The Project Gutenberg eBook of Carlota Angela

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Title: Carlota Angela

Author: Camilo Castelo Branco

Release date: July 10, 2008 [eBook #26025]
Most recently updated: January 3, 2021

Language: Portuguese

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CARLOTA ANGELA





CARLOTA ANGELA


ROMANCE ORIGINAL


POR


CAMILLO CASTELLO BRANCO




TERCEIRA EDIÇÃO





PORTO

EM CASA DE A. R. DA CRUZ COUTINHO—EDITOR

Rua dos Caldeireiros, 18 e 20

1874

[4]


TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO

Rua Ferreira Borges, 31

[5]

CARLOTA ANGELA

I

Se a natureza formou uma bella creatura, não póde a fortuna precipital-a n'um incendio?

Shakspeare. (Como vós o amaes.)

Cette douce ivresse de l'âme devait être troublée.

Balzac. (Albert Savarus.)

Norberto de Meirelles e sua mulher D. Rosalia Sampayo, ricos proprietarios, moradores, em 1806, na rua das Taipas, da cidade do Porto, viam crescer prodigiosamente os seus cabedaes, e, com elles, uma filha unica, tão encantadora para os paes como a riqueza com que a iam enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista da terra.

Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa.

Eu tinha á minha disposição quatro exordios bonitos, que escrevi em quatro tiras, e rejeitei com desdem.

Era assim o primeiro:

«Diz-me tu, amor, que magos philtros insinuaste no coração da virgem de olhos negros, que lêda e melancolica, lagrimosa e risonha, te está enamorando na lua, d'onde lhe sorris em noites calmas de estio, na floresta, onde lhe cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe murmuras a tua linguagem do céo? Que ambrozia inebriante déste á doudinha que, tão requestada e alheada de brinquedos pueris, se vae, só e destemida, a buscar-te, [6] por entre myrtos e rosaes, perseguindo-te como lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde volitam lucidos phalenos?»

Segundo exordio:

«Á viração da tarde tremulava ligeiramente a folhagem do renque de alamos que cintavam uma pintoresca vivenda do Candal. Um repuxo de crystallina limpha trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa musica, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem mágoas em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de cortiça, por onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada em alegrias intimas das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma graciosissima donzella... etc.»

Terceiro:

«Onde vae este gentil mancebo, tão á pressa e offegante pela calada da noite, subindo a collina do Candal, em cujo tôpo alveja uma casa, onde elle parece mandar adiante o coração em cada suspiro que o cansaço lhe tira do peito arquejante? Que visão alvissima, que fada ou sylpho é esse que desliza, rapido e volatil, por entre os alamos, e vem ao peitoril do muro, como a anciada Hero, restaurar o vigor do extenuado Leandro?... etc.»

Quarto, e ultimo exordio:

«Vou contar-vos uma historia que verifiquei nas fieis narrações de mais de vinte pessoas vivas. Ides ver até que ponto os paes podem infelicitar os filhos; até que ponto a missão augusta do segundo creador póde ser fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é amor, e d'onde começa a ser deshumanidade. Se alguma confiança devo ter na justiça congenial do coração humano, espero carear graça e indulgencia para uma filha que se rebella primeiro contra um pae, depois contra o falso deus que lhe impozeram como verdugo de mais alta e temerosa categoria, arbitro e claviculario das sempiternas moradas do inferno... etc.»

Ahi está o que eu tinha escripto. Tudo rejeitei, contra a opinião de um congresso de homens de delicado gosto, que votaram por qualquer dos quatro preludios, chasqueando-me a simpleza com que escrevi o quinto, [7] acanhado e pêco como historieta sem nervo, nem imaginação.

E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso d'este romance me apodarem de insulso e desimaginoso.

VERDADE, NATURALIDADE, E FIDELIDADE

é a minha divisa, e sel-o-ha emquanto este globo se não reconstruir á feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam.

Quem desde já sentir azias de bôca, deixe isto, e desenfastie-se com as conservas irritantes da França, e até das nacionaes, que tambem as temos, curtidas em vasilhas, francezas. Embora travem á hervilhaca, é o que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés litterarios, em menoscabo do classico cozinhado de Domingos Rodrigues.

Atemos o fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolencia do leitor se compraza com o alinho desaffectado e lhano d'este conto.

A filha unica de Norberto de Meirelles e D. Rosalia Sampayo chamava-se Carlota Angela, e tinha dezesete annos, em 1806.

Não era formosa; mas exquisitamente engraçada sim.

Norberto, filho de lavradores transmontanos, era campezino, rustico, e desageitado; Rosalia, com quanto procedente de progenie já cidadã desde seu avô, havia muito ainda que desbastar, e quatro gerações não tinham adelgaçado nada a raça originaria de Covas de Barroso.

Ora, a vergontea de troncos ou cepos taes não podia sair de compleição tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroinas dos romances.

As feições de Carlota eram sêccas e trigueiras; mas a magreza não era de debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas faces era a transparencia de sangue rico de toda a seiva dos dezesete annos. Tinha uma bonita fronte, e abundantes cabellos pretos, que ella enfeitava sem esmêro, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em tres tranças, que um laço de setim encarnado prendia na cintura em duas roscas. Á [8] custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o penteado, em conformidade com a moda, que era ennastrar trancinhas de cabellos em dois grandes corações que ladeavam a cabeça, desde o vertice até ás orelhas, com matiz de lacinhos de varias côres: bonita cousa, antes da restauração das troixas contemporaneas, restauração, digo, porque as malas, no cucuruto da cabeça, começavam a decair do gosto em 1806.

O que fazia engraçadissima Carlota eram as espessas sobrancelhas, que formavam apenas um crescente das duas arcadas ciliares: tão imperceptivel era a cisura que as estremava na base do nariz. Bem sabem que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnifico docel: grandes, e negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das palpebras, se ajustavam n'um amortecer de tanta volupia, que mais não podia ser, sem feitiçaria!

Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a pintar. O de Carlota era irregular, talvez, ao contrario dos narizes de passaporte: era um nariz adunco, longo de mais para aquelle rosto; mas esta incongruencia, impressionando aos que a viam pela primeira vez, á segunda, não havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a bôca. Cada commissura ou canto dos labios terminava em dois vincos, um subindo, outro descendo, mas tão pronunciados, que pareciam um permanente riso sardonico, um não sei quê que fazia desconfiar as pessoas menos habituadas á sua convivencia.

Carlota era alta e gentil. Não se affectava para ser garbosa, que lhe sobejava graça e donaire nos naturaes meneios. O braço era incorrecto, fornido de mais em carnes, e de pelle trigueira; a mão longa e magra; e o pé proporcional á corpulenta haste.

Já agora, diga-se o porquê do cuidadoso recato em que a filha do snr. Norberto de Meirelles tinha os braços; não era a grossura do pulso, nem a pujança carnosa do ante-braço; era uma espessa camada de buço, lanugem, ou cabello, que a frenetica menina cerceava desde os quatorze annos, á tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam, chamando-lhe «pelluda».

[9]

Basta de materia: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher formosa; deram-se, porém, os traços principaes de Carlota, e são esses os que, na maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem de trinta annos, gasto de queimar incenso ás bellezas correctas, a cuja desanimação de commum accordo se chama «lindeza».

Vejamol-a espiritualmente.

Carlota Angela foi creada com descuidado mimo. Seus paes reviam-se n'ella, desculpavam-lhe todas as perrices, e fariam-a incorregivel, se a natureza se não corregisse a si propria.

Aos quinze annos, a folgazã menina mudou para triste; de garrula e traquina que era, fez-se taciturna e indolente. Maneiras de senhora, conversações com pessoas de idade, onde estavam moças; entremetter-se em cousas domesticas, a que a não chamavam; desligar-se das companheiras do collegio, desdenhando a frivolidade de seus passatempos: tal foi a reforma repentina de Carlota Angela.

Alegravam-se-os paes, felicitando-se por a não terem contrariado em pequena, contra as admoestações dos parentes, entre os quaes havia um tio materno, de cuja calva ella mudava o chinó para a cabeça de um gato maltez, ou em cujos oculos ella bafejava para lh'os embaciar. Esta victima, no auge da sua angustia prognosticara aos paes de Carlota grandes dissabores, consequencias funestas da liberdade que davam á condição ferina da moça.

Depois da mudança inesperada, Norberto e Rosalia, todos os dias, diziam ao homem dos oculos:

—Vê como se enganou? Ahi a tem agora mais ajuizada e mansa que as meninas creadas debaixo da disciplina e da palmatoria...

—Veremos...—redarguiu o velho advogado—veremos quando ella tiver uma vontade opposta á vossa qual das duas é a que vence.

—Vontade opposta á nossa!—replicava Norberto—Isso havia de ter que ver! Como acha o mano que ella se possa oppor á nossa vontade?

[10]

—Facilmente; e para não ir mais longe, ides vós ter uma occasião de a experimentar.

—Qual?—atalharam ambos.

—Eu vos digo; mas, se Carlota entrar emquanto eu fallo d'ella, fica para ámanhã o que hoje vos não disser.

—Carlota está no seu quarto a ler, e não vem cá tão cêdo—disse Rosalia.—Podes fallar á vontade, Joaquim.

—Quando me notastes a mudança rapida de Carlota, fiquei mais admirado que vós. Entrei a scismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade da transfiguração moral, e vim a suspeitar que a causa estava na natureza, mas fóra da natureza de Carlota. Ora, eu sei mais do mundo que vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes mais boa fé que eu: fica uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais agradavel á vida que a minha.

Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria namorada.

—Olha que lembrança!—atalhou D. Rosalia.

—Essa é das suas, doutor!—disse Norberto—Está a sonhar... deixe-se d'isso.

—Seria sonho;—disse o doutor severamente—mas já ágora deixem-me contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as admirações. N'esta suspeita, comecei a limpar os oculos para examinar as caras masculinas que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações são pouquissimas, e n'essas não ha alguem que possa despertar no coração de Carlota um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fóra de casa. Fui ás poucas casas onde vós ieis; segui todos os olhares de Carlota, e achei-os sempre indistinctos e indifferentes. Descorçoei um pouco; mas não desisti.

Um dia do anno passado, estavamos nós no Candal, e passeiava eu e ella sósinhos na estrada. Dizia-me a pequena que tinha lido umas novellas de cavallarias, de que gostara muito, posto que não acreditasse nas historias. Contou-me algumas passagens de Paulo e Virginia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa moral. Notei que a moça, quando me fallava no amor das damas e cavalleiros, [11] empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina innocente de sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com intenção de a surprender; mas ella jogava commigo tão habilmente, que venceria a partida, se eu não tivesse cincoenta e cinco annos, e não tirasse da habil escapula o mesmo que tiraria, se ella se deixase apanhar.

N'outro dia estavamos nós sentados no mirante, conversando em cousas que me não lembram, e vimos apparecer no alto da estrada um cavalleiro. Olhei casualmente para Carlota, e vi-a córada, e inquieta. Disfarcei o reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o cavalleiro, dando alguns passos com certo ar de indifferença, e tornou logo, girando entre os dedos uma flor que cortara.

O cavalleiro passou e cortejou-me: era meu conhecido. Esperei que ella me perguntasse quem era; nem uma palavra. Perguntei se o conhecia, ergueu os hombros, e fez com os beiços um gesto, que parecia dizer: «não sei, nem me importa saber».

N'outro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de cavallo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma travessa, e vi passar o cavalleiro: era o mesmo da cortezia. Fui-o seguindo de longe; e, ao chegar á collina d'onde se avista o mirante, vi, primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois, o cavalleiro parado debaixo do mirante.

—Credo!—exclamou D. Rosalia, erguendo-se branca como cêra.

—E esteve até agora calado com isso!—disse Norberto, erguendo-se tambem.

—Nada de espantos!—respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira, onde se refestellava, fallando com a sua costumada solemnidade oratoria.—Logo se diz quem é o homem; mas ha de aqui fazer-se o que eu aconselhar, senão desconfio muito que minha irmã experimente mais cêdo do que espera a vontade de Carlota.

Escondi-me alguns segundos, e appareci no momento em que vossa filha entregava um ramo ao cavalleiro.

Ella deu fé de mim, e sumiu-se; e elle seguiu a estrada, [12] depois que me viu. Carlota recebeu-me com a certeza de que eu era sufficientemente cego para a não ter visto: não deu o menor indicio de susto. Convidei-a, como sempre, a passeiar no jardim, e disse-lhe: «Quando houver alguma novidade na tua vida, has de contar-m'a, menina. Se ella te parecer tão agradavel, que a queiras só para ti, não cuides que lhe diminues o valor, dizendo-m'a. O coração de teu tio ha de sentir o bem do que for bom para o teu. Ora, conversemos: diz-me lá, Carlota, se sentes alguma inclinação que não sentias ha um anno, quando os meus oculos e o meu chinó eram o teu regalo.

—Eu não, meu tio... sinto o que sentia—respondeu ella; mas a innocencia protestou contra a mentira, mostrando-se no rosto: córou e gaguejou de um modo que me fez pena e contentamento. Quando assim se córa, o coração está puro.

Para acudir á vossa impaciencia, dir-vos-hei, em resumo, que obriguei suavemente Carlota a confessar-me que amava Francisco Salter de Mendonça.

Já sabeis quem é.

—Eu não!—disse D. Rosalia. E voltando-se para o marido:—E tu?

—Conheço de vista,—respondeu Norberto—é um militar, creio eu...

—Francisco Salter de Mendonça—continuou o doutor Joaquim Antonio de Sampayo, sorvendo uma pitada pela venta direita, e comprimindo a outra com o dedo indicador da mão esquerda—é um tenente da brigada real de marinha, é natural de Lisboa, e está aqui ha dois annos a bordo do brigue Audaz. É um moço que vive do seu soldo, e está por ahi relacionado com os rapazes nobres da cidade. É o que posso informar ácerca de Mendonça.

Agora vou responder á pergunta de Norberto. Admirou-se de eu estar calado com isto? Calei-me, porque receiava muito que alguma imprudencia vossa irritasse o amor de Carlota. Calei-me, esperando que Mendonça fosse chamado a Lisboa, e nos deixasse o campo livre para despersuadirmos Carlota. Ainda assim, fiz tenção de [13] vos avisar, logo que julgasse necessario empregar medidas promptas. Eu sei que o rapaz tenciona vir pedir-vos Carlota, e sei tambem que em poder de um meu collega está um requerimento d'ella para ser tirada por justiça no caso de que negueis o vosso consentimento.

—Santo nome de Deus! valha-me nossa Senhora!—exclamou, com as mãos na cabeça, D. Rosalia, emquanto seu marido resfolegava arquejante, passeiando acceleradamente na sala.

—Não comecem a fazer doudices!—tornou o doutor—Se gritam, se põem fogo de mais ao pucaro, entorna-se tudo. Aqui ha de fazer-se o que eu disser; mas mudemos de conversa, que ahi vem Carlota.

[14]

II

Os tigres são menos sanhudos contra o homem que o proprio homem.

Phocion. (Instrucção a Aristias.)

Les parents en effet ont cela de admirable, et je parle des meilleurs, que vous ne pourrez jamais, ni par plainte, ni par raison, leur faire comprendre qu'il vient un moment où l'oiseau essaie ses ailes et quitte son nid; qu'ils n'ont d'autre mission que de faire et d'elever leur petits jusqu'á l'âge où ils quittent le nid.

Alphonse Karr. (Sous les Tilleuls.)

Quaes fossem os conselhos do ornamento dos auditorios portuenses, teremos occasião de avalial-o opportunamente.

Oito dias depois de planisada a conspiração contra os amores reservados de Carlota Angela, foi procurado Norberto de Meirelles pelo tenente de marinha.

Francisco Salter de Mendonça era um rapaz da boa sociedade de Lisboa, um dos mais distinctos alumnos do collegio de marinha, reformado pelo intelligente ministro Martinho de Mello e Castro. Tinha dotes corporaes que o distinguiam, e virtudes que os seus amigos avaliavam como raras.

Amava com verdade Carlota Angela, posto que, no principio, o ser ella filha unica de um abastado commerciante encarecesse mais o galanteio. Sentiu, depois, que o seu amor se purgara da ignominia do calculo, até preferir que fosse pobre Carlota, para que, pobre, se igualasse a elle. Longo tempo a cortejara sem revelar-lhe as intenções honestas do namoro, esperando que fosse ella a que o auctorisasse a pedil-a a seus paes. Certeza tinha [15] elle de que lh'a negavam, porque então, como hoje, um noivo era pesado na balança do negociante rico, e o contrapeso do coração não fazia oscillar o fiel. Pedil-a sem predispor o auxilio da lei invocado por Carlota, nunca Mendonça quizera até ao momento em que ella prometteu fugir de casa, se seu pae não consentisse.

Traçado o plano, Mendonça, como dissemos, procurou Norberto de Meirelles, e foi urbanamente recebido. Disse o motivo da sua visita, e não divisou na physionomia do ricasso o menor signal de espanto, nem sequer surpreza. Acabou de fallar, e ouviu, com estranho jubilo, a seguinte resposta:

—Se minha filha é contente com o marido que se lhe offerece, eu não me opponho a que ella seja sua esposa. Ella que o ama, é que v. s.ª é digno d'ella.

—Espero—atalhou Mendonça—merecer a v. s.ª o conceito que mereci á snr.ª D. Carlota.

Norberto não soube responder convenientemente a isto, porque dissera parte do que o doutor lhe ensinara nas poucas palavras com que embriagou o radioso genro, e, receioso de que lhe esquecesse o resto, continuou:

—Fique v. s.ª na certeza de que a vontade de minha filha é a minha; tenho, porém, a pedir-lhe um favor que v. s.ª não recusará ao pae de Carlota.

—Oh! senhor! que me pedirá v. s.ª, que eu não receba como ordens da pessoa que prézo desde já como pae?!

—Minha filha faz annos de hoje a um mez, e eu muito desejava que ella festejasse na minha companhia os seus dezesete annos, ainda solteira.

—Pois não, snr. Meirelles! Exija v. s.ª de mim todos os sacrificios que se podem humanamente fazer, que eu nunca pagarei o regosijo d'este momento decisivo para a felicidade de toda a minha vida.

—E v. s.ª—proseguiu o fiel repetidor do bacharel, contentissimo de não ter trocado uma só palavra, apesar das interrupções do interlocutor—poderá, se assim lhe aprouver, honrar com a sua presença os annos de Carlota, que se festejam, ha dezeseis annos, na minha quinta do Candal.

[16]

Esgotara-se o peculio. Norberto fez menção de erguer-se. Salter notou a grosseria; mas desculpou-a ao pae de Carlota. Retirou-se acompanhado até ao pateo, honra que tres vezes recusara, mas, á quarta, o negociante disse que ia para o escriptorio tratar da labutação dos arrozes que estavam á descarga. Isto é que era legitimamente d'elle.

Carlota, emquanto a visita esteve, não obstante o grande espaço que a distanciava da sala, apurava o ouvido na extrema de um corredor por onde poderia embuzinar a voz do pae, se elle a engrossasse, como costumava, nos agastamentos.

Ouvindo rumor de passos na saída, correu ao seu quarto, e sentiu-se desanimada para receber a visita colerica do pae. Até então dera-lhe o amor afouteza para responder ás iras paternaes; e a risonha esperança de permanecer poucas horas em casa, depois da expulsão de Mendonça, afigurava-se-lhe agora uma tenção criminosa. Era o mêdo que a transtornava assim; logo, porém, que o sobresalto se desvanecesse, viria a reacção do amor restituir-lhe o vigor de um proposito, cuja firmeza as ameaças do pae não abalariam.

Pouco depois, Carlota foi chamada ao quarto da mãe, e achou-a prazenteira e jovial. O pae entrou após ella, e fingiu o mais lhano e caricioso semblante. Carlota estava espantada, e não podia crer o que via.

—Diz-me cá, menina,—disse Norberto—já sabes... ora se sabes!...

—O que, papá?

—Faz-te tolinha, minha serigaita! Arranjaste um marido, sem dizer agua vae, assim do pé p'ra mão como quem se casa por sua conta e risco...

Carlota baixou os olhos com humildade. Norberto perdeu um pouco do seu caracter artificial, e proseguiu:

—Ora, sempre tenho uma filha como se quer! Posso-me gabar!... Nem eu nem tua mãe valemos nada, Carlota! Vê-se um troca-tintas, e não ha mais que dizer-lhe: Se quer casar commigo, estou aqui ás suas ordens; vá pedir-me a meu pae, e diga-lhe que me dê o dote que [17] elle me ganhou a trabalhar trinta annos. Isso é bonito, Carlota?

D. Rosalia pizara rijamente o pé do marido, e conseguira recordar-lhe a traça combinada com o doutor. Carlota começava a sentir a reacção, ia erguendo a cabeça abatida para repellir a grosseira invectiva do pae, quando este, com velhaca subtileza, mudou para brando aspecto a severa carranca, e proseguiu:

—Emfim, quem casa és tu; o mal e o bem para ti o fazes. Se queres casar com esse rapaz, casa. Eu disse-lhe o que um bom pae deve dizer. Consenti, com tanto que a vontade de minha filha seja essa. Que dizes a isto, Carlota? Estás decidida a casar com o tal snr. Mendonça?

—Visto que meu pae não se oppõe á minha vontade...

—E, se eu não quizesse, casavas do mesmo modo?... Diz lá!

—Se o pae não quizesse, eu havia de pedir-lhe tanto que me deixasse ser feliz, que o meu bom pae... consentiria...

—Lá isso é verdade...—replicou o negociante, obedecendo á terceira pizadella da irmã do bacharel—eu o que quero é a tua felicidade... Bem sabes que sou teu amigo como ninguem, ainda que te pareça que lá o teu namorado te quer mais que eu... É boa asneira a das raparigas, que trocam pae e mãe pelo primeiro perna-fina que lhe empisca o olho ao dote!... (Quarta pizadella de Rosalia, e mutação de cara e diapasão de voz em Norberto.) Está dito! Casarás com o homem; mas já agora hão-se de festejar os teus dezesete annos em casa. Eu já lhe disse a elle que esperasse um mez, e depois arranja-se isso, e está acabado o negocio. O rapaz, pelos modos, é pobre; mas o teu dote, se Deus quizer, chegará para tudo. Estás contente, Carlota?

—Oh meu querido pae!—exclamou ella, beijando-lhe afervoradamente a mão—eu sabia que era muito meu amigo; mas não esperava tanto da sua boa alma. Fui má filha em ter guardado este segredo; perdôem-me, por quem são; é que eu tremia só da ideia de os desgostar, não podendo suffocar o amor que lhe tenho... a elle...

[18]

—Não chores, Carlota, que não tens por que chorar...—disse D. Rosalia.

—Eu choro de contentamento, minha mãe, por ver que a minha ventura é possivel sem desgostar meus paes... Sou a mulher mais feliz da terra. Queria que toda a gente soubesse agora os bons paes que o Senhor me deu. Tomara eu ver o tio Joaquim para o despersuadir de um mau juizo que elle fazia do meu querido pae, quando, faz agora um anno, me disse que eu não alcançaria o seu consentimento para casar com Francisco de Mendonça; e tambem queria abraçal-o, porque respeitou a minha paixão, e nunca mais me contradisse.

A alegria dava a Carlota uma ousadia enthusiastica, que espantava Norberto, e tinha semi-aberta a bôca de Rosalia.

—Se a minha mãe conhecesse a nobre alma d'elle!—proseguiu ella—havia de amal-o tambem.

—Eu?... ora essa! tu és maluca!—atalhou Rosalia, comprehendendo á lettra a palavra amal-o.

Maluca! porque, minha mãe?

—Pois tu disseste ahi que eu havia de amar o tal homem!

—Pois se elle tem um coração tão bem formado! Esteve mais de um anno sem me dizer que queria ser meu esposo, para que eu não pensasse que elle namorava a minha riqueza. Foi preciso dizer-lhe eu que a minha maior ambição n'este mundo era fazel-o senhor do meu coração para toda a vida. Quando eu disse isto, até chorava de alegria elle!...

—Está bom, está bom, estamos decididos—disse Norberto, receiando que os diques da ira se esboroassem.—Logo que o tio doutor venha de Lisboa trata-se d'isto. Ámanhã vamos para o Candal. Lá é escusado andar com fallatorios do mirante para a estrada. Cá não se usa as noivas andarem a namoriscar á surdina. Já se sabe que elle ha de ser teu marido; o tio doutor quando vier, ha de convidal-o para nossa casa, e então conversarão á sua vontade.

Norberto saíu com as faces incendiadas, como se a raiva abafada respirasse por ellas. D. Rosalia, porém, [19] menos firme no fingimento, apenas o marido saiu, começou a pingar dos olhos umas lagrimas baças e granulosas como camarinhas.

Carlota acudiu a enxugar-lh'as com meiguice, consolando-a com a esperança de viverem sempre juntos, como até então. Rosalia, se a boa fé nos não engana, chorava com pena da filha, por ver que todo aquelle contentamento se havia de mudar em amargura, se não falhasse o estratagema do doutor.

Deixal-a chorar, que o seio de Carlota parece alargar-se ao pulsar vehemente do coração. Essa immensa alegria, que lhe deram, leal ou traiçoeira, ha de produzir a bemaventurança ou o inferno d'aquella familia.

Carlota tem a alma briosa e amante de mais para transigir com a perfidia.

A obediencia filial, mascara de corrupção com que algumas donzellas se disfarçam para abjurarem sem pejo ligações inconvenientes, é uma «virtude» dos nossos dias, importada... da America. Em 1806 não havia d'isso cá.

[20]

III

Tu me matas, meu pae! Quem tal pensara?
Eu beijo a mão que o golpe me prepara.

Marqueza de Alorna.

A traça do bacharel Joaquim Antonio de Sampayo era afastar Mendonça de Portugal, repentinamente.

Aconselhara elle a mentira, para evitar o escandalo de um rapto, ou a saida judiciaria de Carlota.

Ausentar Mendonça para alguma das colonias, ou para os estados barbarescos, sob pretexto de guerra á pirataria, que infestava então o Mediterraneo; e prolongar essa ausencia até dissuadir Carlota, cortando-lhe os meios de se escreverem, era a trapaça do habil jurisconsulto. Norberto, pasmado de tamanho ardil, fez tão estremado conceito do doutor que, no expandir-se da sua admiração, exclamou:

—Ó cunhado! vossê é homem de todos os diabos! Quem sabe, sabe!

—Mas, Norberto,—disse o doutor—sabe que sem dinheiro nada se faz?

—Saque o que quizer, cunhado!

—Eu tenho talvez de comprar muito caro o pretexto para a saída de Mendonça. Não sei se me verei a braços com os protectores e parentes d'elle na côrte, e as nossas armas são o dinheiro.

—Pois é dizer o que quer. O doutor leva ordem franca; não poupe dinheiro, e ponha-me o homem fóra da nação.

Assim armado com o invencivel dinheiro, o tio de Carlota Angela chegou a Lisboa, em fins de 1806, levando cartas de apresentação para o ministro da marinha, [21] D. Rodrigo de Sousa Coutinho, para D. Catharina Balsemão, e para o intendente geral da policia, Diogo Ignacio de Pina Manique.

A materia que então mais se discutia era a demencia do principe regente, causada por soffrimentos dos que tornam ridiculo um marido, ainda que o motivo seja mais para compaixão que riso. Fallava-se na morte violenta de José Anastacio, em Mafra, empeçonhado por ter sido o espia e delator da conspiração urdida contra o principe, em Arroios, n'uma casa da condessa de Alorna, que emigrara para Inglaterra, descoberta a conjuração. Os rumores surdos contra os pedreiros-livres indicavam os individuos suspeitos, mórmente depois que o escriptor publico Hippolyto da Costa fugira dos carceres da inquisição, que lhe foram abertos pelo braço poderoso da maçonaria. Hippolyto, auctor, depois, do Correio Braziliense, devia a liberdade á embriaguez dos guardas e á astucia d'elle; convinha, porém, ao governo simular-se assustado do poder da maçonaria para encruar contra os suspeitos a sanha da plebe. É, porém, certo que a maçonaria, em Portugal, entrara em 1797, com os emigrados francezes, e podera a muito custo implantar-se n'uma pequena sociedade ou loja denominada Fortaleza, quasi desconhecida e despercebida até 1806. Só depois que o ministro do reino entregou á inquisição um pedreiro-livre, e o impio fugiu do carcere do Rocio, levando nos canos das botas os «Regimentos da Inquisição» reformados pelo marquez de Pombal, dos quaes publicou, em ar de zombaria, curiosos extractos no jornal que, depois, redigiu em Londres—só depois desses nescios mêdos e estupidas perseguições do governo, sempre providenciaes para acordar os povos do lethargo, é que a sociedade maçonica em Portugal se radicou, floresceu, e deu fructos bons e maus. (Os de hoje apodrecem todos antes de madurar.)

A questão dos pedreiros-livres revirou os projectos do bacharel portuense. Nova ideia lhe acudiu, quando principiava a mortifical-o o receio de não poder supplantar um frade benedictino bem aparentado, que se dizia ser pae de Francisco Salter de Mendonça. Essa ideia era [22] denunciar o tenente de marinha como encarregado de fundar no Porto uma loja maçonica, para o que tratava de intimidade com Jeronymo José Rodrigues, arcediago de Barroso, o primeiro liberal que teve a cidade eterna, antes de pregoar-se a liberdade em Portugal.

Francisco Salter de Mendonça conhecia o arcediago, era sua visita, sympathisava com as suas doutrinas politicas, e deixara-se eivar do espirito de vaga novidade que os principios de liberalismo balbuciavam ainda então confusamente. Não era, todavia, pedreiro-livre, porque venerava o frade que o adiantara na carreira das armas, e queria cumprir o juramento que fizera, nas mãos do monge, de jámais se associar á seita dos inimigos de Deus, com quanto conhecesse a inepcia dos pharisaicos amigos do altar.

