro da Verrücktheit pela creação de uma obscura variedade aguda.

Entretanto, comprehende-se que esta questão seja de certo modo secundaria para nós que, como Tanzi e Riva, dissociamos os conceitos de Paranoia e de Verrücktheit, vendo n'esta apenas uma habitual, mas não necessaria expressão symptomatica d'aquella.

Que os delirios do paranoico sejam agudos ou chronicos; que se acompanhem ou não de allucinações; que conservem sempre ou percam por algum tempo a sua costumada systematisação—eis o que nos não preoccupa excessivamente, por isso que concebemos a Paranoia como uma constituição mental anterior a todos os delirios, sobrevivendo-lhes e podendo até existir independente d'elles.

É tempo, porém, de examinarmos o segundo dos argumentos de Schüle em defeza da Verrücktheit aguda.

Notando, como Westphal, que ha casos em que de um hallucinatorischer Wahnsinn se passa immediatamente e sem descontinuidade a um delirio systematisado, conclue o insigne psychiatra que a Verrücktheit offerece algumas vezes uma phase inicial aguda.

Contesta Krafft-Ebing, como vimos em outro logar, os casos invocados por Schüle, proclamando que a transição do hallucinatorischer Wahnsinn á verdadeira Verrücktheit jámais se realisa. Por nossa parte nunca a observamos tambem; mas de modo nenhum nos sentimos dispostos, por isso só, a contestal-a. Em materia de facto, póde uma unica observação positiva ter mais alta significação que toda uma longa experiencia negativa; e é certo que não só muitos dos modernos alienistas affirmam ter observado casos analogos aos de Schüle, mas já em Delasiauve encontramos a affirmação clara de que a confusão mental offerece na sua symptomatologia idéas morbidas que podem tornar-se o nucleo de um verdadeiro delirio parcial.

Mas se nos não repugna acceitar a realidade dos casos em que Schüle baseia o controvertido thema da Verrücktheit aguda, cremos que elles podem interpretar-se de um outro modo. Porque não admittir, por exemplo, na comprehensão d'esses casos que os delirios asystematico sensorial e systematisado se succedem como factos morbidos distinctos, tendo cada qual uma etiologia privativa e uma evolução especial—nascendo o primeiro de causas asthenisantes e o segundo da maturidade degenerativa, marchando o primeiro para a extincção, e o segundo para a chronicidade? No cerebro eminentemente vulneravel do paranoico as causas depressivas e esgotantes provocariam a apparição de um confuso delirio sensorial, como outras determinariam a mania ou a melancolia; sómente, a psychonevrose, abalando esse cerebro maximamente predisposto, em vez de liquidar pela cura, apressaria a maturidade paranoica, isto é, o momento psychologico da eclosão de um delirio systematisado.

Mas, ainda uma vez: desde que Paranoia e Verrücktheit não são conceitos equivalentes, a admissão de uma variedade aguda da segunda de modo nenhum infirma a manifesta chronicidade da primeira.

Posto isto, consideremos o grupo dos delirios que, embora tendo uma evolução por vezes muito rapida, apparecendo sem preparação, acompanhando-se de multiplas allucinações e terminando pela cura, manteem constantemente um apreciavel grau de activa systematisação.

Pertencem estes delirios ao quadro da Verrücktheit? Parece-nos que a resposta affirmativa se impõe. Com effeito, se a sua marcha contrasta frisantemente com a dos casos em que as concepções morbidas se perpetuam, cobrindo dezenas de annos, é certo que lhes não falta um unico dos caracteres essenciaes da Verrücktheit: nem a egocentricidade das idéas delirantes, hypocondriacas, eroticas, persecutorias ou ambiciosas, nem a coordenação d'ellas em systema, nem o predominio das allucinações auditivas, nem a origem essencialmente hereditaria. É, pois, a estes delirios, conhecidos em França pelos nomes de polymorphos ou d'emblèe que exclusivamente conviria, a meu vêr, a designação de Verrücktheit aguda.

Os que, como Krafft-Ebing, não admittem esta fórma, são constrangidos, todavia, a fallar na rara curabilidade da Verrücktheit e na sua marcha por vezes subaguda, o que, no fundo, é conceder aquillo que ostensivamente se nega. Reconhecer a legitimidade clinica da Verrücktheit aguda, no sentido em que acabamos de a definir, parece-nos, portanto, inevitavel.

Por nossa parte hesitamos tanto menos em fazel-o quanto é certo que na
Verrücktheit vemos apenas uma possivel manifestação da Paranoia.

Quando entre os delirios systematisados (Verrücktheit) e a constituição mental (Paranoia), que elles revellam nos dominios intellectuaes, se estabelece uma perfeita equivalencia, o reconhecimento de uma variedade aguda e curavel dos primeiros implica uma perigosa negação da doutrina que faz da segunda uma doença de evolução essencialmente chronica e incuravel, uma degenerescencia, em summa. Mas, precisamente se encarregam os factos de pôr em relevo o lado fraco d'esta doutrina e a exactidão da que sustentamos com Tanzi e Riva. Os delirios systematisados podem revestir a fórma aguda e curar; o que é chronico, porém, e não cura jámais é a anomala organisação psychica de que elles não fazem senão traduzir a maxima intensidade ideativa. Póde ser aguda e curar a Verrücktheit; o que é chronico e não cura é a Paranoia.

III—A VERRÜCKTHEIT SECUNDARIA

Os delirios systematisados que succedem ás psychonevroses; sua interpretação pathogenica—A opinião de Tonnini; modificação introduzida—Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.

A extensão com que na parte historica d'este Ensaio tratamos o velho thema da Verrücktheit secundaria, tão caro aos allemães, permitte-nos agora limitar muito as considerações de ordem critica a fazer sobre elle.

Disse alguem que, a partir dos trabalhos de Sander e Snell, a pergunta: Existirá uma Verrücktheit primaria? começou a ser substituida por esta outra: Existirá uma Verrücktheit secundaria? E nós vimos, com effeito, que a extensão d'esta diminuiu sempre na medida em que augmentava a d'aquella. Entendamo-nos, porém: se os delirios systematisados que succedem á mania e á melancolia de longa duração, não merecem realmente um logar no quadro clinico da Verrücktheit, que é uma doença constitucional, mas no grupo das psychonevroses, de que são apenas estados terminaes prefaciando a loucura e revellando já, pela sua mesma inactiva e apagada coordenação, um enfraquecimento cerebral, é indiscutivel que a observação clinica nos permitte uma ou outra vez surprehender delirios persecutorios e ambiciosos vivamente systematisados, activos e tenazes, succedendo, todavia, a psychoses de manifestações maniacas, melancolicas e até mesmo apparentemente demenciaes. Raros, estes ultimos delirios systematisados não o são tanto, comtudo, que os não tenham observado psychiatras de todos os paizes. Como interpretal-os? Onde achar-lhes logar dentro das modernas classificações?

A resposta parece-nos poder derivar-se da doutrina formulada por Tonnini: Estes delirios são paranoicos; e a psychonevrose que os precedeu, impotente em si mesma para os crear, provocou-os todavia, estimulando a peculiar actividade ideativa de um cerebro degenerescente. É possivel que, a não se realisar a incidencia perturbadora do elemento emocional implicado na psychonevrose, esse cerebro tivesse feito a sua evolução sem manifestações delirantes, comquanto houvessem de caracterisal-o sempre um exaggerado subjectivismo e uma apreciavel egocentricidade. Vulneravel, porém, elle não póde resistir ás causas que nos espiritos sãos determinam as psychoses; uma d'estas installou-se, portanto. O que deverá succeder a partir d'esse momento? Naturalmente, alguma coisa diversa do que costuma passar-se nos cerebros normaes: em vez de marchar para a cura ou para a demencia franca, a psychonevrose apressará aquella maturidade degenerativa de que fallam Tanzi e Riva e que tem por expressão intellectual um delirio systematisado. Já em manifesto desequilibrio e já cançado pela passagem tormentosa da psychonevrose, o cerebro não poderá dar a este delirio secundario a forte seiva de que se alimentam os primitivos; entretanto, dar-lhe-ha ainda a força psychica precisa a uma evolução que póde ser longa e de certo modo movimentada. É n'este especial sentido que, a meu vêr, a Verrücktheit secundaria deve ser admittida.

Note-se, porém, que dizemos Verrücktheit e não Paranoia, no que divergimos de Tonnini. E esta divergencia não é só de fórma, mas de fundo, não apenas de nomenclatura, mas até certo ponto de interpretação. Com effeito, se bem comprehendemos todo o pensamento do escriptor italiano, a psychonevrose sommar-se-hia com uma simples predisposição vesanica para determinar a Paranoia, que os delirios systematisados secundarios symptomatisam; ao contrario, eu penso que a Paranoia preexiste á psychonevrose, embora tendo uma fórma mitigada e revestindo até ao advento d'esta uma feição mal definida, um verdadeiro typo indifferente. A psychonevrose que, na interpretação de Tonnini, contribuiria essencialmente para a constituição da Paranoia, não faz, a meu vêr, mais do que accentual-a, provocando a Verrücktheit, isto é, imprimindo-lhe um definido typo delirante. Todas as degenerescencias teem graus intensivos ou de gravidade: na ordem das paranoicas a mais grave seria a que mais rapidamente chega á maturidade, a mais precoce, a que desde a puberdade se revella por delirios systematisados, isto é, pela Verrücktheit originaria; a menos grave seria a que só attinge a maturidade por virtude de um abalo emocional, a mais tardia, a que se manifesta pela Verrücktheit secundaria. Mas em qualquer dos dois casos, como cm todos, a anomala constituição cerebral que na essencia caracterisa a Paranoia, é congenita. E eis porque eu não hesito em acceitar uma Verrücktheit secundaria, como não hesitei em admittir uma Verrücktheit aguda, comquanto sustente a primitividade e a chronicidade essenciaes da Paranoia.

IV—O RACIOCINIO E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erros doutrinarios de Lasègue e Foville sobre a interpretação pathogenica dos delirios systematisados; como se perpetuaram na psychiatria franceza—A autoobservação e o raciocinio não representam um papel na génese dos delirios paranoicos—Depoimento dos factos—A primitividade dos delirios paranoicos, sua origem ideativa.

Entre os erros concebidos a proposito da origem, sempre anciosamente procurada, dos delirios de perseguições e de grandezas, um ha que, embora contradictado pela experiencia, se divulgou, sobretudo em França, com manifesto prejuizo de uma sã pathogenia: refiro-me ao que faz intervir na génese d'estes delirios a autoobservação e o raciocinio do doente. Lasègue, affirmando que o perseguido, normal até ao momento da invasão da doença, annunciada por um vago, mas profundo mal-estar, se perscruta, se dobra sobre si mesmo, e acaba, não sem hesitações, por encontrar na hostilidade dos homens a interpretação dos seus soffrimentos, foi o creador d'esse erro funesto, que Foville generalisou mais tarde, fazendo proceder a megalomania da necessidade que o perseguido sente de explicar-se os motivos das acintosas miserias soffridas.

Repetida como uma sorte de cliché por successivas gerações de alienistas franceses, esta gratuita vista do espirito, que só Morel repudiou, insinua-se ainda nos livros contemporaneos; e assim é que, embora sem um só caso em apoio, Magnan, á maneira de Foville, enumera o raciocinio entre os fundamentos possiveis da transição, no Delirio Chronico, da phase persecutoria á phase ambiciosa.

