The Project Gutenberg eBook of Sol de Inverno

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Title: Sol de Inverno

Author: António Joaquim de Castro Feijó

Release date: October 13, 2006 [eBook #19532]

Language: Portuguese

Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

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SOL DE INVERNO

OBRAS POÉTICAS, COMPLETAS DE ANTONIO FEIJÓ

Sacerdos Magnus, 1881. Transfigurações, 1882. Lyricas e Bucolicas, 1884. Cancioneiro chinês, 1903 (2.^a edição). Ilha dos Amores, 1897. Bailatas, 1907. Sol de Inverno, 1922. Novas Bailatas, no prelo.

Nota: As Bailatas foram publicadas sob o pseudónimo de Ignacio de
Abreu e Lima
.

[Figura: Antonio Feijó]

ANTÓNIO FEIJÓ

Sol de Inverno

ULTIMOS VERSOS

(1915)

Livrarias AILLAUD e BERTRAND PARIS-LISBOA 1922

Tip. do Anuário Comercial—Praça dos Restauradores, 24—Lisboa

PREFACIO

I

Com o Sol de Inverno, que, n'este volume, vê a luz da publicidade, e com as Novas Bailatas, que vão entrar no prelo, a obra poetica de Antonio Feijó encerra-se por duas magnificas affirmações do seu alto, delicado e gentilissimo talento. A sua Musa emmudece para sempre. A sua lyra quebra-se. Esses dois livros posthumos são o seu harmonioso canto do cysne… É um grande poeta e um grande artista do verso que dizem o supremo adeus á sua arte, exercida com tanta paixão e tanta nobreza!

Esses livros deixou-os o Auctor dispostos, coordenados, paginados, revistos minuciosamente, para os fazer imprimir. A morte permittiu-lhe, ao menos, cuidar d'esse legado valioso e opulento, que ia testar á litteratura patria. Quando ella o surprehendeu, a 20 de junho de 1917, o trabalho estava acabado.

Mas o mundo ardia em guerra. A Europa era um campo de batalha gigantesco em que os povos, como os Titans da gigantomachia do mytho hellenico, luctavam braço a braço, trucidando-se em torrentes de sangue. As communicações entre a Suecia, onde Feijó fallecera, no seu posto diplomatico, e Portugal, estavam quasi cortadas. Os preciosos e insubstituiveis originaes não podiam ser confiados a transportes aventurosos, a correios irregulares e incertos, ás suspeitas da censura dos belligerantes, aos riscos dos torpedeamentos maritimos. Foi preciso que a paz se fizesse emfim e, com ella, a ordem e a normalidade da vida internacional começassem a restabelecer-se n'esta convulsionada Europa, para que o espolio litterario de Antonio Feijó pudesse vir com segurança para Portugal, trazido pelas mãos dos seus proprios filhos.

A mim, seu velho companheiro e camarada, a elle ligado, desde os dezoito annos, pela mais fraterna amizade, foi confiado o encargo de superintender na publicação d'esses livros e de a preceder de algumas palavras em que se esboce o perfil do Auctor e se ponham em justo relevo os meritos eminentes da sua bella obra.

Encargo, ao mesmo tempo doloroso e grato, em que, á profunda saudade do querido amigo morto, se juntou o enlevo espiritual de me absorver nas altas emoções estheticas que a leitura d'esses dois livros tão intensamente me fazia sentir!

Com que doce melancholia, com que piedoso recolhimento, com que commovida curiosidade, com que alvoroçado interesse eu folheei os dois originaes, copiados á machina, mas, quasi a cada pagina, emendados pela sua lettra, com os offerecimentos aos seus amigos traçados pelo seu punho, com os appendices, em que se archivavam os juizos criticos das suas obras anteriores, por elle proprio coordenados!

Era o seu espirito que, d'essas frias regiões scandinavas, para onde os azares da vida haviam exilado esse meridional de tão viva e ardente imaginação, era o seu espirito que de lá nos vinha n'essas paginas, palpitantes de emoção lyrica, sonoras de rythmos musicaes e de rimas harmoniosas, todas refulgentes do esplendor das imagens e da pureza plastica d'uma forma impecavel! Esse dom de immortalidade espiritual, de revivescencia dos mortos na memoria das suas altas acções ou no esplendor das suas grandes obras, senti-o, n'essa hora, tão profundamente, que o meu coração, por momentos, se hallucinava, dando-se a illusão de que era o proprio poeta que me estava recitando as suas ultimas poesias, n'aquella dicção perfeita que tanto fazia realçar as qualidades do seu verso!

Era com a sua alma que eu estava em contacto tambem,—com a sua alma nos derradeiros annos da sua vida,—porque, n'esses livros, havia muito dos seus affectos, dos seus pensamentos intimos, das suas alegrias e esperanças, das suas mágoas, da suas torturas, das suas dolentes nostalgias…

Ambos elles estavam concluidos e preparados para o prelo antes d'aquelle supremo infortunio da sua vida, que foi a perda da sua adorada mulher, levada pela morte em setembro de 1915, ainda em plena mocidade e em todo o encanto da sua grande elegancia e brilhante formosura.

O offerecimento do Sol de Inverno não é feito á sua memoria, mas a ella ainda viva e presente no lar domestico. Nas cartas que d'elle recebi no curto periodo da sua viuvez,—uns vinte mezes,—referia-se aos dois livros como a uma obra feita. Depois do golpe, de cuja incuravel ferida lhe havia de resultar, mais tarde, a morte, não appareceram, nos seus papeis,—que eu saiba,—vestigios d'um regresso á actividade litteraria. D'isso me fallava ás vezes, quando me escrevia, mas como d'uma intenção, não como d'um facto.

Sol de Inverno e Novas Bailatas devem conter, portanto, as derradeiras producções poeticas de Antonio Feijó. São o fecho da sua obra e são realmente um remate superior, em que o seu talento e a sua arte se ostentam em plena maturação e plena mestria. Não lhe foi dado a elle assistir ao seu maximo triumpho litterario, á publicidade d'aquelle dos seus livros, o Sol de Inverno, que o qualifica, definitivamente e sem favor, um grande poeta.

A esse triumpho tambem os seus amigos não assistem com aquelle jubilo que experimentariam se lhe pudessem manifestar a sua admiração, se pudessem acclamal-o a elle em pessoa, não apenas á sua memoria e ao seu nome, agora gloriosamente consagrados.

Por mim, fal-o-ei n'esta evocação da saudade, que é o conforto da alma no declinar da vida e tem o dom maravilhoso de resuscitar espiritualmente os mortos.

Se julgo poder dominar as suggestões da amizade ao tratar da obra d'um tão grande amigo, não me é, por outro lado, possivel fallar d'elle sem que, a cada passo, esse affecto fraterno não transpareça nas minhas palavras, sem que tenha de referir-me ás nossas intimas relações, mettendo o leitor na confidencia de velhas lembranças pessoaes, que para elle podem, comtudo, ter interesse, por dizerem respeito a uma tão notavel individualidade.

II

Por fins de outubro de 1877,—pouco falta para a conta d'um longo meio seculo!—em Coimbra, um bando alegre de novatos de Direito, no intervallo de duas aulas, subia ruidosamente a ingreme escada da torre da Universidade, e, lá do alto, n'um largo desafogo, estendia a vista por esse incomparavel panorama do valle do Mondego, entre cujo legendario quadro lhes ia correr todo um lustro de intensa vida mental, de tremendas controversias de ideias, de extases poeticos, de sonhos de juventude, de esperanças, de chimeras,—essa divina florescencia do espirito, que marca, na nossa existencia, o seu momento superiormente bello e culminantemente feliz.

Eu era d'esse grupo. Mal nos conheciamos de vista uns aos outros: havia apenas coisa d'uma semana que, pela primeira vez, nos juntaramos nos bancos da nossa aula. Vinhamos de todas as provincias de Portugal: como acontecia sempre nos grandes cursos de Direito, havia, entre nós, minhotos, transmontanos, beirões, extremenhos, alemtejanos, algarvios, ilheus,—cada um com o seu typo ethnico, o seu sotaque regional. Ao acaso, misturavamo-nos, entabolavamos conversas superficiaes, trocavamos impressões rapidas, no deslumbramento d'essa visão de belleza que se estendia, deante dos nossos olhos, da montanha á planicie, da mancha azulada e longinqua da serra da Louzã á ridente campina do Mondego, tocada já pelos tons d'oiro do outomno.

N'essa casual communicabilidade, achei-me a conversar com um rapaz, ao lado do qual havia feito a esfalfante escalada da torre. Era um bello moço, de hombros largos e um tanto cheio de corpo, cabello ligeiramente aloirado, pelle clara e uns olhos castanhos sorridentes e um nada maliciosos, atravez dos quaes como que se lhe via a clara intelligencia e o vivo espirito.

Dissemos meia duzia de coisas vagas sobre a paisagem, sobre Coimbra, sobre os interessantes aspectos da velha Universidade, vista assim do alto, no conjuncto irregular dos seus corpos assymetricos. Facilmente nos descobrimos inclinações litterarias, citámos livros, fallámos de escriptores, de poetas… E, d'esse encontro fortuito, d'esse momento inolvidavel d'uma forte emoção de esthesia, partilhada por duas almas apenas sahidas da adolescencia, nasceu, entre mim e Antonio Feijó, uma amizade de irmãos, uma camaradagem de espirito, uma estreita communhão moral, que, sem sombras, nem collapsos, mesmo através de longos afastamentos, durou quarenta annos e só a Morte,— só ella, a implacavel ceifeira das minhas grandes amizades!—logrou cortar…

Pouco depois, já no decorrer do primeiro anno do seu curso, Feijó revelava-se um poeta á sua geração academica.

Lembro-me perfeitamente dos primeiros versos que, d'elle, li. Appareceram na Sebenta da cadeira de Direito Romano. As Sebentas, por esse tempo, juntavam, ás vezes, á utilidade das suas funcções pedagogicas, o innocente deleite d'uma ou d'outra perpetração litteraria, em que ensaiavam as azas aquelles, do Curso, a quem a Musa já provocava e seduzia…

Um condiscipulo nosso, o bom João Martins, de Redondo, havia, n'uma lição, estadeado uma vasta sabedoria, citando Ortolan com abundante facundia.

Dois dias depois, a Sebenta inseria, em appendice, este soneto anonymo:

Quando o Martins deita falla
Sobre o Foral de Leão,
Palpitam de commoção
Todos os cantos da sala.

Em saber ninguem o eguala!
Merece uma distincção
Quem refuta San Simão
E o positivismo abala;

Quem leva ao fundo chaótico
Do Codigo Wizigothico
A branca luz da manhã,

E, sendo um poço de sciencia,
Nos prova que, em descendencia,
É bisneto de Ortolan!

Esta leve boutade satyrica, d'uma factura correcta, bem versificada, bem rimada, revelando uma facil e fina veia humoristica, fez successo. O auctor escondera-se. Mas, dias depois, alguem o descobriu. Era Feijó.

Não tardou muito que o seu nome passasse a ser conhecido nas rodas litterarias de Coimbra. Já em Braga, onde fizera os preparatorios e onde então João Penha, esse perfeito versificador, doutor «a quem as Musas não fizeram mal», era venerado, e com justiça, como um mestre,—já em Braga Feijó havia publicado, nas secções litterarias dos jornaes da terra, algumas composições que denunciavam as suas notaveis disposições poeticas. Era mais um poeta que o norte do paiz mandava a esse Parnaso de Coimbra, onde, á falta d'uma Faculdade de Lettras, a doce paisagem, os melancholicos olivedos do Penedo da Saudade, o encanto do Mondego, com os seus pallidos renques de salgueiros, os seus laranjaes todos floridos e rescendentes nas noites de maio, com os seus orpheons de milhares de rouxinoes, com os seus luares de sonho que tudo espiritualisam, e, sobre isto, a tradição dos grandes poetas que, desde Camões e o bom Sá, por alli passaram, iniciavam as almas novas nas emoções do lyrismo, desde a graça bucolica do idylio ou da egloga á saudosa plangencia da elegia.

A geração academica, que, por esse tempo, floria em Coimbra, está, póde dizer-se, na derradeira phase da sua declinação, vae a apagar-se de todo no crepusculo do seu occaso. Talvez metade d'ella se tenha sumido já na voragem da morte. E, dos que restam, muitos viram já passada a sua hora, aquella em que a sua personalidade plenamente se revelou no campo de acção para onde as suas faculdades os levaram. A successão das gerações parece vertiginosa a quem observa a diluição d'aquella a que pertenceu nas sombras do tumulo ou no silencio do esquecimento…

E, comtudo, essa geração não foi inteiramente infecunda em individualidades de accentuado valor. D'ella sahiram homens publicos que longo tempo occuparam o tablado politico, homens de lettras que marcaram na vida litteraria do seu tempo, homens de sciencia, professores abalisados, causidicos illustres, artistas notaveis,—e até soldados heroicos e gloriosos, porque, entre os nomes dos que mais vieram a illustral-a, se conta o de Mousinho d'Albuquerque. Foi a geração que celebrou, entre magnificas festas litterarias e artisticas, o Centenario de Camões. Foi a geração que veio a exercer a sua influencia na vida nacional na passagem do seculo XIX para o seculo XX.

Seria uma diversão descabida e longa o tentar agora julgal-a nos seus merecimentos e defeitos, o procurar fixar as caracteristicas do seu espirito e criticar as suas idéas e a sua acção. Mas póde dizer-se que foi uma geração culta, uma geração activa sem impulsivos nervosismos revolucionarios, uma geração intellectualmente equilibrada e até disciplinada, uma geração que começou a romper com as formulas doutrinarias e a vêr com senso critico os problemas philosophicos, as questões politicas e as theses estheticas. D'isto lhe proveio, talvez, aquella pontasinha de scepticismo intellectual que, até certo ponto, lhe contaminou a vontade. Esta faculdade precisa do apoio da convicção e da fé para não fraquejar na suas funcções directivas da acção humana.

Litterariamente, ella produziu, sobretudo, poetas. Jayme de Magalhães Lima e Trindade Coelho foram dos seus poucos prosadores. O verso teve mais quem o cultivasse. E alguns d'esses cultores fizeram-n'o notavelmente, como Feijó, Coelho de Carvalho, Silva Gayo, Luiz Osorio, Queiroz Ribeiro, Alfredo da Cunha, para citar apenas os que persistiram no officio e, pela publicação das suas obras, se cathegorisam escriptores, por assim dizer, profissionaes.

Por esse tempo, as influencias dominantes estavam n'um momento de transição. Passava-se do romantismo grandiloquente e hyperbolico de Hugo, da apaixonada e vehemente sensibilidade de Musset, do satanismo artificial e elegante de Baudelaire para a arte plastica, esculptural e rutilante do parnasianismo, de que eram corypheus illustres Gautier, o parfait magicien ès lettres, Bainville, o virtuose do verso, o correcto e delicado Coppée, o solemne e marmoreo Leconte de Lisle, e Sully Prud'homme, e Dierx, e Heredia, o inimitavel cinzelador e esmaltador, cujos sonetos, ainda não colligidos nos esplendidos Trophées, nos appareciam, uma ou outra vez, nas revistas litterarias francezas.

Dos nossos, admirava-se, enthusiasticamente, João de Deus, Anthero,
Junqueiro, Gomes Leal e apreciava-se com deleite Penha e Gonçalves
Crespo,—todos esses que haviam sido os mestres das gerações anteriores.

O espirito de Feijó vasou-se n'estes moldes e reflectiu as phases d'essa evolução do gosto litterario. Mas, com o tempo, a sua individualidade caracterizou-se, marcou n'um forte relevo o seu perfil. A sua emoção avivou-se e afinou-se. A sua technica apurou-se, desenvolveu recursos excepcionaes. E assim se foi formando, de livro em livro, essa alta figura litteraria,—uma pura e nobre figura de artista, consciencioso até á meticulosidade no exercicio da sua arte, um mestre do verso e um mestre da lingua, que, na sua obra, pouco volumosa, mas de indiscutivel superioridade—pauca sed bona—deixou indelevelmente marcada a grandeza do seu talento.

III

Um mestre, sim! Elle foi-o, não só entre os da sua geração, mas tambem e mais largamente na nossa poesia contemporanea. Porque ninguem o excedeu no manejo do verso, ninguem o trabalhou com mais correcção metrica, mais relevo na phrase, mais arte, mais pericia technica, ninguem lhe deu mais ductilidade, mais elegancia, mais harmonia, mais sonoridade, mais riqueza de rimas, mais graça de rythmo, do que o poeta excellente do Cancioneiro Chinez, da Ilha dos Amores, do Sol de Inverno.

Nem durezas, nem frouxidões, nem hiatos, nem cacophatons, nem alliterações mal soantes, nem muletas, nem rimas forçadas, nem impropriedades arrepiadoras, nem a banalidade das imagens e das phrases feitas, como clichés sempre promptos para qualquer reproducção.

Já nas Transfigurações e nas Lyricas e Bucolicas, que são as suas juvenilia, esse poder e segurança de technica se haviam revelado. Mas foi no Cancioneiro Chinez que se affirmaram decisivamente. Feijó attingiu ahi o inexcedivel. Ainda me recordo do encanto com que Anthero saboreava essas pequenas composições, finamente desenhadas e coloridas como uma delicada pintura em porcelana ou um cloisonné ricamente esmaltado, commentando-as com um sobrio «É perfeito!»—que, em tal bocca, valia os mais extensos e laudatorios artigos de critica.

Sobre as traducções em prosa de Judith Gautier e embebendo-se, num estudo profundo do assumpto, do espirito do lyrismo chinez, elle tentou e levou a cabo essa paciente e admiravel reconstrucção que é o Cancioneiro, dando á poesia nacional um raro e magnifico exemplar da arte do verso.

Na Ilha dos Amores, o seu lyrismo intensifica-se e define-se, a sua arte firma-se e completa-se.

A sensibilidade lyrica palpita nas tres partes do livro, quer n'essas «velhas canções d'amor» da Ilha, (onde ha uma lindissima Ignez, tão intensamente dolorida, e uma admiravel Lady D. João, d'um baudelairianismo profundo e vibrante), quer nas adoraveis oitavas do Auto do meu affecto, tocadas da mais delicada graça, quer nas diversas poesias que formam a Alma triste, entre as quaes se encontram, nas mais variadas notas, verdadeiras maravilhas d'arte.