O tio de Carlota apresentou-se a D. Catharina de Balsemão, ouviu-lhe dois sonetos, applaudiu-lh'os até chorar de terno enthusiasmo, e disse, depois, o fim a que ia. Pintou com negras côres o roer profundo do cancro da maçonaria no seio da sociedade; lastimou a inevitavel quéda dos fóros e prerogativas da classe nobre, se a média se incorporasse para desarreigar a arvore de seculos; disse que a maçonaria fizera Silla, e Robespierre, e Bonaparte; ajuntou outras muitas tolices em linguagem garrafal, até incendiar a combustivel D. Catharina, que logo alli lhe deu carta de mui especial recommendação para Manique.

O intendente ouviu com attenção e mêdo o bacharel. Soube que Francisco Salter de Mendonça, mancommunado com o arcediago de Barroso e outros, tratava de fundar uma loja maçonica no Porto, convencendo os timidos «com a sua eloquencia revolucionaria, e promettendo aos illusos a restauração dos direitos dos povos, victimados que fossem os reis e os grandes. Acrescentava o bacharel que Salter de Mendonça traduzia e espalhava os escriptos mais incendiarios dos revolucionarios francezes em 1791, e propalava que Portugal não podia ser feliz sem mandar um rei de companhia a Luiz XVI.

Manique estava tranzido! O orador, electrisado com o pasmo do ouvinte, entrara na sua hora feliz. As imagens [23] mais ensanguentadas, as metaphoras mais patibulares, os tropos mais coriscantes acudiam-lhe com trovejante iracundia. Digna de melhor destino, a furia oratoria do lettrado do Porto conseguira mais que o desejado. Manique susteve-lhe a torrente, promettendo providencias promptas, e acabou por lhe pedir que ficasse na intendencia exercendo o logar do ajudante, assassinado em Mafra, José Anastacio.

Aqui é que o bacharel se achou superior a si mesmo, e deu um mental adeus ao safado tostão dos conselhos, que raros clientes lhe levavam, no Porto, ao seu obscuro escriptorio da rua de Santa Catharina.

Confiado na sua estrella, o nomeado ajudante do intendente geral da policia perguntou ao chefe o que tencionava s. exc.ª fazer a Francisco Salter. Manique respondeu que o faria conduzir preso a Lisboa, e do Limoeiro passaria para a inquisição.

—Se v. exc.ª me permitte uma reflexão...—disse o bacharel.

—Diga lá, que eu respeito muito o seu parecer.

—Com o devido respeito e humildade que se deve aos atilados juizos de v. exc.ª, peço licença para observar que convem obrar com mansidão e parcimonia, para impedir que uma seita perseguida faça proselytos. Eu vou, com o maior respeito, lembrar a v. exc.ª trinta e tantos casos da historia, dos quaes se vê quão imprudente e perigoso é empregar o cauterio á borbulha que muitas vezes resolve sem medicamento, e quasi sempre lavra quando a fazem sangrar. Começarei primeiro pela seita lutherana, a qual seita lutherana...

—Tem a bondade de não exemplificar...—atalhou o intendente, que detestava cordialmente as novidades tanto em politica como em historia—Que entende o senhor que se deve fazer? Desprezar? Deixar rebentar o volcão? Então de que me servem as tristes novas que me trouxe?!

—Desprezar, não, exc.mo snr.! Que faz o habil agricultor ao galho sêcco da sua arvore? Corta-o, separa-o das vergonteas vivazes, mas não o lança á estrada, para que o passageiro o leve como cousa sem dono, nem o [24] desfaz com o machado como objecto sem utilidade. Leva-o para casa, lança-o na lareira, e aquece-se a elle. Façamos a applicação: Francisco Salter é o membro contaminado e damninho: cumpre decepal-o, para que não empeçonhe os outros; cumpre aproveital-o, a fim de que os inimigos da ordem se não aproveitem d'elle; cumpre empregal-o em serviço da patria; mas seja onde as suas tendencias revolucionarias não catechisem incautos. Mendonça é tenente; promova-se a capitão, e (permitta-me v. exc.ª o arrojo de dar o meu parecer com a franqueza propria de um portuguez, homem de bem) seja sem perda de tempo enviado como commandante do primeiro vaso que sair para o Brazil, dispondo de modo a sua expedição, que elle só volte á metrópole passados annos. Esta é a minha humilde opinião.

O bacharel concluiu, dobrando o pescoço até bater com a barba no peito. Manique redarguiu debilmente em opposição aos principios fabianos do bacharel. Sampayo replicou, pedindo sempre mil perdões da audacia, e alfim superou o chefe, fortalecendo-se com a difficuldade de provar a denuncia, visto que as testimunhas presenciaes das arengas revolucionarias de Mendonça não jurariam contra elle.

N'esse dia expediu-se ordem para recolher a Lisboa o tenente da corveta Audaz, Francisco Salter de Mendonça, no praso de oito dias. Aprestou-se um brigue, que devia, dois dias depois da chegada do official, fazer-se á vela para o Rio de Janeiro, capitaneado por Salter, promovido a capitão.

O ajudante do intendente geral da policia, escrevendo a seu cunhado Norberto de Meirelles, dizia:

«Tenho luctado com enormes difficuldades. Saquei seis mil cruzados, e venci as primeiras; as outras hão de vencer-se... etc.»

D'onde se infere que o agente de Norberto de Meirelles estimara em seis mil cruzados as duas arripiadas arengas á celebre poetiza e ao intendente geral da policia.

[25]

IV

Salada
¡Ai! ¡no me dejes nunca!
Aden
¿Yo dejarte?
¿Y para qué, y porque?! tu mi querida!
¿Ni como, aunc quisiera abandonarte
Juntos tu y yo lanzados en la vida?

Espronceda. (El diablo mundo.)

Fazia tristeza e saudade a formosa lua de uma noite de agosto n'aquelles olorosos jardins do Candal.

Era meia noite, e a viração do mar bafejava mansamente as copas dos arvoredos, que circuitavam a sombria casa de Norberto de Meirelles, o qual, a essa hora, resonava mais alto que todos os sêres vivos da natureza em roda.

De mansinho rodou a porta que abria para o jardim. Um vulto deslizou por entre os myrtos e japoneiras, até ganhar o mirante erguido n'um angulo do jardim.

—Esperaste muito?—disse ella a Francisco Salter, que lhe saira de sob a ramagem sombria dos chorões debruçados no muro—Tem paciencia, meu amigo. Minha mãe deitou-se ha meia hora; não sei que ar de inquieta alegria ella tinha hoje, que lhe não chegava o somno...

—Seria tão viva a alegria d'ella, como é viva a amargura que me não deixara dormir a mim?

—Amargura! Que tens, Francisco?

—Não te fallou por mim o meu bilhete d'esta tarde?

—O teu bilhete?... não... Dizias-me que era indispensavel fallares-me hoje... Não traduzi amargura n'isto... Cuidei que era uma saudade feliz e serena como a minha...

[26]

—Oh! não, minha querida, é uma saudade que me despedaça... é a saudade que...

—Como?! que linguagem é essa, Francisco! Não me tens agora aqui?! não sou eu tua para sempre?!

—Sei que serás, Carlota, sei... mas eu preciso que chores commigo para me ser menos amarga a minha dor... É forçoso que nos separemos por alguns dias... mezes... annos...

—Jesus! que nos separemos?! Onde vaes tu?

—Sou chamado immediatamente a Lisboa.

—A Lisboa!... para que és tu chamado a Lisboa, Francisco?

—Não sei... é uma ordem terminante do ministro.

—Oh meu Deus!... que lembrança terrivel!—exclamou com vehemencia Carlota—É impossivel! é impossivel!

—Impossivel o que?

—Nem te quero dizer a horrivel ideia que tive agora...

—Diz, Carlota... vejamos se se encontram duas ideias horriveis.

—Pois tambem suspeitas?... que te lembra, meu amigo?... diz, diz, se tambem julgas possivel...

—Tambem suspeito que a ida de teu tio a Lisboa...

—Sim, sim, é isso que me lembrou; mas não creias, porque meu tio é um bom homem. Ha muito que elle dizia que iria a Lisboa requerer um emprego. É ao que foi; mas... é verdade que...

—Não receies atormentar-me, Carlota; diz tudo que te faz desconfiar...

—É que hoje recebeu-se carta de meu tio, conheci a lettra do sobrescripto, quiz abril-a innocentemente, e meu pae tirou-me a carta da mão com grande sobresalto, dizendo que não era boa creação ler as cartas de outro. Eu disse-lhe que era uma curiosidade filha do desejo de saber como meu tio passava; e o pae voltou-me as costas, e eu bem vi que elle estava muito inquieto... mas...

—Duvidas ainda, Carlota, que teu tio foi agenciar a minha saida do Porto! Duvidas que não foi traiçoeiro o consentimento de teu pae, sem ao menos me perguntar que familia ou haveres são os meus?

[27]

—Isso é horrivel, meu amigo! não me convenças d'essa traição, que me matas! Elles não podem separar-nos, não! O que a morte póde fazer não o farão elles. Juro-t'o pela minha alma e por tudo quanto ha sagrado...

—Não jures, Carlota; eu sei o que és para mim; vale mais essa tua afflicção, que todos os juramentos. Por quem és, não chores assim, meu querido anjo. Aqui o terrivel mal que nos ameaça é a saudade, a incerteza não. Se a nossa ventura vier mais tarde do que esperavamos, resignemo-nos, vençamos a desgraça com a esperança. Teu pae porque será contra mim? porque eu sou pobre? pois bem, Carlota, irás pobre para a companhia de teu marido. O meu pão chega para ti, e bastará para mim a felicidade de t'o alcançar á custa de honrado trabalho. Não aceitaremos uma moeda de cobre dos cofres de teu pae... Bem basta que esse dinheiro tenha sido o nosso algoz para o não querermos comnosco. Pobre é que eu te quero, e, se teu pae me não diz tão depressa que eras minha, ouviria da minha bôca uma renuncia formal do teu grande dote... Coragem, minha amiga. Eu vou a Lisboa, conheço logo a causa da minha chamada, desfaço as intrigas, se ellas lá me esperam, empenho em nosso favor amigos e parentes, que tenho alguns valiosos ao pé dos ministros. Voltarei para convencer teu pae de que eu reputei verdadeira a sua palavra, e me envergonhei por elle, suppondo necessario chamar a lei em nossa ajuda. Entrarei em tua casa, e dir-te-hei: Vem ser minha esposa! E tu sairás, pois não, minha Carlota?

—Sim, sim, sairei; e por que não ha de ser já?!

—Já?!

—Sim, leva-me comtigo; não me deixes entregue a esta gente que me quer matar. Coméço a odial-os, e não poderei mais vel-os sem rancor. Leva-me, Francisco... Aceita-me assim pobre, e verás que te levo a maior riqueza d'este mundo, um coração onde eu tenho o segredo de fazer a nossa felicidade na pobreza. Não me respondes?

—Queria responder-te de joelhos, Carlota! Tu és um anjo, és um bem que eu não mereço a Deus, e receio desagradar-lhe se faço soffrer teus paes, que, de certo, [28] te devem amar muito, e cuidam que te fazem bem, separando-te de mim. Eu se fosse pae, e pae de uma filha assim, dal-a-hia ao primeiro que m'a viesse pedir, sem me mostrar virtudes dignas d'ella? Não diria a esse homem perfidamente que sim, para depois praticar a villania de o afastar, matando-lhe o coração a punhaladas traiçoeiras... não mostraria ao amante de minha filha o céo, para depois o despenhar no inferno; mas... custar-me-hia muito a dizer-lhe: Ahi te dou o thesouro que tive no coração dezesete annos, que guardei para me dar alegria nas amarguras da velhice... leva-o, e deixa-me só com a minha saudade irremediavel!... Não, Carlota, é cêdo ainda para dares a teus paes esse desgosto. O teu amor ensina-me a ser nobre. Ha um amor que faz tyrannos e crueis; mas esse amor não é o meu. Sou generoso para todo o mundo, e para os teus mais que para outrem. Ninguem dirá que calculei com os cem mil cruzados de teu pae, quando eu tiver uma casa que te offereça, á hora do dia, na presença de quantos quizerem ver como um homem pobre serve um pobre jantar a sua mulher. Fica, minha querida Carlota, fica em tua casa. Nós exageramos o infortunio. É proprio do muito amor que nos temos; mas saibamos empregar as armas da razão para vencer uma desgraça imaginária. Vou a Lisboa, ouço o que me querem, volto com licença aqui, apresento-me a teu pae no dia dos teus annos, e no seguinte venho pedir-lhe o cumprimento da sua palavra. Á palavra não, encontro-te ao meu lado... e depois, venham todas as potencias do inferno contra nós.

—Francisco!—murmurou Carlota, despeitada—tu não me amas... porque não receias perder-me.

—Perdôo-te a injustiça, Carlota... Diz o que te não vem do coração, diz, minha amiga, que eu até das injurias, se de ti me vierem, tirarei provas de que me amas muito, e crês que te amo. Ha dois annos a amar-te assim! Ha dois annos a respeitar-te como irmã, acarinhando-te como esposa! Ha dois annos a viver de uma esperança, que só ás tuas palavras se afoutou a dizer que existia! O homem que assim pensou não podia hoje aceitar a tua fuga, sem tu me dizeres que é preciso roubar-te para te [29] merecer. Oh! isso nunca tu m'o dirás, anjo do céo, porque então pouco apreço daria eu á alma que não tem a intrepidez de dizer «sou livre».

Carlota soluçava com a face apoiada na pilastra da varanda, e os olhos fitos no céo. O aperto de coração que a suffocava era mais que o exprimivel e imaginavel. Essas angustias soffrem-se; mas não deixam reminiscencias aos que as devoraram. São como as agonias do naufragado, que não preenchera ainda a conta dos seus dias, e quiz em vão contar aos que o salvaram a suprema afflicção do afogamento. Para as torturas de um adeus, entre duas almas animadas por um só espiraculo de vida, sei eu que ha na lingua humana uma palavra, uma só: INFERNO. Isso é peior que o morrer, porque na morte ha o esquecer graduado por cada estalar de fio que nos atava aos poucos bens d'este mundo: ha o extremo dom do arbitro das vidas—a resignação sem lucta, o luzir da estrella esperançosa que se ergue detraz do tumulo, o recordar-se dos anceios para Deus, quando as brilhantes illusões da terra se convertiam n'um como tenue vapor de incenso que nos prendia aos olhos lagrimosos até o vermos entrar no céo.

Mas o adeus de Carlota Angela a Francisco de Mendonça!... Essas derradeiras palavras, que já não eram mais que um longo gemido, convulso, suffocado, a cada impeto dos dois corações que rasgavam os peitos para se juntarem!........................................

Linda expirava a noite. Raiava a aurora, empallidecendo as estrellas. Uma aureola de frouxa luz cintava os horizontes. Na extrema orla do mar enrubesciam-se as aguas, e calava-se o rumorejar da vaga, como para ouvir o hymno matinal dos madrugadores alados.

Era um formoso amanhecer aquelle! Tão donoso, tão alegre, tão radiante tudo, só tu, Carlota, com os olhos na collina onde viste o derradeiro adeus do amante, e a mão no seio como a suster a vida que te foge, perguntas á tua razão se tamanha angustia não é um sonho! Acorda, martyr, que o teu dia de desgraça amanheceu, e será longo!

[30]

V

Sai se o vulto de meu corpo
Mas ei non.
Cá ós çocos vos fica morto
O coraçon.

Egas Moniz Coelho. (?)

... Si notre affection est traversée; si elle rencontre des obstacles, elle réagit, et cette réaction, impétueuse, convulsive, comme celle de tout ressort agitée et comprimée, nous porte á des mouvemens desordonnés, par conséquent accompagnés de souffrance. Notre affection, alors, devient passion. Et comme les obstacles qui l'irritent ne peuvent jamais être placés que par les intérêts d'autres personnes, elle nous anime d'une violente haine contre ces personnes si offensives, si importunes; elle change notre douceur en brusquerie, notre générosité en sentimens odieux.

Azais. (Précis du systême universel.)

Francisco Salter foi, n'aquelle mesmo dia, ao Candal offerecer a Norberto de Meirelles os seus serviços em Lisboa, onde era chamado pressurosamente.

O negociante não tinha pratica ou habilidade bastante para simular no rosto a surpreza ou o descontentamento da inesperada ausencia do genro apalavrado. Manifestou, em toda a expressiva estupidez com que a providencia dos grosseiros velhacos lhe dotara a physionomia, a alegria damnada que lhe não cabia no bojo do peito. Mendonça evidenciou as suas suspeitas, e arrependeu-se de não ter convertido em peçonha toda aquella alegria, aceitando a fuga de Carlota, horas antes.

—Desejava despedir-me das senhoras—disse Mendonça.

—Minha mulher—tartamudeou o negociante—foi [31] á missa, e mais a menina, a uma capellinha á Bandeira, senão com todo o gosto...

Mendonça, quando entrara o portão da quinta, vira Carlota através de uma vidraça. Carlota, pé ante pé, viera, a occultas da mãe, avisinhar-se da sala, com o sentido de, caso o pae a não chamasse, entrar na sala onde Mendonça estava, como de passagem para outra, e fingir-se surprendida do encontro.

Foi o que ella fez ao tempo em que o negociante acabava de improvisar uma missa na capella da Bandeira.

—Ai!—exclamou ella—estavam aqui!...

—Acabava eu de pedir licença ao snr. Meirelles—disse Mendonça, sorrindo ironicamente—para offerecer a v. s.ª e a sua mãe o meu prestimo em Lisboa, para onde parto hoje ás quatro horas da tarde.

O arrozeiro, em pé, com os braços estendidos ao longo dos flancos abdominaes, abria e fechava as mãos, como um idiota: não sabia fazer outra gesticulação mais parva, quando a sua inepcia fosse tal que se lhe fechassem todas as evasivas de uma posição falsa.

—O snr. Norberto—proseguiu Francisco Salter, cedendo ao prazer de affrontar a mentira do villão diante da propria filha—disse-me que v. s.ª e sua mãe estavam na Bandeira ouvindo missa, e eu... retirava-me...

Carlota encarou o velho, e viu um tregeitar de olhos, que a obrigou a baixar os d'ella, por vergonha de si e de seu pae. Salter teve dó de ambos, e mudou de conversação.

—Não sei que motivos imprevistos me chamam a Lisboa; talvez as ameaças de uma nova invasão hespanhola, ou bem póde ser que se tema um definitivo assalto da França...

—Pois virão cá esses herejes de Napoleão?!—exclamou o negociante, já transfigurado pelo susto dos francezes, mal incomparavelmente maior, que destruiu o vexame em que o deixou a apparição da filha.

—Póde ser que venham, snr. Norberto, responder ao desafio que lhes mandamos pelos nossos soldados do Roussillon, quando a França liquidava as suas contas com a Hespanha.

[32]

Norberto não o entendeu; mas redarguiu:

—Se elles cá vem, é contar que não deixam nada; diz que mettem a saque tudo quanto topam, pois não mettem?

—É possivel; mas v. s.ª previna-se, escondendo o seu precioso aqui no Candal, por exemplo, onde de certo os francezes não virão. Ahi está o inconveniente de ser rico. Já o snr. Norberto está a soffrer com o mêdo de que o obriguem a uma contribuição...

—Se lhe parece.... o caso não é para menos: quem não tem nada, tanto se lhe dá como se lhe deu; mas quem lhe custou a ganhar o que tem, pouco ou muito, quer paz e socego.

—Não se aterre antes de tempo, snr. Norberto,—replicou Mendonça, sorrindo a Carlota—quando os francezes invadissem Portugal, eu ajudaria a v. s.ª a defender o que é seu, não só como esposo de sua filha, mas tambem como seu amigo.

—Isso lá...—regougou o mercieiro—muito obrigado, não me despeço do favor: mas o senhor é militar, e quando isso for não lhe ha de faltar por lá que fazer, na guerra do mar.

—Assim aconteceria—tornou Mendonça, enterrando lentamente o estillete observador—se eu não tencionasse pedir a minha baixa do serviço, para evitar que as revoluções perturbem a felicidade de minha mulher e a minha.

—Então que modo de vida queria o senhor ter, se casasse com a minha Carlota?

—Outro qualquer mais permanente, mais descansado; negociante, por exemplo.

—E que é dos fundos?

—Fundos?

—Sim, o casco do negocio?

—O casco!... a que chama v. s.ª casco?

—Casco é o cabedal para começar.

—Meu sogro dar-me-hia...

—Dinheiro?! meu amiguinho, está quasi todo empregado em torrões; e eu, emquanto vivo, não dou nada.

—Mais uma razão—replicou Mendonça, condoido [33] do vexame de Carlota, e seguro, mais que seguro, do villão caracter do arrozeiro—mais uma razão para v. s.ª não receiar a invasão dos francezes... Agora tem logar—proseguiu elle, mudando de ironico para circumspecto e grave—uma observação que me esqueceu ha dias, quando tive a ventura de pedir-lhe a snr.ª D. Carlota. Eu, snr. Norberto, pedi sua filha, simplesmente sua filha; não pedi dinheiro, nem pedirei jámais. Eu conto com recursos proprios para que ella não sinta falta de commodidades que deixou em casa de seus paes. O meu patrimonio é a patente que tenho e as bem fundadas esperanças de me augmentar n'esta carreira. Não me julgue v. s.ª atido ao dote de sua filha, nem cuide que me affligi com a ameaça de nada lhe dar emquanto vivo. Póde o snr. Norberto gastar, ou augmentar o que tem, que sua filha não esperará a morte do pae para poder comprar mais um vestido. Faça, portanto, justiça ás minhas intenções, e conceda-me que eu dê liberdade a algumas ideias que me estão inquietando e magoando.

V. s.ª não procedeu lealmente commigo, quando me deu, sem reparo, sua filha. Rogo á snr.ª D. Carlota me consinta este desabafo, porque a clareza, n'este momento, é necessaria a todos nós, e o amor e o decoro costumam, nas almas nobres, soffrer juntos, quando um d'elles é offendido... e agora são ambos.

—Eu não entendo o que v. s.ª ahi está a dizer—atalhou Norberto conscienciosamente.

—O snr. Mendonça...—acudiu Carlota; mas o pejo embargou-lhe a voz.

—Eu queria dizer ao snr. Norberto de Meirelles—tornou Mendonça—que fez v. s.ª mal em dar uma palavra de que se quer desquitar por meios menos honestos, e á custa talvez da minha liberdade. A ida de seu cunhado á capital, e a ordem de eu ir, sem perda de tempo, a Lisboa, escondem uma trama que eu espero desenredar em oito dias. Se o snr. Norberto e seu cunhado julgaram que uma intriga basta para aniquilar um amor de dois annos, uma união de toda a vida já abençoada por Deus, que vê a pureza das minhas ambições, enganaram-se! Retardar não é destruir. Eu confio tanto no generoso [34] coração da snr.ª D. Carlota como em mim proprio; e só o muito amor me podia dar a mim esta franqueza com que fallo, e a ella a indulgencia com que me ouve accusar o proceder injusto de seu pae.

—O senhor está a insultar-me!—exclamou Norberto—e demais a mais em minha casa!

—Eu não insulto, senhor, queixo-me de ter sido ultrajado, e reconheço, n'esse desabrimento, que é certissima a perfidia com que fui enganado. Retiro-me, para que v. s.ª não me offenda terceira vez, dizendo-me que o insulto.

—Pois o melhor é isso—redarguiu Norberto.—O senhor pensava que me levava á valentona? Eu tambem tenho amigos, e sei o que hei de fazer!...

—Que ha de fazer o pae?—disse Carlota com altivez—O pae não póde fazer nada.

—Que dizes tu, Carlota?!—trovejou Norberto.

—Digo que não ha forças humanas que me privem de casar com este senhor. O pae governa no seu dinheiro, e nós nada lhe pedimos. O snr. Mendonça, se quizesse ser menos generoso com meu pae, estaria já casado commigo, porque eu o auctorisei a tirar-me de casa por justiça.

Norberto, como todas as indoles abjectas, caira no miseravel da sua atonia, sob a fulminante coragem de Carlota. Francisco Salter aproximou-se d'ella, tomou-lhe a mão, como se estivessem sós, e murmurou:

—A virtude, que Carlota chamou generosidade, continúa. Vou a Lisboa, porque sou militar, e transgrido a honra e dever não me apresentando.

Mendonça despediu-se de Carlota Angela, que chorava, e de Norberto de Meirelles, que limpava com o canhão da japona de cotim o suor da brunida testa.

D. Rosalia faltara a este conflicto, porque, atarefada na cozinha com a liquidação dos legumes vendidos na manhã d'aquelle dia, não dera fé de entrar Mendonça.

Carlota Angela, apenas sósinha com seu pae, voltou-lhes as costas, e saiu da sala.

Norberto ficara de tal modo aturdido com o desembaraço da filha, que parecia temel-a. Procurou a mulher, [35] e contou-lhe, como elle podia, o succedido. D. Rosalia benzeu-se tres vezes, e tres vezes levou os braços em arco á altura da cabeça, acção favorita da grossa matrona, quando queria exprimir o supremo espanto.

Animando-se mutuamente, entraram no quarto de Carlota, e gritaram ambos ao mesmo tempo:

—Filha ingrata! nós te amaldiçoamos!

—Para sempre!—disse a solo o snr. Norberto.

—Para sempre!—repetiu D. Rosalia.

—Amaldiçoada!—bradaram em dueto.

—E por que me amaldiçoam?—disse Carlota—que crimes são os meus?

—Ainda perguntas?!—respondeu Norberto, opilando olhos, bochechas, nariz, e tudo o mais susceptivel de opilação na sua elastica physionomia—Pois não tiveste o atrevimento de me dizer ainda agora que eu não podia fazer nada?

—Disse, sim, senhor; disse, porque ha só um meio de me prohibir o casamento com a pessoa a quem o pae me deu: é matarem-me.

—Isso diz-se a teu pae, rapariga?—-bradou a mãe.

—A verdade diz-se aos paes; mentir-lhes é que é crime. Para que hei de eu dizer que faço a vontade a meu pae, se não sou capaz de cumprir a minha palavra? Logo que Mendonça voltar de Lisboa, se elle me não procurar, procuro-o eu. Se elle me quizesse com a mira no dote, faria todas as diligencias por que me dotassem, ou morreria de paixão por me não dotarem; felizmente, o homem que Deus me destina é a mim que me ama, e não ao dinheiro de meus paes; para ser sua mulher basta-me o coração; pois bem, fique o dinheiro a meu pae, e seja o coração para o homem que não exige de mim outros thesouros.

Norberto olhava Rosalia, Rosalia olhava Norberto, grotescamente pasmados. Estranha era para elles a linguagem, o enthusiasmo, a altiveza, as attitudes de Carlota. Queriam contradictal-a com os argumentos triviaes de um casamento rico; mas a migalha de bom senso que tinham ambos, bastava a convencel-os da inutilidade de similhantes razões. Queriam leval-a pelo terror; mas com [36] tanto mimo a tinham deixado emancipar-se desde creança, que não sabiam agora com que gestos, com que palavras, exprimir o agastamento, a admoestação irada, a soberania paternal.

O coração de Rosalia era bom, e seria ella a protectora do casamento, se a não tolhessem os prejuizos de classe. A mulher de Norberto cuidava, em boa consciencia, que sua filha não podia ser feliz, casando sem o precedente de escripturas de doação, sem a concorrencia de doadores bem ricos e bem estupidos por parte do noivo. Por mais que ella quizesse descobrir no official de marinha os encantos que seduziram sua filha, a tapada creatura o que encontrava era motivo para pasmar cada vez mais.

—Um engarilho de bigode como um chibo...—dizia ella a Carlota, depois que Norberto se retirara com mêdo de ceder á indignação, que o enfurecia—um pechibeque que não tem terra, nem leira, nem ramo de figueira, ó rapariga, que feitiço te fez aquelle patavina? Ha por ahi tanto rapaz bem azado, com negocio estabelecido, e creditos... se querias casar, por que o não tinhas dito, que já se tinha escolhido a flor dos rapazes do Porto? Está ahi o filho do Antonio José da Silva, e do Joaquim José Guimarães, que por entre os dentes deram a entender a teu pae que te queriam, e ainda estão solteiros, não tens mais que fallar... Ó mulher! isso foi enguirimanço do demonio! Por que não casas tu com um dos outros?

—Perde o tempo, minha mãe—disse Carlota com firmeza.—Esses homens aborreço-os; o mundo tem para mim um só homem; não vejo, nem quero ver outro: é Francisco de Mendonça, porque sou d'elle, considero-me já sua mulher, e...

—Tu que dizes, Carlota!?—bradou apavorada D. Rosalia—És já mulher d'elle? Pois tu... Credo! tu estás ahi a dizer blasphemias... Ó desgraçada, pois tu...

—Eu quê! o que está ahi a mãe a fazer uns espantos que não sei a que vem? Se me julgou culpada de alguma acção indigna de mim, é mais uma injustiça que faz ao homem que amo. Tenha a segurança de que Mendonça não me humilha; pelo contrario, eleva-me, ama-me bastante, [37] e é bastante virtuoso para não querer que a minha consciencia me accuse de alguma fraqueza.

Oh! ninguem sabe comprehender, como quem ama, uma nobre alma! Tenho eu, e elle tambem tem a infelicidade de sermos avaliados por pessoas que adoram o dinheiro sobre todas as cousas, e crêem que fóra do dinheiro não ha virtudes nem contentamentos. Ó minha mãe, foi uma desgraça darem-me uma educação differente da que receberam meus paes. Eu vejo as cousas e as pessoas de um modo diverso. Olho para a riqueza como para um obstaculo á minha ventura, e não posso deixar de aborrecel-a...

Bem vejo que minha mãe se admira d'esta linguagem, creia que não é falta de respeito, nem confiança nas minhas fracas forças; é animo que me dá um amor puro, e digno de mim; é uma força de que eu preciso para convencer meus paes de que privar-me de casar com Mendonça é o mesmo que matar-me!

Minha mãe não quer que eu morra, e ha de proteger-me, ha de amollecer o duro coração de meu pae, ha de lembrar-lhe que o consentimento dado não póde ser negado sem deshonra para elle, e grandes torturas para mim. Seja por mim, minha querida mãe, seja boa como tem sido sempre. Tenha dó da sua filha unica, da filha que nunca lhe desobedeceu, e, se hoje desobedece, deve ser muito dolorosa a violencia que lhe querem fazer...

Carlota Angela soluçava no seio de D. Rosalia, cujos vasos lacrimaes se romperam copiosamente.