Comecemos por examinar esta singular pathogenia em relação ao delirio de perseguições a que primeiro se applicou.

Segundo ella, o perseguido, como um homem são, abruptamente assediado de obscuras emoções dolorosas, buscaria comprehendel-as, determinar-lhes as causas, fazendo conjecturas e construindo hypotheses, entre as quaes está a que, por successivas e mais ou menos demoradas exclusões, elle acceita como a melhor e mais explicativa: a de uma perseguição.

A apparente nitidez d'esta pathogenia seduziu os espiritos; e, comtudo, ella é radicalmente falsa.

Em primeiro logar, a observação clinica protesta contra, a normalidade do perseguido anteriormente á invasão do delirio, proclamando-o não só um predisposto, as mais das vezes hereditario, mas um verdadeiro candidato á loucura,

Antes de imaginar o seu Delirio Chronico anti-degenerativo, releve-se-me a expressão, Magnan reclamava para os delirantes systematisados uma ancestralidade vesanica de duas gerações, pelo menos; e esta idéa, já antes emittida por Morel, é a que sempre dominou as psychiatrias allemã e italiana, accordes em acceitar como hereditariamente invalido o cerebro paranoico. Por outro lado, jámais se estudou de perto a vida predelirante de um perseguido sem que n'ella se encontrassem seguras manifestações de exaggerado subjectivismo, de autophilia, de egocentricidade, tornando difficil, melindroso e ás vezes chocante o commercio social d'este paranoico. E, como se tudo isto não fosse bastante para condemnar a ingenua supposição da normalidade de um espirito, que ámanhã fabricará, sem causas determinantes, um absurdo e tenacissimo delirio, surge não raro no perseguido a estygmatisação physica da degenerescencia.

Em segundo logar, é absolutamente inexacto que o inicial symptoma da doença seja no perseguido, como a theoria inculca, um phenomeno obscuro de ordem sensivel, uma vaga e confusa emoção de que se encontre excluido, como nos prodromos de outras affecções, um elemento ideativo. A experiencia diz precisamente o contrario.

Quando o perseguido começa, no periodo chamado de incubação do delirio, a isolar-se da familia e dos amigos, a evitar o convivio, a alterar os seus habitos de existencia, a irritar-se, se o censuram ou simplesmente o interrogam, fal-o já por desconfiança do meio, que reputa hostil. É certo que, a titulo de vaga, mas persistente emoção egocentrica, essa desconfiança, mitigada e ainda compativel com a vida social, o caracterisou sempre; agora, porém, ella tornou-se definido sentimento pela clara apparição no espirito de uma idéa de hostilidade e de perigo. A inquirição perscrutadora do doente a tudo quanto o cerca, a procura minuciosa e subtil de provas palpaveis e evidentes da mal-querença dos outros, a eclosão, emfim, das illusões sensoriaes, tudo prova, irrecusavelmente, que a morbida sensibilidade do perseguido se exerce sob o dominio de um pensamento definido, de uma idéa que a orienta, que lhe imprime uma direcção, que a conduz. A illusão auditiva, phenomeno prodromico dos mais precoces e do qual a allucinação ha de surgir, suppõe já um erethismo sensorial a que preside, consciente e nitida, embora ainda susceptivel de ulteriores desdobramentos, a idéa de uma hostilidade exterior. E é mesmo, é justamente porque essa idéa está presente no espirito e se lhe impõe que o perseguido paralogisticamente exhibe, como provas de uma mal-querença, interpretações aggressivas das palavras mais indifferentes, dos sons mais insignificativos, dos gestos e dos successos mais incaracteristicos; cahindo sinceramente n'uma petição de principio, o perseguido prova que no seu cerebro existe uma idéa que o tyrannisa, que o empolga, e que, tornada um centro de associações psychicas, lhe vicia o raciocinio. Que essa idéa, como todas, proceda de preexistentes emoções, eis o que não contestamos, porque tudo na ordem do pensamento directa ou indirectamente reponta do humus da sensibilidade; mas só depois que ella espontaneamente appareceu na consciencia é que o delirio se iniciou. Não é, pois, emotiva, mas ideativa a origem directa e immediata d'este.

O que-se passa na melancolia esclarece, pelo contraste, a situação paranoica. Ali, com effeito, o phenomeno inicial é d'ordem emotiva, pois que se reduz a uma depressão consciente, que estados de cenesthesia morbida provocam: a tonalidade psychica baixa, o doente sente-se diverso do que fóra, a dôr moral invade-o, e é ao fim d'algum tempo d'esta situação anormal que o delirio surge, quer como tentativa de interpretação do novo modo de ser, quer como adequada expressão ideativa de um sentimento geral de impotencia. As idéas de crime, de peccado, de doença incuravel, de miseria, de incapacidade, de possessão, n'uma palavra, todas as idéas que formam o contheudo do delirio melancolico, são ulteriores á depressão dolorosa, que é o facto morbido primitivo. Essas idéas não procedem do inconsciente, não irrompem de obscuras emoções por ignorados e mysteriosos processos, mas succedem a um consciente sentimento de dôr, que tem as suas raizes em phenomenos somaticos apreciaveis. O melancolico sente-se mudado, o que é exacto, e torna-se porisso autoobservador, primeiro, e delirante depois; o perseguido, esse, sente mudado em relação a si o mundo exterior, o que é falso, o que presuppõe uma ideação anormal e, portanto, um começo de delirio, que a observação objectiva apenas ajudará a systematisar. Emquanto o melancolico, abatido e humilhado por um sentimento real de dôr, que é a expressão consciente de perturbações cenesthesicas, se concentra e se interroga, fazendo um delirio secundario, o perseguido, egocentrico e autophilico, partindo de uma idéa chimerica de hostilidade, abre os sentidos e observa o mundo externo, delirando primitivamente.

A autoobservação e o raciocinio na génese do delirio de perseguições não passam de miragens do espirito. No perseguido a attenção é dirigida em sentido objectivo; e o raciocinio, longe de intervir na formação do delirio, é por elle radicalmente falseado sempre que se trata das relações entre o mundo exterior e o Eu. A verdade clinica é, pois, precisamente o contrario do que affirma a doutrina de Lasègue; a verdade é que o delirio surge á sua hora, como o fructo amadurece e o grão germina: espontaneamente, fatalmente.

Vejamos agora o que se dá com o delirio ambicioso que succede ao de perseguições.

Haverá n'este caso, como pretendia Foville e como á saciedade se tem repetido, uma transformação consciente e raciocinada?

O que acabamos de dizer sobre a direcção exclusivamente objectiva da attenção do perseguido, faz desde já suppôr o contrario. A attitude reflexiva, que seria necessaria para indagar as causas de uma hostilidade do meio, não está nos habitos do perseguido; por outro lado ainda, não é de modo nenhum natural que se procurem as origens de um facto acreditado, como os dogmas, com a inabalavel fé, que dispensa interpretações e as rejeita mesmo.

Mas as provas directas da falsidade clinica da doutrina de Foville abundam. Assim, a observação permitte affirmar que não só o perseguido nunca formúla a pergunta: Porque me perseguem? mas que, interrogado n'este sentido, invariavelmente responde: Não sei. O absurdo de uma perseguição sem causas, de uma hostilidade immotivada não choca esta ordem de doentes; e é debalde que se tenta dirigir-lhes a attenção para o exame de um assumpto que parece não os interessar. Absorvidos pelas allucinações ou empenhados em conjurar os effeitos de uma aggressão implacavel, os perseguidos não sentem a necessidade de inquirir as razões d'ella; e todo o insistente convite n'este sentido serve apenas para os impacientar, quando os não leva a entrevêr no solicito observador um cumplice de imaginarios inimigos.

Mas ha mais. Se o delirio ambicioso podesse installar-se a titulo de explicação de precedentes perseguições, nada seria mais facil do que provocal-o: bastaria suggerir ao perseguido os themas habituaes da megalomania, deixando-lhe a escolha. Por outros termos: se o raciocinio bastasse, como candidamente pretendia Foville, a operar a transformação de uma personalidade,—para fazer-se de um perseguido um megalomano seria necessario apenas dizer-lhe precocemente o que, segundo o auctor francez, elle se dirá um dia, isto é, que, não podendo haver perseguições sem causa, o encarniçamento dos seus inimigos deve naturalmente explicar-se quer pela inveja dos altos meritos pessoaes do doente, quer pelo interesse de supprimir um individuo destinado, como elle o é, talvez, a reinar, a dirigir um partido, a instituir uma religião, a reformar uma sociedade, a mudar a face de uma sciencia. Ora, a verdade é que suggestões d'esta ordem não só não abalam os perseguidos que, aliás, se tornarão mais tarde megalomanos, mas determinam n'elles ora uma franca hilaridade, ora indignados protestos. Repeti muitas vezes, no começo da minha carreira, experiencias d'esta natureza, conseguindo apenas provocar dos doentes contestações como estas: que não estão doidos para desconhecerem a sua situação; que não admittem zombarias; que as historias phantasticas são boas para entreter creanças e idiotas; que não é digno escarnecer de quem soffre.

É, pois, radicalmente falso e absolutamente contrario aos dados da observação que o delirio de grandezas appareça como tentativa feita para explicar perseguições soffridas. A idéa ambiciosa, como a de hostilidade, surge no espirito de um modo espontaneo e inconsciente; do delirio de grandezas póde, pois, repetir-se o que foi dito do delirio de perseguições: que elle irrompe á sua hora, como o fructo amadurece e o grão germina.

É só depois de installado por um processo a que são extranhos o raciocinio e a vontade, que o delirio de grandezas servirá para explicar o de perseguições, como este, por sua vez, servira ao doente para interpretar os factos da sua vida anterior. É só a partir do momento em que se crê excepcionalmente grande pelo genio, pelo nascimento ou pela fortuna que o paranoico principia a explicar-se as miserias supportadas.

Note-se, porém, este facto curioso e imprevisto em face da theoria que criticamos: o delirio de grandezas, dando um solido ponto de apoio ás idéas de perseguição, que esclarece e interpreta,—bem longe de as radicar, tornando-as definitivamente preponderantes no espirito do paranoico, tende, pelo contrario, a diminuil-as e a subalternisal-as em proveito proprio.

Tal é o irrecusavel depoimento da clinica, absolutamente incompativel, como se vê, com a theoria que faz dos delirios paranoicos resultados de um esforço da intelligencia para comprehender e interpretar vagos e obscuros estados emotivos. Se essa theoria prevalecesse, a autonomia nosographica do delirio systematisado de perseguições seria inteiramente chimerica; e todo o esforço de Lasègue para o destacar da melancolia delirante resultaria inane, pois que a pathogenia, a despeito de todas as possiveis differenciações symptomaticas, identificaria definitivamente as duas doenças.

Tendo de voltar ainda a este assumpto, procuraremos então interpretar as hesitações dos perseguidos e megalomanos na exhibição dos respectivos delirios.

Por mal comprehendido, esse facto contribuiu não pouco para acreditar a phantastica doutrina da génese consciente e reflexiva dos delirios systematisados. A hesitação, parecendo implicar a duvida, iria bem com a opinião que faz d'esses delirios conjecturas de um Eu que se observa, hypotheses de um espirito que se perscruta, buscando dar-se conta de accidentaes perturbações emotivas.