Na plena posse dos seus dons de grande artista, o poeta realiza ahi o seu anceio de perfeição plastica no verso, que elle nos formula n'estes soberbos alexandrinos:

Oh Musa Antiga, d'olhos placidos, rasgados
No marmore d'um busto aureolado e sereno!
Inspira-me e desvenda aos meus olhos nublados
A graça e a proporção do sentimento helleno.
Revela-me num gesto os mais altos modelos
Do Verso lapidar, para n'elle esculpir
Com encantos de deusa e doirados cabellos,
Essa flôr de volupia a tremer e a sorrir!
Ensina-me em segredo o genio incomparavel
De poder transformar os versos que componho,
E d'um jacto fundir, com uma arte impeccavel,
N'um distico immortal, a visão do meu Sonho!
Basta o oiro do Sol para a côr dos cabellos;
Para os olhos azues basta o azul crystallino,
Se o Verso lapidar souber circunscrevel-os
N'um jambo grego ou n'um hexametro latino!…

Por entre este estrato lyrico rompem, na sua obra, veios de humorismo, onde, n'um tom faceto, o poeta mantem todas as suas eminentes qualidades de versificador.

Nas Bailatas, dadas a lume sob o pseudonymo de Ignacio d'Abreu e Lima, o fidalgo senhor do Castello de Anha, estheta enygmatico e extravagante, reuniu Feijó as composições d'este genero. E deixou nas Novas Bailatas, cuja impressão se seguirá á d'este livro, uma segunda série d'essas originalissimas poesias, mixto singular de ironia e de sensibilidade, de graça buffa e de melancholia, que, ás vezes, parecem haver sido escriptas por um Pierrot, ao mesmo tempo sentimental e charivárico.

N'ellas ha, realmente, um fino espirito de farça, um extranho tom joco-serio, transições bruscas da emoção para a gargalhada e da folia incoherente para as lagrimas. A phrase mais grave termina n'uma sahida jogralesca. A phantasia mais comica detona n'um grito de dôr.

Algumas d'essas poesias, como Sideria, Felina, Lithurgica e outras, são antigas e encantadoras parodias do decadismo e do symbolismo, que, um momento, despontaram e floriram na litteratura portugueza. Rimas difficeis e imprevistas, rythmos confusos e atropellados, alliterações onomatopaicas, imagens exoticas e sybillinas,—tudo isso, que era a essencia d'aquella esthetica e d'aquella prosodia, é manobrado com uma dextreza inegualavel, uma phantasia surprehendente, fazendo, d'essas caricaturas, trabalhos do mais fino e requintado acabamento artistico.

Até n'essas pochades em que elle desenfadadamente se comprazia, dando sahida á sua vis comica, se sentia a mão habil e maravilhosa do mestre.

IV

Mas Sol de Inverno é, sem duvida, a sua obra prima.

No frontespicio, por baixo do titulo,—na realidade bello, mas talvez suggerido por uma excessiva modestia e, por isso, improprio, como vou explicar,—o poeta traçou estas palavras: ultimos versos. E foram-n'o, de facto. Não porque o seu inverno fosse já tão adeantado que o sol do seu talento não pudesse fulgurar ainda demoradamente no horizonte d'uma dilatada vida. Não: o seu inverno ia apenas começar. Feijó não contava então, mais de 57 annos. Ainda se podia considerar no seu outomno. Mas parece que aquellas duas palavras, tristes como um distico tumular,—o epitaphio da sua Musa,—exprimiam um presentimento fatidico.

Esse anno de 1915, em que elle coordenou e preparou o seu livro para o entregar ao prelo, foi-lhe terrivelmente angustiado e doloroso. A esposa estremecida, a quem o consagrava no verso tão profundamente amoroso de Martial, debatia-se nos soffrimentos d'uma longa e torturante doença que no mez de setembro veio a ter o seu desenlace fatal. A desgraça ameaçava-o, pois, sinistramente. E elle adivinhava que não seria longa (como não foi) a sua resistencia ao golpe rude e cruel que sentia imminente.

É claro que muitas das poesias colleccionadas no volume não são d'essa epocha atribulada. E, assim, o sol que alli brilha tem muitas vezes, não apenas a doce e serena luminosidade do outomno, mas até o fulgor ardente d'um meio-dia estival.

N'esse livro, o seu talento, inteiramente amadurecido, fructifica esplendidamente. Está alli todo o seu coração, como está todo o seu pensamento,—porque, n'esta derradeira phase, a sua poesia não nos dá sómente emoções, mas suggere-nos tambem ideias. Na soberba serie dos hymnos, póde dizer-se que se encerra toda uma philosophia. Ahi Feijó ala-se ás regiões mais altas da poesia, áquellas que só attingem os grandes espiritos. São odes sublimes, de um largo e poderoso sopro, onde a sua alma se abre toda na adoração da Vida, da Belleza e da Alegria, se contorce nos transes da Dôr, se embebe na melancholia da Solidão ou se abysma na meditação hamletica da Morte.

De todas as peças d'este hymnario, a ultima é talvez a maior, a mais profunda. E encerra uma exegése da morte subtilmente verdadeira. A sensação e a dôr da morte não estão no phenomeno da morte physica, em si, no termo da nossa vida material. Estão na lenta morte moral do nosso coração, no desapparecimento successivo dos que amamos e que levam, a pouco e pouco, comsigo, para o mysterio do tumulo, pedaços vivos da nossa alma.

Toda essa ideia está admiravelmente expressa n'estas quatro esplendidas quadras.

Quantas vezes, na angustia, o soffrimento invoca
O teu suave dormir sob a leiva de flores!…
A morte que, sem dó, me tortura e suffoca,
É outra—essa que em nós cava sulcos de dores.

Morte que sem piedade, uma a uma, arrebata,
Como um tufão que passa, as nossas affeições,
E deixando-nos sós, lentamente nos mata
Abrindo-lhes a cova em nossos corações.

Parenthesis de sombra entre o poente e a alvorada,
Morrer é ter vivido, é renascer… O horror
Da morte, o horror que gera a consciencia do Nada,
Quem vive é que lhe sente o afflictivo travor.

Sangue do nosso sangue, almas que estremecemos,
Seres que um grande affecto á nossa vida enlaça,
—Somos nós que a sua morte implacavel soffremos,
É em nós, é em nós que a sua morte se passa!

Esta poesia, que Feijó, ahi por 1913, me mandou de Stockholmo para Londres, onde então eu residia, fôra-lhe inspirada pela morte recente d'um nosso amigo commum. E aos seus mortos, parentes e amigos, a consagrou, como se vê do distico votivo que a precede: Meorum amicorumque pie manibus.

Toda uma intensa emotividade freme n'esse verdadeiro hymno sagrado, de tão largo folego. Os que accusavam Feijó de frio e impassivel teem, n'elle, como em muitas outras composições do Sol de Inverno, um formal desmentido ao seu reparo. E, entre essas outras, citarei, especialmente, essa torturada e angustiada Supplica ao Vento, de que transborda toda a desolada nostalgia do exilio. Poucas vezes, desde Ovidio, lembrando, tambem, nas neves do Ponto Euxino, a doçura radiosa do céu do Lacio, uma voz de desterrado cantou mais amargamente e com tão empolgante emoção as suas mágoas, as recordações da terra natal, a ancia de a rever em toda a sua surprehendente formosura. São queixumes elegiacos, perdidos apellos d'uma alma dilacerada, apostrophando o Vento que passa, a galopar vertiginosamente nos espaços, e supplicando-lhe que leve á terra risonha e luminosa e ao claro e cristalino rio, que a viram surgir á vida, o seu amor soluçante e lacrimoso. Não se leem esses patheticos tercetos sem uma crispação dolorosa de toda a alma. Mais d'uma vez ouvi suspender a sua leitura a vozes subitamente embargadas pelas lagrimas.

Já, na Alma Triste, essa incuravel nostalgia transparece em algumas poesias alli reunidas. É ella, mesmo, como um leit-motiv favorito. Domingo em terra alheia, Soliloquio do Outomno, No mez de Abril, Silencio, No campo, Inverno, ressumam as melancholias d'um espirito esmagado pelas brancas avalanches das neves hyperboreas e sempre saudoso do ardente e claro sol do seu paiz distante.

Ouçamos as lindas quadras finaes do Inverno, onde esse sentimento tão docemente se exprime:

Nasci á beira do Rio Lima,
Rio saudoso, todo crystal;
D'ahi a angustia que me victima,
D'ahi deriva todo o meu mal.

É que nas terras que tenho visto,
Por toda a parte por onde andei,
Nunca achei nada mais imprevisto,
Terra mais linda nunca encontrei.

São aguas claras sempre cantando,
Verdes collinas, alvôr d'areia,
Brancas ermidas, fontes chorando
Na tremulina da lua-cheia…

É funda a mágoa que me exaspéra,
Negra a saudade que me devora…
Annos inteiros sem primavera,
Manhãs escuras sem luz d'aurora!

Oh meus amigos, quando eu morrer,
Levae meu corpo despedaçado,
Para que eu possa, já sem soffrer,
Dormir na Morte mais descansado!

V

A critica inscreveu o nome de Antonio Feijó no rol dos parnasianos portuguezes.

Não discutamos essas classificações d'escolas, que nem sempre são precisas, nem fundamentaes. Se o parnasianismo se caracteriza, de facto, pelo rigoroso cuidado da forma, pelo culto da belleza verbal, das linhas marmoreas da phrase, do seu corte lapidar, da riqueza das rimas, da euphonia dos rythmos, do poder evocativo das imagens,—Feijó pode chamar-se, com acerto, um parnasiano. A miudo elle repetia o preceito de mestre Theo: Ce qui n'est pas bien fait, n'est pas fait. Mas o que elle foi, na verdade, sem contestação e fundiariamente, foi um lyrico, na mais ampla plenitude da designação.

Toda a sua obra é dominada por essa nota emotiva, por esse accento de viva sensibilidade que constituem a essencia do lyrismo. O amor, o eterno amor, o enlevo da belleza, as torturas da paixão, as suaves melancholias, os tedios enervantes, as graças preciosas da galanteria,—são a substancia psychica da sua poesia.

Essas emoções sabia elle cristalisal-as n'uma forma requintadamente perfeita e na maior variedade de tons e de estructura estrophica. Ha poetas que se fixam n'um metro, ou pouco mais, e quasi não variam de tonalidade. O verso de Feijó é ricamente polymorpho e a escala dos seus tons muito extensa. A sua versificação tem amplitude e largueza; mas, tem, egualmente, elegancia, frescura e graça. Esculpe poderosamente o alexandrino, mas torneia delicadamente a redondilha menor e modela, com arte, as mais extranhas formas da estrophe composita.

Feijó, pelas qualidades do seu espirito refinado e distincto, não podia ser um poeta popular. O seu publico, de conhecedores e dilettanti da arte pura, tendo o culto do bello e um gosto exigente, foi sempre um circulo limitado, essa elite intellectual e esthetica, restricta em todos os paizes, mas, naturalmente, muito restricta no nosso. Além d'isso, a sua perfeita dignidade de escriptor e a sua aprumada linha moral, tornavam-n'o avesso a todo o exibicionismo, a todo o reclamo, a todos os secretos manejos de notoriedade banal.

Soffreu, sem duvida, a influencia da evolução litteraria do seu tempo. Mas, no fundo, ficou sendo sempre quem era e não se curvou aos ephemeros gostos do publico para lhe fornecer, como uma «moda de estação», uma qualquer camelotte, que a sua facil destreza lhe permittiria manipular com abundancia.

Delicado d'alma e, por isso mesmo, retrahido, tão probo de espirito como de caracter, não vivendo da sua arte, mas para a sua arte, não despresando a gloria, mas não requestando a popularidade ephemera e superficial, Feijó realisou o typo acabado d'um puro artista, que, por todas essas superiores qualidades, juntas ao talento, acaba sempre por conquistar uma final consagração no mundo das lettras e das artes.

VI

A litteratura era a sua vocação. A diplomacia foi, na sua vida, um occasional desvio de destino.

Quando se formou, Feijó pensou em advogar. E buscou iniciar-se no officio, praticando no escriptorio de seu irmão José, que era, n'esse tempo, um dos mais reputados causidicos do Minho. Não se entendeu, porém, com os autos. A breve trecho, escrevia-me, dizendo-me que desistia da sua tentativa forense e se lembrava de ir correr e ver mundo… por conta do Estado, já que, para isso, lhe faltavam os meios proprios. Pensára em ser consul.

A carreira consular tornara-se, então, a carreira favorita dos nossos litteratos: eram consules o Barão de Roussado, Eça de Queiroz, Batalha Reis, Jayme de Seguier, Coelho de Carvalho, Wenceslau de Moraes,—talvez ainda outros que me não lembram agora. Feijó foi aos concursos e, poucos mezes depois, despachavam-n'o para o Rio Grande do Sul. Foi em 1886. Por essa occasião, o conselheiro Nogueira Soares, modelo de funccionarios e um dos mais perfeitos homens de bem que tenho conhecido, era nomeado nosso ministro no Rio. Feijó fez com elle a viagem e, antes de ir para o seu posto, esteve uns mezes trabalhando na legação.

Do Rio Grande passou para Pernambuco e de Pernambuco foi transferido para Stockholmo. Ahi serviu com o legendario visconde de Sotto Mayor, o famoso dandy e temivel parlamentar, havia longuissimos annos aposentado em diplomata n'essa côrte do extremo Norte. E ahi, á morte do seu velho chefe e depois d'uma demorada encarregatura de negocios, o fixou para sempre a sua promoção a ministro, determinada por uma reforma dos serviços diplomaticos.

Nestas altas funcções, Feijó deu as mais seguras provas da sua competencia. Infelizmente, aquella legação não tinha importancia correspondente ao seu valor, nem lhe podia dar ensejo a exercer plenamente as suas faculdades e talentos. «Estou aqui encalhado, a apodrecer»—escrevia-me elle um dia. E era verdade. Via-se immobilizado, inactivo, desconsoladoramente reduzido, pela mediocridade do seu posto, a uma situação subalterna, quasi que ao simples serviço de expediente e á representação protocolar. Sentia-se com hombros para mais pesados encargos e mais arduos trabalhos—e doía-se de se não ver utilisado. O seu ideal de funccionario, zeloso, meticuloso, honestissimo e trabalhador como poucos, não era, positivamente, o gôzo d'uma sinecura.

Feijó foi, na diplomacia, uma força desaproveitada. Além d'aquelles predicados, sobejavam-lhe as faculdades proprias do officio. Era subtil e d'uma prompta e profunda perspicacia; via bem, em conjuncto, os multiplos aspectos d'um acontecimento ou d'uma negociação; estudava as questões com ponderação e methodo; cauteloso, preparava seguramente o seu terreno antes de avançar; sabia (o que, na esgrima da diplomacia, é essencial) dosear, na sua justa e precisa medida, a finura e a lealdade; tinha, em subido grau, a correcção, a serenidade, a discreção, o tacto e esse grande e supremo dom que é, na vida ordinaria, como na vida politica, o nosso melhor guia, a nossa mais bem polarisada bussola—o bom-senso.

Tudo isto se valorisava e realçava pelo seu fino trato, pela amenidade e cortezia das suas maneiras, pela seducção da sua conversa, pelo brilho e a cultura do seu espirito, que tornavam sempre querida e agradabilissima a sua companhia, quer nos meios litterarios, quer nos meios mundanos.

E este é outro aspecto interessante da sua individualidade. Desde Coimbra, Feijó foi sempre o melhor e o mais deleitoso dos companheiros. A elegancia despretenciosa da sua palavra, a graça especial com que contava uma anedocta, o humour ligeiro, e levemente malicioso ás vezes, que punha no commentario a um successo ou na critica a uma personalidade, o pittoresco evocativo de suas narrações de viagem e a expansiva jovialidade do seu forte temperamento—faziam d'elle um cavaqueador irresistivelmente atrahente.

Elle era então, e foi por muitos annos, uma natureza robusta e alegre, um dyonisiaco, amando a vida e a belleza, um sorridente epicurista, gozando com volupia o instante fugitivo, mas um epicurista delicado, que punha, em todo o prazer, uma ponta de idealismo ou de emoção esthetica. Nas suas veias, onde corria bom sangue das velhas linhagens minhotas, devia haver mais globulos do do seu illustre patricio Diogo Bernardes, o cantor do «saudoso, brando e claro Lima», que elle descobrira na sua ascendencia, do que do d'esse Feijóo escudeiro, do tumulo de Celanova, bom fidalgo e cavalleiro, gran cazador e monteiro, a quem o poeta consagra a poesia final da Alma triste.

O seu contacto dava alegria, dava saude. Sob a suggestão do seu espirito parecia que tudo se animava e resplandecia, que a propria existencia se tornava mais amavel, mais apetecivel. De toda a sua pessoa, irradiava a joie de vivre. Junqueiro chamava-lhe, então, o opiparo Feijó…

VII

Mas um dia, um grande infortunio,—a viuvez inconsolavel, o seu pobre lar em ruinas,—devastou-lhe a alma, prostrou-o, roubou-lhe toda a alegria, envelheceu-o precocemente, tornou-lhe os ultimos mezes da sua vida tão negros, tão desolados, como essas interminaveis noites boreaes que tanto o torturavam e entristeciam,—a elle, filho d'estas bemditas terras do Sul!…

O que foi esse drama, em todo o desenrolar das suas mágoas e soffrimentos, dil-o o eloquente, commovido e fino commentario que, através das cartas do poeta, n'esse periodo, lhe faz Alberto d'Oliveira na communicação sobre a sua morte, dirigida á Academia Brazileira e que o leitor lerá com interesse e admiração, a seguir a este prefacio.

Ultimamente, porém, parecia querer reagir, despertar d'essa longa atonia dolorosa. Refugiado no amor dos filhos e na saudade da patria, onde ha oito annos não vinha, o seu derradeiro sonho foi revel-a, vir percorrer ainda uma vez o seu Minho querido, contemplar as aguas mansas do seu Lima, retemperar o coração n'essa magica visão de belleza e encanto, que, para todo o portuguez, ausente ou exilado, é este incomparavel torrão de Portugal!

N'este anceio, n'este volver d'olhos, sobre a Europa em guerra, para a patria distante, surprehendeu-o bruscamente a morte.

Exhausto de soffrer, o seu crucificado coração parou de subito, immobilisado para sempre!

E de novo ao sahir d'esta angustia demente,
Sinto bem que tu és, para toda a amargura,
A Euthanásia serena, em cujo olhar clemente
Arde a chamma em que toda a escoria se depura.

É pela tua mão, feito um rasgão na treva,
Que a alma se liberta e, d'esplendor vestida,
—Borboleta celeste, ebria de Deus—se eleva
Para a Luz immortal, Luz do Amor, Luz da Vida!