Eram de bom agouro as lagrimas da enternecida mãe.

As difficuldades, que ella oppunha, eram vencidas por novas supplicas de Carlota. D. Rosalia acabara por prometter, com o seu silencio, vencer a resistencia do marido.

Norberto saíra entretanto para o Porto, e fora ao paço do bispo prevenir a magistratura ecclesiastica contra as diligencias de Francisco Salter de Mendonça. Alguem o aconselhou que fizesse entrar sua filha n'um convento, para obviar ao rapto, visto que, dado o passo da fuga, o mais airoso e honesto era remediar a deshonra irreparavel sem o casamento.

[38]

D. Rosalia Sampayo tinha uma irmã freira benedictina, no Porto, senhora muito reformada, muito rezadeira, e havida em conta de predestinada, lá dentro, e de religiosa illustrada entre as pessoas das suas relações.

Carlota Angela visitava-a miudas vezes, e entretinha-se longas horas na grade, e até alguns dias dentro do mosteiro, onde sua tia lhe ensinava muitas devoções mirificamente salutares, com as quaes Carlota saía convencida de que, fazendo-as um mez, ganharia indulgencias bastantes para remir das penas do purgatorio toda a christandade.

A madre Rufina, sem desagradar ao seu director espiritual, frade carmelita de poucas lettras e muitas virtudes, era uma tolerante senhora, a quem Carlota confessara a sua inclinação ao official de marinha, resultando-lhe d'ahi ter de rezar, por conselho da tia, mais algumas devoções para que a Virgem lhe inspirasse o melhor destino n'este mundo.

Carlota dizia-lhe que o seu apaixonado era pobre. Madre Rufina replicava que pobre era quem não tinha a graça de Deus. Carlota redarguiu que talvez os paes não a dessem a um rapaz sem dote. A benedictina appellava para a vontade do Altissimo, que fazia tudo pelo melhor. Ora, Carlota Angela, melhor ou peior avisada, entendia que Deus, na maxima parte dos actos humanos, e nomeadamente nos casamentos, não punha nem dispunha. Isto será menos orthodoxo; mas é necessario impor á responsabilidade do homem, ou do diabo, cousas que por ahi ha que não parecem de Deus.

Norberto de Meirelles foi do paço do bispo ao convento de S. Bento da Avè Maria, e fez chamar sua cunhada. Contou a desordem em que se achava sua casa, foi eloquente no seu genero, desafogou a ira abafada em presença da filha, e terminou dizendo que, o mais tardar no dia seguinte, Carlota havia de entrar no convento, onde estaria até se lhe varrer a mania de casar com o tal Pedro-malas-artes.

A madre Rufina respondeu que na casa do Senhor não se recebia ninguem introduzido á força; que sua sobrinha não estava no caso de aceitar com prazer o recolher-se [39] a um convento, quando o seu coração propendia e ligava a outros amores. E concluiu, aconselhando a seu cunhado prudencia e caridade com as inclinações de Carlota, que, se não eram convenientes aos olhos do mundo, tambem não eram peccadoras aos olhos de Deus.

E, em resposta ás impertinentes réplicas de Norberto de Meirelles, a digna esposa do Senhor prometteu chamar sua sobrinha, relatar-lhe as mágoas de seu pae, tentar demovel-a do seu proposito, e pedir muito, primeiro, a Maria Santissima que tocasse o coração de Carlota com a resolução mais conducente ao caminho da virtude n'este mundo, que é o da salvação no outro.

Norberto saiu pouco contrito, e notou que sua cunhada gosava uma reputação usurpada. O homem achava aquelles principios irreconciliaveis com a santidade de que D. Rosalia fazia o panegyrico, todos os dias. Não obstante, a irritação moderou-se-lhe, na esperança de que, em ultimo refugio, seu cunhado doutor faria em Lisboa, com o dinheiro, o que a violencia não conseguisse cá.

A freira pediu ao capellão do mosteiro que lhe acompanhasse sua sobrinha; e teve com ella o seguinte dialogo, quasi textual dos apontamentos de Carlota Angela, que devemos á confidencia de uma sua amiga, de quem logo fallaremos:

—Teu pae, menina, esteve aqui hontem, e fez-me pena. Pediu-me que te despersuadisse do amor a...

—Pediu-lhe um impossivel, minha tia—interrompeu Carlota.

—Nada é impossivel a Deus, minha sobrinha.

—Deus escuta-se na consciencia, e a consciencia não me condemna o coração.

—Mas que te diz ella sobre os deveres de uma filha?

—Diz que tenho satisfeito a todos aquelles em que correspondo aos deveres de pae.

—Não sejas tão absoluta nas tuas respostas, Carlota. A desobediencia é um crime.

—E o suicidio, minha tia?

—O suicidio é o maior dos crimes, porque é o desprezo do divino remedio nas dores passageiras d'esta vida.

[40]

—Pois creia que obedecer é morrer; se obedeço, se retiro o meu amor... retirar, meu Deus! eu disse uma loucura! eu não posso retirar o meu amor a Francisco; o mais que posso é mentir; mas essa mentira custa-me a morte... é o suicidio, e mais ainda... é um assassinio, porque eu mato o homem que me é tudo n'esta vida...

Carlota rompeu n'um alto soluçar de lagrimas, que fez chorar a religiosa.

—É escusado—disse esta, após um longo intervallo de silencio, cortado de suspiros—é escusado combater a tua paixão. Eu pedi tanto ao Senhor, em communidade, com algumas santinhas d'esta casa, que te mudasse a tenção, que já agora não posso duvidar que o céo abençôa a tua união com esse mancebo. Já não te reprehendo, nem dissuado, minha sobrinha. Faremos com tua mãe o que não podérmos fazer com o espirito teimoso de teu pae. Enternece-a com as tuas lagrimas, menina; esperta-lhe a compaixão de que está cheio um coração maternal.

—Já o consegui; minha mãe chorou commigo, e prometteu alcançar de meu pae o consentimento que elle já tinha dado.

—Já tinha dado?! a quem?

—A Francisco Salter, quando me foi pedir.

—E depois? desdisse-se!...

—Quando consentiu, foi para dar tempo a meu tio de nos urdir uma traição. Francisco partiu hontem para Lisboa, chamado a toda a pressa. O plano é talvez demoral-o lá; mas de que serve a má fé de meu pae, e as astucias de meu tio? Cá está o meu coração para vencer tudo. Cêdo ou tarde, Francisco voltará, e depois... e depois, se tanto for necessario, fujo de casa.

—Santo nome de Jesus! não digas tal desatino, que offendes a Deus. O teu amor, se tal fizesses, deixaria de ser um sentimento honesto, minha sobrinha. Ha nódoas que nunca se lavam, e intenções boas que deixam sempre uma face má voltada para os juizos severos do mundo. Já agora, filha, esgota todo o teu calix de fel para que se não diga que achaste doçura no crime. Eu entrei de vinte e dois annos n'esta casa, estou cá ha vinte e seis, e ainda me recordo do que era o mundo lá de fóra, e o [41] que lá não aprendi ensinaram-me cá pessoas que entraram para aqui sangrando ainda das chagas que receberam lá.

Carlota, eu hoje não te fallo a linguagem que me ouviste até aos quatorze annos. Conheço o teu coração, e acompanhei-lhe o desenvolvimento mais de perto que teus paes. Tua mãe não te podia entender, porque tua mãe saiu aos quinze annos da companhia de um tio abbade para casar com um homem capaz de lhe abafar a intelligencia, se ella a tivesse. Teu pae é um honrado commerciante, tem sabido augmentar os seus haveres com a mira de te deixar muito rica, e não entende nada de coração.

Já vês, minha querida sobrinha, que teus paes ignoram a sua culpa, e não fazem mais do que julgam ser o melhor para a tua felicidade. Não os desgostes emquanto for compativel a obediencia com os affectos invenciveis da tua alma. Teu pae quer que te recolhas a este convento. Se vieres, se quizeres vir para a minha companhia, não preciso dizer-te que as tuas acções hão de ser aferidas pelos deveres de uma menina recolhida n'esta casa. D'aqui diligenciaremos o teu casamento com esse sujeito; mas as nossas diligencias hão de cooperar todas sobre o animo de teu pae, até obtermos o consentimento, esquecendo-nos de que elle procedeu mal, negando o que uma vez tinha concedido. Agora, pensa, Carlota.

—Tenho pensado.

—Queres, ou não queres entrar no convento?

—Quero sim, minha tia; hoje mesmo, se é possivel.

—É, que eu tenho ainda licença para tu poderes entrar; mas é preciso que teu pae o saiba.

Carlota Angela desceu acceleradamente as escadas que conduziam da grade para a portaria. Ia banhada de lagrimas. Ao abrir-se a porta, com o seu tristonho ranger nos gonzos, Carlota estremeceu, e apoiou a face, como esvaîda, no cunhal do muro.

—Vem, menina,—disse do interior a madre Rufina.

Carlota Angela pôz o pé no limiar, e exclamou, estendendo os braços para a madre porteira:

[42]

—Disse-me agora o coração que era para sempre!... Que é isto que eu sinto, meu Deus!

—Se é Deus que t'o faz sentir, minha sobrinha, louvemol-o todas pelo bello presagio que te inspirou.

A porta fechou-se. Carlota, rodeada de freiras, e nos braços de todas, soltou um ai que parecia um grito desentranhado do coração.

[43]

VI

Qui amans egens ingressus est princeps in amoris vias,
Superavit œrumnis is suis œrumnas Herculis.

Plauto. (Persa.)

O demonio da ambição...

A. Herculano. (Monge de Cister.)

Francisco Salter de Mendonça, logo que chegou a Lisboa, procurou o ministro da marinha, e encontrou-o, contra as suas presumpções, bem encarado e affavel.

D. Rodrigo de Sousa Coutinho era um astuto politico, sabia conhecer os parvos pavores do intendente geral da policia, e amava bastante a pasta para contrariar as suggestões do principe regente, que tremia dos pedreiros-livres, quando não tremia das conspirações da filha de Carlos IV.

Ainda assim, o ministro, protector affeiçoado de Salter de Mendonça, e particular amigo do frade progenitor, que valia muito com Mellos e Ficalhos, houve-se astutamente na recepção do official de marinha, mostrando-lhe a ordem do dia, em que era promovido a capitão-tenente, e dando-lhe os emboras da escolha acertada que o principe regente fizera dos seus talentos e energia, para, com mais dois officiaes, o enviar ao Brazil a correr com o apresto de uma esquadra, que as prevenções da guerra demandavam.

Este gracioso acolhimento desfez, ao primeiro intuito, as suspeitas de Mendonça. A intriga era incompativel com a mercê do posto, e a honraria do encargo. A reflexão, porém, sobreveio ao juizo da primeira impressão, e Salter, recordando o que se passara no Candal, creu de [44] novo que o bacharel promovera o seu desterro, simulada com a mascara do favor.

A nova de ter sido adjunto ao intendente Manique o tio de Carlota Angela revalidou a desconfiança.

Mendonça apresentou-se ao ministro, e pediu licença para tornar ao Porto, onde o chamavam compromissos, do coração em que a sua palavra de honra se achava empenhada. D. Rodrigo objectou com a necessidade urgente da partida no praso fixo de quatro dias; discorreu profusamente ácerca da primazia dos deveres de portuguez em confronto com os particulares do coração; e encareceu o azedume com que sua alteza, o principe regente» veria posporem-se negocios do estado ás allianças amorosas de um subdito que lhe merecera tão relevante prova de real confiança.

Instava, por outra parte, o frade benedictino, e a parentella illustre do frade, vaticinando ao capitão-tenente um almirantado em poucos annos de serviço.

Para estes prophetas de glorias ensurdecera Mendonça.

O coração accusava-o de ingrato e vil, se a cabeça se deixava instantaneamente desvairar com as vanglorias da fama. A imagem chorosa de Carlota Angela apparecia-lhe como um estimulo de honra, se o fraco espirito humano inclinava ouvidos aos embaimentos da consideração, do renome, e dos altos destinos a que o conduzia uma boa estrella.

Mendonça, quando as felicitações de amigos e invejosos pareciam já galardoal-o das bizarrias previstas, meditava rejeitar não só o novo posto e a commissão mais valiosa que elle, mas tambem a patente que já tinha. O tempo urgia, e os aprestos para a saída acceleravam-se com extraordinaria diligencia. O capitão da real brigada deliberou pedir a sua baixa, ou, caso lh'a negassem, dar parte de doente. N'este proposito estava, quando recebeu uma carta de Carlota Angela, datada no convento de S. Bento da Avè Maria.

Carlota contava-lhe miudamente os successos que a levaram ao convento; o patrocinio que encontrara em sua tia, as esperanças que esta lhe dava de docilisar a pertinacia [45] do pae; o contentamento que ella sentia em esperar no remanso d'aquelle santo asylo o esposo querido; a liberdade que estava gosando alli de pensar no seu anjo, alli, onde ninguem tentava desvanecer-lh'o do coração; em resumo, Carlota dizia-lhe que estava prevenida contra todas as borrascas, assegurando-o de que só saíria do mosteiro para ser esposa do predilecto da sua alma. Não ajuntaremos ao conciso extracto da longa carta as meiguices de amorosa uncção, os enternecidos deliquios da saudade, os azedumes e dulcidão d'esse agrodoce espinho, que rasga o seio ao mesmo tempo que o balsamo da esperança allivia a dor, cicatrizando a chaga. Essa carta era o que devia ser uma carta de Carlota Angela: a alma inteira, no que a alma n'uma virgem tem de communicativo ao coração estranho, se estranho póde dizer-se o coração amigo que se sente e escuta dentro do nosso.

Francisco Salter era formado d'este barro humano, contra o qual se tem vociferado e estampado muita satyra.

A mais suave maledicencia, querendo poupar a natureza humana ás querelas e libellos da philosophia rixosa, diz que o homem é um mysterio.

A theologia christã, para desencarregar o supremo artifice do desaire da sua obra, diz que o homem é um ente degenerado da sua primitiva puridade.

Em boa paz com theologos e philosophos, a mim se me afigura que o homem é um composto de grandeza e pequenez, uma dualidade de gigante e pygmeu.

Mendonça tinha uma unica macula na sua excellente natureza: era a imperfeição, era a falha do grande brilhante, que o leitor, de animo frio e vista clara, vae ver commigo.

A carta de Carlota Angela tranquillisou-o; não disse tudo—alegrou-o, deu-lhe um ar radioso de confiança e certeza na dedicação, que momentos antes lhe incutia o receio da mudança.

O homem é assim.

Parece que o amor sem a desconfiança, a esperança sem a duvida, lhe dá um socego de espirito que não quadra [46] á sua natureza irrequieta. O pungir de constante espinho é-lhe um necessario estimulo de vida. Se elle sáe do coração, é forçoso que fira o orgão de outras paixões. Se o amor prevalece á ambição de gloria ou de riquezas, satisfaça-se o amor, e a outra paixão resultará com toda a impetuosidade do arco retezado... Não se tirem já contra Francisco Salter conclusões que o vago d'aquellas premissas não auctorisa.

A carta não baixou a temperatura, mas mitigou o rescaldo do amor, a ancia da incerteza, affrontamento das conjecturas que elle formava ácerca do destino que o irritado Norberto daria a Carlota, depois da arrojada ameaça do Candal.

Se a levariam fóra do reino:

Se a casariam violentamente com outro:

Se a encerrariam n'um convento, incommunicavel:

Se a despersuadiriam com razões das que vencem o vulgar das mulheres, quando o amante as não anima com a sua presença:

Se Carlota seria uma mulher vulgar, susceptivel de succumbir ás contrariedades.

Tudo isto eram hypotheses atormentadoras; mas a carta respondia a todas. Carlota estava a salvo da perseguição; sósinha com o seu amor, que ninguem lhe impugnava; nutrindo-o com saudades na solidão do claustro. Este convencimento aplacou a vertigem de Mendonça.

A ideia de pedir a baixa pareceu-lhe desnecessaria. O espaçar-se o casamento para mais tarde afigurou-se-lhe racional e necessario aos seus deveres de militar, e ao cumprimento dos encargos com que o principe regente o honorificava.

E, depois, dizia n'elle o ente pensante:

«Não será bem decoroso para mim voltar do Brazil com uma posição tão acrescida em honras, que ninguem possa notar desigualdade entre mim e a filha do opulento commerciante?

«Como homem brioso, não deverei eu querer que a propria Carlota me considere um homem disputado por herdeiras iguaes, ou ainda superiores a ella?

«Os paes de Carlota, quando eu voltar habilitado [47] para entrar no valimento dos mais poderosos, e igualar-me a elles, não terão pejo, vendo-me entrar em sua casa a castigal-os com pedir-lhes, segunda vez, a filha, sem dote?»

Assim fallava o orgulho do espirito; o coração, porém, patrocinando o anjo puro, a quem similhantes conjecturas injuriavam, tinha arrebatamentos de tão sentida queixa, ou clamava com tamanha ternura á consciencia incorrupta do mancebo, que, mais de uma vez, o amor saiu victorioso, e o projecto de pedir a baixa readquiriu novos estimulos.

E os sonhos de gloria?

E os respeitos do mundo, que não eram, como hoje, restrictos ao dinheiro?

E o cortar uma carreira, quando a aurora do seu brilhante dia raiava tão sem nuvens?

E uma longa vida a viver só das commoções de um amor satisfeito?

E o emparelhar com os mais nobres, quando se tem um nascimento obscuro, ou se não póde, sem desdouro, proferir o nome do pae, que inverga, não a farda do general, mas o habito dos monges negros?

Replicava assim o orgulho reagente; e o amor supplicante exorava de novo; a imagem melancolica de Carlota Angela espelhava-se no coração do moço; resurgia ovante em toda a sua nobreza e isenção a amorosa alma, e a tenção de não partir reaccendia-se mais calida e inabalavel.

Assim, pois, chegou Mendonça a submetter o seu requerimento ao despacho do ministro.

Maior seria o pasmo de D. Rodrigo, se não julgasse o capitão da real brigada de marinha compromettido na maçonaria, onde se pactuara que a desobediencia implicaria pena de morte, a ferro ou a veneno como a de José Anastacio de Figueiredo, em Mafra, á sombra das telhas reaes.

O ministro chamou o requerente a uma audiencia secreta, e disse-lhe que não só lhe negava a baixa, mas até lhe exigia o cumprimento das ordens regias; que seria mal visto de sua alteza o subdito que tão mal correspondesse [48] ao regio conceito: que seria degenerado portuguez o que, no solemne momento de pôr peito em defeza da patria e á remuneração de patrioticos feitos, se furtasse aos trabalhos e ás glorias: que seria irrisorio não justificar o requerimento de baixa com mais motivos para tamanho desconcerto que um pueril amor, que não devia passar de um incidente de terceira ordem na vida de um homem intelligente, e fadado para estrondosos destinos: que, finalmente, o valimento se converteria em castigo, se elle requerente persistisse na disparatada baixa, cuja concessão lhe grangearia o riso de uns, o odioso de outros, suspeitas perigosas de muitos, e, mais que tudo, a mal-querença de sua alteza, que tencionava nomeal-o major da armada, logo que servisse tres mezes no Brazil.

O remate da allocução era a douradura da pilula. Major da armada! a aspiração mais vantajosa de tantos, que a não realisavam na velhice! Voltar, depois de alguns mezes, a Portugal, major da armada, condecorado, ennobrecido, chamado aos conselhos do soberano, e talvez ao ministerio!

Mas deixar Carlota no convento, a carinhosa Carlota, amada dois annos, amada para sempre, votada aos sacrificios, aos desprezos, ás injurias, a tudo, para lhe merecer a elle a renuncia de glorias que retardavam um enlace tão suspirado!

Mendonça, na vespera da saida para o Rio de Janeiro, escreveu esta carta:

«Vê, minha Carlota, que eu choro. A afflicção não me deixa outro desafogo. Quando receberes esta carta, separam-nos centenares de leguas. Eu parto ámanhã para o Brazil, obrigado pela minha condição de servo agaloado. Deram-me o commando de um navio, e mandam-me cumprir serviços de que eu cobraria esperanças para grandes honras, se a minha gloria unica não fosses tu, esposa da minha alma. Quiz dar a minha baixa, requeri, instei, negaram-m'a, e impozeram-me as leis militares. Quiz dizer-te um adeus por algum tempo; não me consentiram delongas, porque a corveta Amazona esperava-me quasi aprestada para se fazer á vela.

«Mas eu não parto, Carlota. Comtigo fico, anjo. O [49] meu coração ahi fica, ahi está pulsando no teu. As lagrimas de saudade que choras, choram-as tambem os meus olhos. Entre nós, n'esta longa distancia que nos separa, prende-nos a mesma cadeia de dores, de afflicções, de terriveis presentimentos. Quando te doer no coração o presagio da minha morte, sentil-o-hei tambem eu lá, e chamarei por ti no silencio da minha alma, n'este grito surdo da saudade, que é um despedaçar de todos os ligamentos da vida.

«Por que choramos nós, Carlota? Invoquemos a razão desvairada pela angustia; suppliquemos a essa filha de Deus, senão remedio, ao menos conforto ás nossas dores. Deveremos nós chorar como choram amantes infelizes? Eu creio que não, minha cara esposa. Se hoje nos dissessem: «a vossa união ha de realisar-se passados seis mezes, ou ainda um anno», teriamos justo motivo para nos rebellarmos contra o destino, contra a Providencia que nos aproximou tão dignos um do outro?

«Não, Carlota, porque o nosso amor não está ameaçado de alguma sinistra casualidade que o aniquile ou arrefeça. As distancias são impossiveis entre duas almas identificadas. Para ti no claustro, para mim na amplidão dos mares haverá sempre o mesmo santuario de fervente amor, a mesma acção de graças a Deus, que não quer o infortunio dos que o confessam e chamam nas suas agonias. As nossas lagrimas ha de a esperança enxugal-as. A esperança nos acordará dos sonhos tristes. A saudade, que desalenta e cansa, irá ao futuro pedir sorrisos ás risonhas imagens da nossa ventura de esposos. Oh! nós não temos razão para chorar uma separação de alguns mezes, quando nos separamos tão confiados, como se acabassemos de receber a benção no altar, como se, no derradeiro abraço, sentissemos entre nossas faces o rosto de um filho.

«Que ridente imagem esta, ó Carlota! que estranho palpitar de coração eu sinto agora! que delicias nos aguardam para o dia immorredouro da nossa felicidade!

«Animo, minha adorada esposa! Eu careço de imaginar que tens coração para aceitar, sem fraqueza, esta dor. Preciso alentar-me da tua coragem, para que o auxilio [50] da razão não esmoreça. Animei-te; mas as lagrimas não me deixam escrever, nem a ti te deixarão entender estas palavras. Agora se me cerra em indizivel tortura o coração. Largo a penna, desafógo em gemidos este aperto de alma, similhante ao impossivel de comparar-se. Não me venço. Já creio que te perdi. Accuso-me de ingrato por que não deserto, e calco as leis, e fujo para ti, e te roubo a todo o mundo, para mendigar comtigo uma esmola em paiz estrangeiro. Eu sou vil, sou indigno de ti, e rasgarei esta carta, ou ler-t'a-hei de joelhos, para que tu me perdôes tamanho crime.

«Que digo eu, meu Deus! que penso eu, e que farei da minha vida! Impossivel, Carlota, impossivel deixar de seguir o meu destino! Agora mesmo sou chamado á secretaria para receber as ultimas ordens. Este calix irremediavel ha de ser tragado, ou a deshonra, a perseguição, e o perder-te... Que horrivel palavra!

«Um juramento, Carlota! Faz-me um juramento, ajoelhada diante de um crucifixo. Eu não o tenho aqui, mas invoco o testimunho de Deus, porque o meu coração, quando tu proferires estas palavras, ha de ouvir-t'as, e recolhel-as. Jura que só sairás do claustro para ser minha esposa; e, se a morte me colher longe de ti, acabarás ahi teus dias, e nenhum ente sobre a terra roubará á minha alma a melhor parte que lhe fica no mundo, esperando que Deus a chame para a acolher ao infinito amor da bemaventurança.

«Juraste, Carlota? Agora crê que o meu espirito te pediria contas d'esse juramento, se a perfidia denegrisse a tua alma immaculada.

«Perfida!... tu!... Perdôa-me, anjo do céo, pelas lagrimas que choro, pelas que tu choras, mais puras, mais angustiosas que as minhas!

«Adeus.....................»

[51]

VII

Fiel é Deus, que não soffre termos mais peso do que aquelle com que podem os nossos, hombros. Delle se devem esperar os verdadeiros allivios, e nesta fé se acabam os quebrantos.

Fr. Antonio das Chagas. (Cartas.)

Carlota Angela proferira o juramento, ajoelhada diante de uma cruz; foram, porém, d'ahi levantal-a os braços de D. Rufina, que, acudindo ao soluçar dos gemidos, a encontrara esvaida.

Depois que a lançou á cama, a religiosa leu a carta, e disse a uma noviça que vinha entrando:

—Quando assim se amam duas creaturas, a vontade de Deus está n'esse amor: tudo que os homens fizerem contra elle é um sacrilegio, é um attentado contra os designios do Altissimo.

A noviça, depositária dos segredos de Carlota, leu tambem a carta, e foi sentar-se á cabeceira do leito, encostando ao seio a face desmaiada da sua amiga.

Os sentidos de Carlota restauraram-se espavoridos. Tremia toda, e fitava com spasmo e assombro o rosto lagrimoso de Dorothea.

—Chora, chora, Carlotinha—disse a noviça, dando-lhe o exemplo, e acariciando-a com beijos.

—Se eu podesse chorar...—balbuciou Carlota, encolhendo-se em tremuras de frio entre os braços de Dorothea.

—E, se elle morresse, não soffrerias mais, menina?!

Carlota fitou-a espantada, e disse com voz rouca pela suffocação:

—Se elle morresse... quem?... pois sabes...

[52]

—Sei; li a carta, e tua tia tambem a leu, e chorou. Eu não acho razão bastante para succumbires assim.

—Eu não succumbo... se succumbisse, estava morta... Ainda vivo; mas, Dorothea, eu creio que morro, e morro brevemente...

—Arrepende-te, alma de pouca fé!—disse a tia, mostrando a sua nobre fronte de cabellos brancos, coberta com o magestoso véo negro, por entre os cortinados do leito—Que fallas ahi em morrer, creança! Vida, muita vida, e muita confiança em Deus, e esperança em dias melhores, é o que te ensina esta carta, mulher sem animo. Vamos lel-a de novo: sou eu que a leio, e veremos se o coração de uma velha sabe melhor que a moça entender o coração de um mancebo.

D. Rufina, sorrindo com fagueira graça, abriu a carta, sentou-se na cama de Carlota, e acompanhou a leitura com suas glosas, não deixando sem ellas a menor phrase esperançosa.

A respiração profunda de Carlota, o convulsivo soluçar, o gemido indomavel que lhe fugia em agudissimos ais, interromperam, muitas vezes, a leitora. Era então que as consoladoras annotações de Rufina, e o assentimento da noviça, redobravam de persuasiva eloquencia, capaz de maravilhar as freiras, que suppozeram sempre estranha á linguagem das paixões a austera religiosa.

Terminada a leitura, soror Rufina, descontente com o insensivel resultado das suas consolações, appellou para o influxo sobrehumano da religião.

—Venham cá ambas,—disse ella—vamos todas tres pedir de joelhos ao Senhor, que leve e traga a porto de salvamento o nosso Francisco.

—Sim, sim!—exclamou Carlota Angela, saltando do leito, e seguindo-a com passos vacillantes.

Ajoelharam, e oraram afervoradamente. Seria difficil estremar entre as tres qual era d'ellas a que pedia a Deus o salvamento do amante: tal era a devoção de todas.

—Agora respiremos!—disse, terminada a reza, a freira—Has de vel-o, has de ser sua esposa, minha Carlota.

Nas grandes agonias, qualquer esperança exalta a [53] crença em agouros, em presagios, em superstições até. Carlota, pensando que sua tia recebera a suprema graça da revelação, exclamou com alegria e transporte:

—Que foi, minha tia? Disse-lh'o Deus?

—Deus, filha, não falla a creaturas tão peccadoras e indignas como tua tia; mas consente que se possa contar com os effeitos da sua divina misericordia. Tudo o que se pede ao Senhor, com humildade e justiça, consegue-se. E, assim, te repito, Carlota, que Francisco Salter voltará, será teu marido, e tereis larga remuneração dos soffrimentos que offerecerdes a Deus em desconto dos contentamentos que sobejam aos felizes d'este mundo.

Estas palavras soaram tocantes e solemnes como o prophetisar da que a communidade reverenciava assistida de graça superior. Carlota sentia alargar-se a golilha de ferro que lhe entalava na garganta o respiro e a falla. As lagrimas, represadas no coração, rebentaram em torrentes: e o sangue, que se retivera suspenso, circulava de novo, rosando-lhe a lividez cadaverica do rosto.

Estava desopprimida; e fora a esposa de Jesus misericordioso que lhe insuflara alentos. Fora uma freira das que desafiavam o riso dos incredulos com suas devoções, e austeras impertinencias; fora uma mulher, das que morreram para o mundo ou o mundo matara, das que se acolheram a Deus ou Deus tirara do seu inferno em vida, fora essa a que tirara da cruz, onde expirara o amantissimo redemptor dos homens, remedio de vida, e esperança para a chaga de um coração de dezesete annos, ferido de desespêro e morte.

Assim, pois, na cella da rigida religiosa se desafogavam e consolavam affectos dos que, fóra d'alli, no mundo tolerante e vicioso, são julgados rebellião contra a vontade paternal, escandalo para filhas submissas, e peccadora cegueira do coração humano!

Quam inventiva não é a caridade! quam largas bracejam as vergonteas d'esse tronco evangelico, regado pelas lagrimas d'aquella a quem Jesus perdoara por ter amado muito!

A desvelada noviça não deixava sósinha Carlota, um instante. Ella e Rufina revezavam-se ao pé da pensativa [54] menina, que parecia querer fugir-lhes, já não para se carpir, mas para orar; que, na oração sentia Carlota outro espirito em si, o murmurio de outros labios supplicantes, a fervorosa crença de Mendonça inflammar-lhe a fé.