Veremos opportunamente que a interpretação do facto é muito outra; que essas hesitações não são senão o resultado da lucta que se exerce entre idéas nascidas do inconsciente e o systema de conceitos formados pela educação e até um certo tempo impostos pelo meio social.

De modo analogo explicaremos o facto, erroneamente interpretado pelos psychiatras francezes, da inquietação dos perseguidos no periodo inicial da doença.

V—AS ALLUCINAÇÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erro de Foville sobre as relações dos delirios systematisados com as allucinações; como se perpetuou na psychiatria franceza—Uma antiga idéa de Magnan, exposta por Legrain, sobre este assumpto; falsidade d'essa idéa—Primitividade da concepção sobre a allucinação nos delirios paranoicos—Uma rectificação de Magnan.

Dada a extrema frequencia dos erros sensoriaes, sobretudo das allucinações auditivas, na loucura systematisada, tem-se perguntado se as perturbações da sensibilidade especial precedem as idéas delirantes, servindo-lhes de base e fornecendo-lhes o contheudo, ou se, pelo contrario, apenas lhes succedem como uma sorte de confirmação.

Lasègue, sustentando que as allucinações auditivas, unicas, segundo elle, compativeis com o delirio de perseguições, não são nem o antecedente necessario, nem o consequente inevitavel d'esta vesania, estabeleceu claramente a independencia essencial dos erros conceptuaes e perceptivos na mais commum das fórmas delirantes da Paranoia.

Retomando, porém, annos depois a questão, Foville admittiu para ella duas ordens de soluções, desigualmente frequentes: uma, relativamente rara, em que o delirio é primitivo e as allucinações secundarias; outra, muito commum e, no delirio de perseguições, constante, em que a relação inversa se realisa.

«O delirio, dizia elle, póde ou principiar d'emblèe pelos conceitos ou affectar primeiro as sensações e extender-se depois ás idéas de um modo secundario»[1]. E, analysando cada um d'estes casos, commentava: «N'este ultimo (primitividade das allucinações) as funcções puramente intellectuaes não são, desde o começo, intrinsecamente lesadas, antes continuam a executar-se segundo a logica. Como faz notar Delasiauve, a faculdade syllogistica persiste intacta: emquanto se exerce sobre dados exactos, o producto das suas operações é normal e sensato; quando, pelo contrario, se exerce sobre dados falsos, isto é, sobre sensações imaginarias ou mal interpretadas, sobre allucinações e illusões, o producto encontra-se forçosamente em contradicção com a realidade. O delirio das sensações tem por effeito engendrar o delirio dos conceitos, sem que a intelligencia seja em si mesmo lesada e sem que ella deixe de funccionar sãmente, quando não é induzida em erro. Tal é um dos modos de producção e, não hesitamos em crêl-o, o mais vulgarmente observado da loucura parcial … Mas esta ordem na successão dos phenomenos morbidos, embora a mais frequente, não é constante. Acontece tambem algumas vezes gue a perturbação começa por concepções erroneas, que succedem a uma idéa fixa na ausencia de qualquer allucinação. N'este caso ainda, faz-se ordinariamente uma propagação analoga á que indicamos ha pouco, mas em sentido inverso. Ao fim de certo tempo, as concepções delirantes transformam-se em sensações falsas, o delirio extende-se ás percepções; o doente torna-se allucinado, porque era já delirante, em vez de tornar-se, como ha pouco, delirante, porque era allucinado»[2].

[1] Foville, Obr. cit., pag. 341.

[2] Foville, Obr. cit., pag. 341.

Ora, ao passo que o megalomano-perseguido seria as mais das vezes, segundo Foville, um delirante-allucinado, o perseguido-megalomano, pelo contrario, seria sempre um allucinado-delirante.

Por muito singular que se nos affigure, este modo de vêr de Foville sobre a primitividade das allucinações na Paranoia persecutoria teve um exito só comparavel ao da sua theoria das origens reflexivas e raciocinadas do delirio ambicioso. Repetido em milhares de tiragens pelos alienistas francezes, este novo cliché pathogenico perpetuou-se como o primeiro. Magnan, por exemplo, acceitava-o ainda em 1886 e dava-lhe curso nos trabalhos dos seus discipulos. Como Foville, o medico de Sant'Anna admittia que nos delirios systematisados a allucinação póde tanto ser um symptoma derivado da persistencia de conceitos falsos, como um phenomeno primitivo sobre que assenta e de que procede a ideação pathologica. O primeiro d'estes casos dar-se-hia nos delirios d'emblèe; o segundo no Delirio Chronico. Os degenerados, unicos capazes de fabricarem um delirio sem preparação, e de serem, portanto, megalomanos-perseguidos, entrariam no grupo dos delirantes-allucinados; os normaes, unicos a quem se consigna o Delirio Chronico e, portanto, perseguidos-megalomanos, seriam allucinados-delirantes.

Eis como, interpretando o pensamento do mestre sobre as relações da allucinação com as idéas morbidas nos delirios d'emblèe e no Delirio Chronico, se exprimia Legrain: «O mecanismo segundo o qual se produzem as allucinações, varia nos dois casos. No Delirio Chronico ellas são essencialmente primitivas; todo o delirio é construido sobre ellas, e se ellas não existissem, o delirio, que lhes é consecutivo, não existiria. Nos degenerados delirantes, quando existem, as allucinações formam-se de um outro modo. São symptomas contingentes da doença, não a sua base immutavel, pois que numerosos delirios degenerativos evolucionam sem allucinações. Quando estas complicam a scena morbida, é o proprio delirio que as provoca, as mais das vezes, em virtude do seguinte mecanismo: Todos os centros cerebraes se encontram em estado completo de erethismo; o cerebro anterior elabora as idéas delirantes e evoca as imagens nos centros posteriores; as imagens assim evocadas véem representar-se nos centros anteriores com uma vivacidade tal que são interpretadas como outras tantas realidades. Assim, a allucinação encontra a sua causa directa n'uma série de idéas delirantes que a fazem nascer, e produz-se como um verdadeiro reflexo. O caminho centripeto parte dos centros anteriores, em que é elaborada a idéa delirante, ganha as regiões posteriores do cortex, em que a imagem é evocada, depois volta aos centros anteriores, trazendo a imagem, que vem misturar-se ao delirio e se impõe como realidade … Muito outra é a allucinação no Delirio Chronico: nasce primitivamente, sur place, nas regiões posteriores do cortex, sem ser provocada. Uma lesão local, lentamente progressiva, a produz; ella é a expressão funccional de uma lesão anatomica. Partindo d'esse ponto, ganha as regiões anteriores, que surprehende realmente. O cerebro anterior, em plena posse do seu equilibrio, da sua ponderação, interpreta-a como um facto real e deduz d'ella conclusões logicas, que são as primeiras idéas delirantes. Vê-se então evolucionar um delirio absolutamente sistematisado, lançando uma perturbação na intelligencia intacta e ponderada, que reage com todas as suas energias. No degenerado, a adhesão no delirio é plena e inteira desde o começo; no delirante chronico ella não é senão lenta e progressiva, fazendo-se a systematisação pouco a pouco, mercê de persistentes allucinações»[1].

[1] Legrain, Du délire chez les dégénérés, pag. 141.

Se n'esta passagem de Legrain substituirmos as expressões de cerebro anterior e posterior pelas suas equivalentes antigas de intelligencia e sensibilidade especial, reapparece-nos a citação precedente de Foville. Uma velha doutrina, pois, resurge sob roupagens novas.

Será necessario affirmar n'esta altura do nosso trabalho que a primitividade das allucinações nos delirios paranoicos é ainda uma ficção, que o exame despreoccupado dos factos annulla e apaga?

É incontestavel que, encarando de um modo geral as relações possiveis dos erros sensoriaes com os conceitos morbidos, são legitimos e a cada passo se realisam os casos enumerados por Foville: se ha delirios que provocam as allucinações, outros ha, que, ao contrario, as teem por base e ponto de partida. Isto é de tal modo reconhecido que os ultimos d'estes delirios teem na psychiatria contemporanea o nome consagrado de allucinatorios ou sensoriaes (Wahnsinn), que allude a um fundamento perceptivo, como os primeiros teem o de systematisados (Verrücktheit), que inculca uma coordenação ideativa. Sómente, a experiencia clinica ensina que os deliros sensoriaes ou são absolutamente dissociados e dispersivos ou apenas attingem uma frouxa coordenação, ao passo que os delirios francamente systematisados podem, como o persecutorio na sua variedade litigante, evolucionar sem a intervenção de estados allucinatorios.

De resto, o depoimento da clinica não seria difficil de prevêr. Allucinações nascidas sur place, sem uma idéa que as provoque e lhes forneça o contheudo, só podem ser, como aliás nota Legrain, autonomicos effeitos de um erethismo dos centros sensoriaes, anatomica ou funccionalmente compromettidos; mas, sendo assim, ou o cerebro anterior as corrige e nenhum delirio é então possivel, ou, perdido o contrôle normal, elle as acceita e delira, não n'um sentido determinado, mas em tantas direcções differentes quantas as allucinações, cujo contheudo nenhuma razão ha para não suppôr variavel e proteiforme como nos delirios sensoriaes das anemias, das febres, das intoxicações e das nevroses. Sem a direcção superior de um conceito ou, para fallarmos a linguagem de Magnan e Legrain, sem a intervenção provocadora do cerebro anterior, os centros sensoriaes, autonomisados e procedendo por conta propria e exclusiva, exportam, como nos sonhos, para as regiões superiores do cortex, os mais caleidoscopicos elementos de ideação; se, com materiaes d'esta natureza, um delirio tem de formar-se, elle não poderá ser senão, como o hallucinatorischer Wahnsinn de Krafft-Ebing, alguma coisa de tormentoso e incoherente.

Assim, nem à posteriori, isto é, tomando para base a clinica, nem à priori, isto é, partindo da doutrina da percepção, é licito acceitar a primitividade das allucinações nos deirios systematisados.

Discutamos, entretanto, no terreno especial da Paranoia persecutoria a affirmação de Foville, retomada pela escóla de Sant'Anna.

Fallar, como Legrain, de uma lesão anatomica dos centros sensoriaes no delirio de perseguições, é, evidentemente, fazer um abuso de linguagem, pois que jámais uma autopsia denunciou em paranoicos qualquer coisa de parecido com um desarranjo palpavel e visivel d'essas limitadas regiões do cortex. Perturbações d'ordem dynamica, alterações funccionaes, desequilibrios de movimento cellular, eis quanto o estado actual da physiologia permitte admittir. N'este sentido, o termo de erethismo, empregado por Legrain, parece-nos feliz. Mas provocado por que causa, esse erethismo?

Não o diz o escriptor citado, e é lamentavel.

Excluidas, naturalmente, as intoxicações e as asthenias cerebraes, que são as causas mais frequentes de estados allucinatorios, não vejo que nos fiquem para explicar a sobreexcitação funccional dos centros sensoriaes senão as idéas, delirantes; postas estas de parte, nada resta, a invocar na interpretação do phenomeno,—tão importante, aliás, e tão essencial, no dizer da escóla franceza, que n'elle repousa a doença inteira.