Assim dizia elle á Morte no seu grande hymno, já atraz citado e que ficará como uma das maiores glorias da sua lyra.

Assim deve ter sido a sua—uma transição insensivel, uma serena Euthanásia, bella como todos os seus sonhos de poeta! Assim se deve ter evolado, para a Luz immortal do Grande Mysterio, a sua alma boa e pura, sempre voltada para o Amor e para a Vida!

Luiz de Magalhães.

ANTONIO FEIJÓ, O QUE MORREU DE AMOR

(Lido na Academia Brasileira, sessão de 28 de Junho de 1917)

A Morte astuciosa—ou caridosa?—antes de apoderar-se finalmente da nossa vida, enceta a sua tarefa inexoravel hospedando-se pouco a pouco nos melhores recantos d'ella. Todo o homem que dobrou os quarenta annos conhece essa primeira visita e tem de preparar-se para essa longa hospedagem. Cada coração, que só carinhos e affectos alojava, eis que um dia recebe ordem de aboletamento para a pavorosa Intrusa, de que lhe cumpre fazer companheira de casa. E o espaço, a principio exiguo, que ella reclama, nunca mais deixa de alargar-se em seu proveito. Os seres mais queridos, os mais amados, temos de perdel-os para que ella lhes ocupe o logar. Vão faltando os parentes, vão morrendo os amigos, um a um, em periodos cada vez menos espaçados. Começamos, ao romper da vida, crendo-nos donos do Universo, e com que pressa o nosso dominio se limita, se estreita, até n'elle nos sentirmos demais! Quando emfim a nossa hora chega, já não é senão um fragmento ultimo e minimo da vida que abandonamos á Morte. O coração, a que ella faz parar a fatigada corda, estava tão atravancado de cadaveres que já não podia bater livremente.

Estou experimentando o sobresalto d'esses avisos sinistros, e já não são os primeiros. Ha seis annos era o conde d'Arnoso, deixando um claro, que nada e ninguem mais preencherão, na calma felicidade dos meus dias. Em 1915 foi Ramalho Ortigão, esse ao menos depois de uma longa e bem aproveitada vida. Quasi ao mesmo tempo, em 21 de setembro do mesmo anno, morria em plena mocidade e formosura Dona Mercedes Feijó, a mulher querida de um dos meus mais fieis amigos. E agora, a 21 do mez, vinte e um mezes exactos depois da desgraça a que não conseguiu mais resignar-se, é António Feijó que morre por sua vez, que morre de amor e de saudade por aquella que era o raio de sol da sua vida.

Morreu de amor o poeta amoroso que as neves da Scandinavia e a fleugma profissional da diplomacia nunca fizeram esquecer de que era um conterraneo de Diogo Bernardes e de que a sua alma fôra tambem creada á beira da poesia e da melancholia tão lyricas do Rio Lima. Morreu de amor o loiro fidalgo minhoto, herdeiro de muitas gerações de cavalleiros e trovadores, cuja antiga formação affectiva e moral nunca se alterou no seu perpetuo exilio, nem no convivio mediocre ou mesquinho dos seus contemporaneos. Morreu de amor Antonio Feijó, tão verdadeiramente como se morria de amor em Portugal no seculo XIII, no tempo d'aquelle Dom Pedro Roiz que mandou esculpir no seu tumulo essa causa unica da sua morte. Morreu de amor, começou a morrer de amor no momento em que viu para sempre

    Deitada no caixão estreito,
Pallida e loira, muito loira e fria,

aquella mulher tão amada a quem sem o saber, sem a conhecer, tantos annos antes, fizera propheticamente, num dos seus mais bellos sonetos, o commovedor necrologio.

Antes de morrer de amor, no entanto, menos desafortunado que Dom Pero Roiz, Antonio Feijó vivera de amor. Sua mulher dera-lhe, em seguida a um longo noivado, quinze annos de intima ventura e dois formosos filhos. Mas Dona Mercedes Feijó era em tal grau a imagem da Belleza e da Graça que perdel-a, depois de ter vivido longo tempo sob a sua luz e calor, tinha de ser, como foi, a maxima angustia. Feijó sabia, podia medir com dolorosa precisão o tamanho e o valor da sua perda. Creio que poucas vezes encontrei creatura feminina tão seductoramente bella. Dona Mercedes era filha de pai sueco e de mãe equatoriana. Cruzamento do Polo e do Equador, como alguem disse, não é possivel imaginal-o mais feliz, alliando a pureza quasi divina das raças do norte á exhuberancia e alegria meridionaes. Era como um raio de sol corporizado; e comprehendia-se bem que da vida d'ella, mais do que da propria, vivesse o namorado companheiro. Não o sentiam talvez em toda a verdade senão os intimos da casa, porque Antonio Feijó era pouco expansivo e resguardou sempre o sacrario do seu Lar da luz crua e por vezes grosseira em que, por dever de officio, tinha de mover-se. Para as pessoas extranhas elles eram, sobretudo, um prestigioso casal de diplomatas a quem sobravam intelligencia, elegancia, tacto e brilho mundanos para exercerem completamente a sua missão. Feijó era ha mais de 20 annos ministro de Portugal na Scandinavia e ha muito tempo tambem o decano do corpo diplomatico de Stockolmo. Falava a lingua do paiz, conhecia toda a gente, era amigo do Rei e da familia real, vivia rodeado das deferencias e sympathias devidas ao seu talento e ao seu caracter, continuando e excedendo a tradição deixada pelo seu espirituoso e lendario antecessor Sotto Mayor, a quem a Suecia considerava, tal a sua popularidade, como um sueco honorario. Madame Feijó era, uma vez ainda, como um raio do sol equatorial n'aquellas sombrias regiões polares. A alegria e a vida da sociedade de Stockolmo eram, em boa parte, obra sua. Toda a cidade a chorou, sentindo a perda irreparavel. O seu enterro foi uma homenagem imponente em que as flores mandadas pelos reis e principes das tres côrtes da Scandinavia se misturavam com as flores do povo da pequena e graciosa capital sueca.

O meu querido amigo, apesar da profundeza e intensidade da sua dôr, sentiu chegar até ella as lagrimas e os carinhos de tantos corações e não poude deixar de impressionar-se com as provas de respeitosa e terna consideração de que todo um povo estrangeiro o rodeava em tão amarga hora. Mas não tirou d'essas homenagens o mais tenue balsamo para a chaga em que se convertera o seu coração. N'ellas viu apenas que o encanto da sua querida mulher era tão amplo e universal que até aos mais indifferentes attingia. Reconheceu, com paciencia e lucidez—formas terriveis, que, algumas vezes, reveste o desespero—que o seu lucto não era qualquer lucto e que Deus lhe destinara, depois de uma ventura excepcional, uma penitencia e uma amargura da mesma especie. E nada fez para escapar-lhes.

Tenho aqui as suas cartas, escriptas entre lagrimas; releio-as agora na maior commoção, e n'ellas posso seguir, como a curva de uma ardente febre, a historia completa da sua morte de amor. A ultima chegou só hontem, como sobrenatural visita, já depois de fria e inerte a mão que a traçou. Deverei ter escrupulo em citar aqui essas cartas? Não vejo, no entanto, melhor maneira de render ao grande coração de Antonio Feijó o preito que lhe devo. Não ha n'ellas uma palavra que possa parecer indiscreta perante a dupla campa de que ellas ficarão sendo o epitaphio.

Antonio Feijó tinha o habito supersticioso de escrever aos seus amigos em papel de carta de formato e côr sempre differentes. A sua ultima carta despreocupada e alegre é de 28 de fevereiro de 1914 e está escripta, como que por estranho presentimento, em papel côr de rosa. Nunca mais tive outra do mesmo humor ou da mesma côr. A carta seguinte, datada de 20 de abril, é amarella, côr de outomno e de morte, e traz as primeiras apprehensões duradouras sobre o estado de saude de sua mulher, que, mezes antes, já lhe dera alguns passageiros cuidados. Mas desde essa data nunca mais houve paz na sua vida. Folheemos devagar essa amarga correspondencia:

18 de julho de 1914: «Tenho tardado em dar-lhe noticias minhas, porque, no estado de espirito em que ando, não queria affligir as suas primeiras horas do Rio de Janeiro com lamentações e amarguras, a que o seu coração amigo não póde dar remedio. A minha querida doente vai melhor, já póde sair, já quasi póde fazer a sua vida habitual. Mas… este mas é que é a minha tortura de todos os instantes. Qualquer que seja a natureza e gravidade da doença, as recaidas anteriores não me dão a menor garantia para o futuro. É mais que provavel que a doença se reproduza. Não sei o que ha de ser de mim. A Imitação de Christo, que eu leio assiduamente, diz que à chaque jour suffit sa peine; mas eu estou longe de ser um bom christão, e a resignação é uma virtude que Deus só concede aos eleitos.»

Sobreveio a grande guerra, que ruge e estrondeia tão proxima, e que absorve o tempo e agita o espirito do diplomata. Mas, entre as suas occupações e responsabilidades do momento, instala-se logo a afflicção intima. Em 23 de outubro escreve-me:

«De saude vamos indo, graças a Deus; mas, sempre naquella preoccupação de que lhe tenho falado, não consigo horas de paz, já não digo perfeita, mas resignada. O futuro, de facto, na nossa idade, ou antes na minha, são apenas 24 horas, como V. diz; mas, 24 horas ou minutos que sejam, todos nós ambicionamos passal-as tranquillamente.»

A 1 de janeiro de 1915, dando-me as boas festas, accrescenta logo: «Sinto-me num estado de espirito tão desolado e abatido que nem posso conversar á vontade com os amigos mais queridos. A Mercedes anda outra vez doente e eu estou com immenso receio que seja uma nova poussée do antigo mal. Trago o coração em sobresaltos.»

Abre-se, então, um longo silencio, que as minhas cartas não conseguem quebrar e que me inquieta progressivamente. Em julho, cedendo ás minhas instancias, vêem duas palavras pelo telegrapho: «Mercedes sempre doente. Estou desolado.» E em setembro, uma carta, de 26 de agosto, com tristes noticias: «Tem razão para se queixar do meu silencio, mas não escrevo a ninguem. Vivo apenas para a minha doente e para a minha dor. Parece, de facto, injusto o martyrio que ella soffre, mas neste mundo os que padecem são sempre os melhores e ella era a melhor de todos. Ha longos mezes que a vida é para mim um suplicio, e sem esperança de lhe ver um termo. Deus sabe o que terá succedido quando esta carta lhe chegar ás mãos!»

Com effeito. A previsão não falhou. Foi a 22 de setembro, na hora em que eu embarcava para a Europa, que me chegou ás mãos um telegramma de Stockolmo, datado da vespera, com estes dizeres apenas: «Tout est fini». A censura de guerra não os deixára transmittir na nossa lingua; mas nem assim me soavam menos tragicos aos ouvidos. Fiz toda a viagem com este desgosto, não podendo crêr que uma tão luminosa e formosa mocidade se pudesse assim bruscamente extinguir, e vendo naquella morte maldita um verme hediondo que se houvesse introduzido, para o roer, na rosea polpa do mais fresco e dourado fructo. A electricidade do mar, sempre para mim tão contagiosa, não se me communicou desta vez. Fiz uma travessia melancholica; e, ao desembarcar em Lisboa, esperava-me a noticia da morte do meu venerado amigo Ramalho Ortigão, a quem eu queria como a um avô, e que, poucos dias antes, se finara entre afflictivos soffrimentos.

Não sei, nem agora me importa saber, se é monotona a descripção de uma dôr humana, para os desconhecidos de quem a soffreu. Monotona será, mas ai de quem lhe não sentir a grandeza e a belleza! Desde a morte de sua mulher, as raras cartas de Antonio Feijó são um lamento continuo, cuja leitura impressiona mais do que a mais perfeita litteratura. Percebe-se que o viver assim já não tem de viver senão o nome, e verifica-se uma vez mais que, sem o ponto de apoio do ideal, do sentimento ou da fé, a vida a que o nosso instincto animal tanto se apega por vezes, é coisa nenhuma. A primeira carta, sem data, diz assim, para não a copiar toda: «Se um dia nos encontrarmos—do que duvido—então lhe contarei o que foi o martyrio da minha pobre mulher, e o supplicio que foi a minha vida, vendo-a soffrer sem remedio, para lhe esconder a natureza do mal e alimentar-lhe a esperança da cura, que nunca, felizmente, a abandonou. Morreu subitamente, sem agonia e sem perceber que era o fim. Não tenho forças para lhe responder como desejava, nem para tomar qualquer resolução. O futuro, na minha idade, como V. costuma dizer, são 24 horas. Rapidas ou curtas, que ellas se passem como Deus quizer. Da minha parte nada farei para as tornar menos pesadas, porque tudo é inutil.»

Em 8 de janeiro de 1916, conta-me, mais demoradamente, o estado desesperado da sua dôr. Vive como um somnambulo, não sabendo distrair-se senão com a recordação do passado. «É só,—escreve-me,—e a remexer na minha memoria attribulada, que as horas me passam menos atormentadoramente.» Eu aconselhava-lhe uma viagem a Portugal. Elle objecta: «Ir a Portugal agora é absolutamente impossivel, e essa viagem não serviria senão para aggravar o meu soffrimento. Não ha sitio nenhum por ahi, nem casa amiga, que me não desperte recordações e saudades pungentes.» Fala-me, além disso, da educação dos filhos, que não deseja perturbar, e vê-se que procura nelles a razão de viver, que a dôr destruiu. Mas não o consegue. Conta-me com pormenores, pela primeira vez, o que foi o enterro de sua mulher e reproduz-me o telegramma que lhe dirigiu um illustre escriptor sueco, John Bettiger, velho de mais de 60 annos, casado e sem filhos, tão grande admirador de Dona Mercedes, que pensou sériamente em adoptal-a elle e a mulher, para lhe deixarem a fortuna. Feijó sabe o telegramma de cór e transcreve-m'o no original sueco e em traducção. É assim, e parece, na verdade, como elle me dizia, um epitaphio de anthologia, escripto em estylo lapidar: «Receba expressão da minha mais profunda sympathia no acerbo lucto que o feriu. Nunca se encontraram, assim reunidas no mesmo ser, bondade, candura e belleza, como na sua incomparavel Mulher. Tel-a conhecido é uma ventura que nunca ninguem poderá esquecer.»

Em 15 e 20 de janeiro, em 7 de fevereiro, novas cartas que não annunciam melhoras. Deu-lhe um minuto de prazer a sua eleição para a Academia Brasileira, «pela espontaneidade, diz-me elle, e pelo momento em que foi votada.» Feijó era muito amigo do Brasil, onde vivera alguns annos ardentes da sua mocidade, e tinha aqui amigos dedicados. Considerou a homenagem da Academia como um desejo requintadamente affectuoso de offerecer algum conforto á angustia que soffria. E esse terno pensamento commoveu-o. Mas a Dôr era sempre a sua nova companheira: «Vou vivendo, com a minha tristeza e a minha saudade. Vou vivendo não é a expressão justa. Deixo-me viver conforme Deus quer, é mais exacto.» Distrai-se relendo as cartas antigas dos seus amigos, que colleccionava cuidadosamente, e, entre as quaes, muitas vezes, se referia aos grossos pacotes das minhas. Escrevia-me, em 29 de fevereiro: «É a leitura dessas cartas, como já lhe disse, a minha unica distracção. Quando ellas acabarem, não sei o que vai ser de mim. Escrever (eu pedira-lhe que, na receita de Goethe, puzesse a sua dôr em poemas) é-me absolutamente impossivel. Estas dores não cabem dentro de moldes litterarios. Quem attende ao concerto do que diz não sente o que diz, sentenciava um velho frade gongorico. Creio que, para mim, os versos acabaram. É bem possivel que não torne a escrever mais uma linha. Pena, que póde explicar-se, perto está de não sentir-se, como diz o mesmo frade, alludindo a circumstancias identicas.»

Carta em 3 de abril: «Não tenho forças para nada. Escrever uma carta é como se tivesse de deslocar uma montanha. O tempo não me tem curado. Dá-me, por vezes, uma certa paz, mas intervalos curtos, de que saio para um recrudescimento de amargura e de saudade angustiosa. Sinto que parta. (Eu ia regressar de Lisboa ao Rio). Parece-me que tudo quanto amei e amo se vai afastando de mim, cada vez mais.»

Nova carta, em 10 de julho: «A minha cabeça, como a minha alma, andam profundamente enfermas. Sinto-me cada vez mais só, cada vez mais desconsolado e mais triste. O estio era, nesta terra, a estação em que a minha vida de familia mais se accentuava. Como todo o movimento mundano cessava, estavamos sempre juntos, ou no campo, em algum sitio isolado e pittoresco, ou em excursões pelos arrabaldes da cidade. Tudo acabou agora. Do estio septentrional ficou-me apenas a inenarravel melancolia. Não imagina como pesa no meu espirito esta paizagem, composta monotonamente de lagos, pinheiros e rochedos, sob uma luz pallida, mixto de aurora e poente, tão triste, tão triste, que parece a obra de um Deus infeliz. Para evitar recordações, a que não poderia resistir, lembrei-me de ficar na cidade. Com esse intuito, mandei os pequenos para o campo, acompanhados por uma tia; mas estou arrependido. Não posso viver só. Amanhã vou partir, não sei bem para onde, fugir de aqui, talvez para a Laponia, para alguma terra onde não encontre lembranças do passado. Perdoe este desabafo. Na verdade, não ha outra coisa a fazer senão a gente resignar-se; tenho filhos, que precisam de mim; mais do que nunca, é preciso viver. Mas, o peior, é que não encontro nada que me interesse ou me distraia. Os proprios versos, que sempre me encantaram, parecem-me ás vezes, agora, estultas frivolidades.»