A serenidade viera com a confiança no futuro: do sobresalto, da afflicção, pouco e pouco socegada, ficara a melancolia suave da paciencia, essa que só Deus concede aos que á sua misericordia recorreram na adversidade, e em sua vontade se louvaram.

D. Rosalia visitava a filha miudas vezes, o pae raras; e de breve demora, porque o silencio de Carlota, que elle julgava desaffeição, desanimava-o de a ver, e incommodava-o a sós com ella.

Dizia a mãe, nos primeiros tempos, que não havia tirar-lhe o sim para o casamento; mas que ainda era cêdo para descorçoar. Dois mezes depois, mostrou-se mais docil a pertinacia, e já elle dizia que, na volta de Mendonça, tudo se faria pelo melhor: é que o ajudante do intendente geral da policia, por occasião de lhe pedir mais seis mil cruzados, explicara o saque, dizendo que esta quantia se fazia mister para crear novos embaraços ao regresso de Salter, logo que a commissão, a que fora, estivesse cumprida.

Decorreram quatro mezes. Os navios vindos do Rio, já com a nova da chegada do Amazonas, e cartas dos tripulantes, receberam a bordo uma visita da policia, e entregaram a correspondencia. Entre as cartas havia uma de grande volume, subscriptada a D. Carlota Angela de Meirelles, residente no mosteiro de S. Bento da Avè Maria, no Porto.

O bacharel Sampayo deslacrou esta carta, leu oito folhas de papel, e lançou-as ao brazeiro, aquecendo e esfregando as mãos á lavareda. O malvado queimara alli o traslado das mais tristes imagens, o desafogo da mais dorida saudade que ainda apertou coração de homem! O impio não se amiserara de tantos signaes de lagrimas em que a tinta se apagara! Que raptos de alegria, e suspiradas consolações aquella carta, que voejava no ar em faúlas, levaria a Carlota! Que esperanças tão bellas o perverso queimou com a chamma d'aquelle papel!

[55]

Entretanto, Carlota, que contara os dias, e calculara, mil vezes, com Dorothea, o primeiro em que devia receber novas de Mendonça, mandava todos os dias de estafeta uma servente para a porta do correio, esperando a lista, ou interrogando o carteiro. Sempre, em vão! A antiga dor renascia em cada correio; redobrava a afflicção a cada esperança frustrada.

Conspiravam em consolal-a Rufina e a noviça, esta com razões mais carinhosas que persuasivas, aquella confirmando o vaticinio da felicidade promettida. Os allivios da primeira eram sempre proficuos e desejados; os da segunda faziam-a proromper em gemidos, que tambem eram desabafo.

Decorreram tres mezes de afflictivas esperanças, sempre enganadoras para todas. Nem uma carta, nem duas linhas escriptas no leito da morte!

Carlota Angela tremia de pronunciar uma desconfiança acerba que lhe trazia o coração em agonias. Soror Rufina rogava incessantemente á bondade divina que afastasse da sobrinha o temor que a sobresaltava a ella. Dorothea segredava á freira os seus receios, e esta pedia-lhe muito encarecidamente que não proferisse uma palavra sobre tal desconfiança.

Acontecia, porém, que todas suspeitavam o mesmo; a morte de Francisco Salter.

Carlota receiava que as suas amigas julgassem possivel ter elle morrido; assentimento tal seria para ella uma especie de evidencia, porque tão pouco basta para certificar suspeitas entranhadas n'um espirito que a desgraça fez supersticioso. As outras calavam o presentimento funesto, cuidando que a matariam.

N'este conflicto, correu no Porto a noticia da morte de Francisco Salter de Mendonça. Ninguem sabia dizer por onde a noticia viera; os amigos, porém, do honesto e talentoso official de marinha contavam-se que elle morrera no Rio de Janeiro, quando a gloria o vinha buscar por uma carreira esperançosa de grandes destinos.

A noticia chegou ao convento. Souberam-a todas, excepto Carlota Angela.

Rufina caíu doente, e Dorothea denunciava-se á infeliz [56] menina, evitando-a, quando mais anciosa de compaixão e carinho se sentia impellida para ella.

As freiras olhavam a pobresinha com mais piedade que nunca; animavam-a como se quizessem ter parte em seu coração para a salvarem pela amizade, quando houvessem de revelar-lhe a mortal noticia. Carlota estranhava os melancolicos olhares, os beijos e caricias de todas, a condolencia terna com que, as mais afastadas da sua convivencia, a vinham espairecer ao seu quarto.

Norberto de Meirelles procurara sua filha, n'esses dias em que a noticia vogava. Soror Rufina estava de cama; recebera primeiro o recado do pae de Carlota. Esta preparava-se para ir á grade, quando a anciada tia lhe disse:

—Vou-te aconselhar a desobediencia, minha sobrinha, e Deus me perdôe por sua immensa bondade. Não vás á grade. Eu tomo sobre mim a responsabilidade de mais um peccado.

E, voltando-se para a criada, mandou dizer a Norberto que sua filha não podia fallar-lhe; mas esperasse alguns minutos, que alguem iria em logar d'ella.

—E por que é isso, minha tia?!—perguntou a sobrinha admirada.

—Porque sim, minha filha. Receio que elle te venha fallar...—continuou balbuciante—em cousas desagradaveis.

E, sentando-se no leito, a febricitante religiosa, ajudada de Carlota, vestiu-se, e foi á grade encostada a Dorothea.

—Então a pequena que tem?—perguntou Norberto.

—Está doente.

—Já lhe chegou a noticia! Que tenha paciencia. Deus tudo faz pelo melhor...

—Tambem digo o mesmo—atalhou Rufina.—E o mano agora que lhe quer? Consolal-a?

—Quero dizer-lhe que é preciso mudar de rumo, e tirar o sentido do homem que morreu.

—Isso ha de dizer-se-lhe por outras palavras menos terminantes.

—Isso lá é bom p'rá mana; eu cá digo as cousas como sei.

[57]

—Pois sim; mas consinta que eu a disponha para o golpe, e depois tudo se lhe dirá com prudencia e caridade.

—Pois ella ainda não sabe que morreu o homem?!

—Não, mano; se a noticia fosse alegre, tinha-se-lhe dito; mas eu não acho necessario dar-se-lhe uma nova que a póde matar.

—Qual matar, nem meio matar!—replicou o brutal arrozeiro, tregeitando com os beiços carnudos um gesto de incredulidade—Pobre de quem morre, diz o dictado. Ainda é de bom tempo, cunhada. Isto de raparigas namoradas, são como as viuvas: choramigam oito dias, e ficam frescas como se não fosse nada com ellas.

—Está enganado. Pergunte a minha irmã, que tem coração de esposa e de mãe, se isso assim é. Estou bem convencida que ella fará um diverso juizo do soffrimento de Carlota. Emfim, mano, eu ergui-me da cama para vir aqui, e estou a tremer de frio e febre. Conceda que eu me retire, pedindo-lhe pelo divino amor de Deus que deixe ao meu cuidado revelar a noticia á desgraçada Carlota. O mais difficultoso é curar depois a ferida, se o golpe não for de morte: confio em Maria Santissima que não será.

—Pois então adeus—tornou Norberto, puxando para as orelhas a gola do capote de quartos.—Arranje cá isso do melhor modo, e diga-lhe que venha cá p'ra fóra, a ver se ella se tenta com algum de tres noivos, o qual melhor, que eu trago na mira. Se eu a quizesse casar com um morgado da provincia, fidalgo, e senhor de casa com capella, já me fallaram para isso; mas, a fallar a verdade, o que eu quero é homem de negocio, ou filho de negociante com dote á vista; não faço bem, cunhada?

—O mano lá sabe o que lhe convem; mas nunca faça calculos sem contar com a vontade de Carlota. Parece-me que lhe posso asseverar que ella não sairá mais d'este convento. Perdeu um esposo; mas o esposo verdadeiro, o esposo das almas angustiadas está cá dentro; é Jesus Christo, o unico bem que ha de entrar no coração espedaçado de Carlota, e cural-o com a esperança de encontrar na bemaventurança o primeiro que perdeu.

[58]

—Pois Carlota ha de ser freira?!—interrompeu com impetuosa grita Norberto, derrubando a gola do capote, que era de mais na cara afogueada pela ingrata nova.

—O mano faz um espanto—redarguiu mansamente Rufina—como se eu lhe dissesse que sua filha havia de praticar um crime!...

—É que eu não quero!...—redarguiu elle, batendo um troante murro na banqueta.

—O mano não quer; mas a sua vontade agora vae encontrar outra vontade sem comparação mais poderosa: é a vontade omnipotente do Senhor, que move os mundos e os corações. Não me disse, ha pouco, que Deus tudo fazia pelo melhor? Pois bem, póde ser que a divina vontade quizesse para as suas eternas nupcias a que havia de ser esposa de outro, que Deus chamou a si.

—Veremos como isso ha de ser. Em todo o caso eu quero minha filha cá para fóra. Não a creei para freira, tenho muito que lhe deixar.

—Tudo o que o mano tem póde varrel-o um ligeiro sôpro da desgraça. Modere a sua soberba, que não o castigue Deus, que abate os soberbos, e exalta os humildes. E, demais, a casa do Senhor não se abre só para as meninas pobres. Eu deixei um grande patrimonio quando aqui entrei, e vim achar uma riqueza incomparavelmente maior do que a que deixei: foi o esquecimento do mundo, e o amor sempre crescente de outro melhor. Ora, bem póde ser que sua filha se deixe namorar dos anjos, e rompa com os amores tranzitorios d'esta vida. Em summa, o que eu lhe digo, meu cunhado, é que minha sobrinha só póde ser salva pela religião; e eu, se Deus me achar digna, hei de estender-lhe a mão ao abysmo onde a lançaram, e encaminhal-a por onde eu vir que ella é menos infeliz. Não posso mais, estou fatigada e angustiada, adeus.

Norberto de Meirelles enfiou de novo a cara oleosa na pelucia da gola, sobraçou a enorme bengala encastoada de prata, e saíu do atrio do mosteiro com as ventas fumegantes.

[59]

VIII

Didone
... No mai die fiamma impura
Feci l'are fumar per vostro scherno;
Dunque perché congiura
Tutto il ciel contra me, tutto l'inferno?
Osmida
Ah! pensa a te non irritar gli Dei...
Didone
Che Dei? Son nomi vani,
Son chimere sognatte, ó ingiusti son.

Metastasio. (Didone.)

Norberto de Meirelles communicou, immediatamente, ao cunhado o acontecido com a religiosa benedictina, pedindo-lhe conselho para evitar que a filha se fizesse freira.

O bacharel Sampayo chamou a capitulo os seus vastos expedientes de perfidia, e conglobou-os n'um, do qual ousou afiançar ao cunhado um exito feliz.

Chamou pessoa idonea para executal-o, e de Lisboa veio ao Porto um individuo encarregado da seguinte missão:

Entrou, um dia, no pateo do mosteiro de S. Bento esse homem, e perguntou na portaria, se lhe seria possivel fazer chegar ás mãos da snr.ª D. Carlota Angela um bilhetinho de sua mãe.

A porteira respondeu affirmativamente, como era de esperar, recebeu o bilhete, e entregou-o a Carlota, que saia do côro, onde costumava passar as manhãs em oração.

Era este o conteúdo do bilhete:

Uma pessoa quer fallar á snr.ª D. Carlota ácerca de [60] Francisco Salter de Mendonça; mas deseja estar só com ella em uma grade. A pessoa espera resposta.

Carlota alvoroçada correu ao locutorio, e exclamou:

—Estou aqui.

O enviado do bacharel aproximou-se, e disse:

—Sou eu que a procuro, minha senhora; mas na esperança de ser demorada a nossa pratica, pedia o favor de me fallar n'uma grade, porque este logar é improprio para se tratarem cousas de tamanho segredo.

Carlota olhou em redor de si, viu uma criada com uma chave, e disse com precipitação:

—Empresta-me a grade por um bocadinho? empresta, por quem é?

—Sim, minha senhora—disse a criada.

Carlota indicou ao homem de Lisboa a grade, e correu a encontral-o.

Não tinha ainda elle terminado as formalidades da cortezia, disse Carlota impaciente:

—Elle já veio? Está em Lisboa?

Estas perguntas eram feitas a tremer. Carlota, não podendo com a afflictiva duvida da resposta, apressou-se a interrogal-o assim, cuidando que a certeza com que perguntava por Mendonça vivo a desopprimia da suspeita de que elle era morto.

O homem não estava preparado para perguntas tão expeditas. Ficou perplexo, e esta indecisão deu azo a novas perguntas:

—Traz-me cartas d'elle? dê-m'as...

—Não trago cartas, minha senhora.

—Não?!—atalhou ella com vehemencia e sobresalto.

—Não, snr.ª D. Carlota. Francisco Salter não lhe escreveria, ainda que podesse...

—Como?! não entendo!... Não escreveria... porque?

—Se a menina serenar um pouco, tomarei a liberdade de historiar-lhe vagarosamente a vida do homem que lhe mereceu um grande amor, digno, permitta-me dizer-lh'o, de ser melhor applicado.

—Isso é uma calumnia! isso é mentira!—exclamou Carlota, sem pesar a gravidade das palavras que ouvira, e das que proferira com exaltada acrimonia.

[61]

—Eu desculpo-a das injurias que me dirige, porque avalio a surpreza dolorosa, que lhe fazem tão horriveis novas. Queira escutar-me.

Francisco Salter saiu do Porto amando-a, como se ama aos vinte e quatro annos, com esse amor imprevidente, superficial, e arriscado ás variantes do coração logo que as tempestades de outras paixões se levantam, sopradas por um casual encontro com outra mulher. Era um rapaz no comêço de uma bella carreira, com espiritos ambiciosos, sem bens de fortuna, e descontente da sua sorte... O desengano devia vir, logo que os olhos da pessoa, que elle amava, deixassem de influencial-o. Chegou a Lisboa, onde tinha valiosos amigos e parentes, e onde fora chamado para receber uma honrosa commissão para o Brazil, com augmento na sua carreira, e promessas seguras de grandes vantagens.

Francisco Salter de Mendonça rejeitaria a gloria, se o amor fosse de mais rija tempera; renunciaria um almirantado, se o coração de Carlota Angela saciasse n'elle a louvavel ambição de se fazer grande por merecimento proprio. Obedeceu ao orgulho, e partiu para o Brazil, como a menina sabe. Escreveu-lhe, talvez, uma carta muito saudosa, muito lamuriante, muito esperançosa; mas... partiu.

No Brazil, foi recebido como era de esperar. Encontrei-o na melhor sociedade, posto que a melhor sociedade de lá só se faça valiosa pelo dinheiro. As ricas herdeiras olhavam-o como um rapaz distincto, capitão da real brigada, bem fallante, gentil, bravo, soberbo de si, e collocaram-o na posição de escolher.

Vejo que v. s.ª está anciada. Se a continuação da minha visita a molesta, peço licença, e retiro-me.

—Não... não... queira dizer—balbuciou Carlota, tirando com violencia a respiração do seio convulsivo.

—Os fumos da vaidade e os da ambição—proseguiu o porta-voz do bacharel—ennevoaram aos olhos de Mendonça a imagem de Carlota Angela. Eu, que fora nos primeiros dias seu confidente, sabia que a menina existia n'este convento; recordei-lhe com pezar o indigno perjurio, e elle respondia-me que a ausencia era o balsamo [62] maravilhoso das chagas que o amor fazia. Confesso que me angustiou esta baixa condição de alma! e muito principalmente depois que vi algumas cartas de v. s.ª, escriptas emquanto elle fazia a viagem.

Passados mezes, dois ou tres, se tanto, Mendonça dá parte aos seus amigos de que vae tomar estado com a filha unica de um opulento negociante, dotada com centenares de contos.

—E casou?—exclama Carlota, lançando com vertiginoso impeto as mãos ás grades.

—Casou—respondeu o homem, friamente.

Carlota soltou um grito, que não tem outro comparavel na expressão da angustia humana. Era o ruido agudo do estalar de todos os tecidos do coração, do rasgarem-se todos os vasos de sangue, do embate dos pulmões lacerados contra as paredes do peito. E, depois, os dedos recurvos nos ferros da grade, relaxaram-se, hirtos como os de um cadaver, e o corpo resvalou da cadeira para o chão com estrondoso baque.

O homem horrorisou-se um instante da sua obra, e recuou até á porta para retirar-se; mas a sua missão não estava ainda cumprida. Relampagueou-lhe uma ideia lucida. Desceu á portaria, e disse que fosse Alguem á grade, onde se achava desmaiada a snr.ª D. Carlota.

A este tempo já a madre porteira, alarmada pelo estrondo da quéda, entrava pressurosa na grade, e vendo Carlota no chão, chamou-a a altos gritos. Houve grande rumor no convento, e entre as muitas pessoas que desceram á portaria, vinham D. Rufina e a noviça.

O homem de Lisboa permanecia imperturbavel na grade, esperando que o interrogassem, já depois que Carlota fora transportada, com frouxos signaes de vida, ao seu quarto, acompanhada de um medico, que a fortuna trouxera n'esse conflicto.

—Alguma das senhoras é a tia da snr.ª D. Carlota Angela?—perguntou o homem.

—Sou eu—respondeu a pavida religiosa.

—Concede-me alguns minutos sem testimunhas?

As outras senhoras deixaram só Rufina; o delegado do bacharel proseguiu:

[63]

—Essa menina desfalleceu, quando eu lhe noticiei o casamento de Francisco Salter de Mendonça.

—O casamento?!

—Sim, minha senhora.

—O que geralmente se diz é que morreu.

—Casou, e morreu, dias depois.

—Oh meu Deus!—clamou a freira, levando as mãos ás faces—oh meu Deus, o que se passa debaixo de vossos olhos! Francisco de Mendonça casou!... O senhor tem a certeza d'isso?!

—Como quem assistiu ao casamento e á morte. Esta segunda parte é que sua sobrinha ignora, porque me não deu tempo. Agora convém que v. s.ª lh'a diga, para que a morte sirva de perdão ao ingrato, e a ingratidão lhe converta em quasi indifferença a morte. É assim que essa pobre menina ha de recuperar a tranquillidade que precisa; e eu, que espontaneamente aqui vim dar-lhe o golpe, que ninguem lhe queria dar, com o bom proposito de curar a ferida com o proprio sangue d'ella, retiro-me, delegando em v. s.ª o complemento da minha obra. Minha senhora, recebo as suas ordens.

Soror Rufina surgira de uma especie de lethargo, depois que o desconhecido saíra.

Foi ao quarto da sobrinha, e viu-a sentada no leito, com os cotovêlos fincados nos joelhos, e o rosto entre as mãos. Saíam-lhe das palpebras os olhos vidrentos e immoveis como os de um cadaver embalsamado. Parecia não ver alguem, e a respiração das pessoas, que a rodeavam, nem sequer se ouvia. O olhar de Carlota fazia terror.

A religiosa chamou-a tres vezes, como a mãe delirante chamaria sua filha morta; o pavor, porém, d'aquelle olhar sem luz nem movimento, parecia responder-lhe que estava morto o coração que devia ouvil-a. Rufina abraçou-a vertiginosamente, agitando-a com desespêro: o corpo obedecia ao impulso, com a inerte obediencia do cadaver, mas os olhos lá estavam na sua terrivel immobilidade como que seguindo a alma que lhe fugira arrancada pelas garras de um demonio.

—Que é isto, snr. doutor! está morta minha sobrinha?—bradou a religiosa ao medico.

[64]

—Não está morta, minha senhora; póde estar demente.

Carlota Angela soltou um profundo grito, ergueu-se sobre os joelhos no leito, travou das tranças com frenetico delirio, deixou caír os braços semi-mortos, e recaíu no torpor de momentos antes.

Passado o espanto, todos os corações se derramaram alli em lagrimas. Não sabiam ao certo que immensa angustia era aquella; mas adivinhavam-a. Todas se voltaram para Jesus crucificado, de joelhos oraram chorando, e a oração era a mesma em todos os espíritos:

«Se ella está demente, levae-a, Senhor!»

Aquelle estado era impossivel longo tempo. Durante vinte e quatro horas succediam-se as syncopes, cada vez mais prolongadas e assustadoras. O medico, descrido da acção dos antispasmodicos, aconselhou que lhe fallassem muito na causa d'aquelle accidente, confiado na vitalidade febril que dão as agonias moraes; e nas lagrimas consecutivas.

Assim o aconselhara; ninguem, todavia, queria encarregar-se de tão cruel flagellação.

Soror Rufina esperara a saída das incessantes visitas, para, com o soccorro do céo, executar o duro supplicio de Carlota. O coração dizia-lhe que tal expediente seria um tormento inutil; mas o medico ajuntara ao conselho razões que a convenceram.

A sós, Carlota fitou-a com uma turvação de olhar, que deu quebranto á resolução da freira.

—Se ella está demente, de que serve este triste remedio?!—dizia soror Rufina—Eu vou verter-lhe fel na chaga do coração, e nem posso ao menos contar com a intelligencia d'ella para lhe faltar á razão! Se Deus a chamasse a si, que maior felicidade lhe poderia eu desejar! Minha filha!—murmurou ella, aconchegando-a ao seio—Tu não me conheces? Sou a tua boa tia, a melhor das tuas amigas. A tua dor me dóe tambem, Carlota. É preciso que nos consolemos uma á outra. Diz-me uma palavra só, anjinho... Conheces a tua tia, menina?

—Se conheço!...—disse com meigo sorriso, Carlota, abraçando-a pelo pescoço. Rufina estremeceu de alegria, [65] comprimindo com transporte o seio da sobrinha ao seu, e cobrindo-lhe de lagrimas e beijos a face.

—E és a minha querida filha, pois não és?—proseguiu a freira—É de mim que esperas allivios d'esta agonia, e amor para toda a vida? Aceitas as consolações de tua tia, crendo que é ella o instrumento de que a misericordia de um Deus piedoso se serve?

—Não me falle em Deus!—bradou com impetuosa violencia Carlota Angela.

Rufina tremeu e empallideceu como assombrada de um raio.

—Está douda a infeliz!—disse ella—Agora sim, creio que não ha valer-lhe! Ó Mãe Santissima, ó Senhor dos Afflictos, levae esta alma para vós... não consintaes que os labios digam blasphemias, que o espirito d'esta virtuosa creatura não sente.

—Não me falle em Deus!—repetiu Carlota, esgazeando sinistramente os olhos—Não ha Deus, nem justiça, nem misericordia. Ha inferno n'este mundo para os innocentes, para os que, fugindo ao odio humano, se acolhem ao amparo divino.

—Jesus!—atalhou a religiosa—Que palavras são essas, filha!?

—Eu não merecia esta morte, minha tia. Que fiz eu para morrer assim desesperada de achar a remuneração de tamanha perfidia?! Abandonada, esquecida por elle... Que horror!

Carlota Angela tapava o rosto, e arquejava, fugindo impetuosa aos braços da freira.

—Que horror!—continuava ella, apertando as fontes com as mãos, e tirando com violencia pela respiração—Trahida por Francisco!... Todo este amor, a amor de toda a minha vida, calcado, desprezado, ao mesmo tempo que eu o ia alimentando com lagrimas diante d'aquella cruz, onde eu cuidei que se encontrava compaixão!...

—E encontra, minha filha; e ainda agora das chagas de Jesus Christo está correndo o balsamo que te ha de curar, Carlota!

—Curar-me!... A tia não sabe o que eu soffro, não conheceu esta dor, não sabe que desesperada vae ser a [66] minha agonia! Eu tenho a morte já na garganta. Era preciso que eu perdesse o juizo para se crer que ha Deus. Morrer assim, e sentir a causa da morte... isto é mais que barbaridade... o demonio não póde tanto, e um Deus não consentiria padecimento tamanho... Oh!... quem me apressasse a morte... quem me désse um veneno... quem me arrancasse do coração esta agonia!... Oh meu Deus!...—bradou ella, estendendo os braços para o crucifixo.

Soror Rufina correu a tomar a cruz de sobre a commoda, e aproximou-lh'a. Carlota cravou-lhe os olhos, um momento humedecidos de lagrimas, e lançou-a de si com um violento gesto de repulsão.

—É mentira tudo isso!—exclamava ella, agitando as mãos com frenesi, como se a tia teimasse em dar-lhe a cruz—É mentira tudo! não ha Deus, não ha nada a que uma desgraçada, como eu, possa recorrer! Deus não consentiria que houvesse um perverso tal como esse homem, nenhuma miseravel como eu...

—E, se souberes que foi castigado o perverso que te faz soffrer tanto, Carlota, crês que ha justiça de Deus?

—Castigado!... não ha n'este mundo castigo para tamanha ingratidão... Elle é feliz a esta hora, nos braços de outra, com os carinhos de outra mulher, e eu... aqui, nas agonias da morte, sem poder saber que tempo hão de durar!... Meu Deus, eu morro arrependida de vos ter negado, se me levardes já...—E tomando a cruz, que beijava fervorosamente, proseguiu:—Levae-me, Senhor... tirae-me d'este inferno, ou fazei que eu endoudeça! Se eu sou grande peccadora, dae-me as penas eternas da outra vida, se lá não ha memoria das amarguras d'este mundo! Dae-me o outro inferno por este, e eu darei sempre louvores á vossa misericordia!... Não me escuta!—bradou Carlota com desesperada indignação, querendo arremessar a cruz.

—Filha!

—Deixe-me acabar, minha tia... Eu não quero esperanças... esperanças!... em que? Não quero consolações de ninguem... A maldade d'aquelle homem não me deixa já crer no amor de ninguem... Fujam todos de mim, que eu sou uma mulher amaldiçoada, sem ter offendido uma [67] só pessoa... É a maldição de meu pae que chegou ao céo. Fui enganada, tinha fé n'aquelle homem, estou assim penando, porque o acreditei... É um castigo maior que o meu delicto! Deus devia perdoar á pobre mulher de dezoito annos, e castigar o traidor por quem me perdi...

—E castigou.

—Como?

—Chamando-o a contas.

—Diga, diga, minha tia... que é? chamando-o a contas!... pois elle...

—Morreu... pouco tempo depois que perjurou, Carlota. Agora crês que ha Deus?... crês na justiça divina?

Carlota não ouvia. Os olhos pasmaram, como se a paralysia os ferisse de subito. Os labios ficaram semiabertos, como se por elles perpassasse a derradeira expiração. Os braços decairam com mortal quebranto.

A freira abraçara-a, sustendo a cruz entre os dois seios, e invocando Jesus, e Carlota.

Dorothea entrara, ouvindo os gritos de Rufina. Subira ao leito, clamando agudos ais, porque julgara morta Carlota.

—Vá ver se está algum medico dentro—disse Rufina.—Mandem-o chamar, a toda a pressa, se não estiver. Chamem tambem o capellão... Parece-me que a matei, cuidando que a salvava.

Dorothea saíra, levando o alvoroço e o terror, pelos dormitorios, onde eccoavam os seus altos gemidos. Soror Rufina, desalentada, enfraquecida de espirito, e de fé, como aquelles santos de quem o Senhor se queixou, disse, lavada em lagrimas:

—Meu Deus! são terriveis os vossos juizos, e terriveis as vossas intenções! Quando a innocencia assim padece, como castigareis o crime?

Fora como o morder da vibora entranhada o pungir de alma que vibrou em dolorosissimo tremor o corpo todo da religiosa. Era a consciencia, que recebia em si o fel da injuria que os labios cuspiram; mas não passara d'elles. A apavorada freira, livida como o sacrilego aterrado pelo remorso, ouviu um murmurio, que lhe recrudesceu o pavor. Era Carlota que lhe dizia:

[68]

—Oremos pela alma do infeliz.

Correu ao leito, correram as religiosas que entraram com Dorothea. Viram Carlota Angela com as mãos erguidas, e a face coberta de lagrimas. Ergueram tambem as mãos, choraram tambem, ajoelharam, vendo Rufina de joelhos.

—É um Padre nosso e uma Avè Maria por alma de Francisco—balbuciou Carlota, soluçando, com inexprimivel afflicção.

O medico entrava n'esse conflicto, e presenciando as lagrimas de Carlota, fez um gesto afirmativo. Dorothea interrogou-o com anciado olhar. O medico, entreabrindo ligeiramente os labios com um sorriso, queria dizer:

—Está salva.

[69]

IX

Mon Dieu! comme il est difficile
De courre avec de l'argent!

Théophile de Veau.

Trocando com vontade pouco experta,
Por incerta fortuna esta mais certa.

C. Pereira de Castro. (Lisboa edificada.)

Francisco Salter de Mendonça, de Lisboa ao Rio de Janeiro escrevera um diario, em que mais se accusava a si de ingrato que aos seus cavillosos protectores de crueis. A saudade era encruada pelo arrependimento.

Ao passo que o horizonte da patria se perdia nas orlas do mar, o atribulado mancebo já não sentia da esperança o conforto que o alentava no instante da partida. Afigurava-se-lhe um sonho horroroso estar elle tão longe, cada vez mais longe, de Carlota Angela. Ideiava e desfiava todas as consequencias que podia trazer a sua formal rejeição do encargo e da patente.

«Se me prendessem,—escrevera elle no diario—que maior prova podia eu dar a Carlota de que a minha liberdade, longe d'ella, seria o meu supremo captiveiro?

«Preso debaixo do céo em que ella vive, teria a liberdade de escrever-lhe, de animal-a, de a ver talvez um dia chegar lacrimosa aos ferros do meu carcere, e encher-m'o de quantas alegrias podem elevar uma alma nobre sobre astucias de miseraveis tyrannos.

«Seria grande mágoa para ella a minha prisão, a minha baixa, a minha quéda irremediavel no principio da vida? Oh! de certo era; mas essa dor desvanecel-a-hia a convicção de ser tão amada, tão preterida á gloria, á honra e aos sorrisos da fortuna!

[70]

«Por que não lhe dei eu o nobre orgulho de me sacrificar, de me abater aos olhos de todo o mundo, com tanto que me engrandecesse aos olhos d'ella, d'ella, para quem eu queria honras, glorias, corôas, mundos, tudo grande, tudo sublime, e tudo pequeno em confronto do coração que lhe dei?!