Passemos, porém, ao de leve, sobre esta deficiencia de analyse e admittamos por um instante que uma causa, ainda não definida, vem provocar e determinar nos centros corticaes da sensibilidade especial um erethismo de que o cerebro anterior não partilha. O que nos diz a theoria da percepção que deveria succeder n'esta hypothese? Surprehendidas pelas extranhas sensações exportadas d'esses centros hyperfunccionantes, as regiões superiores da intelligencia entrariam com ellas em conflicto; e o resultado d'este, dada a integridade e normalidade d'essas regiões, a que incumbe a funcção suprema do contrôle psychico, seria, indiscutivelmente, a correcção, a rectificação definitiva dos erros sensoriaes. É isto, como se sabe, o que acontece nos casos de illusões e allucinações em espiritos normaes. Fallar da integridade de uma razão, que constroe um delirio sobre percepções falsas, é um perfeito não-senso; admittir a normalidade de uma região de contrôle, que centros subordinados perturbam e vencem, é cahir n'uma grosseira contradicção. Por si sós, dil-o a experiencia clinica e ensina-o a theoria da percepção, os erros sensoriaes não falseiam os juizos, porque, para corrigir as illusões e allucinações, dispõe o cerebro de recursos, que vão desde a elementar contraprova da acção de um sentido pela dos outros até ao testemunho alheio e ao confronto dos dados perceptivos com o preexistente systema de conceitos e sentimentos, que é o fundo mesmo da personalidade sã.

Se os erros sensoriaes não são corrigidos, mas acceites e elaborados como realidades objectivas, é que uma d'estas duas hypotheses se dá: ou o allucinado não empregou os recursos de rectificação e contrôle da percepção exterior, porque, delirante já, viu nas allucinações uma confirmação dos seus conceitos; ou os empregou sem exito, porque o insistente depoimento dos centros sensoriaes em erethismo, acabou por vencer os argumentos da razão.

Qual d'estas duas hypotheses se realisa no delirio de perseguições? Segundo o antigo ensino da escóla de Sant'Anna, de que Legrain é um interprete eminente, a primeira teria logar nos perseguidos d'emblèe, que são degenerados, e a segunda nos delirantes chronicos, que são normaes até á invasão da doença.

É inutil repetir que não acceitamos esta distincção, e que a primeira das hypotheses formuladas é para nós a que tem logar em todos os casos não só de delerio de perseguições, mas dos outros delirios systematisados.

Analysemos, comtudo, as affirmações de Legrain em relação ao Delirio
Chronico.

Estabelecendo com Magnan (como o fizera Lasègue para o perseguido) que o delirante chronico é um ser normal até á invasão da doença, Legrain compraz-se em vêr na incubação d'esta uma lucta da razão com os morbidos elementos invasores. Ao passo que o degenerado supportaria, por assim dizer, o seu delirio,—espontanea manifestação de um desequilibrio preexistente, o normal fabrical-o-hia lentamente, hesitantemente e raciocinando sempre. É a velha doutrina. Mas como de um raciocinio só podem surgir conclusões falsas quando as premissas o são tambem, Legrain, á maneira de Delasiauve e de Foville, faz das illusões e allucinações, nascidas sur place nos centros sensoriaes, o elemento morbido aggressivo e a premissa erronea de que o cerebro anterior deduzirá, emfim, o delirio.

Acabamos de vêr, e toda a insistencia n'este ponto seria impertinente, que a incapacidade de corrigir percepções erradas implica deficiencia de senso critico e, portanto, insanidade mental, anormalidade psychica. Nem mesmo admittindo com Legrain que o cerebro reage contra a allucinação invasora com todas as suas energias, poderia evitar-se a conclusão, pois que a derrota denuncía a fraqueza e inferioridade d'essas energias.

Mas será verdade, ao menos, que o perseguido reaja contra as illusões e allucinações incessantemente originadas nos centros sensoriaes sobreexcitados? De modo nenhum. Bem ao contrario do que Legrain pretende, as illusões e allucinações são para os perseguidos, como para todos os paranoicos, pontos de apoio e não de partida do delirio, confirmações e não elementos formativos d'elle, eccos dos erros conceptuaes e não o seu fundamento, n'uma palavra, precarios symptomas derivados e não phenomenos essenciaes e primitivos.

A demonstração d'esta verdade clinica não será difficil, nem longa.

Uma só passagem de Magnan a fará. Fallando do que se passa no chamado periodo de incubação do delirio persecutorio, escreve n'um dos seus ultimos trabalhos o eminente observador: «Os doentes experimentam um mal-estar, um descontentamento que não sabem explicar-se; tornam-se apprehensivos, inquietos, desconfiados, crendo notar certas mudanças na maneira de ser da familia e mesmo dos extranhos. Dormem mal, teem menos appetite, menos aptidão para o trabalho e para os negocios. N'esta época poderiam ser tomados por hypocondriacos. Pouco a pouco parece-lhes que os observam, que os olham de travez, que os desprezam; duvidam, hesitam, permanecem fluctuantes entre idéas variadas, acceites primeiro, repudiadas em seguida, admittidas pouco a pouco e dando logar, emfim, a interpretações delirantes … O doente persiste assim perturbado, inquieto, por vezes excitado, todo entregue ás concepções penosas que principiam a assaltal-o e indifferente a tudo o que não parece prender-se com o seu delirio. Os grandes acontecimentos não o commovem, as perturbações politicas deixam-no indifferente, as perdas de dinheiro e as luctas de familia não o emocionam. Pelo contrario, factos insignificantes, mas que se relacionam com as suas preoccupações penosas, que as justificam, adquirem uma importancia extrema e provocam-lhe a colera. Se uma pessoa se esquece de o saudar, vê n'isto uma injuria voluntaria; se alguem tosse ou escarra ao pé d'elle, se diante d'elle uma janella ou uma porta se abrem, se-uma cadeira se desloca, reconhece outros tantos testemunhos de despreso. As provas de benevolencia e de afeição tornam-se zombarias, e o proprio silencio é uma offensa. O vago apaga-se pouco a pouco; á hesitação succede a certeza, e, fortificadas por todas estas provas, as suas convicções tornam-se inabalaveis. N'estas condições, o doente, sempre em guarda, espia, escuta, surprehende n'uma conversação uma phrase que se attribue—eis a interpretação delirante; ou se crê aggravado por uma palavra insignificante, mas cujo som apresenta alguma analogia com uma injuria grosseira e que elle confunde com esta—eis a illusão. Depois, a idéa constante de uma perseguição, a tensão incessante da intelligencia acabam por despertar o signal representativo da idéa, a imagem tonal; n'uma palavra, a allucinação auditiva produz-se»[1].

[1] Magnan, Obr. cit., pag. 237.

Não é possivel estabelecer de um modo mais preciso e mais eloquente a primitividade do delirio e a secundariedade da allucinação. Todo o commentario seria pallido, todo o retoque prejudicial a este quadro d'après nature.

A questão de saber corno Magnan exprime em 1893 uma opinião diametralmente opposta á de Legrain, que em 1886 se dava como interprete da escóla de Sant'Anna, é secundaria para nós e sem interesse para a sciencia.

Cremos que n'este caso, como no de Gérente, Magnan se contradicta a si proprio, fazendo do seu Delirio Chronico edições successivas e todas differentes.

Felizmente, e é isto o que nos importa notar, a correcção introduzida ultimamente no capitulo das relações entre os erros perceptivos e conceptuaes, é conforme á verdade clinica.

VI—AS OBSESSÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS.

A inquietação dos perseguidos e as hesitações de certos paranoicos na exhibição do delirio; como se explicam estes factos—A doutrina classica das obsessões; sua inexactidão—Idéas do auctor; inesperada confirmação d'ellas por J. Séglas—A obsessão é um delirio systematico abortado; este é uma obsessão progressiva—Demonstração; analyse dos factos—Como se fórma o Eu; estratificações systematisadas—A personalidade e as subpersonalidades; o atavismo.

Se as idéas que formam o contheudo dos delirios paranoicos, não traduzem um esforço de reflexão exercendo-se sobre estados emotivos, nem reconhecem por causa os erros sensoriaes, como cremos ter provado, a conclusão se impõe de que ellas surgem na consciencia á maneira de obsessões.

Comquanto sustentada por uma parte dos psychiatras allemães e italianos, esta affirmação está de tal modo em desaccordo com as radicadas tradicções da escóla franceza que não será sem vantagem discutil-a. Antes, porém, seja-me licito notar que, acceite a origem obsessiva dos delirios systematisados, dois factos, que os alienistas francezes não lograram explicar senão phantasiosamente e em contradicção com os dados mais positivos da observação clinica, recebem uma interpretação simplicissima: refiro-me á inquietação dos perseguidos quando o seu delirio aponta, e ás hesitações de grande numero de paranoicos na exhibição dos seus conceitos falsos.

O primeiro d'estes factos, abusivamente comparado pelos psychiatras francezes ao vago mal-estar precursor das doenças graves, não é, em realidade, mais do que a natural reacção emotiva do Eu, subitamente empolgado por uma idéa penosa, que irrompe do inconsciente; longe de constituir, como a anciedade melancolica, uma situação primitiva de que surgirão os erros conceptuaes, é um estado secundario, um effeito mesmo da presença inesperada de uma idéa depressiva no campo da consciencia.

Em que consiste, de facto, essa inquietação? Definitivamente e no fundo—em sentimentos e actos defensivos; ora, a organisação de uma defeza suppõe a idéa de um ataque, de uma hostilidade, de um perigo. Sem duvida, essa idéa só se terá transformado n'um conceito e recebido a sua inteira systematisação, quando se houver feito o reconhecimento do inimigo e das causas da aggressão; a partir, porém, do momento em que obsessivamente ella irrompe e se impõe ao espirito, a inquietação apparece como o grito de alarme da esphera emotiva do perseguido.

Quanto ás hesitações, tantas vezes observadas, do paranoico na exteriorisação do seu delirio, qualquer que elle seja, nada mais facil que interpretal-as. Trata-se ainda, n'este caso, de um phenomeno secundario, inseparavel do primeiro. Surprehendendo a consciencia pelo contraste que faz com o systema de conceitos positivos recebidos da educação, a idéa delirante é para o Eu alguma coisa de extranho e de interposto que, tendo-lhe provocado uma forte reacção emotiva, irá ainda remodelar toda a sua precedente orientação pensante, não sem difficuldades e combates; a hesitação em affirmar o delirio é, pois, o resultado da novidade e extranhesa das idéas que o formam. Longe de ser, como se pretendeu, a duvida de um espirito que elabora conjecturas e procura cotejal-as com os actos, essa hesitação traduz o esforço penoso e vacillante de adaptação do Eu a uma nova ordem de idéas, que elle vê surgir e cuja origem desconhece. O paranoico não duvida, porque não critica. Como a victima de uma suggestão hypnotica activa não procura evitar o acto ordenado e imposto, ainda quando elle choca, ás suas habituaes inclinações, mas busca dar-lhe apparencias de espontaneo e querido, o paranoico, longe de tentar a correcção da sua idéa falsa, cuida em reforçal-a pela interpretação delirante dos factos.