Escreve-me, em 6 de setembro: «Contava ir este verão a Lisboa, mas esta guerra, que ameaça de se tornar chronica, obrigou-me a pôr de parte os meus projectos. Fiquei aqui. Ausentei-me apenas durante duas semanas, numa excursão pela provincia, mas o passeio não me serviu de consolação. Era a primeira vez, após 15 annos, que viajava só. Tão angustiado me sentia nos vagões do caminho de ferro e nos quartos de hotel, que preferi voltar logo para o meu ninho meio desfeito, apesar da desolação que nelle me esperava, pela ausencia dos meus filhos, que eu tinha mandado para o campo. De maneira que estive aqui só, completamente só, desde julho até hontem, porque só hontem elles regressaram. Este mez é para mim todo cheio de terriveis recordações. Fez, no dia 4, um anno que regressei do campo com a minha querida doente. Não imagina quanto essa viagem me impressionou, no curto trajecto de automovel com Ella, o medico, a garde-malade e uma cunhada minha. Trazia já a impressão de que era o ultimo passeio que dava com Ella… E, n'esse estado de espirito, se foram passando os dias até á morte, no dia 21 do corrente. Na vespera esteve todo o dia ali, naquela chaise-longue, com o sorriso e o bom humor de sempre. E lá está, ha quasi um anno, na capela do cemiterio catholico, tambem á espera que a guerra acabe, para ser transportada para Ponte do Lima (terra natal de Feijó e que elle adorava), onde eu desejo tambem dormir o meu ultimo somno. Não me consolo, querido amigo. Toda a dôr contém, em essencia, o esquecimento. Mas eu não quero esquecer. Os mortos não morrem completamente emquanto a gente se lembra delles. E eu não quero que Ella morra emquanto eu andar neste mundo. Perdoe este desabafo. Perante estranhos, os desgraçados são sempre ridiculos. Mas V. não é para mim um estranho, e, diante dos outros ninguem é capaz de ler o que me vai na alma, através da minha serenidade e compostura. Nunca deixei ver a ninguem os recantos intimos do meu coração.»

Escreve-me de novo, em 25 de setembro, agradecendo o meu telegramma no primeiro anniversario do seu lucto. E continúa: «A 21, foi o primeiro anniversario da morte da minha querida Mercedes; a 24 o anniversario do nosso casamento em 1900; hoje, é o anniversario do enterro. Imagine o estado do meu espirito, e, por isso, perdoe-me se lhe não escrevo mais. Vivo numa angustia perpetua. O tempo passa, mas não me consola; socega-me, ás vezes, por intervallos, mas o retour da memoria é sempre inevitavel, e o soffrimento torna-se mais agudo porque, dia a dia, a sua falta se me afigura maior.»

Em 1 de dezembro queixa-se de ter estado doente, com o seu velho mal da gota. Manda-me uma photographia, em que me apparece vertiginosamente envelhecido. «Contemple essa ruina, accrescenta. Não imagine, porém, que foi só a gota que me deixou assim. A gota entra por pouco no esboroamento da minha velha carcassa.» Espera ir no verão a Lisboa. Deseja encontrar-se commigo: «Parece que já estamos separados pelo outro mundo.» Dá-me as boas festas de Natal e Anno Novo: «Como para mim não ha festas, e faço tudo para não me aperceber do que este periodo do anno significa para o meu coração attribulado, ia-me esquecendo de cumprir este dever. Lembre-se de mim nessa noite de graça e de mysterio, em que um pouco de infancia parece reflorir na nossa alma, quando o infortunio a não devastou. Lembre-se de mim!» E na noite de Natal volta a escrever-me, dizendo-me que se fechou só no seu gabinete, com os seus pensamentos e a sua memoria, cheia de infinitas amarguras…

Emfim, tem a data de 21 de março de 1917, dezoito mezes justos depois da morte de sua mulher, tres mezes justos antes da sua propria morte, a ultima carta que recebi deste querido amigo, antes de perdel-o: «Estamos tão longe um do outro, sinto-o tão distante de mim, que parece que já estamos separados pelo outro mundo», repete elle, como quem adivinha. Continua a queixar-se da gota e mostra-se resolvido a ir fazer uma cura de aguas em Portugal de ali a mezes. Fala-me da guerra e da politica sueca, dando-me informações interessantissimas. Recomeçou a fazer versos, mas não os que desejava. Só lhe saem da penna bailatas, versos de zombaria, nos quaes transforma a tristeza em riso. Não o consolam. E a doença de alma, a verdadeira, não cessa de minal-o: «Faz hoje anno e meio que deixou esta vida de lagrimas a minha querida Mercedes. Parece que foi hontem. Não ha esforços que consigam afastar o meu pensamento dessa hora terrivel. Não é o desespero dos primeiros tempos; mas é uma saudade, uma tristeza de que nem mesmo o trabalho consegue distrair-me. Precisava de sair de aqui; precisava de ir passar algum tempo em Portugal, ver os amigos, ver a minha terra; mas ao mesmo tempo tenho receio dessa viagem. Quantas pessoas queridas mortas! Quantas coisas mudadas!»

Alguns dias depois de receber esta carta foi um telegramma dos jornaes que me deu o golpe, apesar de tudo não esperado, da morte de Antonio Feijó. Elle era um homem robusto e ainda são, tinha apenas 55 annos, e eu, tomando os meus desejos pela realidade, acreditava que a educação dos filhos e o desabafo dos versos iriam devagar transformando em doce saudade a sua dôr dilacerante. Feijó não se estava deixando viver, como elle dizia; estava-se deixando morrer, sem dar por isso. E o amor incuravel, o amor de perdição tão caracterisadamente portuguez, o amor da nossa raça e tradição matou-o como a mais fatal das doenças physicas. Esta carta postuma, que elle me escreveu em 27 de abril e que só recebi hontem, como que me chega de além-tumulo. E como me doe o coração e se me orvalham os olhos ao lel-a! Bom e fiel amigo, que ainda te affligias com o meu silencio, de que só a falta de communicações era culpada, e te inquietavas com a minha saude, quando era a tua que devia absorver todos os teus cuidados! Que feliz me sinto ao ver-me rodeado no mundo de tantas almas que se affeiçoaram á minha, mas quanto me pesam, e me desterram pouco a pouco da vida, estas mortes que começam a povoal-a! Feijó, ao menos, foi para onde queria, reuniu-se emfim Áquella sem cuja companhia desaprendera de viver. Deus lhe haverá concedido todas as bem-aventuranças, promettidas aos que muito soffreram e choraram n'este valle de lagrimas.

Não peço perdão a quem me haja lido ou ouvido, do espaço que consagrei a este romance vivido e sincero, tão digno de ser sentido e meditado por cabeças e corações ao seu nivel. Perdoa-me, estou certissimo, a memoria do alto poeta do Cancioneiro chinez e da Ilha dos Amores, que eu me haja occupado, nesta hora afflicta, muito mais do seu amor que dos seus versos, e que a sua vida me pareça, como a de todos os seres de eleição, mais bella ainda que a sua obra. Mas não me despeço de versar um dia esse capitulo da historia literaria portugueza, onde Antonio Feijó figurará sempre como um dos nossos poetas ao mesmo tempo mais subjectivos de temperamento e mais perfeitos e cultos de expressão. O nome de um Feijó illustrou já a historia do Brasil na pessoa do Padre-Regente, que era porventura da familia do poeta e até se parecia com elle no porte da cabeça profundamente encravada entre os hombros. Hoje então são as nossas Letras irmãs que registram, em caracteres indeleveis, esse mesmo velho e illustre nome.

Ainda uma justificação para esta longa pagina de memorias. Ha muitas pessoas, enthusiastas da Vida e da Arte livres, que julgam os transportes do Amor e da Paixão incompativeis com a regra e o pacto do casamento, e que não são capazes de exprimir a poesia, de que as suas almas transbordam, senão em versos errados. Longe de mim o intuito de contradizel-as. Mas não ha mal em que aqui lhes offereça este espelho de casados, no qual poderá remirar-se, ao menos uma vez por outra, a sua perfeição.

Alberto d'Oliveira.

Dans quelques instants de loisir, j'ai fait des vers inutiles; on les lira peut-être, mais on ne retirera aucune leçon pour nos temps…

C.^{te} Alfred de Vigny.

Le vers est une création mystérieuse dont l'habitude seule nos empêche de nous étonner.

Ernest Hello.

[Figura: D. Mercedes de Castro Feijó]

A MINHA MULHER

Romam tu mihi sola facis.

MART. LIV. XII. EPIGR. XIX.

Folhas mortas d'outono ou d'inverno precoce,
No teu regaço amigo, estes versos deponho,
Para que o teu amor lhes dê vida e remoce,
Porque a Arte começa e acaba num sonho…
É pouco; mas eu torno a homenagem mais bella,
Pondo, como uma flor, nas folhas sem aroma,
O verso em que Martial diz á Esposa Marcella:
Tu, tu só, para mim, vales mais do que Roma
!

ELEGIA DE ABERTURA

Elegia d'abertura

_A minha Lyra tinha uma corda: Emquanto môço tanto cantei, Que a pobre corda despedacei.

Agora, ás vezes, se a Musa accorda,
E quer de novo pôr-se a cantar,
Ninguem a corda pode emendar.

Era uma corda que só vibrava
Quando a minh'alma toda chorava,
E tantas mágoas, tantas, cantei,
Que a pobre corda despedacei.

O Amor e as penas da Mocidade,
Chimera ou Sonho de cada dia,
Eram os themas que ella escolhia.

Porém um dia veio a Saudade,
D'olhos vidrados e humedecidos,
Poisar-lhe os dedos emmagrecidos…

Então, vibrando, toda chorosa,
Sob esses dedos, brancos de cera,
Mais angustiada nunca gemera!

E uma alma nova tão dolorosa,
Com tanta mágoa nella ressôa,
Que um ai supremo despedaçou-a!

Desde esse instante, nas minhas penas,
Sem essa corda que me sustinha,
—Pobre Saudade! chora sósinha…

Manhãs d'estio, tardes serenas,
Occasos d'oiro, nocturno ceu,
Para os meus olhos, tudo morreu!

Mas a Saudade, no meu tormento,
Geme e soluça com tanta mágoa,
Que, a ouvil-a, os olhos enchem-se d'água,

E sem um grito, sem um lamento,
Minh'alma vive na dor que a enleia,
Como uma aranha na sua teia…

A minha Lyra tinha uma corda:
Emquanto moço tanto cantei,
Que a pobre corda despedacei.

Agora, ás vezes, se a Musa accorda,
E quer de novo pôr-se a cantar,
Ninguem a corda pode emendar…

A Mocidade não pensa em nada,
E a pobre corda vi-a quebrada
Quando tocava mais afinada…

A Mocidade não pensa em nada_!

I

DESCENDO A ENCOSTA DO PARNASO

A João Arroyo

Hvad er en Digter? Et ulykkeligt Menneske, der gjemmer dybe Qvaler i sit Hjerte, men hvis Laeber ere dannede saaledes, at idet Sukket og Skriget strömme ud over dem, lyde de som en skjöne Musik.

Kirkegaard.

DESCENDO A ENCOSTA DO PARNASO

Quando moço, cantei, mas em formas discretas
Que nunca o meu segredo ousassem revelar,
Tudo o que sem mysterio a muitos outros poetas
Soube o Amor e a Paixão em voz alta inspirar.

Feliz, o Amor… nem mesmo ephémero sorriso
Deixou nessas canções memoria do seu rastro;
Desditoso, ficou como um luar indeciso,
Chamma d'oiro escondida em vasos d'alabastro.

A Dor, mal comprimida em gritos suffocados,
—O abandono, a traição, o esquecimento, o ciume—
Ennublou muita vez os meus olhos magoados,
Mas se ao labio acudia, era apenas queixume…

Éstos do coração, sobresàltos do instincto,
—Amor ideal, vehemente impulso do desejo,—
Tudo vinha em surdina ou echo mal extincto,
No meu verso expirar, como um simples arpejo.

Se a angustia me opprimia em continua tortura,
Para allivio a esse mal, que ninguem consolava,
Como alguem que a si proprio illudir-se procura,
Precisando de ouvir a minha voz—cantava!

Echo do meu soffrer, de tão fundo partia,
Que deixando ao passar todo o amargo travor,
Essa voz, rara vez, murmurando trahia
O secreto pungir da primitiva dor.

Mas de cada palavra ou gesto contrafeito
Em que ella se disfarça, a alma profunda evoca
Os lamentos e os ais suffocados no peito,
Todos os gritos vãos que morreram na boca!

No escrinio da Canção as lagrimas vertidas,
Brilham sob a expressão em que a Dor se transforma,
Como gotas de luz, d'olhos tristes caidas,
A tremer no cristal transparente da Fórma.

Mal se adivinha a dor, no esmalte que a reveste;
Mal se vê no sorriso um esgar de tristeza;
A Dor, na alma do artista, é como um dom celeste,
Que lhe ornamenta a vida e se expande em belleza.

Mas por entre o fulgor das gemmas, no artificio
Da phrase que a primor o artista cinzelou,
Quem soffreu sente ainda o estertor do supplicio,
O desespero e a dor d'onde a estrophe brotou.

A Arte [f]az da paixão arabescos risonhos;
Muda em graça verbal todo o grito pungente;
—Galateia a scismar, olhos cheios de sonhos,
Que a um sopro vão partir da pupilla dormente…

Harpa de Sylpho aereo a ressoar no vento,
Caricia quasi etherea, o Verso é um desafogo…
—Mel na boca a sorrir, emquanto o soffrimento
Sobre a nossa alma imprime os seus lábios de fogo!

D'esse beijo profundo, as angustias e as dores,
Se em imagens procura o artista convertê-las,
Espinhos entrelaça em grinaldas de flores,
E lágrimas combina em mosaicos d'estrellas.

Mas o vulgo, á belleza e á graça inaccessivel,
O espirito banal, nunca pode sentir,
A mágoa que por trás da palavra insensivel,
Como ave triste, espreita, emboscada, a carpir!

Só almas d'eleição commungam no mysterio
Que á Dor empresta o encanto e a seiva que a renova,
Como á flor que sorri num chão de cemiterio,
O amargo coração que se desfaz na cova.

Só ellas, através d'um molde tão restricto
Como esse em que a palavra as emoções fixou,
Alcançam entrever não sei quê d'infinito
No minuto de sonho em que a Dor se embalou…

A ARMADURA

Ao Dr. Góran Björkman

A ARMADURA

Desenganos, traições, combates, soffrimentos,
Numa vida já longa accumulados, vão
—Como sobre um paúl continuos sedimentos,
Pouco a pouco envolvendo em cinza o coração.

E a cinza com o tempo attinge uma espessura,
Que nem os mais crueis desesperos abalam;
É como tenebrosa, impavida armadura
Ou coiraça de bronze em que os golpes resvalam.

Impermeavel da Inveja á peçonhenta bava,
Nella a Calumnia embota os seus dentes hervados;
Não ha braço que possa amolgá-la, nem clava
Que nesse duro arnez se não faça em bocados.

E no entanto, através d'essas rijas camadas,
Ou rompendo por entre as junctas da armadura,
Escorrem muita vez gotas ensanguentadas
Que o coração verteu d'alguma chaga obscura…

A CIDADE DO SONHO

Ao Visconde de Pindella

A CIDADE DO SONHO

Soffres e choras? Vem commigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva á Cidade do Sonho…
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o ingreme trajecto é florido e risonho.

Vae por entre rosaes, sinuoso e macio,
Como o caminho chão d'uma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu animo soffre amarguras na vida,
Deves emprehender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Promettida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…

Vistos d'essa eminencia, o mundo e as suas sombras,
Tingem-se no esplendor d'um perpetuo arrebol;
O mais esteril chão tapeta-se de alfombras,
Não ha nuvens no ceu, nunca se põe o sol.

Nella mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jámais nos é dado sentir…
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A propria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelevel persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe…

BEATITUDE AMARGA

A Silva Ramos, da Academia Brasileira

BEATITUDE AMARGA

Esqueço-me a admirar os teus olhos profundos
E imagino que estou sentado á beira mar:
Vejo as ondas a erguer-se, archipelagos, mundos,
Naufragios, temporais, mar de leite e de luar…

Medroso, o coração tenta fugir, mas treme:
O abysmo attrae o abysmo! E desvairadamente,
Despenha-se no mar, como um barco sem leme,
D'onda em onda, á mercê do vento e da corrente.

Vejo-o ainda um momento a esconder-se na bruma,
E sinto uma impressão d'angustia e de pesar,
—Seguindo anciosamente o seu rasto d'espuma—
Por suppor que partiu para não mais voltar!

Mas tu falas, e, ao som da tua voz, desperto;
Volto a mim d'esse estranho sonho, a alma perdida,
Com o vago terror e o pensamento incerto
Do naufrago que á praia ainda chegou com vida.

CASTELLO BÁRBARO

A Josè d'Azevedo Castello Branco

CASTELLO BÁRBARO

Um a um sobrepondo os tormentos mais altos,
Da minha propria dor fiz uma Fortaleza,
Que podesse afrontar tempestades e assaltos,
Imponente de rude e bárbara grandeza.

Desde então, sem receio, a tudo invulneravel,
Depondo na panóplia o escudo e as armas rôtas,
Vivo occulto no meu torreão inexpugnavel,
Recompondo em annaes combates e derrotas.

Nenhum grito ou rumor attinge essa eminencia;
Nenhum desejo vão escala essas alturas,
Onde, antigas visões, andam como em demencia
Do passado a evocar saudades e amarguras.

Comtudo, alguma vez, se uma illusão funesta
Um echo juvenil faz em mim despertar,
Como som matinal de campanário em festa
Que no meu coração vem de longe vibrar,

Então,—luz sem egual que tudo em tôrno abrasa—
A Ventura de novo aos olhos meus se ostenta,
—Raio de sol suspenso a tremer numa asa
Que um instante pairou sobranceira á tormenta.

E atrás d'essa chimera ou sonho allucinante,
Vou, numa ancia de goso, um momento arrastado,
Como o condor lançando o vôo fulminante
Á presa que entreviu do píncaro escarpado.

Mas a luz, que brilhou, logo se esconde e apaga,
E eu regresso trazendo ao meu refugio, exangue,
Mais uma nova dor, mais uma nova chaga,
Rutilante de vivo e generoso sangue.

E outra vez, d'essa altura em taes ruinas erguida,
Sem sobresaltos vejo os meus dias correr,
De saudades velando o entardecer da Vida,
Que o ter-se sido môço é a dor do envelhecer.

Mas occulto no meu solitário reducto,
Ao abrigo de toda a investida ou traição,
Se de fóra não vêm tempestades nem lucto,
O meu proprio soffrer enche o meu coração.

E assim, na sua noite o espirito submerso,
Sem que uma estrella nova aos olhos meus desponte,
Vou, com o pensamento em mil vôos disperso,
De saudade em saudade alargando o horizonte.

E tudo, mesmo a Dor, nessa amplidão se esfuma,
Como incendio a esbater-se em longinquo arrebol…
Toda a nuvem, de perto, é um farrapo de bruma,
A distancia, parece oiro e púrpura, ao sol!