«E, depois, a minha prisão seria de pouco tempo, porque os meus parentes são poderosos, e o dinheiro do pae de Carlota exhaurir-se-hia ao mesmo tempo que o coração de sua filha seria mil vezes multiplicado em apêgo, em gratidão, em ternura, e coragem para affrontar commigo os obstaculos.

«Mas nem talvez eu chegasse a ser preso. Julgar-me-hia o governo em demasia castigado com a baixa, com a desconsideração e com o desprezo. Toda a gente me olharia como se olha um homem pobre, e de mais a mais rebelde ao serviço da patria. Que importava isso? Carlota Angela seria o meu talisman; as riquezas brotariam de seu coração inesgotavel; todos me invejariam ao pé d'ella; apontar-nos-hiam como modelos de affeição, e de honra na affeição, que tão rara se encontra. Com o tempo, eu seria chamado a merecer o premio de calcar a intriga, e o nosso pão na opulencia não seria mais doce que o pão da pobreza.

«Que fiz eu, homem vil, homem sem alma?

«Mascarei-me com as palavras «honra e dever», e estou deshonrado perante Carlota! Impuz-lhe um juramento de morrer minha escrava, fiz que ella me adjudicasse a sua vida, apontei-lhe o claustro como seu eterno carcere, e não tive valor para me deixar perseguir por amor d'ella!

«Ó coração duro, que assim te deshonraste com tão baixo egoismo!

«Tu choravas, quando lhe escreveste um adeus, mas essas lagrimas pôde enxugal-as a razão, tão villã como tu! Mentias n'esse pranto, abjecto, avarento, que te sentiste sobresalteado de orgulho e alegria, quando as dragonas de major da armada te deslumbraram a duas mil leguas distantes de Carlota.

«Não sou digno de mais a ver, sem córar de vergonha, [71] não! Se ella me não escrever, se rasgar e pizar e cuspir as minhas cartas, eu devo ter o cynismo de tragar a affronta, já que tive a villania de a merecer.»

A estas paginas da consciencia opprimida, succediam-se outras de lagrimosa ternura. Nunca a saudade se exprimira com mais contrição de alma, com mais doridos afagos á imagem querida que os recebe chorosa, com devaneios de mais poesia amarga, d'essa que só sabem desentranhar do coração os que sentem voluptuosa dor em despedaçal-o.

Francisco Salter atravessara o Atlantico sem um amigo, sem um ouvido attento onde contasse, com attrição de penitente, as saudades e pungimentos que o laceravam.

Eram bellas as noites, era de magia o céo estrellado, as luas-cheias no mar parece que recolhem de mais perto, n'aquella vasta solidão, as confidencias do amante, dando-se como espelho, para que, a milhares de leguas, a contemplativa amada veja n'ella os olhos do que a pranteia.

Mendonça, porém, angustiava-se mais com esse espectaculo, só donoso de extasis, e dulcissimo de espirituaes colloquios para amantes felizes.

E escreveu assim:

«O desgraçado não supporta as alegrias dos homens, nem as da natureza. Se a sua alma está de luto, cubra-se de negro tudo que o cerca. Se sulca os mares, refervam as vagas batidas pelo látego da tormenta; forre-se de nuvens torvas o céo, rebôem em turbilhões, prenhes de coriscos; rua o ultimo mastro lascado pelo raio, e espumem contra a derradeira táboa do naufragado as fauces do dragão que abre um abysmo em cada resfôlego.

«O amanhecer não tem cantares, nem a tarde murmurios, nem a solidão arroubamentos para esse que a natureza repelliu de si, como leproso, chagado no coração, contagioso de pestilencial desesperança.

«Eu subi ha pouco á tolda, e vi a lua, que oito dias antes me vira no Candal, ao pé de Carlota. Não pude fital-a. Os meus olhos caíram sobre o dorso do mar, bem perto do navio, onde não chegava a refulgencia da lua. Alli estive fascinado, n'aquelle ponto negro. Similhava-se-me [72] a um tumulo, e o fremir da onda quebrada na quilha soava-me como um gemido de mulher que eu lançasse áquelle abysmo...

«E fugi, meu Deus, fugi, porque me não déstes um raio de esperança.

«Ó Carlota, Carlota, matar-te-hia eu?!»

Este fragmento de uma pagina, transcripto ao acaso, sirva para avaliar que afflictivo tranzito lhe foram os cincoenta dias de viagem.

No desembarque, Francisco Salter de Mendonça sentiu vergar o corpo ás commoções da alma. Adoeceu, e, na ardor da febre, escreveu a Carlota essa longa carta com que o bacharel Sampayo espertou o lume do seu fogão. Eram estas as ultimas linhas da carta:


«Se eu morrer, minha querida Carlota, ouso d'aqui já pedir-te o meu perdão. A memoria de um morto é sagrada. Todas as ingratidões e villanias desapparecem com o miseravel corpo que os vermes desfazem. Fica a alma no seio de Deus, ou fóra do céo. Se Deus acolher a minha, de lá te chamarei; se me repellir este espirito, purificado no fogo da saudade, errarei em torno de ti, pedindo-te perdão, porque tu és a unica pessoa que eu offendi n'este mundo. A offensa, minha amiga, está expiada. Tenho soffrido penas sobrenaturaes. Achei doçura e suavidade no supplicio, emquanto me considerei algoz da tua felicidade, infame vendilhão que te troquei por alguns punhados de ouro. Depois, porém, que expelli em lagrimas a peçonha do coração, ouso dizer a Deus que este flagello é de mais... esta quéda na sepultura, aberta no caminho de palmas que eu de lá vira, é um acto da Providencia que assimilha um escarneo. Não tenho forças nem vista para mais, Carlota. Compaixão, anjo do céo! Amor... não t'o mereço: seria duplicada infamia pedil-o agora. Adeus.»

Após uma longa enfermidade, Mendonça esperava alvoroçado o paquebote que fazia regulares viagens entre Portugal e o Brazil.

O coração afiançava-lhe uma carta, muitas cartas de Carlota; umas accusando-o, outras absolvendo-o.

[73]

O paquebote chegou. Salter teve muitas cartas. Examinou os sobrescriptos, primeiro com o rosto incendido pelo giro alvorotado do sangue; depois, á maneira que estremava as cartas, sobreveio o desmaio, a pallidez do susto; e finalmente o turvamento, a prostração, o cair alquebrado sobre uma cadeira, com os dedos recurvados na fronte, que revia suores frios.

Aquietada a angustia, depois de enfurecidos impetos, Salter quiz escrever, arrojou a penna, e levou as mãos á fronte, como a segurar uma ideia consoladora.

—Vou a Portugal!—murmurou elle—fujo, deserto, perco-me, mas vou a Portugal. Carlota está morta, ou atraiçoou-me!

Este projecto foi-lhe um desafôgo n'aquelle dia. Nenhum estorvo se lhe avultava insuperavel. O governador chamara-o para lhe communicar as ordens que recebera do governo e entregar-lhe officios do almirantado. Dava-se pressa do reino ao capitão da real brigada em executar os trabalhos commettidos, visto que Portugal ia ser compellido a reunir-se com Napoleão na causa do continente. Era um prognostico da indecorosa subserviencia com que, alguns mezes depois, a côrte portugueza rompeu com Inglaterra, para, decorridos poucos dias, lhe pedir auxilio na vilipendiosa e impolitica fuga.

Não invejamos a gloria do historiador portuguez d'esse tempo, pelas nauseas e vergonhas que lhe ha de custar a narração exacta do envilecimento a que descera a terra do marquez de Pombal. Se não fosse o receio de enjoar o leitor, que lê um romance, cansado de ler livros com ideias, escrevia agora aqui uns threnos plangentes sobre a patria de D. João I e D. Manoel. Ainda me tolhe outro mêdo, e vem a ser o de me ver a braços com difficuldades na resposta aos que me perguntarem se a patria de D. Fernando I e Affonso VI valia mais em dignidade, primor, e independencia que a do marido de D. Carlota Joaquina. Questões são estas que desentoam aphonicamente da indole d'esta escriptura, mais que todas sujeita a fazer-se ridicula, se dá ares de ser obra de quem sorve uma conspicua pitada, para julgar depois os reis e os povos.

[74]

O que se quer é saber no que pararam os projectos de Francisco Salter de Mendonça; se desertou, se morreu, ou transigiu com a desgraça.

Nenhuma das hypotheses.

No dia seguinte ao da intencionada fuga, o amante de Carlota Angela foi visitado por um individuo, que disse ser natural do Porto, e ir liquidar uma herança no Rio de Janeiro.

Mendonça acolheu-o com alegria, suppondo-o portador de carta de Carlota. Disse o portuense que viera alli dar-lhe uma nova, talvez desagradavel ao principio, mas estimavel, quando a reflexão desvanecesse os effeitos da má noticia.

—Que é?—atalhou Mendonça—Estou preparado para o que for.

—Eu conheço Norberto de Meirelles, sou negociante como elle, e sei todos os passos da sua vida. Soube que v. s.ª lhe pedira a filha em casamento; soube que lh'a prometteu, para evitar que ella saísse judicialmente; e tambem soube que elle roeu a corda, como costuma em muitos outros contractos, quando o doutor Sampayo lhe participou de Lisboa que v. s.ª era mandado para aqui. É isto verdade, ou não?

—É, pelo menos assim o creio; mas antes de mais nada, queira responder-me a uma pergunta, para eu o ouvir com socego: D. Carlota vive?

—Vive, e vive feliz, pois não vive!

—Feliz!... diz o senhor...

—Eu que o digo é porque o sei... Mulheres, meu amigo, mulheres! V. s.ª espanta-se? Bem se vê que está ainda muito verde, e não conhece o mundo... Longe da vista, longe do coração. As raparigas d'agora são como as ventoinhas. Palavriado, e mais palavriado; novellas e mais novellas; crendices e papagaices; e de tino e juizo nem para mandar cantar um cego.

—Eu não entendo essa mistura de anexins com que o senhor está retardando a nova que me traz. Tem a bondade de se explicar com a possivel clareza?

—Lá vou, snr. Francisco Salter de Mendonça, lá vou; mas será bom que se previna, se ainda me não adivinhou... [75] A filha do tal snr. Norberto confirma o dictado de que de ruim arvore, nunca bom fructo.

—Quer dizer que...—interrompeu, coriscando fogo dos olhos, o impetuoso mancebo.

—O senhor vejo que se enfada... Estou arrependido de cá vir com similhante...

—Com similhante commissão?!—concluiu Mendonça, erguendo-se em attitude ameaçadora.

—Commissão!—gaguejou o interlocutor com sensiveis signaes de surprendido.

—Sim!... diga o resto, quero ouvir o resto; mas depressa.

—V. s.ª está fóra de si!—tornou o atrapalhado homem, lançando a mão ao chapéo e á bengala—Eu não vim aqui offendel-o, e v. s.ª recebe-me de um modo que eu não mereço... N'esse caso retiro-me.

Mendonça, sofreando a cólera, tomou-lhe da mão urbanamente o chapéo, e obrigou-o com branda coacção a sentar-se.

—Desculpe-me este desatino. O senhor, se alguma vez amou, deve passar-me por esta escandecencia propria de um rapaz ardente, com o coração ainda intacto d'essas punhaladas que, muito repetidas, chegam a matar a sensibilidade. Estou de animo frio para escutal-o. Queira v. s.ª continuar.

—Eu...—disse o portuense, disfarçando ineptamente o sobresalto—eu... se aqui vim, foi para o desenganar... e mais nada...

—Pois muito lhe agradecerei o desengano, quando o senhor me disser o engano.

—Pois não adivinhou ainda? O senhor é esperto, segundo ouvi dizer, e já ha muito que devia entender que a tal menina não o amava.

—Entendi agora—disse serenamente Mendonça com habil artificio.—Mas, como prova v. s.ª isso?

—Como provo?

—Sim, como prova? Eu creio tanto no amor de Carlota Angela, quanto reputo v. s.ª um calumniador emquanto me não provar essa espantosa novidade.

—As provas, n'este caso...

[76]

—São difficeis, bem o sei; mas o senhor ha de poder dizer-me: Carlota não o ama, porque deu esta ou aquella prova de o não amar.

—A prova acho eu que é bastante dizer-lhe que ella, a esta hora, está casada com outro.

—Essa é realmente a suprema das provas possiveis; mas, se lhe não custa, conte-me os promenores d'esse casamento. Quem se diz tão intimamente informado da vida de Norberto de Meirelles deve elucidar melhor as cousas. Quem é o noivo de Carlota?

—O noivo...—tartamudeou o homem, enfiando de novo.

—É do Porto?

—Sim, senhor, é do Porto.

—Como se chama?

—Chama-se... esquece-me agora... v. s.ª de certo não conhece, ainda que eu lh'o diga... é um rapaz do commercio, que mora....

—Sim, onde mora? Diga-me a rua, que eu o auxiliarei na recordação do nome, porque sei os nomes de todos os pretendentes de Carlota. Mora na rua de?...

—Na rua... de... ora que cabeça esta!... O senhor atrapalhou-me de tal modo que me fez perder...

—Até a memoria das ruas! é original essa perda! Diga-me mais, entretanto que lhe não lembra: Onde estava Carlota, quando o senhor saíu do Porto?

—Onde havia de estar?... Estava em casa... e tinha estado no convento...

—No convento de...

—No convento, sim, no convento de...

—Tambem perdeu a memoria dos conventos! Descanse, senhor portuense, tome fôlego, e tranquillise-se, porque receio d'aqui a pouco, que nem do Porto se lembre. Fallemos de outro assumpto. Como está Norberto de Meirelles?

—Está bom, não ha mal que lhe chegue...

—Aquelle homem é rijo, sendo tão magro!

—Isso é verdade!

—E sempre tão pallido!

—Parece um defunto.

[77]

—Vejo que o senhor até perdeu a memoria do seu amigo Norberto! Conhece-lhe os intimos segredos domesticos; mas não se recorda que elle é gordo e vermelho! Estou maravilhado do muito que me conta! E D. Rosalia continúa a cantar com aquella angelica voz que nós lhe conhecemos?

O noticiador estava tolhido de mêdo. A esta ultima pergunta fez uma cara de apiedar as feras. Salter cruzara os braços sobre o peito, cravara os olhos nos olhos esgazeados do infeliz agente do bacharel Sampayo, e mandara-o sentar. Á segunda vez, a offerta da cadeira era pouco urbana: Mendonça pozera-lhe a mão no hombro direito, carregando com força bastante para aterrar o ensoado hospede, que se julgara em perigo. Este susto converteu-se em convicção de pancadaria certa, quando Salter correu a lingueta da chave.

—O senhor treme como todos os miseraveis alugados para uma acção infame. Não trema—disse Mendonça—que eu não lhe faço mal. Se o não fiz saltar por aquella janella, quando proferiu com menos respeito o nome de D. Carlota Angela, agora de certo o acompanharei até á porta da rua.

Mas conte-me a sua vida. Essa presença é inculcadora. O seu trajar é limpo, e a natureza deu-lhe cara de homem de bem. Que officio tem o senhor? Vive d'estas emprezas?

Responda com desabafo. Quem o mandou aqui trazer a noticia d'esse casamento?

—V. s.ª... eu... obrigado pela necessidade...

—Diga; desengasgue-se d'esse nó de vergonha que tem na garganta. O senhor está entalado! Ora vamos: dizia o senhor—forçado pela necessidade...

—Deixei-me seduzir por um homem, que me mandou... aqui...

—Esse homem é Joaquim Antonio de Sampayo.

—O mesmo é verdade, é esse...

—Designadamente para o fim de me avisar que a snr.ª D. Carlota casava?

—Sim, senhor.

—E não o ensaiou para representar melhor o seu [78] papel?... O senhor executou miseravelmente a commissão do seu mandatario, e precisa de uma leve correcção, para que ninguem mais se fie na sua destreza. O senhor tem aqui papel e tinteiro. Escreva ahi, com clareza e verdade, o programma que lhe deu o bacharel Joaquim Antonio de Sampayo.

—V. s.ª quer-me perder!... eu sou empregado na intendencia...

—E receia perder o emprego? Homens do seu quilate não se deslocam por tão pouco. O senhor é um homem necessario ao Estado, e hoje mais que nunca ao ajudante da intendencia, porque é depositario de um segredo que o infamaria muito. Ora ande lá; escreva. Como se chama? deixe-me ver o visto do seu passaporte.

O miserando biltre tirou do bolso uma carteira, e estendeu o braço tremulo a Mendonça, que proseguiu, relanceando um olhar ao passaporte, e outro furtivo ao hospede:

—Escreva lá: Declaro eu Luiz José Godinho...

A penna não escreve?!

O pallido Godinho é que não escrevia; e, se picara o papel muitas vezes com o bico da penna, fora o tremor do pulso.

O silencio de Mendonça, esperando a tarda resposta, dera tempo a Godinho para meditar um lance dos que a desesperação suscitam, quando ha a optar entre dois perigos certos.

Francisco Salter, senhor de si, e ainda mais do cobarde animo do homem, não se arreceiava do impetuoso salto que elle deu fóra da cadeira, lançando mão da grossa bengala.

—Deixe-me sair, quando não, atravesso-o com este estoque!—exclamou o transfigurado Godinho, desembainhando o longo ferro, e apontando-o ao ventre de Mendonça.

O que susteve o official de marinha firme no seu posto, foi mais o espanto que a bravura.

—Então?—bradou o amanuense da policia, livido e tartamudo como se fosse elle o ameaçado—Abre-me [79] a porta, ou não abre? Olhe que eu passo-o de um lado ao outro!

Francisco Salter afastara-se; Godinho correra á porta, vendo desapparecer o adversario; rodara a chave com feliz exito; galgava o corredor que o devia levar á escada; mas na extremidade d'esse corredor havia uma porta que se abriu: Godinho estacou um momento diante de Mendonça, recuou o braço armado para impellir uma estocada porém a ponta de um faim a duas pollegadas do peito, restaurou-lhe o juizo prudencial, que perdera, um instante. Restava-lhe um expediente, talvez o mais legal e propicio de quantos tinha: gritou aqui de el-rei que o matavam, a berros de possesso, tres vezes, sem tomar fôlego.

—Cala-te, miseravel, que ninguem te mata!—disse Mendonça.

A força accumulara-se-lhe nos pulmões: era um gritar de homem que estrebuxa quasi esganado.

—Vae escrever o que me disseste, canalha, e depois retira-te em paz.

—Aqui de el-rei que me matam!

—Então salta d'aquella janella abaixo, e diz ao bacharel Sampayo que te recompense a fractura das pernas!

—Aqui de el-rei que me matam!

Mendonça, repuxando-o pela gola da casaca, arrojou-o para a escada, e assentou-lhe com o salto da bota um rijo impulso no costado. Godinho galgou oito degraus com destreza de funambulo, mas do oitavo para baixo faltou-lhe o equilibrio, e resvalou de costas até ao patamar. Ahi, quiz erguer-se; mas os musculos intercostaes desobedeceram á velocidade do espirito. O primeiro amanuense da intendencia soffrera desagradavel reforma na disposição das costellas: sem embargo, Azais notaria ahi uma nova compensação: as cordas vocaes augmentaram de rigidez; os aqui de el-reis eram cada vez mais estridentes.

Os visinhos e passageiros acudiram em tropel. Godinho pedia que o levantassem e conduzissem a casa do conde dos Arcos, de quem era hospede.

Hospede do capitão-general!

[80]

Isto inquietou Mendonça e desenvolveu a inergia caridosa dos circumstantes. Qual d'elles mais carinhoso e diligente em saber a offensa para depôr contra o offensor, porfiavam em conduzil-o nos braços. Godinho dizia apenas, comprimindo as costellas, rebeldes ao arquejar doloroso do diaphragma, que puxava por ellas:

—Sejam muito boas testimunhas que o snr. Francisco Salter de Mendonça me quiz matar, em sua propria casa!

Conduziram-o uns, e ficaram outros, em grupo, á porta de Mendonça, e defronte das janellas, contando aos que passavam a tentativa de assassinio perpetrada pelo official de marinha.

Luiz José Godinho trouxera da intendencia carta de apresentação ao conde dos Arcos, e outras confidenciaes, sobre negocios do Estado. O governador hospedara-o com distincção, julgando-o digno da hospedagem pela confiança que apparentava merecer a Manique, e conhecimento, que tinha, da causa mysteriosa por que Francisco Salter devia, a todo o custo, ser retido no Rio de Janeiro, sob qualquer pretexto.

Uma hora depois d'este successo, cujas consequencias não surprenderam o imprudente moço, o capitão da real brigada foi chamado á presença do governador, e interrogado ácerca dos motivos que lhe dera Luiz José Godinho para tamanha ferocidade, em sua propria casa, que deve ser asylo sagrado até para inimigos, quando se é cavalheiro. Mendonça, enfadado pelo ar supercilioso do interrogatorio, respondeu que fosse inquirido em sua presença o offendido, que era essa a praxe da lei.

O governador espinhou-se, e mandou recolher á cadeia o official, para ser entregue aos juizes do crime.

Francisco Salter de Mendonça não grangeara amigos nem protectores no Rio de Janeiro. O seu viver fora intimo e só, fóra do serviço. Entretinha-o, na soledade, a amargura.

A justiça ouviu com sobrecenho a defeza do joven official, e achou a justificação inferior ao delicto. Godinho negava ter confessado o embuste para que viera commissionado pelo ajudante do intendente geral da policia. Os [81] magistrados, porém, convictos de que o offendido era pessoa bemquista de Manique, patrono de alguns, e amigo de outros, negaram ao preso, em ultimo recurso, o direito de se defender de um estoque.

Mendonça escreveu para o reino; mas Godinho voltara, são e correcto das costellas, no paquebote em que vinham as cartas: quem as viu e queimou foi o bacharel Sampayo.

A situação do amante de Carlota Angela era extremamente infeliz.

Ao cabo de quatro mezes de carcere, sem novas do reino, nem absolvição da culpa, perdera o animo e a esperança.

Já lhe não era lenitivo o escrever no seu diario, porque a dor, ao encadeiar-se na desesperação, seu derradeiro elo, quebrou no coração as cordas onde soava o gemido.

Depois veio a furia, que contorce e despedaça, o impotente raivar contra os homens e contra Deus, a tentação do suicidio, combatida pela imagem de Carlota, mas de novo irritada, a cada navio que chegava, sem uma nova d'ella.

Mendonça tinha um amigo. Era um escravo alugado que o servia, um negro que lhe passava os alimentos, e chorava encostado aos ferros, porque não sabia consolal-o.

Era o preto quem lhe trazia as cartas dos amigos do reino, ignorantes da sua prisão, e implorava aos juizes a liberdade do preso; alcançando apenas para si repellões desprezadores e, muitas vezes vergoadas de chibata sobre as lagrimas.

O escravo offerecera-se a Mendonça para vir a Portugal com cartas. Esta vinda seria uma fuga, porque o dono do preto, sem um deposito equivalente ao valor da cousa, não consentiria a sua saida, e Mendonça, desprovido de meios para a sua subsistencia, não podia garantir com dinheiro a volta do escravo...

Conspirava tudo contra o desamparado moço. O proprietario do negro, receioso de perder o aluguer, visto que Mendonça lhe não pagara um mez, chamou a si o [82] escravo. Francisco vendeu o que podia merecer o preço mensal do seu unico amigo, e continuou a ver, perto de si, aquelles olhos reluzentes de lagrimas, lagrimas que lhe faziam bem ao coração, porque o mais desgraçado dos homens é o que não tem sequer por si o olhar compadecido de um cão.

Entretanto o escravo ideiara o arrojo de vir a Portugal, fugindo.

Trabalhava na difficil execução d'essa traça, quando a escuna Guerra-voador chegou ao Rio de Janeiro com a nova de que o principe regente saíra de Portugal para estabelecer a côrte n'aquelle porto.

Foi o escravo quem primeiro levou esta nova ao carcere.

Francisco Salter apertou a mão do negro e disse:

—Seremos ambos livres, meu amigo.

[83]

X

Não ha coração sem amor; ou seja a Deus ou seja ao mundo, ha de amar quem tem coração.

Fr. Antonio das Chagas. (Obras espirituaes.)

Vêde agora se ainda persistis em vossa pretenção, porque, se este modo de viver vos não contentar, tendes liberdade para ficardes no estado em que até agora vivestes.

(Ceremonial da congregação dos monges negros.)

E Carlota Angela?

Não dorme ainda o suspirado somno da morte sob a lagem humilde do claustro. Vive a vida que faz compaixão, e, nas pessoas que amam, excita o piedoso desejo de a verem alar-se para um mundo melhor.

Creram-a moribunda em frequentes accessos: Rufina, Dorothea, e todas as religiosas de S. Bento lhe deram o beijo da despedida, na face cadaverica, muitas vezes. Se, por instantes, tibio clarão de vida lhe retingia o rosto, é que a labareda da febre ahi vinha emprestar-lhe uma reanimação convulsa, á qual succedia o esvaîmento, com o suor frio do traspasse.

As orações eram contínuas. A communidade ia do quarto de Carlota para o côro, e do côro tornava ao quarto em ancias e esperanças que o fervor da oração lhe dera.

De uma vez, encontraram-a tranquilla, risonha e desopprimida. Uma a uma, Carlota chamou-as á beira do leito, apertando-lhes a mão, e murmurando uma palavra inintelligivel.

Ás que choravam pedia que a não lastimassem, porque [84] ella estava consolada com a esperança de descansar. Ás mais idosas, e veneraveis por sua santa vida, supplicava que a protegessem com os seus merecimentos, pedindo ao Senhor que lhe descontasse nas da outra as penas d'esta vida.

Perguntava pela mãe, mas, se lhe fallavam do pae, se lhe diziam que elle vinha todos os dias saber d'ella, Carlota franzia a testa, e dava sustos de crescimento febril.

Soror Rufina esperava que ella lhe fallasse de Francisco Salter; Dorothea, a carinhosa noviça, aventurava algumas palavras allusivas; Carlota, porém, nunca permittiu á primeira, com o seu silencio, proferir tal nome; e á segunda, debulhando-se em lagrimas, fazia com a mão um signal de não poder ouvil-a.

Uma tarde, as duas meninas passeiavam no pomar: era a primeira vez que a filha de Norberto de Meirelles saía do seu quarto.

—Quando professas tu, menina?—disse Carlota.

—D'aqui a tres mezes.

—Já? Vens a ser freira, mais velha do que eu nove mezes; mas ainda temos tres mezes de companheiras de noviciado.

—Pois queres professar, Carlota?!

—Quero, Dorothea, quero; se me não valesse essa esperança, estava morta. Já agora, o que me resta n'este mundo é o bem de me julgar perto de outro: d'aqui até lá, quero estar vestida com a minha mortalha, pedindo ao Senhor que... dê o céo...

Carlota, entalada por subitos soluços, não proseguiu.

—Diz, minha amiga... tu não me dizes tudo—acudiu Dorothea, abraçando-a com estremecido amor—ias fallar n'elle?... por que foges de me dizer que ainda o amas no céo?!

—Fugia de t'o dizer, Dorothea, porque o teu coração não póde avaliar que amor era este que perdôa a um ingrato, e daria a vida para o restituir ao amor de outra infeliz que o amou e o perdeu como eu o amei e perdi. Mais desgraçada que eu ha uma só pessoa: é a mulher que o adorava; e mais desgraçado que ella e que eu, é elle, o infeliz, a quem tão pouco tempo o Senhor deixou [85] gosar a mulher que o mereceu mais digna do que eu fui, e não teria, talvez, um pae que a aviltasse aos olhos d'elle.

—Como o teu coração é bom, Carlota!

—Bom? quem sabe! desgraçado, sim, ou diz antes, Dorothea, que já não é coração; só sinto a minha alma, só sinto este desejo do céo; recordo quanto amei, quanto soffri, e tudo aceito, e o mais que soffrer, com o contentamento de uma penitente.

—Pois verás que ainda havemos de ter dias de alegria, Carlota! Adopta-me como tua irmã; viveremos tão queridas e juntas, fallaremos tanto do que sentirmos triste ou agradavel, que chegaremos a gosar a existencia...

—Não penses isso, minha amiga... Eu não quero dar-te quinhão das minhas amarguras. O meu curto viver ha de ser muito oppressivo para as pessoas que me estimarem. Muitas vezes te fugirei, porque o chorar de uma infeliz, como eu, precisa ser desafogado, sósinho, e aos pés de Deus. Alegria? jámais, jámais, Dorothea... Bemdito seja o Senhor, que me dá esta casa para acostumar a minha alma a adoral-o, e me deu aqui exemplos de virtude, sem os quaes, fóra do convento, tinha-me tirado a vida n'um d'aquelles frenesis de que tremo com a lembrança.

Estas palavras foram ditas com serena melancolia; porém decorrido breve intervallo de silencio, Carlota rompeu em gemidos, lançando-se ao seio de Dorothea.

—Que tens, Carlota? Ainda agora estavas tão socegada!...

—O que em cinco mezes se tem passado!—soluçou ella—Morto! é possivel que elle já não viva!... que eu esteja aqui, eu, meu Deus, eu que o adorava até á perdição! e pôde elle abandonar-me, esquecer-se da pobre Carlota! Isto não póde ser, Dorothea!... eu nunca o vi morto nos meus delirios, nunca, nunca o vi senão como na ultima vez que lhe fallei, jurando-me um amor eterno... Será isto uma falsidade? Será meu pae que prefere matar-me!? Diz, Dorothea, não te parece muito possivel esta crueldade!

—Póde ser, Carlota!... quem sabe?! Olha, filha, tudo se ha de saber com o tempo... Tem esperança, sim?

[86]

—Nenhuma!—replicou ella, caíndo da instantanea exaltação—não tenho esperança nenhuma! Se elle vivesse escrevia-me. É certo, é horrivelmente certo que não vive, que me desamparou, que foi castigado com a morte por ter assassinado uma amiga que se perderia por elle... Está tudo acabado, tudo, meu Deus, menos este peso de vida com que já não posso...

Carlota Angela recolheu-se taciturna ao seu quarto, e escreveu a sua mãe uma breve carta, em que lhe pedia o consentimento de seus paes, e as licenças necessarias para entrar no noviciado.