Mas ás vezes succede tambem que já o delirio se encontra systematisado e ainda o paranoico o occulta ou apenas o confia do papel, n'uma sorte de soliloquio. A razão d'este facto está em que o doente, reconhecendo, pelo que, em si proprio se passou no periodo presystematico, a extranheza do seu delirio e a formidavel antithese que elle faz com as idéas correntes, procura evitar as inuteis e irritantes discussões que provocaria, exhibindo-o. É o conhecido caso de alguns crentes que, em vez de propagarem a sua fé, penosamente conquistada em repetidas luctas interiores, se recolhem n'ella, evitando a controversia, sentindo uma sorte de pudor em desdobrar diante de profanos irreverentes o inabalavel systema das suas convicções religiosas.

Mas eu prevejo uma objecção a esta doutrina. Como acceitar, dir-se-ha, a origem obsessiva dos delirios systematisados, se um dos caracteres das obsessões é justamente o de não serem integradas na consciencia, de subsistirem no Eu em lucta aberta com as disposições preexistentes, n'uma palavra, de não formarem systema?

A resposta implica um exame de doutrinas a que vamos proceder.

Westphal, definindo a obsessão uma idéa que, sem precedencia de um estado emotivo ou passional, se impõe á consciencia do doente contra a sua vontade, impedindo o jogo normal do pensamento, em que se insinua, e sendo sempre reconhecida como anomala e extranha ao Eu, foi um dos primeiros a proclamar a irreductivel systematisação da idéa obsessiva.

Pelo seu lado, os auctores, que ulteriormente mais se occuparam das obsessões, insistiram sempre no facto de que ellas constituem na economia psychica uma sorte de corpo extranho, releve-se-me a expressão, para eliminar o qual, inutil, mas consciente e penosamente se esforça o Eu. Assim, Magnan, definindo a obsessão pathologica um modo de actividade cerebral em que uma palavra, uma idéa, uma imagem se impõem ao espirito sem intervenção da vontade e com uma angustia dolorosa que a torna irresistivel, conta, como Westphal, entre os caracteres pathognominicos d phenomeno (que para elle é sempre um syndroma da degenerescenda psychica), a consciencia completa de um estado morbido. E.J. Falret, interpretando no Congresso Psychiatrico Internacional de 1892 as mesmas idéas, affirmou não só que as obsessões são conscientes e anciosas, mas que se não acompanham de allucinações e se não transformam nunca em outras doenças mentaes, embora algumas vezes e n'uma adiantada phase de evolução se possam complicar de um delirio melancolico ou persecutorio. O assentimento do Congresso as conclusões do Relatorio de Falret foi como a consagração official da doutrina que faz da idéa obsessiva um facto insusceptivel da assimilação, um producto que o Eu considera sempre extranho, que a consciencia jámais incorpora, que a vontade combate e contra o qual a emotividade perpetuamente lança o seu grito de alarme.

Será, porém, rigorosamente assim?

Reconhecendo que a nossa experiencia é curta e a nossa auctoridade nulla, atrevemo-nos, comtudo, desde 1892; tendo por base uma solida convicção, a discutir alguns dos pontos essenciaes da doutrina classica.

Assim, em conferencias publicas d'esse anno, a proposito de um caso medico-legal de impulsividade criminosa, sustentamos que a idéa obsessiva não póde ser, nem é na vida mental um elemento inerte, e que a sua actividade, como a de todo o phenomeno psychico, se mede pelo maior ou menor numero de factos da mesma ordem que ella evoca na consciencia, o que equivale a dizer—pelas mais ou menos extensas systematisações que provoca. Como cada atomo de um aggregado material, diziamos então, entra n'elle com uma certa affinidade, cada phenomeno psychico figura no Eu com uma dóse propria de força systematisante. E a idéa obsessiva, extranha á consciencia pelas suas origens confusas, não é essencialmente diversa dos outros factos psychicos, nascidos tambem em grande parte da cerebração inconsciente; surgindo, ella evoca, pois, pela sua mesma affinidade com esses factos, pela sua mesma força systematisante (de que as leis de associação não fazem senão constatar a existencia e denunciar parcialmente as orientações), idéas, emoções, desejos, impulsos, novas imagens mentaes, em summa.

Longe de acompanhar-se, diziamos, de uma perfeita e completa consciencia, a obsessão, representando um começo de dissociação pessoal, uma scisão do Eu por dois grupos antinomicos de systematisações psychicas, a normal e a obsessiva, implica uma obnubilação da consciencia individual, pois que esta não póde comprehender-se senão como synthese de estados psychicos harmonicos e expressão da unidade do Eu.

Este modo de vêr, seja dito de passagem, encontramol-o sustentado com profusão de argumentos psychologicos e clinicos nas excellentes Lições sobre as doenças mentaes e nervosas de Séglas, publicadas em 1896. Este imprevisto encontro do nosso espirito com o do eminente psychiatra, sob ser-nos lisongeiro, depõe grandemente em favor da justeza das idéas que defendemos.

A angustia que acompanha os estados psychicos, diziamos nas mesmas conferencias, traduzindo a extranheza da consciencia em face da idéa imposta, está longe de ser um thenomeno invariavel, pois que, no fundo, elle depende da extensão maior ou menor que tomam as systematisações pathologicas em face das normaes. Ha estados em que toda a reacção emotiva se limita a uma passageira e leve inquietação de espirito; outros, em que surgem phenomenos criticos de anciedade, pronunciados, duradouros e graves. Procurando interpretar estes factos, Westphal collocou-os principalmente sob a dependencia do contheudo das obsessões, affirmando que, em igualdade de circumstancias, a idéa fixa de matar repugnará muito mais que a de pronunciar uma palavra inconveniente. Talvez seja assim; mas essa igualdade de circumstancias, reduzindo-se, no fundo, a uma identidade absoluta de disposições affectivas e moraes, não póde nunca affirmar-se com segurança em dois individuos ou n'um só em periodos diversos. Dizer que uma idéa obsessiva repugna, pelo seu contheudo, mais ou menos que uma outra, é dizer que as systematisações provocadas por cada uma valem diferentemente para o Eu. Mas porque? Em ultima analyse, porque as systematisações normaes com que ellas entram em conflicto na consciencia são diversas ou desigualmente organisadas. Á medida que a idéa obsessiva, quer por força propria, quer por frouxidão das suas antagonistas, alarga a esphera da sua systematisação, a dissociação do Eu progride, a extranheza da consciencia diminue e a angustia reduz-se proporcionalmente. E o limite d'esta reducção, que theoricamente é zero, terá sido attingido, quando no campo da consciencia não existam systematisações que directa ou indirectamente não sejam provocadas pela idéa obsessiva.

Mas, n'esta hypothese dois casos podem dar-se: ou as systematisações normaes readquirem, decorrido um certo tempo, a sua supremacia, ou, mais fracas, ellas se deixam vencer definitivamente pelas systematisações pathologicas. No primeiro caso, a consciencia individual restabelece-se, e da phase de derrota fica apenas a memoria confusa de uma sorte de estado secundario e de sonho,—o que tem permittido comparar as obsessões impulsivas a crises de epilepsia psychica; no segundo, um novo Eu se fórma, tendo por substracto associações pathologicas, isto é, um delirio systematisado.

Tal foi, nos seus contornos, a doutrina que esboçamos em 1892 e exposemos ainda em conferencias sobre a Paranoia no começo de 96, contradictando os que pretendem achar contrastes irreductiveis entre obsessão e delirio. Insubsistentes no terreno da psychologia abstracta, esses contrastes não o são menos no campo da clinica, onde Tamburini, Stephani, Séglas, Catzras e outros demonstraram, contrariamente á cathegorica affirmação de J. Palret, que existem allucinações sensoriaes e psychomotoras exclusivamente determinadas pela persistencia de idéas obsessivas. Longe de serem antinomicos, a obsessão e o delirio approximam-se pela communidade de origem: a obsessão seria, na ordem de idéas que sustentamos, um começo de delirio systematisado, como este seria uma obsessão progressiva, desenvolvendo-se á custa de successivas associações. N'este sentido se interpreta sem esforço a expressão de paranoia rudimentar por que Arnadt, Morselli e outros designam a obsessão.

Mas, porque reputamos fundamentaes estas idéas, procuraremos dar-lhes aqui todo o desenvolvimento que ellas comportam.

O phenomeno pathologico da obsessão tem, como nota Dallemagne, um representante physiologico no facto banal de uma idéa indifferente que, sem sabermos como, nos surge na consciencia, interrompendo disparatadamente o curso das nossas preoccupações e desapparecendo um instante depois. Não ha aqui, em verdade, nem angustia, nem irresistibilidade; ha, porém, o phenomeno da emergencia inexplicavel e extranha de uma imagem, que o jogo consciente das idéas não provocou. A systematisação não existe tambem: um momento presente na consciencia, a idéa desappareceu sem deixar n'ella um vestigio. Imaginemos, porém, que a idéa extranha pertence á cathegoria das impulsivas, e concedamos que o acto n'ella representado seja de natureza cruel: atirar, por exemplo, á linha férrea um companheiro de viagem. É evidente que o novo caso differe muito do anterior. Em primeiro logar, a idéa tem desde logo um começo de systematisação, por isso que mentalmente nos representamos uma scena complicada e os seus possiveis effeitos: imagens motoras, imagens sensoriaes, sentimentos, emoções, idéas de leis e principios moraes, idéas de sanção penal, tudo entra em jogo, tudo se grupa, em torno da idéa primitiva. A vontade lucta, como geralmente se diz, ou, como melhor deveria dizer-se, as systematisações normaes, mais ou menos organisadas e resistentes, repellem a systematisação anomala e intrusa. Esta, todavia, não desapparece sem vestigios; impossibilitada de tomar as reclamadas vias motoras externas, gastou-se na esphera emotiva, dando-nos um instante de inquietação, um sobresalto, um começo de angustia, traduzida, talvez, physicamente n'um subito pallor de face, n'uma agitação momentanea do pulso. Mas figuremos que a idéa se reproduz ainda, uma vez, duas, muitas vezes. A systematisação, que ella provocou no inicial momento, repete-se, avigora-se, organisa-se; a lucta das systematisações normaes antagonistas renova-se, e d'essa renovação deriva o prolongar-se na consciencia a presença de uma systematisação anomala, cada vez mais nitida e mais forte. As imagens motoras farão nascer o impulso; e este, se as systematisações normaes o não conseguem desviar n'um sentido diverso (a convulsão, o espasmo, o toque d'uma campainha de alarme, o grito de aviso) acabará por ser satisfeito, provocando uma détente, um allivio.

Os caracteres da obsessão pathologica—origem invluntaria, angustia, irrisistibilidade, satisfação consecutiva, estão realisados, O que provocou a apparição d'estes caracteres? Em primeiro logar, as systematisações determinadas pela idéa obsessiva, em segundo, a lucta d'ellas com as systematisações normaes. Se a idéa obsessiva fosse incapaz de provocar systematisações, se fosse indifferente, ter-se-hia dissipado sem vestigios conscientes, como no caso que primeiro figuramos; se, por outro lado, uma forte lucta se não tivesse realisado entre antinomicos grupos ou systemas de factos psychicos, não existiria angustia concomitante, nem satisfação consecutiva. A obsessão deu-se, pois, á custa, de uma dissociação parcial e transitoria do Eu. Alarmada e impotente, a consciencia assistiu ao desdobramento de um acto reflexo; clara ao principio, ella obscureceu-se um instante—aquelle precisamente em que todo o vasto e harmonico systema de idéas, de affectos e impulsos, que constituem o Eu, se deixou vencer pelo systema antagonista creado pela idéa imposta.