Sob o contorno ideal que o espelho empresta á imagem,
Projectados ao longe, os tormentos e as dores
Surgem aos olhos meus na ilusão da miragem,
Como ruinas de sonho em que brotaram flores…

Ruinas que uma luz tão serena illumina
Como se as envolvesse um luar de esquecimento;
E é tão doce a illusão, que nessa hora divina,
Ajoelho a balbuciar: Morte! espera um momento!…

A AGUIA PRISIONEIRA

A Manoel da Silva Gayo

A AGUIA PRISIONEIRA

Aguia soberba a quem mão perversa d'escravo,
Num ocio de tyranno, os olhos arrancou!
E, a gosar d'esse feito o delicioso travo,
Da jaula hedionda a férrea porta escancarou…

A aguia, aturdida e cega, a principio esvoaçava
Rente ao chão, e a roçar com as asas na terra,
Sem saber d'onde vinha a dor que a lancinava,
Nem que mysterio aquella obscuridade encerra.

Mas na ancia de luz que a devora sem treguas,
Cobra o animo, e erguendo o vôo, a tudo alheia,
Lança-se para o azul, sobe leguas e leguas,
Sem poder dissipar a treva que a rodeia.

E tão alto subiu no seu vôo desfeito,
Que de repente, não podendo respirar,
Sentiu que lhe estalava o coração no peito,
E veio aos pés do escravo exanime rolar…

Alma humana! Aguia cega em perpetua anciedade,
Por mais alto que eleve o desvairado arrojo,
Quando julga atingir a suprema verdade,
No pó, d'onde partiu, cae outra vez de rojo!

A SELVA ESCURA

A João Chagas

A SELVA ESCURA

Perdi-me no caminho solitario
D'uma floresta immensa e fria…
Medrosa ainda, a Noite lívida descia,
E o clarão do luar, como um pranto mortuário,
Pelas folhas das árvores corria.
No silencio da Noite, o silencio da Selva
Enchia-se de vozes enigmáticas…
E os meus pés vacillavam sobre a relva,
Entre as sombras das árvores extácticas.
Numa clareira funda, aguas dormentes,
Como um lago lunar, tremeluziam
Nas lágrimas de luz, altas e ardentes
Que das estrellas pálidas caíam.
Nem ruido de mar, folhas ou vento…
O mystério, porém, da Noite e da Floresta
Enchia de terror meu pensamento,
Como um sopro boreal que me gelava a testa.
Não sei se era visão, filha do Mêdo,
Se verdadeira apparição nocturna;
Mas da sombra profunda do arvoredo,
Que o luar tornava muito mais soturna,
Vinham surgindo mysteriosamente
Phantasmas espectraes que eu distinguia
Através do sudário transparente
Como o primeiro alvorecer do dia…
E por deante de mim todos passavam,
E olhavam-me e choravam…
De mágoa ou compaixão,—não sei dizê-lo;
Mas tudo o que aos meus olhos evocavam
Parecia-me um longo pesadelo…
Eram os Sonhos, as Chimeras mortas
Na minha morta Phantasia,
Que do vasto sepulcro abrindo as portas,
Passavam nessa funebre theoria…
Projectos, Intenções, Ideias, Planos,
—Illusões d'um passado esquecido e desfeito,
Na areia que rolou da ampulheta dos annos
E que um vento de morte espalhou no meu peito.
Era a Noiva feudal esquecida a scismar
Na pompa e no esplendor em que o Sonho a envolveu,
Trazendo-me nas mãos, todas brancas de luar,
Como um tropheu perdido o espadim de Romeu!
Illusões juvenis d'odaliscas e fadas,
Helena, Laura, Ignez, romanescas e bellas,
E tu, Willi immortal das florestas sagradas,
Loira d'olhos azues, como duas estrellas!
Era a Glória, mas já sem a tuba estridente,
Que ingenuamente ouvi pela amplidão vibrar;
Era a Ambição, captiva a sua asa fremente,
Que tão alto esvoaçou, entre as nuvens e o mar.
Era o Orgulho… o Poder… a Riqueza… loucuras,
Chimeras juvenis do meu abril risonho,
Borboletas azues, larvas escuras
Que deslisaram no meu sonho…
Todas essas visões, d'aspectos sobrehumanos,
Por deante de mim, lentas, passavam…
E olhavam-me e choravam,
Como espectros de longos desenganos
Que os meus olhos das trevas evocavam…
E olhavam-me e choravam,
Sumindo-se nas sombras da floresta,
Aos primeiros clarões da madrugada
Como um rumor de festa,
Despertavam, partindo em revoada,
As aves a cantar. O sol rompia
E as derradeiras névoas dissipava…
Tudo cantava e ria!
Só eu chorava… só eu chorava…
Só no meu coração não despontava o dia.
Só eu chorava… só eu chorava…
Só eu soffria…

O LIVRO DA VIDA

A Antonio de Cardiellos

O LIVRO DA VIDA

Absorto, o Sabio antigo, estranho a tudo, lia…
—Lia o «Livro da Vida»,—herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.

Perto d'elle caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.

Passa o estio, a cantar; accumulam-se invernos;
E elle sempre,—inclinada a dorida cabeça,—
A ler e a meditar postulados eternos,
Sem um fanal que o seu espirito esclareça!

Cada pagina abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Elle tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.

Mas o tempo caminha; os annos vão correndo;
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão…
E elle sem descansar, sempre o seu Livro lendo!
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.

Nesse eterno scismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobar os seus annos mais bellos,
Nem o humano soffrer, que outras almas enluta,
Nem a neve do inverno a pratear-lhe os cabellos!

Só depois de voltada a folha derradeira,
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,
É que o Sábio entreviu, como numa clareira,
A luz que illuminou todo o caminho andado…

Juventude, manhãs d'Abril, boccas floridas,
Amor, vozes do Lar, éstos do Sentimento,
—Tudo viu num relance em imagens perdidas,
Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.

Mas então, lamentando o seu esteril zêlo,
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,
Sobre elle, para sempre, os seus olhos cerrou…

II

DYPTICO

EU E TU

DYPTICO

I

M. ***

Perguntas d'onde vem a timidez estranha,
Este quasi terror com que te fallo e escuto,
Como se a sombra hostil d'uma grande montanha,
Que se erguesse entre nós, me cobrisse de luto.

Ignoras a razão d'este absurdo respeito
Com que te beijo a mão, que estendes complacente,
—Fria do ardor que tens concentrado no peito,
Que mão fria é signal de coração ardente.

E admiras-te de ver que os olhos baixo, e tremo,
—Se passas como um sol de planetas cercado—
Sem dar mostras sequer d'esse orgulho supremo
De quem se sente eleito entre todos, e amado!

Não podes conceber que uma paixão tão alta
Se vista de recato ou de pudor mesquinho…
Mas, se é sincero, o Amor só a occultas se exalta,
Faz-se tanto maior quanto é discreto o ninho.

E tudo o que tu crês fingida gravidade
É uma intima oblação, pois nas almas piedosas
O Verdadeiro Amor é feito de humildade:
Sobre o annel nupcial não ha pedras preciosas.

II

EU E TU

Dois! Eu e Tu, num ser indissoluvel! Como
Brasa e carvão, scentelha e lume, oceano e areia,
Aspiram a formar um todo,—em cada assomo
A nossa aspiração mais violenta se ateia…

Como a onda e o vento, a lua e a noute, o orvalho e a selva
—O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noute,
Ou o orvalho inundando as verduras da relva—
Cheio de ti, meu ser d'effluvios impregnou-te!

Como o lilaz e a terra onde nasce e floresce,
O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
O vinho e a sêde, o vinho onde tudo se esquece,
—Nós dois, d'amor enchendo a noute do degrêdo,

Como partes d'um todo, em amplexos supremos
Fundindo os corações no ardor que nos inflamma,
Para sempre um ao outro, Eu e Tu, pertencemos,
Como se eu fôsse o lume e tu fôsses a chamma…

PALADINOS

A Senhora Condessa d'Arnoso

PALADINOS

I

CONDE D'ARNOSO, JOÃO

Como um dos seus avós, em justas e em torneios
—Paes d'Abranches, que foi dos Doze d'Inglaterra—
Com uma ancia de gloria, em altos devaneios,
Corre o mundo, de mar em mar, de terra em terra.

Não leva escudo, o moço illustre, nem couraça,
Que o tempo é vil; mas como arnez de paladino,
Leva a honra e o valor de toda a sua raça,
—Grande exemplo a apontar-lhe o mais nobre destino!

Mão na espada, a entrever combates, a alma pura,
Já bello, d'essa estranha e amarga formosura
Que o fim proximo imprime aos vencidos da Sorte,

Vae na tolda a sonhar,—sonho feito em pedaços!
—Paes d'Abranches voltou com a noiva nos braços,
Elle… voltou tambem, mas nos braços da Morte!

II

CONDE D'ARNOSO, BERNARDO

Este nunca buscou, na lucta ingloria,—fama
Ou proveito. A Ambição, mesmo a mais alta e pura,
Nunca o cegou. Jamais uma ephemera chamma
De orgulho vão tremeu na sua nobre figura!

Foi cortesão; mas da Honra e do Dever escravo.
Nunca esgar de lisonja o seu lábio manchou;
E entre vis defecções, elle só, como um bravo,
Luctou, soffreu, mas nunca o Mestre renegou!

Alma de Campeador! Num disfarce mundano,
Nunca ninguem sonhou coração mais humano,
Mais terno, e ao mesmo tempo, altivo coração!

Ultimo Cavalleiro, á hora em que morria,
No Pantheon Real, da lampada que ardia
Extinguiu-se de todo o ultimo clarão…

CABELLOS BRANCOS

A D. Thomás de Mello Breyner

CABELLOS BRANCOS

Não repares na cor dos meus cabellos
    Sem ler primeiro Anacreonte;
Verás que os sonhos juvenis, mais bellos,
Tambem se evolam d'enrugada fronte.

O espirito do Poeta é sempre moço;
    O Coração nunca envelhece…
Basta um sorriso, um nada, um alvoroço,
E tudo nelle se illumina e aquece.

Deusas d'eterna graça adolescente,
    Jamais as Musas desdenharam
Da luz que treme incendiando o poente,
Dos rouxinoes que ao pôr do sol cantaram.

Fina e fragil vergontea melindrosa,
    Que foi na ceifa abandonada,
Ruth, apesar de moça e de formosa,
Nos braços de Booz dorme encantada.

Quantas flores d'inédita fragrancia
    Em mãos provectas vão abrindo…
Abisag, ao sair quasi da infancia,
No leito de David entrou sorrindo.

E d'esse beijo, inverno e primavera,
    D'esse connubio, oh maravilha!
Como se a ruina fecundasse a hera,
Veio á luz uma estrella, que ainda brilha.

Esculpturaes patricias, d'olhos ledos,
    Quem as lembrara, se deixassem
Que mãos obscuras, mercenários dedos,
A velhice d'Horacio engrinaldassem?

Quantos nomes illustres! quantos casos!
    Mas que direi mais eloquente?
Não ha dias tão pallidos, e occasos
Como explosões d'uma cratera ardente?

Não repares na côr dos meus cabellos;
    A branda luz que nelles arde,
Como o poente, das nuvens faz castellos,
Tinge d'alva o crepusculo da tarde…

Muita vez os cabellos embranquecem
    Na dor d'horriveis soffrimentos…
Não são os annos que nos envelhecem;
«São certas horas más, certos momentos…»

SOMNAMBULA

(Noite de S. João)

A João Caetano da Silva Campos

Leia estes versos, cantando.
—Quem canta seu mal espanta!
Alma em saudades penando,
Só tem alivio se canta…

SOMNAMBULA

(Noite de S. João)

                  Passarinho trigueiro,
                  Põe-te na areia
!…

A areia é d'oiro,—painço loiro…
      Leito macio… Vê como o Rio
Vae socegado, todo enlevado,
Todo encantado na areia fina!

Passarinho trigueiro! Olha o salgueiro
      Como se inclina,
      A ver se as aguas
      Pode beijar!
E o velho choupo, todo curvado,
      Todo engelhado,
      De tantas mágoas
      Que viu passar!

Nas aguas mansas, folhas cahidas,
Como esperanças desfallecidas,
Lá vão perdidas nas aguas mansas,
      Como esperanças
      Desfallecidas…

                  Passarinho trigueiro,
                  Põe-te na areia
!…

A velha ponte talvez te conte
Lindas historias para encantar,
Lindas historias da Lua Cheia,
Quando na areia põe a corar
      O alvo linho
      Do seu tear…
Passarinho trigueiro! pia baixinho!
Ouve as cantigas, que as raparigas,
      No S. João,
Soltam ao vento como um lamento
      Do coração!

                  ……………………….
                  A vossa capella cheira,
                  Cheira ao cravo, cheira á rosa,
                  Cheira á flor da laranjeira

Laranjeira desfolhada
Numa noite de orvalhada,
No leito d'algum linhar…
Mas a alcachofra cortada
Sabe alguem se vae seccar?!

                  Passarinho trigueiro,
                  Põe-te na areia!

A areia é doce como se fosse
Vergel macio para noivar…
E dorme o Rio… praia deserta…
Cuidado! Alerta! que a Lua espreita,
Nunca se deita, sempre a rondar.

Passarinho trigueiro,

Olha a estrella do boieiro
Que nunca dorme no ceu,
A ver se do seu rebanho
Alguma rêz se perdeu…
Olha o Rio! é côr d'estanho
Como um espelho a brilhar;

Cuidado! se é muda a areia,
Pode o Rio murmurar,
E ás noites a Lua Cheia
Vem com elle conversar…

Já vae alto o sete-estrêllo,
Vae despontar a alvorada;
Mas uma voz desgarrada,
Como um grito sem appêllo,
Passa a cantar pela estrada:

«Esta noite, na novena,
S. João pôs se a chorar…
Da minha dor tinha pena,
Sem me poder consolar.

As andorinhas voltaram,
Desabrocharam as flores,
E as andorinhas contaram
Que tinhas novos amores…

Ninguem mais penas soffreu
Nem dor maior supportou;
Quem amou nunca esqueceu,
Quem esqueceu nunca amou!

Ai! infeliz de quem passa!
Ninguem seu amor escolhe,
Pois o amor é uma desgraça,
Que sem se esperar nos colhe…

Ai, infeliz de quem passa!… ……………………….»

Passarinho trigueiro,

Não ha amor como o primeiro…
Vôa, vôa sem parar!
Deixa a Lua estremunhada,
Deixa o Rio a murmurar…
O amor tem a asa ligeira,
E antes que rompa a alvorada.
Leva o ramo de oliveira
Àquella dor desgarrada!

CYSNE BRANCO

A Alberto d'Oliveira

CYSNE BRANCO

Cysne branco, esquecido a sonhar no alto Norte,
Vendo-se, ao despertar, das neves prisioneiro,
Ergue os olhos ao ceu, enublados de morte,
Mas o sol já não vem romper-lhe o captiveiro.

O gêlo, no lençol todo immovel das ondas,
Em que a aurora boreal põe reflexos de brasas,
Deslumbra-lhe um momento as pupillas redondas,
Dá-lhe a illusão do sol, mas não lhe solta as asas.

Vê que o torpor do frio o invade lentamente;
Debate-se, procura o cárcere romper;
Mas a asa é d'arminho, o gêlo é resistente:
Tem as pennas em sangue e sente-se morrer.

Então põe-se a cantar, sem que ninguem o escute;
Solta gritos de dor em que lhe foge a vida;
Mas essa dor, se ao longe um echo a repercute,
Parece uma canção no silencio perdida…

Melodia que a voz da Saudade acompanha,
Amarga e triste como o exilio onde agoniza,
Longe do claro sol que outras paysagens banha,
Dos rios e do mar que outra alvorada irisa.

Voz convulsa a chorar perdidas maravilhas:
—Tardes occidentaes de sanguínea e laranja,
Noites de claro ceu, como um mar cheio d'ilhas,
Manhãs de seda azul que o sol tece e desfranja!

Mas ao longe, á distancia onde a leva a Saudade,
Tão esbatida vae essa triste canção,
Que não desperta já commoção nem piedade:
Encanta o ouvido, mas não chega ao coração.

E o Cysne, abandonado ao seu destino, expira,
Hallucinado e só, sob o silencio agreste,
Pensando que no azul, como um mar de saphira,
Os astros a luzir são a geada celeste…

SÚPPLICA AO VENTO

A Luiz de Magalhães

SÚPPLICA AO VENTO

Grito ao Vento que passa a galopar na treva:
—«Escuta a minha dor!»—rouco, de braços hirtos,
A ver se elle ouve e ao longe esta Saudade leva!

«Meus queixumes, oh Vento, hão de em ancias ouvir-t'os
Esses campos que amei, vinhas, rios suaves,
Pomares, laranjais, bosques de louro e myrtos,

Onde, inverno e verão, nunca emmudecem aves,
Onde nunca se extingue o murmurar das fontes,
Todo o anno a correr entre rosaes e agáves…

Vento largo, que vens d'ignotos horizontes!
No teu rugido absorve o meu grito pungente!
Vae repeti-lo ao mar e aos pinheiraes dos montes,

Para tornar mais triste o seu gemer plangente,
Mais expressivo e humano o seu lamento amargo,
Como um echo, a expirar, d'esta noite inclemente!

Leva comtigo, oh Vento, este gemido ao largo,
A ver se nelle alguem a minha voz conhece,
Nessas terras de luz, sem hiemal lethargo,

Onde o Estio a cantar longos meses se esquece,
E onde o Sol não é só lampada que illumina,
Mas o Ágni creador que tudo anima e aquece!

Debalde, sobre mim, na sua graça divina,
Almas puras, abrindo a plumagem das asas,
Com o ardor que nenhuma angustia contamina,

Espalham no meu lar como um calor de brasas…
—Para fundir de todo esta geada tão densa,
Só tu, meu claro Sol, que até d'inverno abrasas!

Vento frio, que vaes da minha noite immensa,
Tenebroso e a rugir!—leva a minha Saudade,
Como uma estrella a arder, na tua asa suspensa!

Quando essa luz passar, com que magua não ha de
Reflecti-la o meu rio, e acariciá-la, vendo
Que vae dos olhos meus a tenue claridade!

Mas então, Rio amado, as tuas aguas descendo
Nessa luz reflectida, a tremer como um luar,
Todo o passado irei nas tuas margens revendo,

E o coração talvez se esqueça de chorar,
Como nauta que a voz de Loreley enleva,
E para a morte vae nesse enlevo a cantar…

Vento surdo, que vaes a galopar na treva!
Pára um momento! Escuta a minha voz clamante
Vê como soffro, e ao longe esta Saudade leva!»

