Title: O trophéo
Author: C. Afonso dos Santos
Release date: September 17, 2007 [eBook #22648]
Language: Portuguese
Original publication: Lisboa: Typ. da Cooperativa Militar, 1907
Credits: Produced by Vasco Salgado
Produced by Vasco Salgado
+O trophéo+
Poesia offerecida aos seus collegas do 7.^o anno
+C. Affonso dos Santos+
Alumno n.^o 202 do Real Collegio Militar
LISBOA
Typ. da Cooperativa Militar
1907
Noite quente d'abril. Um golpho oriental
E o mar cantando aos pés tristezas sem egual.
Paz immensa, em que a noite etherea e constellada
Scismava na mudez da sombra avelludada…
Na baça pallidez d'um terraço sumptuoso,
Feito para um sultão se embriagar de gòso,
Da pallida Dinah, a pallida figura
Sorvia, n'um anceio, errando pela altura,
Um desejo sem fórma, ethereo, fluctuante,
Uma vaga chiméra, uma chiméra errante!
Sonho tão ideal, coisa tão indecisa
Que lembrava o fugir incerto d'uma brisa.
Emquanto o vasto mar, rolando de mansinho,
Dolente, meigo, azul cantava de baixinho
Balladas provençaes d'uma immensa ternura
E Dinah, desejando, errava pela altura,
Passa uma náu antiga, uma náu de cruzados,
Épicos, triumphaes nos elmos emplumados!
E o mais louro e gentil, o mais devaneador,
Um principe lorêno, heroe e trovador,
Vendo subitamente o seu corpo d'ondina,
Diz n'um deslumbramento: «Oh Deus! Como és divina!
«Dá-me um cabello teu, um só, oh feiticeira!
«Que eu dou-te a minha gloria immensa e carniceira.
«Vem vêr como lampeja a minha bronzea lança
«N'um campo de batalha, ao Sol d'uma esperança,
«E pede-me, depois, tudo o que quizeres,
«Da cabeça d'um rei, ao branco mal-me-queres!
«Não ouves! Ai de mim, feiticeira dos mares!
«Extingue-se-me a voz e tu sem me fallares…
«Manda-me um beijo só, manda-me um beijo apenas
«Atravez do azul, p'las tuas mãos pequenas,
«Que eu juro trazer-te, aureolado de gloria,
«O mais bello trophéo dos trophéos de victoria.»
A voz perdeu-se. Então n'uma embriaguez d'alma,
Atravez do azul da atmosphera calma,
Dinah mandou um beijo apaixonado e quente,
Beijo que se desfez na agua, a arder, fremente.
* * * * *
Fôra-se o mez d'abril. N'uma tarde calmosa
E d'uma limpidez vibrante e luminosa,
Na poeirenta estrada, o cavalleiro andante
Passava como um rei, n'um sequito brilhante.
Cumprira o voto emfim! Na ultima batalha,
Com o enorme fragôr do abater da muralha,
Do exercito agareno o emir mais triumphante
Tombára-lhe a seus pés, a golpes de montante!
As palmeiras viris, n'um lento ramalhar,
Saudaram-n'o d'assombro, ao verem-n'o passar.
O curso d'um regato, as fontes do caminho,
Em doce acclamação cantaram-lhe baixinho.
Um colibri modulou-lhe em notas de crystal
D'um baobah gigante, um hymno triumphal.
E o proprio Sol, ao longe, antes de se esconder,
Enviou-lhe, eclipsado, um raio fulvo, a arder!
Porém ao cavalleiro, épico e sonhador,
Só sorria o prazer d'essa noite d'amor.
E entre a turba hostil de ferros e pendões
Lá ia, n'um galope, em loucos turbilhões,
Qual outro Lohengrim, olympico e risônho,
Correndo á embriaguez balsamica d'um sonho.
* * * * *
Algum tempo depois, banhada de luar,
Fundindo-se em paixão fogosa a latejar,
A pallida Dinah ouvia, extasiada,
Na dôce languidez d'uma alma apaixonada,
O quente ciciar do branco cavalleiro:
«Oh lyrio do Oriente! Oh meu amôr primeiro!
«Tu foste a meiga luz, a meiga luz marmorea
«Que me illuminou sempre a estrada da victoria…
«Vou dar-te a prova, emfim, d'esta paixão immensa.
«Foi conquistada á espada ao Sol da minha crença,
«Ao rapido tinir do ferro lampejante,
«Á doce evocação do teu meigo semblante!»
E um escravo apresentou n'uma dourada salva,
A livida cabeça, ensanguentada e calva,
Do terrivel emir que de Chypre ao Khirmam
Triumphára da Cruz, decantando o Islam
A sua fama echoára, entre o Roxo e o Egêo,
E já, apenas, era um lugubre trophéo.
A pallida Dinah, tremula e offegante,
Beijando do heroe a fronte radiante,
Murmurou-lhe ao ouvido: «Oh principe christão!
«Se apenas me bastava o fogo da paixão…
E voltou-se para vêr a épica loucura
De quem faz do Amôr a 'scola da bravura!
E então, oh horror! oh numes infernaes!
Pela primeira vez os astros immortaes
Vieram alumiar com o seu vivo explendor,
Um beijo de paixão e um scena de horror!
Dinah, vendo de perto o craneo decepado
Mesto, lugubre, calvo, informe e mutilado,
De um salto para traz, livida e cadavérica,
Nas doidas convulsões d'uma loucura hysterica,
O olhar em febre, o peito em fogo, a grenha erguida,
Deu uma gargalhada, electrica, perdida…
E sempre a rir, a rir, desequilibrada, louca,
Envenenou na escuma livida da bocca
A phrase que fulmina e mata quando cae
«Não vês que era meu pae! não vês que era meu pae!»