Que esta seja impulsiva, emotiva ou meramente abstracta, pouco importa, de resto; o quadro dos symptomas da obsessão é em todos os casos o mesmo, desde que se estabelece lucta entre systematisações pathologicas e normaes. É n'esta lucta que reside o caracter essencial da obsessão; tudo o mais é secundario e derivado.

Imaginemos, por exemplo, que a idéa de matar surge no espirito de um criminoso-nato. Não encontrando em face d'ella, a offerecer-lhe resistencia, a longa série de systematisações que se comprehendem na designação synthetica de senso moral, essa-idéa exteriorisar-se-ha de um modo puramente reflexo e automatico; fallaremos, então, de impulso morbido, mas não será licito pronunciar o nome de obsessão.

Figuremos ainda que uma idéa, embora não derivada do jogo normal e logico do pensamento, é de natureza a lisongear os nossos gostos, as nossas aspirações, os nossos desejos. Insubsistentes e chimericas, as systematisações, ás vezes complicadas e extensas, que ella gera ao irromper no nosso espirito, não provocam, todavia, uma lucta, é o estado de espirito assim creado não póde chamar-se obsessão. Tal é o caso da réverie, dos castellos no ar, de toda essa phantasiosa ideação em que, a despeito do testemunho contradictorio da realidade, nos deixamos apanhar involuntariamente. Quem, apenas remediado ou pobre, se não sentiu uma vez tomado, sem saber como ou porque, da idéa de opulencia, e não partiu d'ahi para o sonho dos palacios, das equipagens, da arte, da phylantropia? Comquanto anomalo e inutil, este estado de espirito não é obsessivo, porque não provoca urna lucta de systematisações.

Esta é, pois, repetimol-o, o signal, o seguro indicador da obsessão:—aquillo em que ella essencialmente consiste. Mas não poderá essa lucta, que de ordinario se renova, dando ás obsessões um caracter intermittente, cessar pela victoria definitiva das systematisações pathologicas, o que equivale a dizer—pela constituição de um delirio? Cremos que sim; e para comprehendel-o basta admittir que a idéa obsessiva é, na esphera inconsciente de que procede, um forte centro de systematisações organisadas, capazes não só de vencerem a resistencia das systematisações normaes, mas de as desviarem em proveito proprio.

Já a victoria intermittente da obsessão sobre as systematisações normaes denuncía a existencia de ignoradas estratificações psychicas, tão extensas e importantes, comtudo, que podem por força propria ou por fraqueza das suas antagonistas, provocar uma dissociação do Eu e n'um dado instante occupar todo o campo da consciencia. Que se supponha maior a sua força e menor ao mesmo tempo a das systematisações normaes inhibitorias, e o triumpho será definitivo, porque toda a esphera consciente não conterá mais do que associações pathologicas. Teremos o delirio systematisado; e então, bem evidentemente, a dissociação do Eu, que na obsessão é passageira, tornar-se-ha definitiva, substituindo-se á personalidade normal vencida uma outra vencedora.

Mas d'onde vem esta e como se formou? Eis o que a doutrina da evolução permitte explicar. Na sua lenta e progressiva constituição, a personalidade humana encontra-se successivamente representada por systematisações psychicas de uma complexidade crescente, isto é, por associações e inhibições cada vez mais extensas, traduzindo a acção do mundo sobre o Eu e a reacção d'este sobre o mundo. Cada nova systematisação formada, integrando elementos psychicos, é uma satisfação dada ás naturaes affinidades d'estes; cada nova inhibição realisada, dissociando elementos psychicos, provoca a formação de outras systematisações em que ellas vão achar novamente logar e novamente satisfazer uma affinidade propria. Assim se formam lentamente, mercê da hereditariedade, que capitalisa as conquistas do espirito, successivas estratificações systematicas de idéas, de emoções, de impulsos, n'uma palavra, successivas tendencias, que representam em momentos dados um espirito, um Eu, uma personalidade, emfim.

As estratificações mais recentes são tambem as menos organisadas e as mais instaveis; os systemas de que ellas se compõem, contrariando em grande parte antigas e habituaes affinidades dos elementos psychicos, subsistem n'um equilibrio que só o tempo tornará estavel. Mas o tempo, quando se trata de evolução, não é a vida de um individuo, é a de gerações seguidas; é, pois, necessario para que a estabilidade psychica de uma personalidade se realise que a herança se faça sempre n'um mesmo sentido, que a orientação ou finalidade do espirito não seja perturbada. Se este facto se não dá, a estratificação mais antiga sobreleva a mais recente e atravez d'ella rompe total ou parcialmente. Cada personalidade é, pois, n'um dado momento a juxtaposição de subpersonalidades relegadas para o inconsciente, mas tenazes, persistentes, susceptiveis de uma integral ou parcial revivescencia. Por traz do individuo, que representa as ultimas acquisições de uma civilisação, está a especie, que representa todas as systematisações procedentes da acção lenta do meio, capitalisada pela herança.

N'esta ordem de idéas, as obsessões e os delirios systematisados apparecem-nos como resurreições parciaes e mais ou menos extensas de um Eu ancestral. É da lucta que se estabelece entre este e o Eu de recente formação que derivam, de um lado, a angustia que acompanha as obsessões e o allivio que lhes succede quando a détente se realisa, do outro, a inquietação dolorosa que faz cortejo aos delirios systematisados na sua phase inicial e a tranquillidade relativa que depois surge quando o paranoico definitivamente adquire uma convicção, uma crença, quando, na phrase justa dos alienistas francezes, elle sabe, emfim, à quoi s'en tenir.

Mas como, repetimol-o, a lucta é tanto menos intensa quanto mais forte é o Eu ancestral e mais instavel o de recente formação, a angustia obsessiva e a inquietação paranoica podem reduzir-se a insignificantes proporções: tal é o caso dos impulsos nos criminosos habituaes e dos delirios d'emblèe nos paranoicos originarios.

VII—A PARANOIA E A DEGENERESCENCIA

Extensão do conceito de degenerescencia; desaccordo dos auctores—Causas de degenerescencia; opiniões diversas—A degenerescencia e a observação clinica; modo de vêr de Magnan; opinião de Krafft-Ebing—Necessidade de um ponto de vista geral; seu caracter anthropologico—A definição de Morel; o seu defeito essencial—A noção do atavismo em psychiatria; as idéas de Magnan e a sua falta de fundamento—Ponto de vista de Tanzi e Riva; documentos justificativos—A Paranoia é uma degenerescencia.

Tem ainda hoje nos livros da especialidade um caracter eminentemente obscuro e vago a noção da degenerescencia. Nada o prova melhor que o conjuncto de contradictorias opiniões sobre a sua mesma extensão e sobre as suas origens.

Que psychopatas abrange a degenerescencia?

Emquanto certos auctores, á maneira de Mendel, só consideram degenerados aquelles que, pela presença de estygmas physicos de uma extrema decadencia, profundamente se afastam do typo humano commum, outros ha que seguindo a tradição de Morel, descobrem a degenerescencia onde quer que surjam indicios de uma constitucional desharmonia de funcções psychicas, de um originario desequilibrio mental, ainda quando inteiramente compativel com a vida collectiva e mesmo com parciaes superioridades de intendimento.

O terreno que pizam os primeiros tem tanto de seguro e incontroverso quanto de infecundo: reduzida a cobrir, o grupo dos idiotas, alguns loucos moraes, physicamente disformes, e um ou outro delirante precoce, somaticamente estygmatisado, a degenerescencia é um conceito inerte, sem valor em clinica e sem applicações em nosologia psychiatrica. Suggestivo, o ponto de vista dos segundos é, todavia, impreciso, como o revella a comparação dos auctores, pois que, os mesmos loucos são, segundo uns e deixam de ser, segundo outros, comprehendidos no grupo dos degenerados. Assim, emquanto para Magnan não são degenerados uns certos paranoicos, os delirantes chronicos, para Krafft-Ebing são-no todos, como vimos; assim, os intermittentes, que a grande maioria dos auctores allemães e italianos consideram como exemplares degenerativos, formam para Magnan um grupo de transição entre os degenerados e os psychonevroticos; assim, ainda, os obsessivos, que para o psychiatra francez são sempre degenerados, não passam aigumas vezes para Morselli de neurasthenicos vulgares.

Este grave desaccordo sobre a extensão do conceito, repete-se desde que a questão etiologica se aborda.

Que origens reconhece a degenerescencia?

Ao passo que uns, como J. Falret, exclusivamente incriminam a hereditariedade na producção dos degenerados, outros responsabilisam, como Cotard, as doenças infantis, como Boucherau, as doenças do feto, ou ainda, como Christian, o estado mental dos paes no acto da procreação. Pelo seu lado, Magnan reconhece todas estas causas, considerando, todavia, preponderante e typica a hereditariedade,

Ora, para se poder fallar da hereditariedade, como agente de psychoses degenerativas, quando se sabe que ella é a causa por excellencia de todas as doenças mentaes, seria necessario possuir-se um meio de determinar à priori o momento em que ella deixa de ser uma simples predisposição generica para tornar-se um factor especial de anomalias psychicas; por outros termos, seria necessario precisar onde começa o que Magnan denomina a impregnação hereditaria.

Se isto fosse possivel, teriamos na etiologia um excellente criterio para separar as loucuras degenerativas das que o não são: todas as fórmas nosologicas exhibidas por loucos impregnados de herança pertenceriam ao primeiro grupo, como pertenceriam ao segundo as exteriorisadas por simples predispostos. A analyse clinica, denunciando-nos depois a symptomatologia e a marcha das psychoses dos dois grupos, dar-nos-hia meios de reconhecer as equivalencias hereditarias, se ellas existem, como pretendem Boucherau, Cotard e Christian. Nada mais simples: dado que uma psychose offerecesse os caracteres peculiares das hereditarias, seria um degenerado o seu portador; e, quando a herança morbida não podesse ser incriminada, outras causas teriam de invocar-se de igual valor pathogenico.

Mas, precisamente succede que ninguem ainda determinou, nem à priori parece determinavel a tara hereditaria em que a predisposição acaba e a impregnação começa.

Nem o numero de psychoses ancestraes, nem a sua convergencia nas duas linhas de progenitores constituem motivo sufficiente para affirmar a impregnação hereditaria e a degenerescencia de um louco, pois que a pratica nos depara ás vezes alienados que, tendo, aliás, uma pesada herança psychopatica n'uma das linhas directas ou mesmo uma herança convergente, exhibem fórmas nosologicas insusceptiveis de se distinguirem,—quer pelos symptomas, quer pela marcha, quer, emfim, pela terminação, das psychonevroses puras, isto é, das loucuras accidentaes, das loucuras dos simples predispostos.

Em contraste com estes casos, outros apparecem de um caracter univocamente admittido como degenerativo, em que, todavia, a analyse clinica, até onde ella póde ser feita, não surprehende mais do que uma psychose em qualquer das linhas directas ou collateraes; isto succede, não raro, nos debeis e imbecis, procedentes de pae ou mãe alcoolicos.

Dir-se-ha, talvez, que n'estas considerações abusivamente restringimos o papel e alcance da hereditariedade, fallando apenas de psychoses ancestraes, quando deveriamos com os auctores contemporaneos fallar tambem, pelo menos, das nevropatias.