Mas o Vento não ouve o meu grito alarmante!
Ai de mim, que sou eu?! pobre louco exilado,
De toda a parte vendo o meu país distante,
Como se lá tivesse os meus olhos deixado!

GOTA DE AGUA

À memoria de Antonio Rodrigues Braga

GOTA D'AGUA

Sobre a urze silvestre, ao subir da montanha,
Uma gota d'orvalho, em manhã d'esplendores,
Lucitremia ao Sol numa teia d'aranha,
Como um prisma em que a Luz se decompunha em cores.

Universo em resumo, essa gemma preciosa
Que a Noite alli deixou do seu manto cair,
Continha em miniatura a paysagem radiosa
Que no alvor da manhã despertava, a sorrir.

Em que obscuro crysol, esse pranto isolado,
Crystallizou com tal pureza e resplendor?
Caiu da Lua? É um ai de luz polarizado?
Ou rolou d'um olhar num soluço de dor?

Quem sabe o seu mysterio ou sonha a sua mágoa?
Lava de desespero ou suor d'agonia;
—Orvalho ou pranto—é sempre a mesma gota d'agua,
A tremer e a brilhar no resplendor do dia…

Tenha d'odio e rancor nublado o olhar mais vivo,
Ou em fogo escaldado a face onde correu,
Ninguem vê no diamante o carvão primitivo,
Nem na água a cantar o abysmo em que nasceu.

Em breve, á luz do sol, vae em fumo desfeita,
Ser nuvem, confundir-se em cúmulos no poente,
Ou em névoa através de que a Alvorada espreita
A ultima estrella a arder, do seu balcão no Oriente.

E outra vez percorrendo os circulos da Vida,
Pranto de heroe, suor de martyr ou de santo,
De novo ha de voltar, e, de novo esquecida,
Sobre as urzes rolar, gota d'agua ou de pranto…

A VENTURA

A Anthero de Figueiredo

A VENTURA

A Ventura, de vãos e ephemeros sorrisos,
    Nunca, em alto lavor,
Nos meus versos deixou cariatides ou frisos
De que ella fôsse o alacre e luzido esculptor.

Trouxe-a um dia, illudida, a minha Noiva, quando
    No meu lar se installou;
A Musa, deslumbrada, emmudeceu, sonhando,
E d'amor nunca mais um só verso rimou.

Mas d'essa adoração em que vivia absorta,
    Um dia, ao despertar,
Viu que tinham levado a minha Noiva morta,
E d'angustia chorou, na angustia do meu lar.

Chorou… Sempre que a dor nos empolga e sacode
    Como um arbusto ao vento,
Nenhuma forma d'arte em eloquencia pode
Egualar a expressão d'um grito ou d'um lamento.

Chorou… E desde então, a Musa dolorida
    Vive numa anciedade
A ouvir a minha dor no seu canto escondida,
Mansamente, a chorar, como chora a saudade…

ENTRE PINHEIROS E CYPRESTES

A meus sobrinhos, Salvato e Ruy

ENTRE PINHEIROS E CYPRESTES

Entre pinheiros e cyprestes
Fundi em lagrimas os olhos…
Onde estaes vós, almas celestes,
Que entre pinheiros e cyprestes
Em vão procuram os meus olhos?

Na terra fria aqui descansam
Os corações que tanto amei…
Mas os meus braços não alcançam
Na terra fria em que descansam
Os corações que tanto amei.

As vezes ponho o ouvido attento
A ver se os ouço ainda bater…
Mas só me fala a voz do vento,
Sempre que ponho o ouvido attento
A ver se os ouço ainda bater…

Elles que sempre e a toda a hora
Tão nobremente palpitaram…
E já nem sombra resta agora
D'elles que sempre e a toda a hora
Tão nobremente palpitaram!

Mas todo o amor, toda a bondade,
Que em vida as almas enobrece,
Torna a ser luz na immensidade,
Irradiação d'amor, bondade,
Que em vida as almas enobrece…

E nessa luz, a alma que chora
D'um brilho augusto se illumina,
Como uma esprança ou uma aurora,
Em cuja luz, a alma que chora
D'um brilho augusto se illumina…

E ao nosso olhar, d'entre cyprestes,
Estrellas novas apparecem…
Sois vós talvez, almas celestes,
D'entre pinheiros e cyprestes,
Essas estrellas que apparecem…

RIO AMARGO

A meu irmão, Julio de Castro Feijó

RIO AMARGO

A pouco e pouco a Dor, no coração do Homem,
Vae como um rio amargo escavando o seu leito,
E dia a dia, o sulco em que as mágoas se somem
Mais profundo se faz, mais escarpado e estreito.

A principio trasborda e alastra: é uma torrente!
Nada a pode conter—nem diques, nem escolhos;
Submerge o coração num tumultuar plangente,
E onda a onda rebenta em lagrimas dos olhos.

Mas o tempo transforma em profunda ravina
O leito onde mais viva a torrente passou;
A onda continua a correr nessa ruina,
Mas, de funda que vae, aos olhos se occultou.

Desde então não se escuta o bramir da tormenta,
Mas da face tranquilla e dos olhos enxutos
Ninguem inveje a paz que essa calma apparenta:
Vae cheio o coração de lagrimas e lutos!

Ditoso o Homem a quem, na primeira investida,
A Dor, como uma vaga, envolveu na ressaca,
Em vez de o arremessar, como «épave» perdida,
De soffrer em soffrer, mas que nunca se aplaca!

A Dor que mata, a Dor que d'um golpe redime,
É compassiva; o mal, que cessa, não é grande…
Mas a Dor que não pára, a Dor que nos opprime
Sem esp'rança de ver que o seu martyrio abrande,

Essa Dor, não ha som, na palavra que chora,
Para a exprimir; é a Dor que mil dores condensa:
Trazer a Morte em nós, senti-la a toda a hora,
E viver! E viver no horror d'essa presença!

Onde o peito de heroe, onde o animo forte
Para uma dor egual sem revolta afrontar,
Tendo a pesar sobre elle a mão fria da Morte?
E sem poder fugir! e sem poder luctar!

Só o Homem que espera em Deus, martyr ou santo,
Pode um supplicio tal resignado soffrer,
Com o labio a sorrir, com os olhos sem pranto,
Mas a angustia no olhar, mas a boca a gemer…

Só esse a quem a Graça illuminou, na etherea
Luz immortal d'estrella ignota alvorecida,
Pressente da Alma Humana o Infinito e a Miseria
Na eterna expiação d'este peccado—a Vida!

III

HYMNO Á VIDA

A Agostinho de Campos

HYMNO Á VIDA

Tenho-te medo, embora ignoto amor me traga
Preso a ti, como o feto ao seio em que germina…
Foi por ventura o sol, da espuma d'uma vaga,
Ou Deus que te creou d'uma essencia divina?

Que importa? D'onde quer que o teu sorriso veio,
Quem quer que sejas,—flôr d'inefavel deleite,
D'ódio ou de fel,—és sempre o mesmo augusto seio
Em que a Dor e o Prazer bebem o mesmo leite!

Calix do Sacrificio em que os meus labios ponho!
—Trazendo o Amor e a Morte a servir-te d'escolta,—
Deste ao mundo o licôr do seu primeiro sonho,
O vinho e a embriaguez da primeira revolta!

Sobes do prado em flor, desces dos altos cumes,
Na immarcessivel luz que os orbes incendeia;
Passas no largo vento a derramar perfumes,
Choras no vasto oceano a rebentar na areia!

O teu Genio, que o barro amolda e purifica,
Enleva os corações de jubilo e transporte,
Se no Esqueleto exhibe a tunica mais rica,
Se em Belleza sorri na máscara da Morte:

Teu segredo, que em sangue e lagrimas se envolve,
Mais obscuro se faz quanto mais o investigo;
—Sôpro que tudo cria e que tudo dissolve,
Força occulta, mysterio augusto, eu te bemdigo!

Se, ousado, alguem buscando a tua ignota origem,
O abysmo a perscrutar sobre ti se debruça,
Da treva apenas sae, dissipada a vertigem,
Um immenso clamor que blasphema e soluça!

És o raio de sol, a tempestade e o vento;
Vôo d'ave a cantar na floresta orvalhada;
Ancia no coração, lava no pensamento,
O Amor e o Odio, o Bem e o Mal,—és Tudo e és Nada!

Mão potente, que a rocha endurecida escarva,
Tornando-a em fragil pó d'onde rebentam flores;
Fada occulta que tece o casulo da larva
E aos insectos iria as asas de esplendores…

Beijo d'onde a traição como um veneno escorre;
Riso que se desfaz num amargo travor;
Larga estrada sem fim que a Ventura percorre,
Como um cego a cantar pelo braço da Dor!

Quem quer que sejas,—tudo ou nada,—eu te bemdigo!
Pelo esforço immortal da tua heroica belleza,
Que, no revolto chão do soffrimento antigo,
Deixou tantos padrões e tropheus de grandeza!

Se a alguem o teu mysterio a Esphinge revelasse,
Talvez nunca, a rolar dos planaltos risonhos,
A onda humana através da historia se lançasse,
Erguendo cathedraes e accumulando sonhos!

Por isso eu te bemdigo, Alma que enches o Mundo!
Occulto coração, graça, illusão suprema!
Se tudo vem de ti, d'esse enygma profundo,
—A solução que importa? O que é grande é o problema!…

HYMNO Á BELLEZA

A Eugenio de Castro

HYMNO Á BELLEZA

Onde quer que o fulgor da tua gloria appareça,
—Obra de genio, flôr d'heroismo ou sanctidade,—
Da Gioconda immortal na radiosa cabeça,
Num acto de grandeza augusta ou de bondade,

—Como um pagão subindo á Acropole sagrada,
Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,
Ou seja o Heroe que leva uma aurora na Espada,
Ou o Sancto beijando as chagas do Leproso.

Essa luz sem egual com que sempre illuminas
Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio
Do mesmo foco em mil parábolas divinas:
—Raios do mesmo olhar, ancias do mesmo seio.

Alta revelação que, baixando em segredo,
O prisma humano quebra em angulos dispersos,
Como a água a caír de rochedo em rochedo
Repete o mesmo som, mas em modos diversos.

É audácia no Heroe; resignação no Sancto;
Som e Côr, ondulando em formas immortaes;
No mármore rebelde abre em folhas de acantho,
E esmalta de candura a flora dos vitraes.

Oh Belleza! Oh Belleza! as Horas fugitivas
Passam deante de ti, aladas como sonhos…
Que importa onde ellas vão, d'outra força captivas,
Se o Infinito luz nos teus olhos risonhos?!

Abrem flores, cantando, ao teu hálito ardente,
Brilham as aves como estrellas, e as estrellas,
Como flores enchendo a noite refulgente,
Deixam-se resvalar sobre quem vae colhê-las…

És tu que ás illusões dás juventude e forma,
Tu, que talvez do ceu, d'onde vens, te recordes
Quando, a ouvir-nos chorar, a tua voz transforma
Dissonáncias de dor em immortaes accordes.

Vejo-te muita vez,—luz d'aurora ou de raio,—
Com um gládio de fogo a avançar no horizonte;
Ou então, em manhãs transparentes de maio,
Naiade toda nua a fugir d'uma fonte.

Outras vezes, de noite e a occultas, appareces,
Como ovelha que Deus do seu redil tresmalha,
Trazendo no regaço inexgotaveis messes,
Que Elle por tuas mãos sobre a miseria espalha…

Podesse eu revelar-te em estrophes aladas,
Que partissem ao sol refulgindo em lavores,
Com rimas d'oiro, em blau e purpura engastadas,
Como versos que vão desabrochando em flores!

Mas a lingua não é sumptuosa bastante
Para nella deixar teu génio circumscripto;
Trago-te dentro em mim, sinto-te a cada instante,
E a voz nem mesmo tem a eloquencia d'um grito!

Mas se para o teu culto, em esplendor externo,
Não encontro uma prece altamente expressiva,
Por ti meu coração arde d'um fogo eterno,
Como chamma a tremer de lampada votiva!

HYMNO Á DOR

Aos Condes de Sabugosa

HYMNO Á DOR

Sorri com mais doçura a boca de quem soffre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar, onde como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.

Sôa, como se um beijo ou uma caricia fôsse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não ha para nós consolação mais doce,
Que o regaço de quem muito amou e soffreu.

Voz, que jamais vibrou num soluço de mágua,
Ao nosso coração nunca pode chegar…
Mas o pranto, ao caír d'uns olhos razos d'agua,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.

Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.

Em tudo quanto existe o Soffrimento imprime
Uma augusta expressão… mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna immorredoira a Inspiração que passa.

É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
Dor sem resignação, Dor de estoico ou de santo,
Só de a vermos passar no tumulto da Vida
Deixa os olhos da gente ennublados de pranto.

HYMNO Á ALEGRIA

A Carlos Malheiro Dias

HYMNO Á ALEGRIA

Tenho-a visto passar, cantando, á minha porta,
E ás vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se á minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu somno embalar.

Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quasi meiga, apesar do seu riso constante,
D'olhos a arder, labios em flor, cabellos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingenua ou bachante…

Quando ella passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o sol d'inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz,—scintilla na penumbra,
Sem que d'elle irradie um facho creador.

Quando menos se espera, irrompe d'improviso;
Mas foge-nos tambem com uma presteza egual;
E d'ella apenas fica um pállido sorriso
Traduzindo o desdem d'uma illusão banal.

Onda mansa que só á superficie corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exhaustiva e profunda!

No entanto, eu te saudo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa,
Como chuva a cair numa planta abrasada,
A fornalha em que a Dor se transmuta em Belleza!

Pensar, é certo, eleva o espirito mais alto;
Soffrer torna melhor o coração; depura
Como um crysol: a chispa irrompe do basalto,
Sae o oiro em fusão da escoria mais impura.

A Alegria é fallaz; só quem soffre não erra,
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que o louve;
A Alma, na oração, desprende-se da terra;
Jamais o homem é vão deante de Deus que o ouve!

E comtudo,—illusão!—basta que ella sorria,
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar,
Vamos logo em tropel, no capricho do dia,
Como ébrios, Evohé! atrás d'ella a cantar!

Mas se ella, de repente, ao nosso olhar se furta,
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso;
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta,
Que mal chega a doirar as cortinas do berço.

Ás vezes, essa luz de tão fragil encanto,
Vem ainda banhar certas horas da Vida,
Como um iris de paz numa névoa de pranto,
Crepitação, fulgor d'uma estrella perdida.

Então, no resplendor d'essa aurora bemdita,
Toma corpo a illusão, e sem áncias, sem penas,
O espirito remoça, o coração palpita,
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas!

Mas ephémera ou vã, a Alegria… que importa?
Deusa ingenua ou bachante, o seu riso clemente,
Quando, mesmo de longe, echôa á nossa porta,
Deixa em louco alvoroço o coração da gente!

Momentánea ou fallaz, é sempre um dom divino,
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer…
Podesse eu celebrar teu louvor no meu Hymno!
Momentáneo, fallaz encanto de viver!

O teu sorriso enxuga o pranto que choramos,
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes!
Nesta sentimental lingua que nós falamos,
Só a Dor e a Paixão têm accordes sublimes!

HYMNO Á SOLIDÃO

Ao Padre João Ignacio de Araujo Lima

Vive ut vis, sed cum aegrotabis
Justis lachrymis damnabis
Omnes mundi insulas.
O beata solitudo,
O sola beatitudo,
Piis secessicolis!

Cornelius, Martyr.

HYMNO Á SOLIDÃO

Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma, nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.

Mundo vasto que mil existencias povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
—Sonhos puros que nelle em belleza revoam
E ficam a brilhar, soes do seu firmamento.

Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vae germinar na Palavra,
Cantar no Som, florir na Côr, sorrir na Pedra!

Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ella, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.

Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso creador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um Deus no seu mundo interior.

E que mundo sublime, esse em que elle se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo creou,
E em cuja creação o seu sangue palpita,
Que não ha Deus estranho aos orbes que formou.

Nem luctas, nem paixões: ideaes serenidades
Em que o Tempo se esvae sob o encanto da Hora…
O passado e o porvir são ancias e saudades:
Só no instante que passa a plenitude mora.

Sombra crepuscular, que a Noite não attinge,
Nem a Aurora desfaz: rosiclér e luar,
Meia tinta em que a Alma abre os labios de Esphinge,
E o seu mystério ensina a quem sabe escutar.

Mas então, innundando essa penumbra dôce,
De não sei que sublime esplendor sideral,
Como se a emanação d'um ser divino fôsse,
Deixa no nosso olhar um reflexo immortal.

Na vertigem que a vida exalta e desvaria,
Pára alguem para ouvir um coração que bate?
No seio mais formoso, o olhar que se extasia
Vê o mundo que nelle em ancias se debate?

É só na solidão que a alma se revela,
Como uma flor nocturna as pétalas abrindo,
A uma luz, que é talvez o clarão d'uma estrella,
Talvez o olhar de Deus, d'astro em astro caindo…

E d'essa luz, a flôr sem forma, ha pouco obscura,
Recebe o seu quinhão de graça e de pureza,
Como das mãos do artista, animando a esculptura,
O mármore recebe a sua alma—a Belleza.

Se soffrer é pensar, na paz do isolamento,
Como d'um calix cheio o liquido extravasa,
A Dor, que a Alma empolgou, trasborda em pensamento,
E a pouco e pouco extingue o fogo em que se abrasa.

Como a montanha d'oiro, a Alma, em seu mysterio,
Á superficie nunca o seu teor revela;
Só depois de sondado e fundido o minério
Se conhece a riqueza accumulada nella.

Corações que a Existencia em tumulto arrebata!
Esse oiro só se extrae do minério candente,
No silencio, na paz, na quietação abstracta,
Das estrellas do Ceu sob o olhar indulgente…

HYMNO Á MORTE

Meorum amicorumque pié manibus

HYMNO Á MORTE

Meorum amicorumque pié manibus.

Tenho ás vezes sentido o chocar dos teus ossos
E o vento da tua asa os meus labios roçar;
Mas da tua presença o rasto de destroços
Nunca de susto fez meu coração parar.

Nunca, espanto ou receio, ao meu animo trouxe
Esse aspecto de horror com que tudo apavoras,
Nas tuas mãos erguendo a inexoravel Fouce
E a ampulheta em que vaes pulverizando as horas.

Sei que andas, como sombra, a seguir os meus passos,
Tão proxima de mim que te respiro o alento,
—Prestes como uma noiva a estreitar-me em teus braços,
E a arrastar-me comtigo ao teu leito sangrento…

Que importa? Do teu seio a noite que amedronta,
Para mim não é mais que o refluxo da Vida,
Noite da noite, d'onde esplendida desponta
A aurora espiritual da Terra Prometida.