D. Rosalia quiz procurar Carlota; Norberto de Meirelles, receiando que sua mulher deixasse escapar algum ligeiro indicio de viver Francisco Salter, encarregou-se da resposta. Estas suspeitas fundavam-se nas querelas continuadas em que andavam, por causa de Carlota. D. Rosalia, algumas vezes, reprovara o zelo de seu irmão, e dureza do marido, mórmente depois que a freira lhe vaticinara a morte de Carlota. Norberto, escarnecendo, com lerdo desdem, o prognostico, impunha grosseiramente a D. Rosalia o calar-se, até ver em que paravam os taes fanicos da rapariga.

Depois, porém, que a viu convalescer, o arrozeiro chasqueava os vaticinios da cunhada, e aceitava de melhor vontade a proposta da filha, na esperança de a curar da loucura, durante o anno do noviciado, com os recursos que o cunhado doutor promettia espiritar-lhe, consoante o andamento do tempo, bom para tudo.

Antes, porém, de diligenciar o contracto do noviciado para a filha, Norberto de Meirelles mandou-a chamar, e Carlota, admoestada brandamente por soror Rufina, obedeceu.

—Vamos a ver, menina, que mania é essa de seres freira?—disse elle.

—Isto não é mania, meu pae, é aceitar com reconhecimento a consolação unica, e a melhor que Deus me dá n'este mundo, com esperanças de outro melhor.

—Beatices que te metteu na cabeça tua tia... Deixa-te d'isso, Carlota; o convento é para quem é. Nunca te vi inclinação para este modo de vida...

[87]

—A religião não é modo de vida, meu pae, é regra de vida.

—Não me dês sentenças, menina. Eu bem sei o que digo. Olha que isto aqui é para sempre. Se professares, não tens remedio, ainda que te arrependas; é d'aqui p'ra Christo.

—Pois d'aqui para Christo é que eu quero ir, meu pae. Saiba que é inutil contradizer-me. A força que eu sinto em mim para ser freira é invencivel. Não me tolha a alegria, se é alegria este santo desejo de vestir o habito. Os obstaculos podem mortificar-me, mas não mudam o meu proposito. É escusado embaraçar-me. Offereci-me ao Senhor, quando cuidei de morrer de dor, pedindo-lhe allivios; senti-os, o Senhor apiedou-se de mim; é que a misericordia divina me aceita do modo que eu mais digna me posso fazer de morrer em paz.

—Isto passa-te, Carlota. Como tens de ser noviça um anno, veremos como se te reviram as ideias.

—Pois sim, meu pae; se eu me não achar com forças de servir a Deus, dir-lh'o-hei, e sairei do convento.

—É o mais certo, e verás como te ha de parecer bom isto cá de fóra. Tu és bonita, és rica, és prendada, podes casar...

—Meu pae! por quem é não continue...

—Então que tem isso? Já cá te disseram que o casar é crime? Boa vae ella! Ainda ha seis mezes que estavas n'outras ideias...

—Se o pae faz gosto em atormentar-me, diga o que lhe parecer, que eu escuto-o; mas se me tornar a procurar, eu não venho aqui...

—Isso é modo de fallar a teu pae, Carlota! Cá dentro ensina-se a dizer isso a quem te creou, e trabalha para ti ha trinta annos? Cuidadinho commigo, menina! Eu tanto tenho de bom como de mau. Se tua tia cuida que eu sou um mono de palha, engana-se...

—Que mal lhe fez minha tia?

—Que me fez?! Encheu-te essa cabeça de teias de aranha, lá com as suas arengas do beaterio, e deu-te auso a responderes com poderio a teu pae!

—Eu não o offendi...—atalhou ella, chorando—Pedi-lhe [88] que não fizesse sangrar uma ferida de que estive á morte... Quem for meu amigo, ha de querer que eu ache allivio em alguma cousa; se a religião m'o dá, deixem-me ser freira, e não me fallem em casamentos impossiveis. Ora aqui está o que eu supplico a meu pae; se isto o offende, perdôe-me; e se é offendel-o não vir á grade para ouvir palavras que me amarguram, virei todas as vezes que o pae quizer.

—Está bom; basta de chorar. Vae-se tratar dos arranjos para o teu noviciado. Deus lhe ponha a virtude, e te guie para o que for melhor. Eu ainda espero ter-te commigo, alegre e folgazã como eras antes de conhecer esse homem que...

—Meu pae!

Carlota Angela erguera-se sobresaltada, e Norberto estacou, sopeando a ira que lhe espertara a vehemencia, um pouco soberba, da filha. A ira degenerou em um sorriso, cuja versão não acho no meu elucidario de sorrisos sandios.

O arrozeiro, receioso de esbarrondar-se, como elle depois dizia a D. Rosalia, saiu da grade, onde a filha permaneceu longo tempo enxugando as lagrimas, para simular socegado o semblante.

Um mez depois, entrava Carlota Angela, com a mestra de noviças e a cantora, no côro, onde se reunira a communidade.

A dona abbadessa empunhando o bago, insignia magestosa da prelazia, estava no tôpo das duas alas de religiosas, solemnes e magnificas com suas roçagantes cogúlas. O clarão tremente dos cirios banhava o recinto de baço esplendor e sombras magestosas.

A tres passos distantes da prelada, que lhe sorria com maternal caricia, Carlota prostrou-se com a face em; terra.

A humildade com que fizera a reverencia, o subito rompimento das lagrimas, que a noviça não podera represar, a voz compungida da prelada, proferindo o quid petis, e o soluço tremido de Carlota, respondendo misericordiam... «a misericordia de Deus e a vossa», a terrivel magestade do silencio, durante as genuflexões da [89] noviça; todos estes actos, impressivos de religiosa melancolia, tocaram o coração das religiosas a ponto de correrem lagrimas por todas as faces, no momento em que a prelada, commovida como todas, disse a Carlota, ainda ajoelhada ante si: Surge, «levanta-te».

A noviça voltou-se com as duas religiosas para o altar-mór, enxugou as lagrimas emquanto fazia as reverencias do ceremonial, ajoelhou de novo aos pés da prelada, que proferiu uma breve pratica ácerca das gravissimas obrigações que a noviça contrahia com o promettido esposo. Carlota ouviu-a com as mãos erguidas, sem levantar os olhos para o rosto venerando da abbadessa, onde a graça, ternura e o sorriso da bondade eram um como suave encarecimento ás virtudes que aconselhava, e estimulo para merecer no céo o galardão de as praticar.

Carlota lançou de si o sumptuoso vestido, e os enfeites da cabeça. Longa e farta trança de cabellos negros se desenrolou até á cintura. Uma freira tomou a tesoura, e de dois golpes lhe cerceou a trança, que depôz em uma bandeja. A mestra de noviças cingiu-lhe a touca branca, e a prelada lançou-lhe aos hombros o habito ou mantilha. Carlota, durante este acto, parecia não sentir, não perceber a profunda e dolorosissima significação que elle deve ter para a mulher expulsa dos prazeres do mundo, onde todas as suas esperanças foram cruelmente desmentidas.

Estavam de joelhos todas as religiosas, ella, entre a mestra e a prelada. As cantoras entoaram o hymno: Veni, creator spiritus. Era um canto melancolico acompanhado a orgão; um mystico e lagrimoso offertorio da alma atribulada ao supremo consolador das angustias. Cantada a primeira estrophe, ergueram-se todas, excepto a noviça. Seguiram-se os versiculos e orações entoadas no côro e no altar-mór. A mestra de noviciado dissera a Carlota que se levantasse, terminada a ceremonia; a noviça, porém, continuava ajoelhada com as mãos entrelaçadas sobre o peito. Recommendaram-lhe de novo que se erguesse, vendo que ella estremecia, como se já não podesse sustentar a violencia da posição. Carlota não se erguia, até que lhe deram a mão, e encontraram frias de neve as d'ella. Fizeram vão esforço para levantal-a, algumas [90] freiras que a rodearam. Carlota não respondia, apenas respirava; quiz obedecer ao impulso que lhe davam para erguer-se, mas á pallidez, ao turvamento da vista, seguiu-se o desmaio.

Soror Rufina, Dorothea, e as outras ergueram o alarido do susto. Na igreja estava a mãe de Carlota, escondida na sua mantilha, chorando, recitando Padre-nossos machinalmente, e promettendo a Deus confessar-se da sua culpa, se era culpa ter occultado a sua filha o engano que o tio doutor lhe urdira, arranjado com o pae.

Quando, porém, os ais do côro chegaram aos seus ouvidos, com as exclamações afflictas de Rufina, D. Rosalia saíu da teia de um altar, veio ás grades do côro de baixo, e rompeu em brados desentoados, chamando a filha. O capellão-mór, vestido de sobrepeliz, estola e pluvial, veio lembrar á lamuriante senhora, que a sua gritaria não era propria da casa de Deus. D. Rosalia replicou, menos commedida, que queria cá fóra sua filha, viva ou morta. E n'esta altercação estiveram ella e os capellães, recreando uns e fazendo chorar outros dos circumstantes, até que soror Rufina e outras freiras vieram á grade do côro aquietar a mãe de Carlota, dizendo-lhe que o incommodo fôra um passageiro desmaio.

E assim fora, felizmente.

Carlota voltou a si, quando a mãe gritava. Os brados fizeram-a sair do côro vacillante e alvoroçada. Quizeram encaminhal-a á cella; mas Carlota sabia que era costume ir a noviça, finalisada a ceremonia, visitar as doentes.

Foi; e ás mais enfermas pedia que, se o Senhor as chamasse brevemente, rogassem a Deus que a levasse para si.

[91]

XI

Pois ainda não ouvistes de seu valor o maior encomio.

José de Sousa (o cego). (Obras posthumas.)

Vereis amor da patria... etc.

Camões. (Lusiadas.)

Junot, a marchas forçadas, esperançoso ainda de obstar á saida da familia real, ia sobre Lisboa. A regencia desnorteou com a imbecilidade rara de que era dotada; a classe média, presumindo a tyrannia proxima, ainda quiz debalde oppôr um dique á invasão; mas a populaça, sedenta de anarchia, onde sevar temporariamente os vis instinctos, remoinhava, alegre e enthusiastica, rugindo como o tigre que fareja o sangue.

Joaquim Antonio de Sampayo foi, n'essa época, a preexistencia dos grandes homens, das summidades estadistas dos ultimos vinte annos. Avaliando quanto difficil seria acertar com o caminho seguro na encruzilhada das perspectivas politicas, não preferiu algum, e aceitou-os todos como conducentes á prosperidade, quando a fortuna, filha da velhacaria, vem, de puro namorada, emendar as asneiras do seu predilecto.

Sampayo lamentava com Manique o desamparo em que ficara o reino pela impolitica e precipitada fuga do principe regente. Incriminava com os fidalgos a cobardia de similhante desaire para o paiz dos Pachecos e Albuquerques. Ouvia com acquiescencia os murmurios da nobreza contra a dynastia bragantina, murmurios timidos, que mais tarde se formularam n'uma vilipendiosa petição, requerendo ao usurpador um rei da sua escolha, e nomeadamente o general Junot, que comprara consciencias [92] tão degeneradas como a do conde da Ega, e do bispo do Porto, Antonio.

Com a classe média, Sampayo bociferava contra os francezes, e promettia sacrificar nas hecatombas da patria a sua ultima pinga de nobre, generoso e patriotico sangue. Todavia, exhausto o fôlego das imprecações retumbantes, e accendida a flamma do heroismo nos peitos burguezes que se apinhavam nas praças, Sampayo, passando da iracundia ao reflectido exame das circumstancias, dizia que a sublevação popular seria um desatino sem proveito, um sacrificio de vidas e fazendas intempestivo e inglorio para as quinas lusitanas. Sobre isto, vinham os conselhos de homem que privava no segredo dos destinos de Portugal, conselhos de paciencia, de resignação, e, mais que tudo, de maxima prudencia na entrada de Junot.

Relacionado com a plebe, em razão do seu ministerio na intendencia geral da policia, o antigo advogado da rua de Santa Catharina insinuava-se nos grupos desordeiros e respondia com impertigamento de oraculo ás perguntas desconchavadas que lhe faziam. Napoleão, dizia elle que não era o impio que se dizia. Napoleão, e os seus generaes, não saqueavam as igrejas, nem arrombavam as portas dos conventos de freiras, nem violentavam a virtude das donzellas, nem attentavam contra a liberdade do povo. Pelo contrario—continuava elle, baixando cada vez mais a voz, e relanceando o olho observador por sobre as physionomias suspeitas que chegavam de novo—pelo contrario, Napoleão queria mudar a face das cousas em favor das classes opprimidas, chamando o povo á partilha dos regalos e direitos que a classe nobre lhes viera usurpando pouco e pouco através dos seculos. Dito isto, o povo rompia em vivas a Napoleão, e acclamava general o doutor Sampayo, que se esgueirava surrateiramente pela primeira brecha que a agitação lhe proporcionasse.

D'alli, ia á intendencia dizer a Manique o fermento que azedava os rasteiros instinctos da canalha. Alvitrava o emprego da força armada para dispersar os bandos, com prudencia; e, compungido de patriotica lastima, deplorava o indiscreto arbitrio dos palacianos que aconselharam [93] ao principe uma fuga tão calamitosa no instante em que o prestigio da nacionalidade estava na presença do soberano.

Fora nomeada uma deputação para cumprimentar Junot. Além dos expressamente enviados pela regencia, Joaquim Antonio de Sampayo associou-se na deputação com alguns particulares, que se davam pressa em depôr aos pés do invasor a porção infame do paiz que elles representavam.

O ajudante do intendente arremedava a lingua franceza, e fazia-se entender melhor que o deputado da regencia, o tenente-general Martinho de Sousa e Albuquerque.

Junot, em Sacavem, chamou Sampayo a uma conferencia particular, e informou-se de cousas que a deputação não elucidava por astucia, ou por ignorancia da lingua. O certo é que o general francez, maravilhado do bonapartista, ou da torpeza do informador, julgou-o necessario, agradeceu-lhe com um aperto de mão os serviços prestados ao reformador da Europa, e prometteu-lhe acrescental-o, quanto em si coubesse, em honras e fazenda.

Chegados a Lisboa, as proclamações que circulavam entre a populaça eram de Sampayo. N'ellas se aquietava o espirito publico, dizendo-se que o excellentissimo senhor Andoche Junot, heroe de Toulon e de Nazareth, era o emissario da paz, da ordem, e da prosperidade portugueza; que a propriedade era sagrada para o exercito do imperador da França; que a virtude das virgens, e das menos suspeitas d'esse respeitavel estado, era inviolavel; que ninguem fugisse de suas casas, nem viesse para a rua fazer assuadas, algazarras, ou outras que taes manifestações de desordem e descontentamento.

O bacharel Sampayo ajudara, na vespera do embarque da familia real, a encaixotar as pratas da patriarchal, que deviam acompanhar os reaes emigrados. A celeridade, porém, do embarque, fez que os quatorze carros de preciosos objectos ficassem no caes de Belem, e voltassem, com grande jubilo do cabido, a serem armazenados na sacristia da igreja. Sampayo, emquanto se encaixavam as riquissimas bandejas, castiçaes, corôas, lampadas, [94] etc., resistira heroicamente aos assaltos da ladroice, que lhe estavam segredando o modo de empalmar algumas peças miudas de preciosissimo trabalho. Pôde sopear a tentação; mas não via, sem grande mágoa, confiar-se aos caprichos do oceano uma carga tão valiosa. Um tal ou qual allivio o desopprimiu da sua pena, quando viu ficarem em terra os carros, e voltarem depois a despejarem a prata sob o tecto protector da sua igreja. Sampayo, a proposito d'isso, asseverou ás freiras de Santa Anna, onde almoçava todos os dias, que andava alli milagre n'aquella reconducção! Não acreditava elle, porém, que o milagre fosse perfeito e averiguado, emquanto um bom quinhão d'aquella prata não entrasse em casa d'elle. Convencido do «trabalha, que eu te ajudarei», o bacharel concorreu quanto em si cabia para que o milagre se completasse.

O processo não deixa de ser engenhoso: «engenho» é a palavra com que a civilisação, ainda então embryonaria, substituiu a palavra «ladroeira» dos costumes, das biographias, e das acções humanas, que, por força do progresso, hão de ir perdendo a nomenclatura aspera e illogica que lhe davam os gothicos moralistas de carcomida memoria.

O engenhoso Sampayo (diga-se assim de um homem que merece o respeito que se presta aos contemporaneos, apesar do seu atrazo de meio seculo), o engenhoso bacharel pediu uma audiencia particular a Junot, e denunciou-lhe a existencia de quarenta caixões de prata na igreja patriarchal.

Junot chamou seu cunhado, que por signal se chamava Jufre, e commetteu-lhe o encargo de sequestrar a prata, associado ao serviçal e benemerito denunciante.

Os dois, com alguns operarios de confiança de Sampayo, entraram na igreja, fecharam-se cautelosamente, e arrombaram os caixões, excepto dois, que não foram inventariados, ou o denunciante se encarregou de os inventariar em sua casa, para onde foram transportados, ao escurecer.

Completou-se d'esta arte o milagre, que Sampayo, em beatifico extasi, agradeceu toda a noite, contemplando [95] uma a uma as formosas e corpulentas peças que tencionava fundir em baixella de seu serviço, quando melhores dias de ordem e tranquillidade fossem concedidos ao desgraçado Portugal, que elle continuava a prantear com as freirinhas de Santa Anna.

Dera-se, entretanto, o costumado reviramento na opinião da plebe.

Junot não sabia, não podia, nem devia esconder as suas intenções usurpadoras.

A bandeira franceza fora arvorada no castello de S. Jorge. As armas reaes do arsenal foram picadas. Do parapeito do seu camarote abaixo, Junot desenrolara as aguias vencedoras. As costas populares, n'uma desordem do Terreiro do Paço, tinham sido apalpadas pelas cronhas francezas. Nove portuguezes tinham sido espingardeados nas Caldas.

Dissolvida, em summa, a regencia, fora inaugurado o governo de Napoleão.

A populaça, portanto, bramia, e sobretudo, porque a sua força era nulla, o seu poder desprezado, a sua fome e sêde cada vez mais insaciavel pela careza dos generos. Havia um só meio de entreter-lhe as sanhas, ou captar-lhe as sympathias: era quebrar os poucos esteios da ordem, defendidos ainda pelas armas francezas, era facilitar o saque por meio da anarchia.

A plebe, quando lobrigava Sampayo, cercava-o, pedindo-lhe conta das promessas que elle fizera. O expedito bacharel desfazia-se dos importunos, recommendando-lhes paciencia, e esperança nos serenos dias que se haviam de seguir á crise indispensavel n'uma instituição de principios novos, creada expressamente para o bem geral.

O povo ouvia-o com escarneo, e apupava-o, quando elle abria com os hombros passagem para escapar-se.

Uma vez, porém, passava o bacharel na rua da Amendoeira, onde, por esses tempos, se arruava a escoria das meretrizes, e se abandoavam os condignos hospedes. Conheceram-o, e fizeram-lhe assuada.

Um gaiato de maus figados, instigado pela celeuma, saltou ao costado do bacharel, e enterrou-lhe, com retumbante penantada, o chapéo até aos queixos. A gargalhada [96] publica victoriou o garoto, incitando-o a maiores emprezas, e aguçando o estimulo dos emulos. Outro gaiato, cioso dos applausos, capeava-o pela frente com um lenço vermelho de uma meretriz, emquanto um terceiro, um quarto e um quinto lhe achatavam o chapéo, que já não podia restaurar o antigo prumo. Uma alcouceira lançava-lhe ao tiracollo uma restea esbrugada de alhos, emquanto outra lhe mettia na portinhola da casaca, uma couve lombarda. Esta por um tubo de lata lhe assoprava feijões á cara, emquanto outra lhe pendurava um rabo-leva de papel na casaca, ou lhe esguichava fetidas aspersões com a seringa carnavalesca.

Sampayo gritava por soccorro. Alguns soldados portuguezes e hespanhoes, que por alli estanciavam, mantinham a neutralidade, ou riam á socapa do infeliz gêbo. O bacharel, vendo passar uma guarda de soldados francezes, bradou ao commandante, dizendo-lhe em francez que era victima da canalha, porque adorava Napoleão.

O francez varejou com a espada as costas dos gaiatos; porém, as rameiras, o povo, os gaiatos, animados pelos soldados portuguezes e hespanhoes, fizeram menção de apedrejar os francezes. Travou-se uma sanguinolenta desordem, á qual Sampayo deveu a evasiva.

A cólera não lhe deu respiro, até entrar no palacio de Junot. Queixou-se amargamente, dizendo que os amigos da França eram as primeiras victimas dos inimigos do imperador, n'um paiz de que Junot brevemente seria o monarcha.

O governador de Portugal enviou Sampayo ao intendente geral da policia Lagarde, com especial recommendação, e poderes discricionarios.

Dos soldados portuguezes, alguns foram lançados na enxovia, outros deportados, e as meretrizes da rua da Amendoeira, rua Suja, e immediatas, depois de rapadas á navalha, e vergastadas no pateo da intendencia, foram desterradas para o Alemtejo.

Parece-nos opportuna n'este logar essa pagina ridicula da biographia de um homem, que merecia ter mais ampla chronica, em vista do tragico desfecho que no proximo capitulo se dirá.

[97]

XII

Nous en avons les preuves irrécusables sous nos propres yeux.

Volney. (Leçons d'Histoire.)

Eis-aqui como o diabo os leva para o inferno sem appellação nem aggravo.

S. S. da S. e Silva. (Governo do mundo em secco.)

Junot recebera do imperador a graça de duque de Abrantes. Felicitaram-o as corporações civis e militares, e muitos particulares da alta nobreza, mercancia que o francez fizera sem blandicias nem razões de Estado persuasivas. A consciencia d'estes miseraveis transigira com o renegar tradições, nome, patria, pudor, e honra, logo que as palavras «contribuição e confisco» os ameaçou de expiarem na dureza das nobres privações a repleção estomacal de seculos. O conde da Ega, Ayres de Saldanha, o bispo do Porto, o principal Miranda, e outros que mais avultam na veniaga torpe, são uma parcella no rebanho das ovelhas tinhosas, immoladas na sua dignidade aos pés do soldado aventureiro, que lhes cuspira na cara o preço das almas, e nas quinas portuguezas a affronta d'elles.

Emquanto estes, envilecidos como nunca fora nação usurpada, pediam a Napoleão um rei francez, e nomeadamente Junot I para a terra de D. João I e D. Manoel; emquanto os fidalgos de sangue phenicio, carthaginez, suevo e godo, sem mescla do judaico, requeriam a Junot os empregos desamparados por outros fidalgos, que acompanharam o regente para o Brazil, aterrados de pavor, e, como elle, acocorados ao pé das velhas açafatas [98] de D. Maria I; quem eram os portuguezes de consciencia e esforço n'esta nação desmembrada, n'esta metropole de tamanha parte do mundo, offerecida pelos netos dos que a conquistaram a um soldado francez?

Alguns ergueram a fronte, sem o ferrete da venda, por entre a turba dos nobres, que a devassidão herdada enfraquecera e deixara caír no tremedal d'onde o historiador severo ha de buscal-os para os inscrever no livro dos paroxismos vergonhosos da raça de piratas, que pouco tempo logrou o fructo dos seus flagicios.

Esses, que levantaram o rosto sem mancha, para saudar no throno reerguido o degenerado neto do Mestre da Aviz, eram uma classe menos timida que a do vulgacho, a mais quieta na sua obscuridade, a que fora, nos dois ultimos seculos, pouco e pouco espoliada dos seus antigos fóros municipaes, a classe média, emfim, cuja importancia na cidade delimitava-se a engrossar a veia da thesouro.

Foram esses homens, robustos de seiva e espiritos nacionaes, os unicos que se concatenaram em reacção, surda e tenacissima na oppressão, contra os tyrannos; foram esses os tributarios liberaes de fazenda e sangue á restauração duvidosa do throno, que lhes pediu, depois, com que reparar o antigo fausto; foram, para tudo dizer de um traço, foram elles os que nunca esmoreceram no resgate da terra captiva do Encelado, que quizera abarcar o mundo entre as duas extremidades da sua espada invencivel, salpicada com o sangue de nações poderosas.

O bacharel Joaquim Antonio de Sampayo (é de quem o leitor supercilioso quer que se lhe falle, e da melhor vontade me dispensa de reflexões impertinentes, que me manda pôr de conserva para quando escrever um livro serio, grave, e reflectido, que ninguem ha de comprar): o bacharel Joaquim Antonio de Sampayo vestiu-se á côrte, de chapéo armado, espadim, meia de seda, e fivelas de prata. Disseram que estas fivelas tinham pertencido a um santo da patriarchal: isto parece-nos calumnia. Folheamos, e esgaravatamos o agiologio europeu, e não deparamos santo contemporaneo das fivelas. O historiador [99] veridico rejeita, como Tacito na biographia dos grandes scelerados de Roma, as toardas de phantasia para infamar caracteres onde sobejam crimes provados para a execração universal. Desculpem a intumecencia do estylo, que a materia não é tanto de sóco, como á primeira vista parece.

O duque de Abrantes recebeu affavelmente o bacharel, e, na presença dos fidalgos, que estendiam já a mão soberba ao ajudante do ex-intendente Manique, entregou-lhe a nomeação de juiz para um tribunal especial militar, creado no Porto por decreto de 9 de maio de 1808.

O fim ostensivo d'esta alçada era punir os perturbadores da segurança publica, nos variados delictos que a legislação do reino não previra.

A sentença d'este tribunal era executada no praso de vinte e quatro horas, sem revista ou appellação.

O bacharel agradecido caiu de joelhos aos pés do duque de Abrantes, que se dignou levantal-o pela gola da casaca; os copos do faim, porém, travando-se na fivela do calção, rasgaram-lhe a meia na barriga da perna, abrindo fenda por onde regorgitou uma almofada supplementar á tibia descarnada e cortante do atravancado palerma. Riu Junot, e os fidalgos riram tambem. Sampayo, ligeiramente corrido, arrancou o musculo de algodão, escorchou-o entre a mão nervuda, e pediu licença para ir remediar os estragos do espadim, que, no dizer mansinho do conde da Ega ao fidalgo immediato, só nas pernas postiças do seu dono faria tamanho estrago.

O juiz do tribunal militar partiu, no dia immediato, para o Porto, onde era preciso refrear os animos indomados dos portuenses.

Norberto de Meirelles contou de novo a seu cunhado o já dito em longa carta, que Sampayo não lera, ácerca do noviciado de Carlota.

—Tudo se ha de remediar, que temos muito tempo—disse o bacharel.—Em ultimo caso, nunca ella ha de alcançar licença regia para a profissão. Agora, do que se trata, é de me pôres a bom recado estes dois caixões de prata, que me foram confiados por um meu amigo que emigrou com o principe para o Brazil. Cuidado com isso, [100] que estão ahi alguns contos de réis, e eu fiz responsavel a minha honra á entrega d'estes caixões, logo que o meu amigo volte com o favor de uma amnistia, que trato de lhe alcançar do meu particularissimo amigo duque de Abrantes.

—E que me diz o doutor a respeito do snr. Junot?—disse Norberto de Meirelles—Pelos modos, ouvi dizer que elle já está despachado rei de Portugal!

—Isso tem seus fundamentos, cunhado. Eu e os meus amigos conde da Ega e Ayres de Saldanha trabalhamos para a sua acclamação.

—Então o cunhado é amigo d'esses governos lá da côrte? Com effeito sempre lhe digo que o que o doutor não fizer, não o faz o deanho. Aquella de fazer ir o pintalegrete pela barra fóra, custou carita, mas fez-se... Andou por oito mil cruzados que eu lhe mandei, doutor!

—E acha muito? Não foi o seu dinheiro que fez o milagre, foi a minha influencia. Não sei se sabe que Francisco Salter de Mendonça mexia na côrte os pausinhos, e esteve por um triz a passar por cima do seu dinheiro e da minha influencia, e vir ao Porto tirar Carlota judicialmente!...

—Eu o arrenego! Se o berzabum morresse por lá, grande cousa era! Estou a arreceiar que elle volte antes d'ella professar.

—Não receie, Norberto. O principe não volta mais a Portugal, e o tal marinha cá estou eu para lhe tolher o desembarque. Cartas d'elle, está tudo prevenido para que não chegue alguma ás mãos de Carlota, e a esta hora está elle convencido de que ella casou.

—Homem, essa!... ó doutor, dou-lhe a minha palavra que estou pasmado da sua agencia! O cunhado é capaz de fazer com que ella esqueça o homem, e torne para a minha companhia! Faça isso, que lhe dou uma mula arreiada de novo para o cunhado dar os seus passeios ao Candal.

—Nada de susto, mano. Vossê não sabe o que são mulheres. A rapariga tem venêtas e caprichos; o acertado é deixal-a barafustar, e ella virá cá ter ao caminho das outras. De paixão ninguem morre; e, no convento, [101] isso então digo-lhe eu que nunca se viu. Mulheres juntas dão tanto aos taramelos em cousas de amor, que lançam o amor pela bôca fóra, em logar dos figados. Deixe-a lá estar á vontade, e dê-lhe a entender que o seu maior gosto n'este mundo é vel-a freira. Nada de contradizel-a. Mulheres e creanças amuadas é deixal-as renhir. Se vossês começam a carpil-a, então não fico pelo resto.

—Então o doutor não vae lá tirar-lhe a tolice do miolo?!

—Não, senhor, não vou, é escusado lá ir, e se for é para lhe dizer que muito me agrada a sua resolução, e, ao mesmo tempo, elogiar com finura a liberdade do mundo, e pintar-lhe com côres tristes o jugo do convento. Assim é que se levam as mulheres, snr. Norberto, e, se ellas teem a soberba de Carlota, então nada de disputar. A astucia manda dizer com ellas, até as fazer passar á contradicção, porque a harmonia é impossivel em indoles orgulhosas.

—Oh doutor! o senhor tem uma labia que revira a gente! Homem, eu estou a dar-lhe razão! Parece-me que o melhor é isso! Está dito! deixemol-a lá com a mania, e diga-se-lhe que faz muito bem. Vou dizer tudo isso á minha Rosalia; mas, antes que me esqueça, cunhado, esta cousa de governo está segura?

—Segurissima.

—É que eu tenho alguns valores, que queria acautelar para o que désse e viesse.