Mas quem não vê que n'este novo terreno o problema se complica sem se resolver? Que para a tara hereditaria de um louco contribuam sómente as psychoses ancestraes ou tambem as nevropatias, ou ainda, generalisando, as diatheses, é seguro que jámais se determinará á priori, onde a predisposição termina e a impregnação principia.

Tacita ou explicitamente é isto reconhecido pelos proprios auctores que, á maneira de Magnan e de Krafft-Ebing, assignalam á degenerescencia uma pluralidade de causas. Buscando na observação clinica dos symptomas e na marcha das affecções mentaes os indicios da degenerescencia, é evidente que elles abandonam o exclusivo criterio etiologico.

Mas se, d'este modo, uma fonte de divergencias cessa, outra, como vamos vêr, immediatamente surge.

Que anomalias symptomaticas e evolutivas da mentalidade psychiatrica deverão ser consideradas como indicios ou estygmas de degenerescencia?

A este proposito um evidente desaccordo recomeça. Não sendo as doenças mentaes em si mesmas senão anomalias do espirito, o problema posto é o de procurar a anormalidade no anormal. Com que criterio?

Magnan não hesita em adoptar o estado mental do louco antes da invasão da psychose. Ouçamos as suas proprias palavras: «O grande grupo dos predispostos simples, faz-se notar por um caracter essencial, invariavel, pathognomonico: até ao dia em que cahem na loucura, os doentes que o formam são julgados normaes; comparados aos individuos que nunca se tornam alienados, nenhuma differença apparente revellam. É que n'elles a predisposição não adquiriu ainda um grau sufficiente para se traduzir em caracteres especificos. Esta predisposição é latente e não produziu senão um resultado: fazer do cerebro um logar de menor resistencia e um terreno favoravel, crear uma situação em virtude da qual as causas de desorganisação do equilibrio intellectual terão uma influencia mais marcada do que em outros e uma acção mais duradoura e mais energica. O factor predisposição é evidentemente muito variavel como importancia; o seu valor não póde apreciar-se, á falta de criterio proprio, a não ser entre dois casos extremos. Como quer que seja, a resistencia cerebral dos predispostos deve variar em razão inversa da importancia do factor predisposição … N'uma outra grande divisão dos predispostos, collocamos os doentes cuja personalidade intellectual e moral é completamente transformada desde a base desde o nascimento pelo facto da aggravação progressiva do factor predisposição. Este grupo comprehende os predispostos com degenerescencia»[1].

[1] Magnan et Legrain, Les dégénérés, pag. 58.

Nada, como se vê, apparentemente mais claro: emquanto o simples predisposto é um ser normal até á invasão da doença psychica, o degenerado é ab ovo um ser anormal. Resta sómente determinar em que essa anormalidade consiste. Eis como Magnan se explica a este proposito: «Nos degenerados, a predisposição, qualquer que seja a sua natureza (hereditaria ou adquirida), produziu uma perturbação profunda das funcções psychicas. Desde a origem, desde o nascimento, fazem-se elles notar por anomalias quer do sentimento quer da intelligencia, dos instinctos e das inclinações, quer de todas estas espheras ao mesmo tempo. Adquiriram estygmas que os fazem reconhecer immediatamente e agrupar á parte. Além d'isso a tara degenerativa, de que são portadores, traduz-se muitas vezes por anomalias physicas, cuja significação vem junctar-se á das anomalias psychicas concomitantes. Todos estes estygmas são permanentes, nascem com o individuo e só com elle se extinguem. Em caso algum, estes doentes pensam, sentem ou actuam como os individuos de cerebro normal ou como os predispostos simples. Degenerados por accumulação de taras hereditarias, na quasi totalidade dos casos, podem sel-o, comtudo, algumas vezes pela intervenção de momentos etiologicos potentes, cuja acção desorganisadora se exerce sobretudo nas épocas da evolução cerebral, isto é, na primeira infancia: doenças agudas graves, taes como a variola, a escarlatina e a febre typhoide, acompanham-se de lesões cerebraes irreparaveis. Póde-se admittir ainda a acção degenerativa das doenças fetaes, dos traumatismos, n'uma palavra, de todas as causas sufficientemente fortes para lesar materialmente os centros nervosos ou para impedir o seu desenvolvimento. Mas, qualquer que seja a causa degenerativa, hereditaria ou adquirida, os productos são identicos, e entre si comparaveis; são portadores de caracteres clinicos proprios a fazel-os reconhecer em todos os casos, e significativos da tara hereditaria. Comparados aos seus ascendentes directos, differem d'elles totalmente no ponto de vista das aptidões cerebraes: encontram-se visivelmente n'uma situação mental inferior; são seres novos, anormaes, de mecanismo cerebral falseado. A sua situação mental define-se n'uma palavra: o equilibrio entre todas as funcções cerebraes acha-se destruido e não póde recuperar-se. Fóra mesmo dos casos de verdadeira alienação, esta falta de equilibrio é flagrante. Quando deliram, as suas concepções revestem caracteres pathognomonicos: surgem ás menores causas occasionaes, indicio de extrema instabilidade do equilibrio mental. Fóra das causas moraes, cuja influencia é aqui preponderante em razão da extrema emotividade particular d'estes individuos, os proprios momentos physiologicos—a puberdade, a menopause, os menstruos, a prenhez, são causas de perturbação cerebral. N'elles, as doenças geraes acompanham-se frequentemente de delirio; o cerebro tornou-se o locus minimae resistentiae. Os accessos delirantes não teem uma evolução propria: affectam todas as fórmas possiveis e substituem-se com a maior facilidade. A systematisação e a cohesão das concepções delirantes é muito fraca. Não existe nenhuma tendencia á systematisação progressiva. Emfim, os degenerados de maior tara são candidatos a uma demencia precoce, quer primitiva, quer post-delirante»[1].

[1] Magnan et Legrain, Obr. cit., pag. 60 a 62.

Como se infere d'estas passagens, que citamos in extenso, porque resumem toda a doutrina da Escóla de Sant'Anna sobre o assumpto, não ha verdadeiramente, como poderia parecer, um só criterio, à posteriori, o estado mental predelirante, para determinar a presença da degenerescencia, mas muitos. Ao lado, com effeito, de uma estygmatisação psychica, essencialmente consistindo n'um original e irreparavel desequilibrio de funcções cerebraes, apparece-nos a estygmatisação somatica, a feição polymorpha e a marcha irregular do delirio, e, ainda, a desproporção entre a causa occasional, que incide sobre o prediposto, e o effeito que ella produz.

Ora, não é inteiramente facil conjugar entre si todos estes criterios.

Se o degenerado é, como Magnan proclama, um predisposto maximo, e se o grau de predisposição é inversamente proporcional ao das causas occasionaes, porque não é degenerado o delirante chronico, no qual uma vesania irreparavel e perpetua surge as mais das vezes sem causa? Responderá Magnan que o delirante chronico é normal até á invasão da vesania. Mas quem não vê que, se o eminente alienista se não engana, affirmando tal, os seus dois criterios brigam? Por outro lado, como já vimos tambem, a estygmatisação physica apparece algumas vezes nos delirantes chronicos. Como conciliar, n'estes casos, o criterio das anomalias somaticas, indicando degenerescencia, com o da systematisação progressiva do delirio, que a exclue?

Por outro lado, ainda, se o desequilibrio psychico é a principal caracteristica das degenerescencias, porque não considerar degenerados os hystericos e os epilepticos, tão profundamente desharmonicos sempre não manifestações da vida cerebral?

O criterio clinico de Krafft-Ebing é mais extenso que o de Magnan. A presença de um estado de desequilibrio mental antes da invasão da doença, sendo para o psychiatra allemão de uma altissima importancia, não constitue; comtudo, como para o francez, um caracter essencial e imprescindivel do diagnostico da degenerescencia. Fazendo, com enfeito, a distincção entre os predispostos simples e os degenerados, Krafft-Ebing escreve: «Póde ser objecto de discussão saber se um individuo normal até ao apparecimento da psychose, mas procedente de geração psychopatica, deve collocar-se n'um ou n'outro grupo»[1]. O valor maior ou menor da causa occasional póde servir para dissipar as duvidas a este proposito, pois que um dos caracteres distinctivos das psychoses dos degenerados reside precisamente no facto da sua eclosão espontanea ou sob a influencia de minimos agentes provocadores. Este criterio, sobrelevando, na doutrina de Krafft-Ebing, o da presença de um desequilibrio mental anterior á psychose, alarga o ambito da degenerescencia, introduzindo ahi doenças, que Magnan excluiria sob pretexto da normalidade do individuo até á invasão d'ellas. Estão n'este caso, por exemplo, alguns delirios systematisados post-menopausicos.

[1] Krafft-Ebing, Trattato clinico pratico delle malattie mentali, trad. It., vol. II, pag. 3.

Krafft-Ebing separa-se ainda de Magnan, fazendo da periodicidade um dos signaes das psychoses degenerativas, no que é seguido por consideravel numero de psychiatras.

Os confrontos e citações feitos bastam para mostrar como são numerosas as dissidencias dos auctores sobre a constituição nosologica do grupo dos degenerados.

Concluiremos com Pierret que a degenerescencia não é uma doutrina medica e que deve reputar-se um crime ensinal-a?. A nosso vêr, tem tanto de radical e temeraria, como de estreita, uma similhante opinião; proclamal-a, equivale a desconhecer que a maior parte dos progressos theoricos da psychiatria se devem precisamente á introducção d'esse conceito, que, ainda vago e controvertido, póde, comtudo, precisar-se. Porque, devemos notal-o, se as divergencias á hora actual são muitas, não são poucos, nem de insignificante valor no terreno da nosologia, os pontos sobre que se estabeleceu um definitivo accordo. O que a nós se nos affigura é que todas as difficuldades e todos os debates n'este assumpto procedem exclusivamente da falta de um ponto de vista geral e superior.

Quer considerem a degenerescencia nas suas causas, quer nas suas manifestações clinicas, teem os alienistas contemporaneos tratado esta noção como se ella houvesse nascido no terreno da psychiatria e d'elle fosse tributaria, quando a verdade é que, referivel a todos os seres vivos, ella pertence á biologia, onde tem um significado que não é licito esquecer, e que, nos seus traços essenciaes, deverá subsistir, quaesquer que sejam as suas applicações.

Isto viu lucidamente Morel, quando, ao trazer para a pathologia mental essa noção, subordinou o seu sentido psychiatrico ao anthropologico, e este ao da biologia. Infelizmente, o preconceito religioso não permittiu a este homem de genio fazer de um modo correcto essa subordinação, em si mesma necessaria e eminentemente philosophica.

O que é, na sua inicial accepção biologica, a degenerescencia? O desvio pejorativo de um typo natural, a perda, no individuo, das qualidades caracteristicas da especie. Anthropologicamente considerada, a degenerescencia não póde, pois, significar senão a inferioridade do individuo em relação ao typo natural humano. Mas qual é esse typo? Foi a este proposito que na doutrina de Morel se insinuou o prejuizo theologico: esse typo, conservado nas tradições sagradas, teria sido o homem primitivo, paradisiaco depositario de todas as perfeições especificas, mas condemnado, pelo grande facto da queda original, a condições degradantes de lucta com a natureza.