A Alma volta á Luz; sae d'esse hiato de sombra,
Como o insecto da larva. A Morte que me aterra,
Essa que tanta vez o meu animo assombra,
Não és tu, com a paz do teu oásis de terra!

Quantas vezes, na angustia, o soffrimento invoca
O teu suave dormir sob a leiva de flores!…
A Morte, que sem dó me tortura e suffoca,
É outra,—essa que em nós cava sulcos de dores.

Morte que, sem piedade, uma a uma arrebata,
Como um tufão que passa, as nossas affeições.
E, deixando-nos sós, lentamente nos mata,
Abrindo-lhes a cova em nossos corações.

Parenthesis de sombra entre o poente e a alvorada,
Morrer, é ter vivido, é renascer… O horror
Da Morte, o horror que gera a consciencia do Nada,
Quem vive é que lhe sente o afflictivo travor.

Sangue do nosso sangue, almas que estremecemos,
Seres que um grande affecto á nossa vida enlaça,
—Somos nós que a sua morte implacavel soffremos,
É em nós, é em nós que a sua morte se passa!

Só então, da tua asa a sombra formidavel,
Anjo negro da Morte! aos meus olhos parece
Uma noite sem fim, uma noite insondavel,
Noite de soledade em que nunca amanhece…

Só então, succumbindo á dor que me fulmina,
A mim mesmo pergunto, entre espanto e receio,
Se a tua asa não é d'um Anjo de rapina,
Se eu poderei em paz repoisar no teu seio!

Inflexivel e cego, o poder do teu sceptro
Só então me desvaira em cruel agonia,
Ao ver com que presteza elle faz um espectro
D'alguem, que ha pouco ainda, ao pé de nós sorria.

Mas se n'essa tortura, exhausto o pensamento,
Para ti, face a face, ergo os olhos contricto,
Passa deante de mim, como um deslumbramento,
Constellando o teu manto, a visão do Infinito.

E de novo, ao sair d'essa angustia demente,
Sinto bem que tu és, para toda a amargura,
A Euthanasia serena em cujo olhar clemente
Arde a chamma em que toda a escoria se depura.

É pela tua mão, feito um rasgão na treva,
Que a Alma se liberta, e d'esplendor vestida
—Borboleta celeste, ébria de Deus,—s'eleva
Para a Luz immortal, Luz do Amor, Luz da Vida!

EPILOGO

EPILOGO

Como um captivo, aqui te deixo, Pensamento,
As asas d'oiro amarfanhadas,
Com o esforço que fiz de forma e sentimento,
Nestas estrophes mal rimadas…

Os meus olhos, a noite immensa perscrutando,
Viram-te bello e refulgente;
E ao teu contacto, a Alma em trevas, despertando,
Illuminou-se de repente.

A cadeia, que ao lodo obscuro a tinha presa,
Fundiu-se ao beijo que lhe deste;
E a alma liberta, ao sol da Graça e da Belleza,
Abriu, cantando, a asa celeste!

Descendo para mim d'outras espheras, vinhas
Banhado ainda em luz sublime;
Via-te bem, sentia os encantos que tinhas,
Mas a palavra não te exprime.

E quem hoje te vê, n'estas imagens frias,
Encarcerado em duro engaste,
Nem por sombras suppõe com que esplendor fulgias,
Quando aos meus olhos te mostraste!

Nem as outras visões que ficaram sem forma
Em nebulosa inconsistente,
A espera d'essa luz que ao vir de ti transforma
O pó da terra em oiro ardente…
*/

LENDAS E FABULAS

PRELUDIO

PRELUDIO

Ferreiro velho e cansado
Deixa a forja, não trabalha;
O fogo, quasi apagado,
Poucas faúlas espalha;
Mas do ferro trabalhado
Vae recolhendo a limalha.
Ferreiro velho e cansado
Deixa a forja, não trabalha.

Como á luz do sol doirado
É poeira d'oiro a limalha,
A todo o olhar angustiado
Em que a Saudade se espalha,
Parecem d'oiro e brocado
Lentejoulas de mortalha…
Ferreiro velho e cansado
Deixa a forja, não trabalha;
Mas do ferro trabalhado,
Vae recolhendo a limalha.

O AMOR E O TEMPO

(CHRISTOPULOS)

O AMOR E O TEMPO

    Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
    O Amor, o Tempo, a minha Amada
    E eu subiamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indicios de cansaço;
    O Amor passava-nos adeante
    E o Tempo accelerava o passo.

    —«Amor! Amor! mais de vagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
    A minha doce companheira!»

Subito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
—«Porque voaes assim tão apressados?
Onde vos dirigis?»—Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
    —«Tende paciencia, amigos meus!
    Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!»

FABULA ANTIGA

A Manuel d'Oliveira Monteiro

FABULA ANTIGA

No principio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada
Com pupilas de Lynce em olhos de Morcego.

Mas um dia, brincando, a Demencia, irritada,
Num impeto de furia os seus olhos vazou;
Foi a Demencia logo ás feras condemnada,

Mas Jupiter, sorrindo, a pena commutou.
A Demencia ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ella o cegou,

Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisiveis laços,
Quando o Amor emprehende a mais simples jornada,
Vae a Demencia adeante a conduzir-lhe os passos.

CLEOPATRA

A José Coelho da Motta Prego

CLEOPATRA

Como a concha de nácar luminoso.
Em que Venus surgiu, risonha e nua,
A Galera vogava ao sol radioso
Com a graça d'um Cysne que fluctua.

Soltas ao vento as velas de brocado,
Ao som das Lyras, sobre o rio immenso,
Dos remos d'oiro e de marfim sulcado,
O destino do Mundo ia suspenso!

Como nuvens correndo, as horas passam;
Já se divisa o porto; o sol declina,
E emquanto as velas, marinheiros, cassam,
Ella que um sonho de poder domina,

Deante do espelho, a reflectir, perscruta
Do seu corpo a belleza profanada,
Como o rufião nocturno, antes da lucta,
Examinando a lamina da espada!

MOIRO E CHRISTÃ

A Antonio de Barbosa de Mendonça

Abou-el Hassan, Ali, fils d'Abdalla,
Elzagouni, raconte ce qui suit…

Ebu-Abi-Hadglat, Divan Oriental.

MOIRO E CHRISTÃ

O pobre moiro enamorou-se
D'Ely, môça christã, sendo filho do Emir…
Tamanha dor sentiu, que o misero exilou-se,
Como se alguem podesse á propria dor fugir!

Longe, na terra alheia, abrasa-lhe a memoria
A imagem da mulher que a vida lhe prendeu,
Vendo-a morta, a sorrir sob um nimbo de gloria,
Mas no esplendor de um ceu que nem mesmo era o seu…

Por sua vez, Ely nunca pôde esquecê-lo,
E nesse immenso amor, com presagios de agoiro,
Sentia-se morrer, como um lirio no gêlo,
Sem o doce luar dos seus olhos de moiro…

Mas no instante supremo, ambos crentes, temendo
Que a Morte os separasse, em tão oppostos ceus,
Elle invocou Jesus, cheio de fé, morrendo;
E a christã murmurou: «Allah! só tu és Deus!»

A RESPOSTA DO ÁRABE

A João Gomes d'Abreu e Lima

Quelqu'un demanda un jour à Arouâ-Ben-Hezam, de la tribu d'Asra: Est-il bien vrai que vous êtes de tous les hommes ceux qui avez le coeur le plus tendre en amour?—Oui, par Dieu! cela est vrai, répondit Arouâ, et j'ai connu dans ma tribu trente jeunes gens que la mort a enlevés, et qui n'avaient d'autre maladie que l'amour.

Ebu-Abi-Hadglat, Divan de l'Amour.

A RESPOSTA DO ÁRABE

«De que país és tu?»—A um árabe dizia
Sahid, filho d'Agbá, na estrada, ao fim do dia.

Era a hora em que o sol se fecha no Occidente
Como o olhar moribundo e triste d'um doente.

E o árabe respondeu, banhado na piedosa
Claridade da luz, quasi religiosa:

—«Sou da raça que tem o excepcional fervor
D'amar eternamente e de morrer d'amor.»—

—«Então és tu de Asrá.»—accrescentou Sahid;
—«Sim, por Kaaba! Foi essa a tribu onde eu nasci.»

E de novo Sahid o interrogava attento:
—«Por que motivo, pois, tão nobre sentimento

Nunca se muda em vós n'uma paixão nefasta?»—
O crepusculo enchia o ceu meio estrellado,
E o árabe tornou, como que illuminado:
—«Porque a mulher é bella e a juventude é casta!»

A VOCAÇÃO D'IBRAHIM

A Aristides da Motta

Outros a quem impugna Genebrado, in Chronologia dizen que fue Abraham Idolatra como su padre, y le ayudava a su padre Thare a hazer Idolos de barro, y San Clemente Alexandrino, en el lib. I recognitionem, y Suydas, in verbo Abrahan: dizem que fue primero infiel empero que fue tan eminente en el Astrologia, que por el conocimiento natural de las estrellas conveiò al verdadero Dios.

Prosapia de Christo, por el L.^{do} Diego Matute de Penafiel, fol. 109.

A VOCAÇÃO D'IBRAHIM

Vendo, mudos á Dor, os Idolos grosseiros,
Que o oleiro antigo e rude em barro modelava,
Ibrahim despedaça os Deuses derradeiros,
E as terras de Ur, familia e patria, abandonava.

Só, na noite profunda e num amplo deserto,
Sem que o sitio onde está e a estrada reconheça,
—Numa nesga de ceu quasi todo encoberto,—
Viu um Astro a luzir sobre a sua cabeça.

E absorto nessa luz que do alto cahia,
Como um pressentimento augusto a illuminá-lo,
Bradou, cheio da paz que sôbre elle descia:
—«Eis o Deus verdadeiro!»—e prostrou-se a adorá-lo.

Mas o Astro immergiu na curva em que fluctua,
Quando o Luar rompeu como um vasto luzeiro;
E attonito, Ibrahim pensava, olhando a Lua:
—«Deus não pode esconder-se! Eis o Deus verdadeiro!»

E outra vez, como chuva em calcinada areia,
A paz, ao seu turbado espirito baixara;
Parecia-lhe agora, esse luar da Chaldeia,
Que tinha uma outra luz, mais ardente e mais clara.

Mas a Lua descreve a orbita marcada
E some-se ao primeiro esplendor do arrebol;
Borda todo o horizonte uma fimbria doirada,
E entre nuvens a arder surge o orbe do Sol.

Como o homem que sae d'um longinquo desterro,
E de subito encontra o lar e encontra os seus,
Ibrahim mede o abysmo enorme do seu erro,
E de joelhos proclama:—«Eis o unico Deus!»—

Mas a tarde descia, e Elle, sempre de rastros,
Perdido na abstracção do seu culto fervente,
Quando os olhos ergueu já luziam os astros,
E do Sol mal se via um clarão no occidente.

Então, no seu assombro, o espirito perplexo,
Exalta-se, e da immensa altura a que ascendeu
Viu em tudo o que existe apenas o reflexo
D'um invisivel Ser que fez a Terra e o Ceu…

PRINCESA ENCANTADA

A Alfredo da Cunha

PRINCESA ENCANTADA

Formosa Princesa dormia ha cem annos;
Dormia ou sonhava… Ninguem o sabia.
Passavam-se os dias, passavam-se os annos,
E a linda Princesa dormia, dormia,
    Dormia ha cem annos!

Em torno, sentadas, dormiam as Damas,
Cobertas de joias, cobertas de lhamas;

Com formas e aspectos de finas imagens,
Esbeltos e loiros, dormiam os pagens.

E ás portas de bronze, por terra halabardas,
Num somno profundo dormiam os guardas.

Lá fóra, na sombra dos parques discretos,
Nem aves gorgeiam, nem zumbem insectos.

As arvores sonham, na sombra dos poentes,
Immoveis, á beira dos lagos dormentes.

E as fontes que d'antes sonoras gemiam,
Somnambulas mudas, apenas corriam…

Um dia, de longe, de terras distantes,
Com pagens, arautos, donzeis, passavantes,

Bandeiras ao vento, clarins, atabales,
Echoando a distancia por montes e valles,

—Um principe, herdeiro d'um throno potente,
Com olhos suaves d'aurora nascente,

Excelso e formoso, magnanimo e moço,
—Correndo aventuras, num grande alvoroço,

Chegou ao Castello, que ha tanto dormia,
Como uma alvorada, prenuncia do dia…

E ao ver a princesa, sentada em seu throno,
N'aquelle profundo, extactico somno,

Tomado d'estranha, indizivel surpresa,
Na boca entreaberta da linda Princesa,

Tremendo e sorrindo, seu labio collou-se
N'um beijo, que ao labio a alma lhe trouxe.

Accorda a Princesa; despertam as Damas,
As faces ardentes, os olhos em chamas.

Despertam os Pagens, nos seus escabellos,
Com halos de fogo nos loiros cabellos.

Accordam os guardas; e, tudo desperto,
A vida renasce no parque deserto.

Suspiram as fontes; gorgeiam as aves,
Das áleas profundas nas sombras suaves.

As arvores tremem, no ar transparente,
Á brisa que sopra, como halito ardente.

Nas torres, os sinos repicam de festa;
O povo em choreias enchia a floresta…

E a linda Princesa, seus olhos fitando
No Principe excelso, sorrindo e còrando,

—«Sonhava comtigo…» Porque é que tardaste?
Mas já nesse instante, formando contraste,

Quando isto dizia, erguendo-se a medo,
A voz parecia trahir o segredo

De quem, num relance, talvez lamentasse
Que sonho tão lindo tão cedo acabasse!…

A linda Princesa sonhava ha cem annos,
E fóra do Sonho só há desenganos…

O ROMANCE DA PASTORA LINDA

Aos Condes de Bertiandos

Och hör du, liten Carin!
Säg, vill du blifva min?

Liten Carin, Folkvisa.

O ROMANCE DA PASTORA LINDA

A linda Pastora, guardando o seu gado,
Andava esquecida num alto montado.

E o Rei, que voltava, sombrio, da caça,
Com seus falcoeiros e galgos de raça,

Detem-se, pensando, de subito, ao vê-la,
Em ermo tão alto, que fôsse uma estrella.

—«Oh linda Pastora dos olhos castanhos,
Que passas a vida guardando rebanhos!

A tua belleza deslumbra os meus olhos,
Como uma tulípa no meio de abrolhos.

Teus labios parecem cerejas vermelhas,
E a pelle é mais fina que a lã das ovelhas.

Sobre o oiro das tranças, tuas faces tão puras
São duas papoilas em searas maduras.

Estrella ou Pastora, se queres ser minha,
Terás as riquezas que tem a Rainha!»

—«A flôr dos vallados é sempre modesta
E a humilde zagalla presume de honesta.»

—«Terás equipagens, palacios, castellos,
E joias a arderem nos fulvos cabellos;

Um throno de esmaltes em oiros massiços,
Lacaios, escravos, fidalgos submissos!…»

—«Ás vossas riquezas, perdidas nos montes,
Prefiro mirar-me no espelho das fontes;

As joias, que valem, se eu guardo o meu gado,
Com rubras papoilas a arder no toucado?…

De nada me servem fidalgos, escravos,
Pois tenho as abelhas e o mel dos meus favos.

Segui vosso rumo, que a tarde caminha;
Guardae as riquezas que são da Rainha».

—«Não rias, vaidosa, das minhas promessas,
Que a forca tem visto mais lindas cabeças…»

—«Talvez que mais lindas já visse pender,
Mas nunca tão firme nenhuma ha-de ver,

Que a Virgem Santissima, a Virgem clemente,
Ampara, sorrindo, quem morre innocente,

E os anjos, descendo do ceu a voar,
Á forca viriam minh'alma buscar!»

E a linda Pastora, que a ser ultrajada
A morte prefere,—vae ser enforcada!

Levaram-na, á força, das suas ovelhas,
Pendendo-lhe ás tranças papoilas vermelhas,

Com gritos de escarneo, no meio da turba…
Mas nada os seus olhos serenos perturba.

E toda inundada na luz que irradia,
Sorrindo, os estrados da forca subia…

Então, n'um relance, do azul transparente,
Surgindo mais alvas que a lua nascente,

Duas pombas que descem e voam a par,
Nos braços da forca vieram poisar…

E a linda Pastora dos olhos castanhos,
Tão longe da serra, cercada de estranhos,

Sem ter um gemido, sem ter um lamento,
Expira na forca… Mas n'esse momento,

No grande silencio que a morte causara,
Aos olhos de todos que attonitos viram
Tão grande prodigio, coragem tão rara,
Dos braços da forca—três pombas partiram!

A LENDA DOS CYSNES

A Julio Dantas

Gedulde Dich, stilles, hoffendes Herze! Was Dir im Leben versagt ist, weil Du es nicht ertragen könntest, giebt Dir der Augenblick Deines Todes.

Herder.

A LENDA DOS CYSNES

Da praia longinqua, na areia doirada,
O Cysne pensava, fitando a Alvorada:

—«Que immensa ventura, na minha mudez,
Se dado me fôsse cantar uma vez!»

—«Meu canto seria, na luz do arrebol,
Dos hymnos mais altos á gloria do Sol…»

Não é das gaivotas e gansos do lago
O canto que em sonhos ardentes afago;

É quando nos bosques as aves escuto
Que a inveja confrange minh'alma de luto.

Se a Aurora se lança do cume dos montes,
Até d'alegria murmuram as fontes;

Só eu, passeando o meu tedio supremo,
Nem rio, nem choro, nem canto, nem gemo.

Oh Sol, que já vejo surgindo do Mar,
Tem dó de quem, mudo, não pode cantar!»—

E o Cysne, em silencio, chorava, escutando
A orchestra das aves que passam em bando.

Das aguas rompia a quadriga d'Apollo,
E o pobre a cabeça escondia no collo…

Mas Phebo detem-se nas nuvens ao vê-lo,
Com feixes de raios no fulvo cabello,

E diz-lhe, sorrindo, n'um halo de fogo:
—«No Olympo sagrado ouviu-se o teu rogo…»—

E nesse momento a Lyra Sem Par,
Da mão luminosa deixou resvalar…

O Cysne, orgulhoso da graça divina,
Da Lyra d'Apollo as cordas afina,

E rompe cantando… Calaram-se as fontes,
Calaram-se as aves… As urzes dos montes

Tremiam de goso a ouvi-lo cantar…
E o vento sonhava na espuma do Mar.