—Não tenha susto; mas tanto faz ter o seu dinheiro na burra, como debaixo da terra. Sabe o que ha de fazer? Pegue no seu dinheiro, e nos meus caixões de prata, e vá enterral-os na adêga do Candal. Eu tenho mais mêdo á canalha nacional que aos soldados de Napoleão. Quando correu na capital que s. exc.ª o snr. governador ia dar a Lisboa a saque, saíram para as praças as turbas da gentalha portugueza, esperando a hora do assalto. D'estes é que eu tenho mêdo, e por isso sou de parecer que se acautele o nosso precioso, com summa prudencia. O Candal é bom sitio, porque fica arredado da estrada. Ponto está que o mano encarregue o serviço de enterrar [102] os caixões a pessoa fiel, que não denuncie o escondedouro.

—Não me fio em ninguem, cunhado. Quem ha de enterrar esse todo-nada de dinheiro que por ahi está, e mais os caixotes de prata, hei de ser eu, se Deus quizer.

Assentiram n'isto, e, logo no dia immediato, Norberto de Meirelles pôz mãos á obra, com o auxilio de sua mulher e cunhado. Fez-se o transporte para o Candal com disfarce. Os caixões sairam de noite, e os conductores, depondo-os no quinteirão da quinta, não poderiam malsinar o local do enterro, se alguma vez, feitos com os salteadores, tentassem esquadrinhal-o.

Norberto de Meirelles, auxiliado por D. Rosalia e o proprietario das pratas da patriarchal, enterrou os caixotes debaixo da dorna do lagar, e ficou assim desaffrontado dos sustos que lhe traziam o animo opprimido, desde que Francisco Salter de Mendonça lhe presagiara um possivel assalto ao seu dinheiro.

Sampayo, atarefado com o julgamento dos réos processados no tribunal de que elle era juiz inconfidente, só teve ensejo de visitar Carlota, um mez depois da sua chegada. Encontrou-a na grade com a mãe, que de proposito preparara este encontro, porque sua filha houvera mostrado repugnancia em receber a visita do tio.

O bacharel, conforme com os seus ardis, expostos ao cunhado, começou por louvar e abençoar a acertada resolução de sua sobrinha, exaltando os merecimentos de uma boa religiosa, e aconselhando-a com sãs doutrinas preventivas contra as tentações do demonio, acerrimo inimigo dos votos claustraes.

Carlota ouviu-o com aprazimento, e D. Rosalia com enfado. A boa senhora não comprehendia a esperteza de seu irmão, e confrontando-a com a estupidez de seu marido, dava tanto pela bondade de um como pela do outro. Foi-lhe á mão com as suas razões cem vezes repetidas á filha. Chorou copiosamente, pedindo ao irmão que desvanecesse a tenção de Carlota; e a esta, com ternas supplicas, implorava que saísse do convento, se não queria cêdo ficar sem mãe.

Carlota respondeu que a perda de sua mãe lhe seria [103] muito sensivel; mas que estava deliberada a aceitar todas as mortificações que o Senhor lhe mandasse, com tanto que podesse offerecer o coração espedaçado ajoelhada no altar, onde jurara votos de eterno sacrificio.

Joaquim Antonio de Sampayo, piscando o olho á irmã, louvava de novo a devoção de Carlota, e citava-lhe, como para acorçoal-a, quatro exemplos de santidade no convento de Santa Anna de Lisboa, onde elle almoçava, e contava os milagres da prata da patriarchal, salvo o ultimo.

Carlota, saíndo da grade, foi pedir a Deus perdão do odio que tinha a seu tio. Soror Rufina, confidente d'esta ruim paixão, orou com ella, e penitenciou-a com o preceito duro de escrever a seu tio uma carta, em que lhe agradecesse, com humildade e amor, os paternaes conselhos que lhe dera, e o applauso com que a ajudava a defender-se das instancias de seus paes.

O bacharel, maravilhado d'esta carta, modificou a sua opinião a respeito da sobrinha, e planisou uma nova traça para despersuadil-a. Qual ella fosse, não sabemos nós, porque não houve tempo para executal-a.

Sampayo exerceu as funcções do juizado quatro mezes, e foi despachado juiz de fóra para uma pingue comarca do Minho. A causa d'esta mudança, ingrata ao despachado, explicou-a elle como grandemente honrosa para si, dizendo que a moderação das suas sentenças desagradara ao governo. O governo, porém, dizia que o venal juiz riscava das denuncias os nomes que representavam réos dinheirosos, de quem recebia, com maior ou menor recato, avultosas quantias.

Partiu para a sua comarca o juiz de fóra, recommendando ao cunhado que vigiasse os caixotes da prata, cujo descaminho viria a ser causa da sua deshonra. Por essa occasião, entregou-lhe um caixãosinho supplementar aos outros, que constava de uma duzia ou pouco mais de contos de réis, de seus ordenados e propinas, e mercês dos beneficios que fizera caridosamente aos réos absolvidos no terrivel tribunal.

Dispensam-nos de boa vontade a historia sabida dos decorridos successos que expulsaram os francezes do territorio portuguez. É certo que o juiz de fóra de ***, [104] Joaquim Antonio de Sampayo, ingrata creatura de Junot, pôz luminarias quando soube que o exercito francez recuava ao exercito alliado. Proclamou aos povos comarcãos, chamando ás armas, e incitando os frades a que prégassem o odio contra Napoleão, e promettessem indulgencia plenaria, e salvação segura a todos os que morressem na defeza do seu legitimo principe, e dos augustos fóros da religião catholica-apostolica-romana.

O bispo do Porto, presidente da junta, e renegado como elle, sympathisou com as manhas do juiz de fóra, e nomeou-o, provisoriamente, corregedor da comarca onde estava servindo.

Entra, porém, o general Soult as mal defezas raias do reino, e chega a Braga a artilheria de Laborde. Sampayo medita seriamente na sua situação, e, apasiguando os animos das turbas com discursos ácerca da inutilidade da resistencia, resolve ir ao encontro do general Lorge, que marchava contra a villa onde elle exercia a suprema auctoridade.

Diz-lhe que intimas relações o prenderam a Junot e Lagarde, exulta com a volta dos francezes, e faz accender o resto das torcidas das luminarias á entrada do general francez. As guerrilhas, porém, queriam resistir, e os chefes emprasavam o corregedor para lhes dar conta da sua apostasia, mais tarde. Sampayo, arreceiando-se d'aquelles caudilhos, denunciou os principaes ao seu hospede Lorge, e fez que dois fossem espingardeados diante da sua aposentadoria, simulando, ao mesmo tempo, amargo pezar de acontecimento tão funesto.

Retirou o general para occupar outro ponto; mas a pedido do corregedor, deixou uma numerosa guarnição á terra.

O general Botelho estanciava nas immediações da villa, e investiu com o presidio, que fugira rechaçado e mal ferido do encontro. Sampayo queria fugir com elle, sobre o Porto, para onde convergiam os differentes chefes do exercito invasor. Demorou-se, porém, um quarto de hora, carregando os bahús da sua bagagem, onde avultavam preciosidades que soubera esbulhar á comarca sob os mil pretextos faceis ao seu engenho.

[105]

Esta demora foi-lhe fatal. Era tarde para fugir. Reflectiu um instante, em lance tão apertado, e saíu a lume com uma ideia, da qual esperava a sua salvação.

Mandou tocar immediatamente os sinos das igrejas, foi elle proprio, bradando vivas ao principe, espertar o animo perplexo dos moradores da terra, e recrutar garotos para repicarem os sinos.

Este expediente era já um destino da desesperação, uma loucura, que devia ter o resultado que teve. Joaquim Antonio de Sampayo viu-se rodeado de povo, e este povo pedia a cabeça do corregedor, sobrelevando á vozeria os gritos da parentela dos caudilhos que tinham sido espingardeados á ordem do general Lorge.

O chefe das forças portuguezas occorreu n'este momento afflictivo. O corregedor ajoelhou de mãos erguidas, pedindo-lhe a salvação.

Um do povo, que parecia ser o mais auctorisado, contrariou as supplicas do corregedor, contando ao general as façanhas. Botelho ouviu com attenção, e exclamou com serenidade:

—Enforquem-o já, que é o mais seguro.

Mais de um leitor maior de sessenta annos está recordando, n'este momento, a cabeça de comarca, na provincia do Minho, onde foi enforcado um corregedor.

Se se lembra, saiba que o fatal triangulo foi erguido para Joaquim Antonio de Sampayo. Ahi perneou esse homem de grandes espiritos, que veio cedo de mais para morrer ministro de Estado.

Rezemos-lhe por alma, mas duvide-se do aproveitamento dos suffragios. É de fé que o thaumaturgo das pratas da patriarchal caiu da forca ao inferno, onde o tortura a desesperação de ver como cá em cima andam nedios e honrados alguns que o sobrepujaram em amor da patria, amor do proximo, e abnegação do alheio.

Joaquim Antonio de Sampayo nascera em 5 de janeiro de 1752. Trapaceara o direito e a justiça por espaço de trinta annos, nos auditorios do Porto. Entrara com fortuna próspera na carreira das honras aos cincoenta e seis annos.

Revelara, ainda que tardio, um espirito sobre-excellente [106] para engrandecer-se, e reflectir na sua familia as honras merecidas á custa de infamias necessarias para se ser alguma cousa n'uma terra, onde Duarte Pacheco e Camões tiveram fome. Mal tinha dado os primeiros passos propicios, atalhou-o uma morte feia aos 23 de março de 1809.

Piamente cremos que os santos da patriarchal de Lisboa, esbulhados de seus adornos, lhe urdiram este affrontoso traspasse.

Como quer que seja, homens taes, diz uma epigraphe d'este capitulo, que os leva o diabo. Levará, não duvido; mas, se lanço os olhos em redor de mim, afigura-se-me que o diabo leva uns, e traz outros.

[107]

XIII

La justicia de Dios espantosa...

Quevedo. (El sueño del Inferno.)

O noviciado de Carlota Angela terminara em abril de 1808. As licenças impetradas para a profissão não foram concedidas, porque a desorganisação em que se achavam as repartições governativas era impedimento a que se deferissem requerimentos que não importavam ao bem immediato do Estado.

Norberto de Meirelles folgava com a demora da licença, e o cunhado lá da comarca onde lhe cortaram a previdente cabeça, socegara-o com a certeza de que em Lisboa estavam prevenidas as cousas para que a noviça requeresse sempre em vão a licença indispensavel.

Carlota não se impacientava com as delongas, nem se queixava de seu pae ou tio: com tanto que a não arrancassem ao claustro, noviça ou professa, o seu coração estava com o mesmo apêgo entranhado no suave sacrificio á religião dos infelizes.

Quando a noticia da feia morte de seu tio lhe chegou, levada pela aterrada mãe, Carlota perdoou-lhe, nos labios e no coração, o mal que lhe fizera, compensando-lh'o com incessantes suffragios, da virtude dos quaes, em alma tão apodrentada de velhacadas e perfidias, é licito duvidar.

Norberto de Meirelles, n'este desgosto de familia, mostrou o grande porte de seu animo, insufflando em sua mulher espirituaes doutrinas de paciencia e conforto na vontade do Altissimo. Á socapa, porém, o arrozeiro esfregava as mãos com jubiloso frenesi, bem sabia elle pelo quê. Se D. Rosalia lhe perguntava que destino se [108] devia dar aos dois caixotes de prata, que não eram de seu irmão, Norberto dizia-lhe que calasse o bico, e não désse á lingua ácerca de taes caixotes, que ninguem sabia de quem eram. Os escrupulos entravam na consciencia de D. Rosalia; o alheio dizia ella que chorava pelo seu dono. A este e outros anexins de sã moral replicava Norberto que se alguma vez apparecesse o dono dos caixões, munido das necessarias provas de ser o dono d'elles, seria entregue do deposito.

Entretanto que o dono não vinha, o herdeiro do bacharel fechou-se na adêga da granja do Candal, e exhumou os thesouros enterrados para conhecer do conteúdo dos caixões. Este exame dizia elle á timida consorte que era preciso para, munido de um rol, peça por peça, obrigar o dono a dar uma relação exacta dos objectos.

Tentação diabolica fora aquella! Norberto, vendo a rica baixella do culto divino contida no primeiro caixão que abriu, tão encantado ficou do bem lavrado das corôas, dos resplendores, dos calices, das ambulas, dos thuribulos, das lampadas, das bandejas, e dos ex-votos, tão encantado, tão edificado, tão preso áquelles mysticos ornatos do templo do Deus-vivo, que logo alli prometteu á sua consciencia guardar e venerar aquelles sagrados objectos, de modo que mãos impias de francezes, de portuguezes afrancezados, e ainda as do dono nunca os profanassem. Este protesto entendia-se com o primeiro caixão: o segundo antes de ser aberto, havia o negociante tenção de restituil-o, se o recheio não fosse tão veneravel e digno da sua devota guarda.

Ora o segundo caixão não era menos tentador: nem mais nem menos os doze apostolos de prata maciça, com as suas barbas venerabundas a incutirem seraphico temor e amor! Norberto alçou nos braços um dos apostolos, não tanto para fazer-lhe oração mental, como para calcular-lhe o peso, e, aproximadamente, ajuizou doze arrateis, os quaes, multiplicados por doze, davam cento e quarenta e quatro arrateis de prata. Entendeu piedosamente o arrozeiro que o segundo caixão era thesouro não menos credor dos seus desvelos que o primeiro, em razão de conter as imagens dos doze primeiros santos da [109] religião christã, e n'este presupposto de bom juizo resolveu recommendar á sua vigilancia a guarda de tão augustas imagens, que talvez providencialmente vieram enterrar-se na sua adêga, para se esconderem á perseguição de Bonaparte, bem como os christãos primitivos se escondiam nas catacumbas para fugirem á perseguição dos Neros e Trajanos.

A escrupulosa irmã do defuncto bacharel não assistira á exhumação dos caixões; mas, sabendo dos doze apóstolos, tal ancia lhe entrou de os ver, que não houve remedio senão desenterral-os de novo.

D. Rosalia ficou encantada dos aspectos magestosos de S. Pedro e S. Thiago. Quiz que seu marido rezasse emparceirado com ella uma jaculatoria aos dois santos em particular, e a todos em geral. Norberto annuiu com a mais fervente uncção, e edificou sua mulher, propondo a repetição das ditas jaculatorias, para que os bemaventurados discipulos do divino mestre não permittissem que mãos sacrilegas dos francezes tocassem nas suas devotas imagens. Lembrou logo alli a snr.ª D. Rosalia que, passada a guerra, se não apparecesse o dono d'aquelles objectos, se havia de fazer uma capella na quinta do Candal, para que os santinhos fossem adorados por toda a gente. Concordou o arrozeiro, enterrando-os outra vez, e recommendando a sua mulher, que não dissesse a ninguem que a sua adêga estava tendo as honras de cenaculo.

Estas scenas passavam-se oito dias antes da invasão dos francezes no Porto.

Á noticia da aproximação de Soult nas trincheiras, Norberto de Meirelles fechou a casa da rua das Taipas, e foi para o Candal.

D. Carlota Angela, com sua tia e a noviça Dorothea saíram do convento para o mosteiro de Arouca. D. Rosalia instara para que a seguissem; mas Carlota vencera a vontade condescendente de sua tia, com lagrimas e rogos para que não aceitasse asylo que não fosse o de outro mosteiro menos susceptivel de ser assaltado pelos francezes.

O exercito invasor derramou-se pelo Porto, no cevo [110] do saque e da carnagem. As portas da casa da rua das Taipas, malsinada aos francezes como bem recheiada, não resistiram ao machado. Pouco lá havia que saciasse a cubiça dos salteadores. O denunciante esteve em perigo de ser acutilado, por lhes ter feito perder tempo em arrombar as portas para saque tão mesquinho. Ora, o denunciante era um visinho de Norberto, seu inimigo, e capaz de dar um olho para que arrancassem os dois ao arrozeiro. Disse elle aos francezes que o seguissem além do rio, e elle lhes promettia boa presa, porque as immensas riquezas do negociante deviam estar na quinta.

Seguiram-o os francezes, promettendo-lhe repartir com elle da presa, ou tirar-lhe a alma e os figados, se os enganasse, ou levasse a alguma emboscada.

Ao avisinharem-se do Candal, deram rebate as espias de Norberto de Meirelles. Calou-lhe na alma o mêdo, que amarellece a cara de gemma de ovo, tapa os respiros do pulmão e promove a desordem dos intestinos todos. D. Rosalia caíu de cocoras, e entrou a bater os queixos como em maleitas, e a resmungar fragmentos da Salvè-rainha e do Padre-nosso. Dois criados da quinta, que, momentos antes, tinham estado renovando a escorva das clavinas, e apostando a qual d'elles mataria mais francezes, apenas avistaram os penachos de dez ou doze d'aquelles, que, segundo os seus projectos homicidas, deviam ser levados a murro, deram a fugir por aquelles pinhaes, como envergonhados de se baterem com tão poucos francezes. Chamava-os com desesperados berros Norberto, emquanto elles podiam ouvil-o; mas não houve gritos nem promessas que os volvessem ao posto da honra.

O negociante travou do braço da mulher, para que o seguisse, fiando a salvação na fuga. D. Rosalia ainda se ergueu; mas vacillaram-lhe as pernas frouxas, e recaíu, dizendo que morria, e queria alli morrer. O arrozeiro cuidou que a movia, assustando-a com a ideia de que os francezes a matariam, se ella não confessasse o escondrijo do dinheiro. A pobre mulher, petrificada de terror, não respondia a taes estimulos, e recalcitrava na pertinacia de se deixar matar.

[111]

Emquanto ella murmurava um acto de contrição, preparando-se para morrer o mais catholicamente que podesse, Norberto de Meirelles seguiu a pista dos criados, pela porta travessa da quinta, com o intuito de alarmar a freguezia, tocando a rebate a sineta da proxima capella.

Os francezes arrombaram a primeira porta, e outras menos robustas, até entrarem no quarto onde estava D. Rosalia de mãos erguidas, pedindo misericordia. Um da malta, com o rosto coberto por um lenço, disse-lhe em claro e chão portuguez que lhe não fariam mal a ella nem ao marido, se lhe dissesse onde estava escondido o dinheiro. D. Rosalia respondeu que não sabia. A um signal convencionado do interprete, dois refles ameaçadores ladearam o pescoço da moribunda senhora. O homem da cara coberta admoestou-a de novo, pedindo aos francezes que suspendessem a morte por alguns momentos. Rosalia, revalidando tres vezes a condição de que não matariam seu homem, disse que o dinheiro estava enterrado na adêga; mas que tambem lá estavam dois caixões de prata, e esses pedia que não levassem, porque não eram d'ella. Feito o juramento de respeitarem, não os caixões, mas a vida dos depositarios, levaram em braços D. Rosalia á adêga, para a fazerem apontar o local onde convinha cavar.

Meia hora depois, corriam contra a quinta de Norberto de Meirelles, mais de duzentos homens da freguezia, reunidos pelo toque guerreiro da sineta, afóra os fugitivos do Porto, que tinham atravessado a ponte, horas antes de lhe serem abertos os alçapões. Quando entraram na casa, com grandes alaridos e descargas, encontraram D. Rosalia á porta da adêga, prostrada n'um desmaio. Norberto adivinhou o successo horroroso. Entrou, foi direito ao tonel protector do escondrijo, achou a terra revolvida, levou as mãos á cabeça, soltou um grito cavernoso, e foi bater com as costas nos tampos sonoros do tonel. «Roubado! roubado!» exclamava elle, emquanto a multidão compadecida se derramava pelos aditos da quinta, procurando os francezes, e outros tratavam de restituir á vida a mulher do negociante, que parecia morta.

[112]

Ao mesmo tempo, embarcavam os francezes, com a opima presa, defronte de Miragaya. No meio do rio, combinaram entre si desfazer-se do denunciante, que os importunava lembrando-lhes a promessa de um quinhão do roubo. A execução foi rapida como o plano. O portuguez foi arrojado ao rio com algumas pancadas na cabeça; mergulhou, veio á tona da agua, fincando-se na quilha do barco, á maneira de rémora, pendurou-se n'um dos bordos, os francezes convergiram para o ponto, os caixões escorregaram para esse lado, o barco inclinou-se tanto, e o barqueiro com tal arte ajudou á catastrophe, que se virou o barco: francezes e caixões tudo se sumiu nos abysmos, salvando-se, apenas, o barqueiro, por ser grande nadador, e merecer salvar-se como instrumento que foi da justiça providencial.

Não sabemos ao certo quantos contos de réis o Douro sepultou nos seus reconcavos. Mais de cem, afóra o dinheiro e caixões do bacharel Sampayo, se calcula a perda. Os haveres de Norberto de Meirelles estavam todos alli. Restava-lhe, apenas, a granja do Candal e a casa da rua das Taipas; mas, o arrozeiro, no mez immediato, tinha que pagar letras, que os portadores, fiados na segurança do aceitante, não haviam apresentado no dia do seu vencimento, rogando-lhe, por favor, o conservar em seu poder os pagamentos até se restabelecer a ordem no giro commercial.

Era, pois, desgraçadissima a posição do pae de Carlota Angela. Via-se pobre, e sentia-se desfallecido e velho para reconquistar o producto do trabalho e da astucia, nem sempre legitima, de quarenta annos. Ainda mesmo que amigos e credores o ajudassem, como de feito ajudariam, esse balsamo não fecharia a chaga. A pena do seu dinheiro era uma angustia infernal, que as palavras animadoras da christã e resignada esposa não alliviavam.

—Deus o deu, Deus o tirou, Norberto,—dizia ella, convidando-o pela religião á paciencia.

—Vae-te d'aqui com as tuas beatices!—respondia elle—Estamos pobres por tua causa. Se fosses uma mulher amiga de teu marido e de tua filha, não dizias onde [113] estava o meu dinheiro, o meu dinheiro, o dinheiro da minha alma!

E, exclamando assim com vozes que derretiam o coração, chorava como uma creança o pobre homem, arrepellando as suissas e os cabellos.

Atalhava Rosalia:

—Não te mortifiques, Norbertinho. Eu se disse onde estava o dinheiro foi para te salvar a ti, porque o tal homem da cara coberta disse-me que tu estavas preso, e te matariam se eu não dissesse onde estava o dinheiro.

—Deixasses matar; antes isso, do que ficar assim... sem nada!

—Ainda temos com que viver, meu amigo. Se eramos ricos, as nossas despezas poucas eram. Faz de conta, Norberto, que o dinheiro está enterrado onde estava; tanto nos serve elle debaixo da terra, como na mão dos francezes. Sabes o que se ha de fazer? Tornemos a trabalhar como quando nos casamos. Para comer e vestir como até aqui sempre hemos de ter. Aos credores dá-se-lhe alguma cousa do que se deve, e vae-se pagando o resto aos poucos. A nossa Carlota quer ser freira, e o dote pequeno é. Eu lh'o arranjarei com as economias que poder fazer. Tenho algumas joias que se vendem, e pouco faltará para o dote de Carlota. Não achas que tenho razão, Norbertinho? Ora vamos, tem paciencia, e agradece ao Senhor em nos ter deixado a vida.

—De que diabo me serve a vida! ah! o meu dinheiro, o dinheiro da minha alma, que tanto me custou! Agora é que os outros me hão de pôr o pé no pescoço. Como não estarão contentes os invejosos! Foram elles que me roubaram. Esse homem que trazia o lenço pela cara era algum dos nossos visinhos, que não podia ver como eu ia medrando! Estou roubado! levaram-me o meu dinheiro, a minha vida, o meu suor, a minha alma. Agora matem-me, com trinta milhões de diabos! Quero morrer, antes que me vejam pobre! vou partir esta cabeça n'uma pedra, e tu fica para ahi a pedir uma esmola, já que disseste onde estava tudo quanto tinhamos.

N'estas e n'outras lamentações, em que a blasphemia não faltava nunca, curtiu, no Candal, a empeçonhada existencia [114] o miserando arrozeiro, durante tres semanas, até que lhe pegou uma febre, e uns frenesis de energumeno, que o pozeram ás portas do inferno. Salvaram-o algumas tisanas, e os confortos de dois ou tres amigos compadecidos que, rogados por D. Rosalia, lhe foram dar esperanças de rehaver com capitaes emprestados, senão tanto quanto perdera, ao menos mais que o necessario para viver com decencia e satisfação. A convalescença foi morosa, e arriscada com recaídas, procedentes de vertigens que advinham depois dos prantos pelo seu dinheiro.

Voltando ao Porto, logo que o exercito francez saíu, fez uma honrosa concordata com os seus credores, e retomou as redeas do seu mester, ajudado pelos amigos e desvelos da mulher, que toda era energia, actividade, e carinho para fazer esquecer a pobreza a seu marido, preoccupando-o com a esperança de enriquecer outra vez.

N'aquelle tempo, porém, esta cousa a que hoje, em francez, se chama fortuna, não se alcançava com a rapidez de agora. A perda do proveito de quarenta annos lidados na vida commercial eram necessarios outros quarenta annos para restaural-a. Por isso que o caminho de ferro era uma utopia, e a celeridade do fio electrico um ideal dos contrasensos impossiveis, a maquina de fazer dinheiro era um mytho, em que se acreditava porque a moeda corrente era fundida e cunhada; mas nenhum particular julgava possivel fazer em sua casa dinheiro.

A posição de Norberto era, portanto, relativamente má. Descorçoado para as labutações do negocio, sufficientemente obtuso para chegar por devezas e atalhos á estrada que os outros palmilham tarde e a más horas, o negociante decaído lá sentia em si roer a desconfiança de que não havia para elle mais readquirir a centena de contos, que tão perto d'elle estavam encalhados entre as fendas de alguma rocha.

Esta descrença entibiava-lhe o animo, infundindo-lhe uma melancolia taciturna e lethargica, d'onde não havia nada que o podésse divertir.

Carlota Angela, recolhida ao seu suspirado mosteiro, [115] soube da desgraça de sua familia. Ergueu as mãos ao Senhor, pedindo-lhe que alliviasse as mágoas de seus paes, e lhes désse, em troca da riqueza perdida, a esperança de maior felicidade no céo.

Quando D. Rosalia disse ao marido qual era a supplica incessante de Carlota, Norberto respondeu:

—Ora! qual céo, nem meio céo! Diz-lhe que peça a Deus que me dê dinheiro.

[116]

XIV

Que ansias, que deseos,
Que trabajos, conxogas, e sudores!...

P. Pedro de Salles. (Emblemas.)

Quando o corregedor Joaquim Antonio de Sampayo foi suppliciado, o general Botelho mandou examinar os papeis do jacobino com a esperança de encontrar algum que justificasse a violenta morte do magistrado, no caso de lhe serem pedidas contas do estranho feito.

As leis militares não permittiam tal excesso, quando os réos não eram encontrados com armas na mão defendendo os invasores.

No quartel general de Botelho andava um ajudante de ordens que fora condiscipulo e amigo de Francisco Salter de Mendonça no collegio militar. Foi esse o encarregado de examinar os papeis.

Mal tinha revolvido alguns massos de cartas sem importancia, e officios de serviço publico, uns assignados pelo governador do reino, outros pela junta governativa, louvando todos a energia e zelo do magistrado, quando reparou n'um rolo de papeis atados todos com uma guita, sendo a capa exterior um sobrescripto que dizia: Ao ill.mo snr. Francisco Salter de Mendonça.—Rio de Janeiro.

O examinador, espantado de encontrar o nome do seu amigo entre papeis do defuncto jacobino, receiou que algumas intelligencias desgraçadas e deshonrosas para Francisco Salter podessem existir com os clubs revolucionarios. Antes que alguem entrasse no escriptorio, o ajudante de ordens do general Botelho escondeu o masso [117] de papeis, e ancioso de curiosidade, não tardou a examinal-os o mais escondidamente que pôde.

Viu uma, outra, e outra até vinte e tantas cartas assignadas por Carlota Angela. Outras tantas, se mais não eram, assignadas por Francisco Salter. Quem era esta Carlota Angela? interrogava-se o confuso leitor das lagrimosas cartas. Como viera esta correspondencia dar á mão do corregedor de ***? Qual seria o valor occulto de uns papeis que tão estranhos pareciam ao funccionalismo do magistrado?

O ajudante de ordens, logo que o exercito invasor desalojou do Porto, foi ao mosteiro de S. Bento da Avè Maria procurar Carlota Angela para esquadrinhar o mysterio da correspondencia. Não encontrou alguem que o informasse: no mosteiro tinham apenas ficado uma freira demente, e duas criadas entrévadas, que apenas souberam dizer que a noviça Carlota Angela fugira com sua tia para um convento da provincia.

Proseguia em inuteis averiguações o curioso militar, quando a junta provisoria o nomeou para ir ao Rio de Janeiro dar parte das occorrencias da infausta invasão, e da derrota fabulosa que os francezes iam soffrendo na retirada.

O emissario aceitou da melhor vontade a enviatura, esperançoso de encontrar no Rio de Janeiro o seu amigo da mocidade Francisco Salter de Mendonça.

Apenas desembarcou, o primeiro official de marinha que lhe saiu ao encontro foi Salter. Logo alli se aprasaram para uma conferencia de alguma importancia, depois de entregues ao governo as participações do reino.

—Que ha de commum entre ti, e um tal Joaquim Antonio de Sampayo, que foi enforcado no Minho?

—Enforcado!

—Sim, garroteado por jacobino, traidor ao rei e á patria e á santa religião, como lá se diz. Conhecial-o?

—Perfeitamente. Esse homem era tio de uma mulher que me obriga a desertar ámanhã, para ir procural-a no Porto.

—Se o teu fim é saber onde ella está, posso dar-te algumas informações.

[118]

—Conheces Carlota Angela?!—interrompeu alvorotado o capitão de marinha.

—Conheço pelas amarguradas cartas que te escrevia.

—Cartas! Quaes?! Eu não recebi cartas algumas de Carlota.

—Se as não recebeste, podes lel-as agora, porque eu sou o portador de duas duzias d'ellas, que fazem chorar as pedras.

—Como te vieram essas cartas á mão? Dá-m'as.

—Lá vamos; mas primeiro quero que me expliques como estas cartas foram á mão do tal corregedor enforcado.