A conclusão a tirar d'este modo de vêr, seria que todos os homens são degenerados; e se, com gravissima offensa da logica, Morel a evitou, não foi senão introduzindo abusivamente a noção de doença no conceito de degenerescencia, que define como desvio morbido de um typo primitivo. A que vem aqui o extranho qualificativo? Se existiu um typo humano especificamente perfeito, que as condições, para elle novas, de conflicto com o mundo começaram a degradar, é evidente que essas condições, pezando sobre os seus descendentes e imprimindo-lhes caracteres, que a hereditariedade transmitte, são causas para todos elles de mais ou menos extensos desvios. E estes, ou são sempre morbidos ou não o são nunca.

Para escapar a esta conclusão, distinguiu Morel entre si essas causas degradativas, affirmando que umas se limitam a provocar variedades ou raças, emquanto outras conduzem a verdadeiras monstruosidades, de existencia felizmente limitada por uma maravilhosa e providencial esterilidade. D'estas duas ordens de desvios, só os ultimos constituiriam degenerescencias, segundo Morel.

Faz dó vêr um homem de genio a debater-se contra phantasmas; e mais entristece reconhecer que os seus erros se transmittiram até nós, reapparecendo em trabalhos contemporaneos, como os de Magnan.

Quem não vê que os iniciaes desvios de typo normal, qualquer que elle seja, podem, por condições imprevistas de cruzamento, progredir ou attenuar-se? E, sendo assim, quem não vê tambem que uma anomalia de ordem psychica ou moral póde tanto desvanecer-se nos descendentes como transmittir-se e accentuar-se até á monstruosidade? O proprio Morel, reconhecendo a tendencia da natureza á reconstituição do typo especifico normal, admittiu a regeneração ao lado da degenerescencia. A monstruosidade não é, pois, a degenerescencia mesma, mas o seu termo, o seu limite, aquillo para que no processo degradativo se caminha, dadas infelizes condições geradoras.

Mas, se o criterio de Morel foi falseado pela intervenção de um extranho elemento religioso, é certo que a sua maneira de atacar o problema é a unica legitima.

É, com effeito, como um desvio do typo humano que a degenerescencia tem de ser definida em anthropologia. Sómente, esse typo tem de ser procurado, não nos dominios da tradição e para traz de nós, mas no terreno da previsão scientifica e para diante. Não sendo o homem primitivo da lenda, que a anthropologia reduziu ás humildes proporções de um animal apenas differenciado dos mamiferos superiores, esse typo é um ideal para que podemos suppôr que a humanidade caminha e de que, na sua evolução, procura incessantemente approximar-se.

Mas como determinar-lhe os attributos sem cair nas incertezas da phantasia? Surprehendendo as linhas de evolução physica e psychica da nossa especie a partir d'esse remoto representante selvagem até hoje. Assim, para só fallarmos da evolução psychica, nota-se que, intellectualmente, o homem partiu da ideação theologica para attingir a scientifica, que, nos dominios do sentimento, derivou de um egoismo feroz para chegar a affectos altruistas, emfim, que, no campo da acção, procedeu de um automatismo impulsivo para conquistar a vontade. Conhecida esta orientação, está achado o meio de approximadamente constituir o typo, cujos regressivos desvios, sejam quaes forem as causas que os provoquem, constituem degenerescencias no sentido anthropologico do termo.

Este sentido, porém, não é precisamente o da psychiatria.

Anthropologicameme considerada, a loucura é sempre uma degenerescencia, porque em todas as suas multiplas fórmas implica um desvio regressivo, total ou parcial, extenso ou limitado, provisorio ou definitivo do typo que definimos.

Psychiatricamente, porém, não é assim. Se o desvio é reparavel dentro da vida individual, se elle constitue um accidente ephemero, dependendo muito menos de uma falta inicial e congenita de resistencia do que da gravidade e continuidade das causas productoras, a loucura não se considera degenerativa; é-o, pelo contrario, se constitue um estado irreparavel, subsistente, espontaneo ou derivado de insignificantes causas e accusando, portanto, uma inferioridade constitucional.

Mas já nas loucuras não degenerativas, nas psychonevroses, o germe da degenerescencia existe; cruzamentos infelizes o desenvolverão na descendencia, mercê da hereditariedade; e eis porque, podendo ter as mais variadas causas, as loucuras degenerativas teem sido chamadas hereditarias. Por outro lado, nas fórmas degenerativas menos graves, a regeneração é ainda possivel, mercê de cruzamentos felizes, pois que a hereditariedade tanto capitalisa as boas como as mas tendencias. Isto é dizer que a distincção psychiatrica das psychonevroses e das degenerescencias não tem nada de absoluta, desde que, em vez de considerarmos os casos extremos das duas escalas, fixamos os mais proximos.

Dizer com Magnan que o atavismo não implica degenerescencia, porque um typo regressivo seria normal, emquanto que um degenerado é um doente, que o primeiro, entregue a si, caminharia para diante, como fizeram os o contemporaneos da época por elle representada, ao passo que o segundo marcharia para a extincção pela infecundidade, é commetter um duplo erro: não comprehender que o atavismo humano é sempre parcial e incompleto, consistindo na revivescencia d'algumas qualidades ancestraes, e não reconhecer que a regeneração aos degenerados superiores se torna, em certas condições, possivel. Pois é acaso fatal que a descendencia de um phobico ou de um impulsivo, que são para Magnan incontestaveis degenerados, venha a liquidar pela idiotia esteril?

E esse phobico e esse impulsivo não são, pelo facto mesmo do seu terror e do seu automatismo indisciplinado, exemplares de atavismo parcial?

Comprehende-se que, a não fazermos um livro do que deve ser apenas um final capitulo d'este Ensaio, nos cumpre suspender considerações, que o assumpto comporta, mas que se não prendem immediatamente com o nosso thema. O que acabamos de dizer sobre as degenerescencia em geral, conjugando-se com o que foi dito sobre o atavismo intellectual dos delirantes systematisados, justifica largamente a conclusão de que a Paranoia é uma degenerescencia.

BIBLIOGRAPHIA

TRABALHOS FRANCEZES:

FOVILLE—La folie avec prédominence du délire des grandeurs;

GARNIER—Des idées de grandeur dans le délire de persécutions;

GÉRENTE—Du délire chronique;

KÉRAVAL—Des délires plus on moins coherents designés sons le nom de
Paranoia
(Archives de Neurologie, vol. XXIX);

LEGRAIN—Du délire chez les dégénérés;

LASÈGUE—Le délire de persécutions;

MAGNAN—Le délire chronique à evolution systematique;

MAGNAN—Leçons cliniques sur les maladies mentales;

MAGNAN ET LEGRAIN—Les dégénérés;

RÉGIS—Manuel pratique de médecine mentale;

SÉGLAS—La Paranoia (Archives de Neurologie, vol. XIII).

TRABALHOS ALLEMÃES:

CRAMER—Abgrenzung und Differencial Diagnose der Paranoia (Allg.
Zeitschr. f. Psychiatrie, vol. II);

FRITSCH—Die Verwirrtheit (Jahbücher f. Psych., vol. II);

KRAFFT-EBING—Lehrbuch der Psychiatrie;

KRAEPELIN—Compendium der Psychiatrie;

MEYNERT—Klinische Vorlesüngen über die Psychiatrie;

MENDEL—Paranoia (Real Encyclopedie);

MERKLIN—Studien über die primäre Verrücktheit;

SCHÜLE—Klinische Psychiatrie;

SALGO—Compendium der Psychiatrie

WERNER—Die Paranoia.

TRABALHOS ITALIANOS:

AMADEI E TONNINI—La Paranoia e la sue forme (Archivio italiano per le malattie nervose, 83-84);

BUCCOLA—Sui delirii sistematisati (Rivista di Freniatria, vol. VIII);

TANZI—La Paranoia (Rivista di Freniatria, vol. x);

TANZI E RIVA—La Paranoia (Rivista di Freniatria, vol. X, XI e XII);

TONNINI—La Paranoia secundaria (Rivista di Freniatria, vol. XIII).

TRABALHOS INGLEZES E NORTE-AMERICANOS:

CLOUSTON—Clinical lectures on mental diseases;

HAMMOND—A Treatise on insanity;

HAC TUKE AND BUCKNILL—A Manual of Psychological medicine;

MAUDSLEY—Pathlogy of Mind;

SPITZKA—A Manual of Insanity.

INDICE

PREFACIO

PRIMEIRA PARTE

HISTORIA DOS DELIRIOS SYSTEMATISADOS

I—PHASE INICIAL

De Areteo a Esquirol—Confusão dos delirios systematisados com a melancolia—A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e expansiva.

II—PHASE ANALYTICA

De Lasègue a J. Falret e de Griesinger a Snell e Sander—O delirio de perseguições; a megalomania; o delirio dos perseguidores; a Verrücktheit secundaria; a Verrücktheit originaria—Começo de interpretação pathogenica.

III—PHASE SYNTHETICA

De Morel a Magnan; de Westphal a Cramer; de Buccola a Tanzi e Riva—A loucura hypocondriaca; o delirio chronico; a loucura parcial; a Verrücktheit aguda e chronica; a Paranoia; a delusional insanity—Determinação pathogenica.

SEGUNDA PARTE

EXAME CRITICO DO CONCEITO DE PARANOIA

I—O DELIRIO CHRONICO

A etiologia; a marcha; o prognostico—Confronto com os delirios polymorphos—A passagem do periodo persecutorio ao ambicioso não é vulgar; a passagem á demencia é excepcional—O delirante chronico é um degenerado; importante observação pessoal—A prognose dos delirios polymorphos é muitas vezes a do Delirio Chronico—Dois conceitos de Delirio Chronico no espirito de Magnan; génese do segundo.

II—A VERRÜCKTHEIT AGUDA

Dois grupos de psychoses sob a mesma designação; a confusão mental e os delirios polymorphos—A Verrücktheit e os delirios incoherentes, critica das opiniões de Schüle—A Verrücktheit e os delirios systematisados de marcha aguda; a critica das opiniões de Krafft-Ebing—Observação pessoal—Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.

III—A VERRÜCKTHEIT SECUNDARIA

Os delirios systematisados que succedem ás psychonevroses; sua interpretação pathogenica—A opinião de Tonnini; modificação introduzida —Dissociação dos conceitos de Paranoia e Verrücktheit.

IV—O RACIOCINIO E OS DELIRIOS PARANOICOS

Erros doutrinarios de Lasègue e Foville sobre a interpretação pathogenica dos delirios systematisados; como se perpetuaram na psychiatria francesa—A autoobservação e o raciocinio não representam um papel na génese dos delirios paranoicos—Depoimento dos factos—A primitividade dos delirios paranoicos; sua origem ideativa.

V—AS ALLUCINAÇÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS

VI—AS OBSESSÕES E OS DELIRIOS PARANOICOS.
VII—A PARANOIA E A DEGENERESCENCIA

Extensão do conceito de degenerescencia; desaccordo dos auctores—Causas de degenerescencia; opiniões diversas—A degenerescencia e a observação clinica; modo de vêr de Magnan; opinião de Krafft-Ebing—Necessidade de um ponto de vista geral; seu caracter anthropologico—A definição de Morel; o seu defeito essencial—A noção do atavismo em psychiatria; as idéas de Magnan e a sua falta de fundamento—Ponto de vista de Tanzi e Riva; documentos justificativos—A Paranoia é uma degenerescencia.

BIBLIOGRAPHIA