O Cysne cantava, tirando da Lyra
Um hymno que nunca na terra se ouvira;

Não pára, nem sente, na sua emoção,
Que a vida lhe foge naquella canção.

Mas quando, entre nuvens, a tarde cahia
No enlevo do canto que a essa hora gemia,

E Apollo no seio de Thetis desceu,
O pobre do Cysne, cantando, morreu…

Gemeram as aves; choraram as fontes;
Torceu-se nas hastes a giesta dos montes,

E o mar soluçava na tarde sombria,
Que o manto de luto com astros tecia.

Sollicita espera-o, das aguas á beira,
Do Cysne, já morto, fiel companheira;

Espera que o Esposo de prompto regresse,
Mas treme e suspira, que a Noite já desce…

As aguas luzentes parecem-lhe, ao vê-las,
Um panno d'enterro picado d'estrellas.

Então, no seu luto, sentindo que morre,
Oceanos e praias distantes percorre;

Mergulha nas aguas, colleia nas ondas,
Espreita as galeras de velas redondas,

Que ao longe parece que vão a voar…
E o Cysne não volta, não pode voltar!

Chorosa viuva, nas aguas deslisa,
Levada na fresca salsugem da brisa…

No seu abondono nem sente canseira;
Caminha, caminha, fiel companheira,

Chorando o perdido, desfeito casal…
Tão funda era a mágoa, tão grande o seu mal,

Que o peito sentindo de dor estalar,
—De dor e d'angustia começa a cantar!

E canta com tanta ternura e paixão,
Que a Vida lhe foge naquella canção.

As aves despertam; calaram-se as fontes;
Nas hastes tremiam as urzes dos montes;

A Lua escutava; detinha-se a Aurora,
E as vagas gemiam no vento que chora…

Na terra, no espaço, nos astros, no ceu,
Mais alta harmonia ninguem concebeu;

E os Deuses recebem, ouvindo-a, a chorar,
A alma do Cysne que expira a cantar…

Desde esse momento, no Olympo onde entraram,
Em honra dos Cysnes que tanto se amaram,

Das almas que foram leaes e sinceras,
Se Venus se mostra, surgindo da bruma,
São elles que tiram, nas altas espheras,
A concha de nácar, cercada de espuma…

FIM

Apreciações da «Ilha os Amores» e do «Cancioneiro Chinês»

SOBRE A «ILHA DOS AMORES»

Poeta por necessidade de temperamento e por fatalidade de herança, Antonio Feijó sabe impôr, a quem o lê, a contestada mas suprema fidalguia do verso. Emotivo e delicado como os velhos bysantinos, amoroso e enternecido como todo o meridional, a sua bella constituição de lyrico assegura-lhe um logar inteiramente á parte entre os technicos portugueses. Sendo um religioso da côr, Feijó desadora as tintas impetuosas e agressivas, e, numa preciosa doçura, dá-nos a branco e oiro as suas figuras de mulher. O ar contemplativo, o ar extatico das suas lyricas, veio-lhe no sangue. Numa remota ascendencia lá está frei Agostinho da Cruz a assegurar-lhe a fatalidade da herança.

Não é esteril a intervenção da hereditariedade na comprehensão moral d'um poeta. O incomparavel mistico da Arrabida renasce espiritualmente na alta uncção lyrica e nos piedosos enternecimentos de Antonio Feijó.

Tenho aqui, sobre a minha mesa, esses dois bellos livros—a Mystica de frei Agostinho e a Ilha dos Amores,—tão proximos pelos laços de familia e tão afastados pelo poder do tempo. O epilogo da Ilha dos Amores, essa piedosa aspiração a uma vida mais simples, a um ruralismo honesto e socegado, o que é elle, senão a affirmação d'um mysticismo profundo, obliquado pela acção dissolvente do meio e pela orientação revoltosa do tempo? E tinhas Deus, para te consolar,—diz dolorosamente o poeta, no pungente isolamento a que o condemnou a sua propria superioridade cerebral. O mesmo enlevo mystico d'aquelle, que

Nas pedras do deserto achou brandura,
Nas serpentes da serra piedade
E nas pelles das feras cobertura.

Lendo um e outro, o velho Agostinho Pimenta e o novo Antonio Feijó, vejo a affirmação de dois grandes poetas e a imposição de duas grandes almas. Entre o profundo amigo do duque de Aveiro e o louro diplomata, as differenças apparentes fundem-se numa grande semelhança intima. O primeiro, victima da sua emotividade excessiva, fugiu do amor da terra para o amor do ceu; o outro, galante e vivo, deixou-se ficar pelo amor da terra, e em grande verdade, ficou melhor. Mas quando a evocação da mulher domina os espiritos d'um e de outro, quando o sentimento da côr lhes illumina os olhos, então as apparições da Ilha dos Amores teem a mesma luz que a apparição de Magdalena e de Santa Clara aos olhos pisados do frade. Vejamos se as figuras que passam na insula encantada, vestidas de oiro e de sonho, as não poderia ter evocado o cerebro d'um mystico como Juan de la Cruz, Jacopone de Todi ou Lourenço de Medicis? Uma voluptuosa de si mesma; outra, a lyrica Ignez, duas vezes virgem, aquella, toda de sol vestida e de astros coroada; aquell'outra ainda, santa illuminada a oiro, no esplendor d'uma Assumpção,—o que mostram todas ellas, senão que o erotismo e o mysterio não são mais que dois ramos da mesma arvore ou duas flôres do mesmo ramo? O mysticismo de Agostinho Pimenta e o erotismo de Antonio Feijó, o que são elles, senão uma e a mesma coisa?

Disse eu, que o poeta da Ilha dos Amores tinha um logar aparte entre os technicos portugueses. A sua technica, sendo nalguns pontos decadente, é, por assim dizer, classica e impeccavel no seu decadismo. Feijó afastou-se da discutivel rigidez do classico absoluto, e fez um classico seu, de cujas formulas se não aparta. As liberdades da sua technica chegam a ser mais difficeis do que as difficuldades da technica parnasiana. É um caso esporádico nos annaes da nossa lyrica. Seja como fôr, Feijó tem no seu passado, como demonstração clara da sua impeccavel métrica, dois livros modelares. Nas proprias paginas do Auto do meu affecto, conserva-se um parnasiano puro. O mesmo nos sonetos da Alma Triste. A Ilha dos Amores veio apenas mostrar uma face nova do seu grande poder de realização. O proprio Francisco Manoel de Mello teve delirios metricos, como Feijó nalgumas das suas lyricas. E não é, por isso, menos poeta.

Deus queira que António Feijó nos traga um novo livro quando voltar,—um livro todo de branco e oiro, em que o travor das suas nostalgias seja, como neste ultimo, uma bem deliciosa nota. Até lá, envio-lhe, com as saudades d'este ceu azul, o mais enternecido abraço.

Novidades, 20 de Julho de 1897.

Julio Dantas.

* * * * *

«ILHA DOS AMORES»

Temos desde hontem o novo livro de versos de Antonio Feijó—Ilha dos Amores, saido, ha dias, dos prelos da Imprensa Nacional, e editado pela casa M. Gomes, de Lisbôa. Evidentemente que, por muito menos fadigosa que a nossa vida fôsse, nos seria absolutamente impossivel avaliar em conjunto, dentro de tão breve espaço, a obra de um artista litterario da nobre categoria a que pertence A. Feijó. Vai isto, assim, apenas como registo de recepção e de vivo agradecimento, envoltamente com algumas ligeiras notas da impressão que recebemos de uma rapida leitura.

Essa impressão é magnifica. O talento de A. Feijó amplificou-se notavelmente em emoção, em fantasia, em profundeza de alma; o poeta alongou os seus passos e a sua visão pelo mundo, e á nostalgia da sua bella mocidade, não muito longinqua, ainda, se lhe foi juntar a do seu patrio Minho, tão distante do país scandinavo e, ao mesmo tempo, tão brutalmente contrastado pela noite e pela neve d'essa tristissima região polar. E é um encanto de observação o jogo d'esta dupla mágoa, d'este complicado pungir, deliciosissimo, de que provêm as estancias da Ilha dos Amores. Numa reacção vigorosa de fisiologia e de alma, assim como os seus olhos se ensanguentaram naquella immensa noite, assim tambem, naquella tristeza inexoravel, o coração do poeta se dilatou de saudades, e a estetica do glorioso parnasiano antigo emoveu-se intensamente e vibrou fundo; todas as nervuras do marmore sagrado se desmineralizaram em veias e em arterias e uma onda rubra e fumegante circulou e palpitou por todas ellas.

De resto, em todos os versos que já lemos do novo livro, é o mesmo estilo magnificente das producções de outr'ora, mas dexterisado com um maravilhoso, consummado bom-gosto; é essa mesma amplitude harmoniosissima e limpidez diamantina, o admiravel senso musical, a riqueza larga de fantasia, e aquella fidalga probidade artistica, o esmero, a esplendida perfeição de executante, que fizeram de Antonio Feijó um dos mais elevados representantes da nossa poesia contemporanea.

Em remate, da Ilha dos Amores, trasladamos para a valla do noticiario esta divina lirica:

IGNEZ

              Na tua bôca macerada
Por tantos beijos mercenarios que soffreste,
Meu labio achou ainda a candura sagrada
Que da avidez das outras bôcas escondeste…

E no teu peito exhausto, onde em tumulto ouviste
              Tantas paixões rolar,
A minh'alma escutou, num eco amargo e triste,
A primeira innocencia em segredo a chorar!

A chorar em segredo a pureza da infancia,
              A candura perdida,
De que eu sentia ainda a ultima fragrancia
A evolar-se de ti, como d'urna partida.

Pobre flôr torturada! O teu doce perfume
              Foi delicia e veneno…
Pairava o teu Amor como num alto cume:
Só podia attingi-lo o meu beijo sereno!

Todo o teu ser vibrou como uma flor ao vento,
              Tremeu, desfalleceu…
E a tua alma, esquecendo o seu longo tormento,
Num sorriso de gloria á tua bôca ascendeu!

Vinha cheia de graça e candura ineffavel,
              D'innocencia e de pejo,
Que eu fiquei a scismar se esse beijo insondavel
Seria porventura o teu primeiro beijo!…

Primeiro de Janeiro, de 28 de Maio de 1897.

* * * * *

Ilha dos amores, por Antonio Feijó. Um vol. 114 pag. in 8^o, Lisbôa,
Editor M. Gomes 1897.

Produz-se, ao lermos os versos d'este poeta, o desejo de simplesmente os irmos transcrevendo todos; e nessas condições limitarmos a apreciação a simples interjecções. Ninguem hoje, em Portugal, cinzela assim tão primorosamente a lingua portugueza em metro e rima, e a obra litteraria sae nitida, brilhante, completa,—sem que alguem note a fadiga do obreiro, ou adivinhe os processos de factura. O artista confunde-se com o dilettante, e é inconfundivel a linha de cada um d'elles.

Reproduzo esses dezesseis versos,—e ponho ponto na prosa:

Oh Musa Antiga, d'olhos placidos, rasgados etc.

Noites de Vigilia. N.^o 16.

Silva Pinto.

* * * * *

«CANCIONEIRO CHINEZ» por ANTONIO FEIJO

Dizia Oliveira Martins que o condão das bellas obras era relerem-se indefinidamente. Ha treze annos que se publicou a primeira edição do Cancioneiro Chinez. Desde então a poesia, sobretudo no mundo latino, passou pela mais vertiginosa e estranha evolução, resvalando da noble ordonnance parnasiana até a anarchia quasi chaotica do decadismo, do symbolismo, do instrumentismo, do amorphismo e d'outras phantasias prosodicas e metricas. E, todavia, a segunda edição d'esse livro, eminentemente artistico, nada mais faz do que renovar em quem o lê a sensação de graça lyrica, de finura conceptual, de impecavel belleza plastica, que fez o successo d'essa admiravel e feliz adaptação do lyrismo chinez á nossa lingua.

O trabalho de Antonio Feijó conseguindo, atravez das versões francezas, tão maravilhosa transposição, sem estiolar a frescura emotiva do original, é um dos mais bellos esforços d'arte e de gosto que a poesia portugueza do fim do seculo passado tentou e realizou. Com a maestria d'um habilissimo artifice da palavra, com a paciencia meticulosa d'um beneditino do verso, elle trabalhou, limou, burilou essas pequenas e graciosas joias, onde nos engastes da phrase perfeita scintillam as gemmas da emoção lyrica. E como se não cingiu ás formulas inconstantes da moda litteraria, como, em vez de martellar n'um molde o plaqué d'uma rethorica falsa, lavrou o seu pensamento no oiro puro do verbo classico, a sua obra não envelheceu, não desbotou, nada perdeu do seu brilho primitivo, e hoje, como ha treze annos, fulgura com o inextinguivel esplendor do talento.

É difficil apreciar bem uma versão, quando se não conhece a lingua original da obra vertida. Mas mais difficil se torna ainda o fazel-o, quando as duas linguas são tão dessimilhantes, de familias tão diversas, de estrutura phonetica e até graphica tão differentes como são a nossa e a chineza. Comtudo, se puzermos em confronto esses lindos poemazinhos e as traduções da eminente sinologa, madame Judith Gautier, que verteu os originaes chinezes para prosa franceza, fica-se surprehendido com a exactidão, a fidelidade, o respeito meticuloso do texto, a que Antonio Feijó se adstringiu no seu conscienciosissimo trabalho. Não é d'elle que se poderá dizer: traduttore, traditore. Se os poemas chinezes são o que a erudita filha do grande Théo nos revelou nas bellas paginas do Livro de Jade, póde afoitamente dizer-se que o Cancioneiro de Antonio Feijó é a mais irreprehensivel e leal das traducções.

Mas abstraiamos d'este ponto de vista. Supponhamos que Antonio Feijó não buscou nos poetas chinezes mais do que motivos lyricos, para sobre elles ensaiar variações ou glosas. Supponhamos que o Cancioneiro não é uma traducção, nem uma adaptação, mas a obra de um poeta europeu, finamente perfumada de orientalismo. Nem por isso a sua belleza seria menor, nem por isso seriam menos admiraveis os versos purissimos d'essa purissima obra d'arte. O auctor teria, neste caso, affirmado mais poderosamente as suas faculdades de poeta e de artista, porque seria um semi-creador. E o Cancioneiro, reduzido a uma imitação, não diminuiria de valor sob o ponto de vista litterario.

Portanto, traducção, adaptação ou imitação, esse bello livro é, de qualquer forma, uma obra superior. As excepcionais faculdades poeticas de Antonio Feijó, a sua ponderação, o seu gosto, a luminosidade e elegancia do seu verbo, o seu poder de linha e de colorido, a sua technica admiravel e conscienciosa, patenteiam-se n'elle de uma maneira brilhante, impoem-se triumphantemente á nossa admiração. O Cancioneiro Chinez marca em Antonio Feijó a plena affirmação da sua individalidade de artista—d'esta individualidade, que já as Transfigurações, um tanto frias nas suas linhas esculpturaes, e as Lyricas e Bucolicas, mais vivas e emocionadas e não menos bellas como forma, annunciavam promettedoramente. Do Cancioneiro Chinez á Ilha dos Amores havia apenas um passo a dar. Antonio Feijó deu-o com raro brilho—e tornou-se um poeta consagrado, um verdadeiro mestre do verso.

O Cancioneiro, além do Portico, que abre com a exotica decoração e as sentenciosas inscripções de uma entrada de Pagode, foi accrescentado com O sacrificio de Gu-So-Gol, um canto soberbo de epopeia barbara. Neste trecho Feijó como que põe mais uma corda na sua lyra—a corda epica. O quadro d'esse sacrificio heroico é, realmente, grande e nobre. A flauta de yade, que modulava as docuras idyllicas ou elegiacas do Leque, Flôr Vermelha, Casa no Coração, Batel das Flores, Esposa Honesta, cede a vez á turba estridente que clangora as sublimidades do heroismo. Os versos resoam bronzeos, metallicos, como um ruido de armas. O seu rythmo alonga-se, ergue-se, empola-se, como uma vaga que o sopro da tempestade entumesce. E em todo esse bello episodio uma forte crispação tragica passa, fazendo-nos vibrar de um confuso sentimento, mixto de terror e enthusiasmo epico.

Jornal da Noite, de 14 de Agosto de 1909.

Luiz de Magalhães.

INDICE

Prefacio, por Luiz de Magalhães
Antonio Feijó, o que morreu de amor, por Alberto d'Oliveira
Dedicatoria
Elegia d'abertura

SOL DE INVERNO

I

Descendo a encosta do Parnaso (A João Arroyo)
A Armadura (Ao Dr. Góran Björkman)
A cidade do Sonho (Ao Visconde de Pindella)
Beatitude amarga (A Silva Ramos, da Academia Brasileira)
Castello bárbaro (A José d'Azevedo Castello Branco)
A Aguia prisioneira (A Manuel da Silva Gayo)
A Selva escura (A João Chagas)
O Livro da Vida (A Antonio de Cardiellos)

II

Dyptico
   » I
   » II Eu e Tu
Paladinos (Á Condessa d'Arnoso)
   » I Conde d'Arnoso, João
   » II Conde d'Arnoso, Bernardo
Cabellos brancos, (A D. Thomaz de Mello Breyner)
Somnambula (A João Caetano da Silva Campos)
Cysne branco (A Alberto d' Oliveira)
Supplica ao Vento (A Luiz de Magalhães)
Gota de agua (A memória de A. Rodrigues Braga)
A Ventura (A Anthero de Figueiredo)
Entre pinheiros e cyprestes (A meus sobrinhos Salvato e Ruy)
Rio amargo (A meu irmão Julio de Castro Feijó)

III

Hymno á Vida (A Agostinho de Campos)
  » » Belleza (A Eugenio de Castro)
  » » Dor (Aos Condes de Sabugosa)
  » » Alegria (A Carlos Malheiro Dias)
  » » Solidão (Ao Padre J. I. de Araujo Lima)
  » » Morte
Epilogo

LENDAS E FABULAS

Preludio
O Amor e o Tempo
Fabula antiga (A Manuel d'Oliveira Monteiro)
Cleopatra (A José Coelho da Motta Prego)
Moiro e Christã (A Antonio de Barbosa de Mendonça)
A resposta do Árabe (A João Gomes d'Abreu e Lima)
A vocação d'Ibrahim (A Aristides da Motta)
A Princesa encantada (A Alfredo da Cunha)
O Romance da Pastora Linda (Ao Conde de Bertiandos)
A Lenda dos Cysnes (A Julio Dantas)