—Isso é uma historia longa e atroz. Dá-me as cartas, que eu tudo te explicarei depois.

—Pois sim: ahi vão as cartas da Carlotinha, mas tenho no outro bolso outras tantas escriptas á tua dama.

—Por quem?

—Por um nosso condiscipulo do collegio militar, que, segundo se deprehende do ardor da linguagem, deve amal-a como um louco.

—Quem é elle?

—Um terrivel paralta, que saíu da patria deixando por lá nos mosteiros noviças apaixonadas.

—Quem? depressa... diz-me o nome d'esse homem.

—Francisco Salter de Mendonça é como elle assigna as lamuriantes epistolas: eil-as aqui.

Tu me dirás agora se o corregedor era o teu alcayote para a dolorida noviça.

Salter devorava as palavras da primeira carta de Carlota, sem entender as ideias. De uma passava a outra, examinando nem elle sabia o quê. O sangue subiu-lhe á flor do rosto, inflammando-lhe as pupillas irrequietas. Era uma d'essas alegrias que chegam a doer em seu frenesi. Ao rubor succedeu a pallidez subita, e o suor da vertigem. Não lhe cabia o coração no peito, nem bastava ao afogo dos pulmões o ar que aspirava a profundos haustos. Soltou uma exclamação puxada do intimo da alma, um ai desafogado, vibrante, e das entranhas como se lhe desentalassem a garganta quando o laço o fazia já estrebuxar em arrancos de morte.

[119]

O condiscipulo estava pasmado d'este conflicto, e tanto se lhe afigurou respeitavel o jubilo ou a agonia de Salter, que não ousou interromper a scena muda d'aquelle lance. Salter lançou-se-lhe aos braços, chorando como uma creança, e proferindo afogadas exclamações, que pareciam os gemidos que faz soltar uma dor physica incomportavel.

—Então isto é muito mais valioso do que eu suppunha!—disse o ajudante de ordens—Que feliz eu sou, se vim tirar-te de alguma duvida tormentosa.

—Trouxeste-me a esperança, a vida, o céo. Estas cartas são d'ella, da minha esposa.

—Tua esposa? Pois Carlota Angela não é uma noviça?

—Não; é apenas uma secular no mosteiro de S. Bento.

—Não foi isso o que me disseram no convento.

—Pois o que te disseram?!

—Procurei-a para ver se ella me aclarava o mysterio d'essas cartas. Disse-me uma criada que todas as religiosas tinham fugido aos francezes, e a noviça Carlota Angela fugira com sua tia freira.

—A noviça! Isso é impossivel!

—Será; mas foi isto o que se me repetiu fóra do convento. Casualmente me encontrei n'uma casa onde se fallava no grande roubo feito pelos francezes a um tal Meirelles, rico negociante do Porto, que ficara pobre. Alguem disse que esse Meirelles era o pae de uma noviça creança, que já tinha acabado o tempo do noviciado, e se chamava Carlota Angela. Quiz inquirir mais particularidades que me explicassem as tuas relações com a tal menina, e nada colhi. Propunha-me procurar directamente informações do negociante, quando fui encarregado da commissão que trouxe. Aqui tens o que sei, e o que não sei has de tu sabel-o explicar melhor do que eu.

—Sei tudo!—exclamou com força e precipitação Mendonça—Sei tudo... Ámanhã vou para Portugal. Já pedi licença, e não m'a deram. Não importa. Deserto. Julguem-me como quizerem; condemnem-me, arcabuzem-me, mas que eu veja Carlota antes de morrer. Esta mulher [120] é tudo quanto eu tenho na vida. Se eu não morrer por ella, se me não sacrificar na honra, em tudo quanto ha mais sagrado na vida, sou um infame sem rehabilitação perante Deus e a minha consciencia. Se ella está morta, fui eu que a matei, não foi o malvado que me roubou estas cartas, e privou a desgraçada Carlota de ver as minhas. Já comprehendes o segredo d'estas cartas? Esse homem que mataram, solicitou o meu desterro, para obstar ao meu casamento com a sobrinha. Interceptou a nossa correspondencia com o fim de matar n'ella o amor com a certeza da ingratidão. Foi elle quem me enviou aqui um homem com a noticia de que ella se tinha casado. Eu esforço-me ha seis mezes em vão para conseguir licença de ir a Portugal salvar este anjo, e curar-me da desesperação que me tem levado ao extremo do suicidio muitas vezes. Agora creio que perdi Carlota. Quando chegar ao Porto estará ella já professa. Não importa. Quero vel-a, quero que ella me veja morrer braçado aos ferros que a separam de mim para sempre. Esta minha agonia não tem igual n'este mundo, meu amigo. Separam-me duas mil leguas da mulher que eu poderia salvar, se a visse n'este momento. Por que a não procuraste tu? por que lhe não mostraste estas cartas, que nos salvariam ambos? Podias ter-nos feito um bem, que eu te agradeceria de joelhos, e ella endoudeceria de jubilo... Paciencia... já agora devorarei todas as torturas da duvida com menos angustia. Ainda tenho uma esperança... Disseste-me que o pae de Carlota estava pobre. Talvez que não possa dar-lhe o dote para a profissão, talvez que uma doença retarde esse terrivel acontecimento. Talvez que Deus se compadeça de nós ambos, e lhe inspire a esperança de tornar-me a ver. Nunca tive tanta confiança na misericordia divina. É impossivel que Deus veja com indifferença o terrivel resultado da profissão. Eu vou arrancal-a do altar, vou disputal-a a Deus, vou amaldiçoar a religião cruenta que receber uma mulher que me pertence por um juramento mais sagrado que todos os votos do claustro.

Não cansou ainda aqui o fôlego da estirada declamação. Salter fallou horas, e o amigo escutou-o com admiravel [121] paciencia, até que pôde admoestal-o que não fugisse, nem saísse do Brazil sem licença. Nem ao menos conseguiu com as mais atiladas razões retardar um dia a deserção. Já o amigo se offerecia para pedir ao principe regente a licença, trocando por ella a commenda da torre e espada com que sua magestade o agraciara, ao ouvir-lhe as novidades prósperas do reino. Salter rejeitava conselhos e favores. O brigue saía no dia immediato, e não estava ainda marcada a saída de outro navio. Negarem-lhe a licença era já um capricho, senão antes uma desconfiança fomentada pelo bacharel Sampayo. Ao lado do ministro havia alguem que lhe insinuava a suspeita de ser Mendonça um forçado vassallo do principe, e um jacobino que Manique soubera desterrar a tempo.

O governo não dera ao capitão de marinha satisfação alguma pelos arbitrios do capitão-general, durante o tempo que estivera preso. O mais que fez foi dar-lhe liberdade, reprehendendo-o por ter feito justiça com suas proprias mãos, sobre um homem que viera ao Rio em commissão de confiança.

Salter tragou em silencio o novo vilipendio, e protestou, não só desertar, mas alistar-se no exercito francez, e atirar-se como desesperado aos braços da morte, na primeira batalha que lhe deparasse a sua negra fortuna.

Eram, pois, baldadas todas as reflexões do ajudante de ordens.

A bordo do brigue inglez havia ordem para receber um marinheiro portuguez, e um preto marinheiro tambem. Ao anoitecer d'esse dia Francisco Salter de Mendonça, e o escravo que lhe assistiu durante a prisão, vestidos de marinheiros, foram recebidos no brigue. Na manhã do dia immediato, quando o ajudante de ordens, ancioso de alegria, procurava Salter para lhe entregar a licença que o principe assignara, contra as suggestões do ministro, o vaso inglez já tinha saído.

O solicitador da licença foi dizer ao principe que o capitão da armada não poderá vir beijar a mão de sua magestade antes de sair, porque o brigue já tinha levantado ancora, quando a licença chegou.

[122]

Este expediente fez que Francisco Salter não fosse julgado desertor, posto que as averiguações feitas pelo ministro contrariassem o depoimento do generoso amigo, que ficara destruindo a intriga.

O romance deixa de ser impertinente e aborrecido. Vamos entrar nas scenas tristes e sombrias.

[123]

XV

Crescei, mágoas, crescei, e crescei, dores;
Quebrai o vagaroso e triste fio
Que alonga a cruel Parca...

Ferreira. (Eleg. 5.ª)

As freiras dispersas recolheram ao seu convento da Avè Maria, um mez depois da entrada do exercito anglo-luso no Porto.

Carlota Angela acompanhara sua tia, com quanto jubilo podia caber-lhe no ambito da alma. Considerando a grandeza das penas que a flagellavam, só á religião deve conceder-se o mystico poder de allivios, e alegrias para a pobre, que tão infeliz era, e mais infeliz seria, se não tivesse a táboa da religião em naufragio tão procelloso.

Apenas entrou no convento, quiz ver seus paes, dizendo que talvez elles, na desgraça, precisassem de que lhes fallasse a linguagem da paciencia, e da esperança nas riquezas do céo. D. Rosalia, foi chorar ao pé da filha, e retirou-se consolada. Norberto de Meirelles contou-lhe tres vezes a horrivel historia do roubo, e chorou outras tantas lagrimas como punhos. Acudia Carlota com as uncções piedosas da paciencia, promettendo-lhe alcançar de Deus com orações e penitencias a prosperidade do negocio que seu pae recomeçara. O arrozeiro dava como impossivel a restauração dos haveres perdidos, e afiançava que não viveria muito tempo, porque a paixão do seu peculio, adquirido com tanta honra e trabalho, o levaria á cova. No tocante ao auxilio que os santos podiam dar-lhe para repôr o seu commercio no antigo pé, Norberto era um iconoclasta requintado; não fiava nada dos santos, nem das jaculatorias, antiphonas, e responsos de sua filha.

[124]

Teimoso e cabeçudo como um philosopho, argumentava contra a religião, allegando em favor da sua heratica parvidade que se houvesse céo e inferno não estava elle arrozeiro sem o seu peculio, porque tinha sido sempre bom christão, e fora roubado por hereges.

Este argumento não é de certo o mais stolido que se tem envidado contra a religião christã, por parte da philosophia; d'onde se conclue que detraz de qualquer balcão se póde erguer um Ario, um Luthero, um Calvino, um Voltaire de tamancos, e arrojar ao seio da sociedade uma bomba recheiada de argumentos incendiarios como aquelle.

Assim como nós não sabemos que responder de repente ao atheismo de Norberto de Meirelles, Carlota Angela não se nos avantajava em promptidão de dialectica theologica, do que resultou sair o pae duas ou tres vezes, da grade incredulo como entrara.

Uma vez lhe disse elle que perdesse a esperança de ser freira, porque não tinha dote, nem pedia emprestados cinco mil cruzados para empatar n'um modo de vida que não rendia sequer o juro da lei.

Carlota sabia de mais as circumstancias de seu pae, quando esta esperada revelação lhe foi feita. Serena e carinhosa, como sempre o fora, desde que a desgraça entrara em sua casa, respondeu-lhe que não tivesse elle cuidado com a sua profissão, porque a prelada a recebia pela prenda da musica, em que ella estudava continuamente, e a tia Rufina lhe fazia as pequenas despezas necessarias para a profissão.

Estavam as cousas n'este pé, quando Antonio José da Silva, mercador de pannos que foi na rua das Flores, pessoa a todos os respeitos digna de larga chronica (como de feito a teve na Filha do arcediago) e um dos maiores credores de Norberto, se apresentou pedindo em casamento Carlota Angela, estipulando as seguintes clausulas:

1.ª Pagaria todas as dividas do sogro, e adiantaria dez contos de réis para casco de novo negocio, a juro de quatro e meio por cento.

2.ª Compraria a quinta do Candal, já traspassada [125] para pagamento de dividas, e daria o usofructo d'ella a seus sogros, reservando para si a hortaliça necessaria ao consumo da casa, dois gigos de maçã camoeza, dez alqueires de feijão branco, e os pastios necessarios para quatro cevados.

Item. Daria aos paes de Carlota paga e quitação das quantias que lhe estivessem devendo no acto de se lavrarem as escripturas de casamento.

Item. Sua mulher iria viver na rua das Flores, e não tornaria a ir aos balancés por onde costumava andar em solteira, nem trajaria vestidos como as fidalgas, nem andaria de corpo bem feito sem mantilha, quando fosse á missa, ou désse, aos domingos de tarde, um passeio até Campanhã, ou Valbom.

Estes artigos depôl-os sobre a mesa Antonio José da Silva, em seguida á proposta de casamento, a que Norberto, embrutecido pela fortuna de similhante proposta, respondeu logo que o negocio se havia de arranjar.

E sem perda de tempo, entrou o arrozeiro no pateo de S. Bento com uma cara tão festiva e gozosa, que deu nos olhos á madre porteira.

Mandou chamar a filha, e rompeu assim o dialogo, com assomos de boçal jucundidade:

—Estamos outra vez ricos, rapariga!

—Ricos?!

—Sim, ricos! alegra-te, Carlota.

—Pois que foi, meu pae? Appareceu-lhe o seu dinheiro?

—Quem dera isso! É cá outra cousa, menina! Estamos ricos, porque tu vaes ser muito rica.

—Eu!? De que maneira?

—O Antonio da rua das Flores pediu-te em casamento.

Carlota engasgou-se, quando soltava uma palavra ou exclamação imperceptivel.

—Não conheces o Antonio José da Silva? Aquelle rapaz que está podre de rico? aquelle que herdou a casa do patrão, aqui ha tres annos? Ora essa! não conheces?!

—Não conheço, nem quero conhecer, meu pae.

[126]

—Tu que dizes, Carlota!? Pois tu não queres casar com elle?!

—Não, senhor.

—Ó pobretaina de uma figa! pois tu vês que não tens nada, que teus paes estão pobres como Job, e não queres valer aos auctores de teus dias?

—Não, meu pae, eu dou a minha vida aos auctores d'ella, se a quizerem; mas o coração, que já dei a Deus, não póde ser de mais alguem. O pae não é tão innocente como parece. Devia suppôr que a minha resposta era esta. Quando entrei n'esta casa, disse-lhe francamente as minhas tenções. Como ellas não estavam dependentes dos thesouros de meu pae, a perda d'esses thesouros não as alterou na minima cousa. Sou a mesma que era, e brevemente serei o que já não posso deixar de ser: uma freira pobre sem precisão de ser rica, com muito mais do que me é necessario para ir amparando a minha curta vida no serviço de Deus, e na penitencia dos meus peccados, e dos peccados alheios.

—Não quero sermões, com mil diabos! vociferou o arrozeiro, batendo um retumbante punhado sobre a banqueta—Não venho ouvir prédicas! És minha filha, e has de fazer o que eu quizer. Não te dou o consentimento para seres freira!

—Paciencia: sel-o-hei na intenção; mas não sairei do convento.

—Has de sair por justiça.

—Morta, póde ser.

—Viva, e muito viva, eu t'o juro por esta luz que nos alumia!

—Não jure, pae, que se engana. Ninguem será capaz de me arrancar com vida para fóra d'esta casa. Quando eu não tiver forças com que me agarrar a estes ferros, nada se me dá que me levem para fóra, porque a minha alma já terá subido d'aqui á presença de Deus.

—Conta-me lônas, que eu te ensinarei. Filha maldita, que viste teu pae pobre e desgraçado, e não lhe valeste! Filha cruel, eu te amaldiçôo em nome do Padre, e do Filho, e do Espirito Santo. Amen.

—Meu Deus!—exclamou Carlota—Ó meu pae, não [127] profira similhantes palavras! Não augmente a triste vida que eu tenho. Eu lhe prometto de trabalhar toda a minha vida para que em sua casa nunca haja a menor privação. Pedirei esmolas ás senhoras religiosas ricas, para lhe mandar, meu pae. Não me amaldiçôe, que eu não lhe mereço esse castigo, nem é possivel que Deus consinta que a sua maldição seja valiosa. Pelas chagas de Christo, arrependa-se d'essas amargas palavras que disse...

A pobre menina, banhada em lagrimas, supplicava ainda de joelhos, quando Norberto de Meirelles saíu da grade esbaforido, resfolegando vapores do interior vulcanico do peito.

Ao passar por Antonio José da Silva, que o esperava á porta da loja, na rua das Flores, disse-lhe:

—Nada feito.

—Venha cá, snr. Norberto, conte lá isso. Com que então não é o mel p'ra bôca do asno; aqui calha melhor dizer da asna, digo bem, snr. Norberto?

—V. m. é pouco cortez, snr. Antonio. Se vamos a pôr as cousas no direito, ninguem póde ser asno sem sua licença. Lá por que a minha filha me desobedece não dou ousio a v. m. de lhe chamar nomes, que é o mesmo que chamarm'os a mim. Se é rico, snr. Antonio, eu tambem já o fui, e não tratava ninguem de asno, porque aprendi a cortezia com as pessoas de bem com quem sempre tratei.

—Não se enfade, homem,—replicou o irmão da snr.ª Angelica (honrosamente mencionada na Filha do arcediago) pondo-lhe as mãos vermelhas, como dois mólhos de rábanos, sobre os hombros—não vá a Vallongo por tão pouco, snr. Norberto. Isto que eu lhe disse foi assim um modo de fallar, sem aquella de injuriar a sua filha, nem a v. m., que tem os figados, como lá diz o dictado, muito ao pé da bôca. Entre cá, sente-se, desabafe, e veja se quer tomar um copo do da instituição da Companhia, e uma cavaca de Arouca pare lhe dar animo.

—Obrigado; não quero nada; passe v. m. muito bem, e rasgue quando quizer o tal papelucho das condições [128] que me deu... Aqui o tem. Emquanto ao que lhe devo, se v. m. não quizer esperar que eu lhe possa pagar, mande tomar conta do que eu tiver, e fica d'aqui já arrumada esta pendencia.

—Espere, homem, que ainda não chegaram as cousas a esse ponto. Eu quero fallar com a sua filha, e mau é se ella me não dá o sim. Uma cousa é ir, outra mandar.

—Não faz nada, snr. Antonio, digo-lh'o eu. A rapariga não falla como nós, e tem lá na cabeça um palavriado da breca, que não sei onde ella o foi aprender. Dizia-me o meu cunhado doutor (Deus lhe falle n'alma), que a cabeça de Carlota era um vulcão. V. m. sabe o que é um vulcão?

Vulcão, pelos modos, é... é o mesmo que balcão...

—Bem no digo eu! Vulcão é uma cousa de lume que sáe debaixo da terra.

—Ah!—interrompeu o snr. Antonio, abrindo a bôca como em testimunho da sua admiração—Já entendo... Quer dizer que ella tem grandes fumaças de ser bonita!... Olha o milagre! bonita é, mas ha-as por ahi tão bonitas como ella, que tomaram que eu as quizesse. Emfim, eu sempre lá quero ir, dê no que der. Assim como assim, nada se perde. O que for soará. Appareça por aqui ámanhã, snr. Norberto.

Afoutado por tão estupida esperança, Antonio José da Silva teve a audacia de procurar Carlota Angela. Vae ler-se o texto d'esta visita, porque foi ella uma das maiores affrontas que a desgraça fez á pobre menina. Todas as outras, confrontadas com esta, eram favores da fortuna.

O snr. Antonio ignorava a pratica dos conventos, ao tocante a locutorios. Quando o introduziram, pela primeira vez de sua vida, em uma grade, o alapuzado moço achou-se affrontado com a vista dos ferros. Carlota appareceu com sua tia, meia hora depois que a esperavam. Esse espaço de tempo fora necessario á freira para convencer a sobrinha de que não era civil nem bonito deixar de receber a visita, qualquer que fosse a intenção da pessoa que a visitava.

—Bons dias, minhas senhoras—disse Antonio, avançando [129] e recuando, tres vezes, uma assaralhopada cortezia.—Não me conhecem?

—Já soubemos que era o snr. Antonio José da Silva que procurava minha sobrinha—disse soror Rufina.

—Já sabem ao que vim, pelos modos.

—Ignoramos.

—Venho a troco do que se passou com o snr. Norberto.

—Parece impossivel!—acudiu Carlota—Eu creio que disse claramente a meu pae o que é escusado repetir ao snr. Silva.

—A menina ha de fazer favor de me ouvir um bocadinho, se não tem muito que fazer.

—Pois não! queira fallar—disse Rufina.

—Eu sympathiso com a snr.ª D. Carlotinha desde que a vi nas endoenças da Misericordia faz agora cinco annos. Já então me deu na venêta de a pedir ao snr. seu pae; mas rosnava-se por ahi que a menina não gostava de rapazes do negocio, e tinha lá suas tendencias para a farda. Metti a falla no bucho, e esperei até ver no que paravam as cousas. Depois aconteceu em sua casa a desgraça d'aquelle grande roubo, o snr. Norberto ficou mal arranjado de fortuna, e eu, como o outro que diz, fiquei sendo o mesmo homem a respeito da menina. Fui pedil-a a seu pae em casamento, e elle ficou a pular de contente, porque, a fallar-lhe a verdade, não é por me gabar, mas seu pae não endireita mais a cabeça se eu não casar com a menina. Em primeiro logar, rasgo as letras que se vencem contra o snr. Norberto no mez que vem, depois empresto-lhe quasi sem juro o capital necessario para elle montar o negocio no pé em que estava antes da quebra; depois, arremato a quinta do Candal em nome da snr.ª D. Carlotinha, porque já ouvi dizer que a menina gosta muito da aldeia, e eu tambem não desgosto, porque lá cômo muito melhor, e as aguas são mais leves. Pois é verdade: eu venho para este fim. Agora veja lá a menina o que decide. Se quer ser minha esposa, trato de arranjar os papeis, botam-se os banhos, e vamos a isto. Então que diz?

—Já respondi a meu pae—disse, com mal disfarçada [130] cólera, Carlota Angela.—Não me queixo do snr. por aqui vir com similhante fim; creio que meu pae, por delicadeza, lhe não diria sem rebuço a minha resposta. Eu não caso com o snr. Silva, nem com alguem. Resolvi ser religiosa. O meu tempo de noviciado acabou. Estou esperando a licença regia para professar.

—Deixe-se de asneiras—atalhou Antonio José, soltando um boçal frouxo de riso que indignou Rufina e enojou Carlota—Pois a menina quer-se vir aqui metter n'esta espelunca, podendo ser rica e viver regaladamente como pouca gente! Tenha juizo, creaturinha! Isto de convento é bom para quem não tem, como o outro que diz, um marido que lhe dê tudo o que for necessario para o augmento da sua pessoa, e que a traga nas pontinhas.

Carlota erguera-se para sair. Rufina seguira o exemplo da sobrinha. Antonio José da Silva permanecera refestellado na cadeira, até que se ergueu, forçado pela silenciosa mesura das duas senhoras, exclamando:

—Então que diz?!

—Minha sobrinha já respondeu ao snr. Antonio—disse a freira affavelmente.

—Com que então, nada feito?—redarguiu o lêrdo aspirante ao matrimonio, que, dez annos depois, lhe empeçonhou a existencia, segundo reza a chronica já citada, da qual entendemos que a leitora deve prover-se, se a zanga que lhe faz o bronco mercador de pannos requer uma vingança superior ao delicto—Pois sabe que mais, snr.ª D. Carlota?—proseguiu, erguendo-se, com modos colericos, e brutalmente canhotos—Eu entendo o que isso é, e bem sei por que a menina anda a fingir que quer ser freira p'ra dar tempo a que elle volte lá do Brazil.

—Elle! quem?!—exclamou Carlota com assomos de indignação, que o só olhar da tia sofreou.

—Faça-se de novas! pois não sabe quem?! o da marinha, aquelle que lhe caiu lá no gôto, porque trazia a cintura arrochada no fardalhão, que sabe Deus a quem elle o ficou devendo, quando foi para Lisboa...

Carlota Angela saiu precipitadamente da grade; soror Rufina ficou para explicar ao sandeu a descortezia [131] da sobrinha; aconteceu, porém, que elle não se julgou affrontado pelo impeto da saida.

—Snr. Antonio—disse a freira—v. m. está ahi fallando n'uma pessoa que morreu. Minha sobrinha não espera alguem.

—Eu não sabia que elle morreu! Isso agora é outro caso... Acho que fiz uma asneira em lembral-o á pobre moça! Faça favor de lhe dizer que me desculpe. Ora olhem quem havia de dizer que o tal rapaz dera á casca lá no Brazil! Pois eu cuidava que ella estava, como diz lá o outro, encantada por elle, como a doninha com o sapo. Ainda bem que ella lhe não caíu nas mãos, porque pelos modos o homem era jacobino, e melhor foi assim, não lhe parece, senhora Madre?

A freira não pôde deixar de sorrir ao titulo de Madre que pela primeira vez lhe fora dado.

—An?—tornou elle—está-se a rir?! então que quer dizer lá essa risadita?! Isto parece-me casa de doudos, por mais que me digam.

—Não deve aqui voltar, snr. Antonio,—replicou a freira com muita brandura e graça—porque seria pena que o seu juizo perigasse n'esta casa de doudos.

—E olhe que a fallar a verdade já me lembrou isso, e essa cousa que a senhora Madre acaba de propôr não me cáe em cesto roto. Isso leva agua no bico. A senhora Madre lá lhe parece que a sua sobrinha é capaz de me fazer dar volta ó miôlo? Não tenha pena do rapaz, que eu tambem a não tenho! (O snr. Antonio José da Silva tinha por esse tempo os seus quarenta annos.) Quem chegou á idade adultera (emende adulta) sem dar com as ventas no sedeiro, tambem já não cáe na arriola de se apaixonar por quem lhe não sabe agradecer os affectos do seu peito; é como lhe digo, senhora Madre, e póde dizel-o tal e qual á sua sobrinha, que não vá ella cuidar que eu perco a vontade de comer. De tolas como ella está cheio o Porto. Tomara eu boa vontade de casar, que mulheres andam-se-me a metter pelos olhos com um palmo de cara soffrivel, e bons dotes... cuida que não, senhora freira!?

—Cuido que sim, snr. Antonio,—disse com a mais [132] comica paciencia soror Rufina—cuido que v. m. merece uma menina de merecimentos muito superiores aos da minha pobre sobrinha. Se ella o não sabe avaliar ao justo, é porque está inclinada para a religião, onde nem todas as pessoas são doudas, snr. Antonio. Vá v. m. na graça de Deus, escolha entre tantas meninas que se lhe offerecem a melhor, e seja muito feliz. As minhas obrigações não consentem que eu me demore.

—Sempre lhe quero dizer mais uma palavra, se está para isso, snr.ª Madre.

—Com tanto que seja breve...

—Olhe lá... A senhora quer fazer um contracto commigo?

—Um contracto! Nós as religiosas não podemos fazer contractos, nem supponho que genero de contracto possamos fazer.

—Eu lhe digo. Se a senhora fizer com que sua sobrinha queira casar commigo, eu obrigo-me a dar á senhora cem mil réis cada anno emquanto a snr.ª Madre for viva...

—Emquanto eu for viva?—atalhou a freira, sustendo com difficuldade o impeto do riso.

—Sim, senhora—tem cem mil réis em metal, pagos no principio do anno, emquanto a senhora for viva.

—Não aceito.

—Então quanto quer? diga lá, que me pilha em boa maré!

—Se me dá os cem mil réis por mais alguns annos...

—Que é? não entendo isso.

—V. m. diz que me dá cem mil réis annuaes; mas tira a condição de m'os não dar logo que eu morra, não é assim?

—Podera não! Dou-lh'os emquanto a snr.ª Madre for viva.

—Pois eu quero que m'os continue a pagar por mais alguns annos.

—A senhora por mais que me digam está a mangar commigo! Então é douda ou não é?! E o caso é que já pegou á moça a toleima...

Soror Rufina arquejava em gargalhadas indomitas, quando o lôrpa lhe dirigia os ultimos insultos.

[133]

Não podendo mais sustentar-se na grade, a freira deixou o mercador a resmungar, e lançou-se a rir nos braços de Carlota, que a esperava chorando.

Acabou-se o ignobil episodio de Antonio José da Silva.

Aos que não conhecem esta raça inextinguivel no Porto, aos que reputam desnaturada a linguagem que o romancista saccou da lingua d'este Antonio, emprasamos para que estudem, e observem, hoje, n'este anno de 1858, já passado quasi meio seculo, os Antonios existentes, se é possivel encontrar-se um Antonio assim que não seja um lustre da nobreza coeva do gaz e do telegrapho electrico.

[134]

XVI

Quem quizer saber quantos são ao todo os filhos de Adão, conte primeiro quantos são os afflictos e atribulados.

Bernardes. (Nova Floresta.)

A filha de Norberto de Meirelles esperava em vão que sua mãe com supplicas incessantes alcançasse do marido o dote para a profissão. O negociante poderia com algum sacrificio acceder ás instancias de D. Rosalia; mas a pertinacia de Carlota em rejeitar a proposta de Antonio José da Silva irritou-o de tal modo, que não houve convencel-o a aceitar, a titulo de emprestimo, a dadiva do patrimonio que os paes da noviça Dorothea queriam dar á intima amiga de sua filha. Ia mais por diante a brutalidade do arrozeiro, negando-lhe o consentimento. Ora, contra esta tyrannia nova, entre as tyrannias de paes crueis e barbaros tutores, como se diz nos romances não menos barbaros e crueis, contra esta nova tyrannia trabalhavam na côrte pessoas empenhadas a favor da noviça por intervenção de algumas freiras.

Obtida a licença regia, graças á pouca actividade de Norberto, e talvez á diversão em que o traziam os cuidados e afflicções de pagar as letras do snr. Antonio José da rua das Flores, Carlota Angela soube que seria freira sem dote, freira de prenda, como se chamam as meninas que tocam ou cantam, e dão a sua habilidade como equivalente de patrimonio.

Foi um dia de jubilo no mosteiro de S. Bento da Avè Maria o da chegada da licença. A profissão de Carlota era uma festa, em que todas as freiras tomavam parte. Os fartos meios, que lhes sobejavam, permittiam [135] solemnisar com todas as galas e magestade o acto augusto, que a noviça anciava, chorando de alegria, e esperando com susto, como se temesse algum imprevisto obstaculo á sua felicidade. Chegou o fausto dia.

Se entendem que não é impertinencia descriptiva debuxar á pressa os promenores da profissão de uma religiosa benedictina, acompanharemos Carlota Angela desde que a mestra, avisada pelo dobre do sino, a foi buscar da casa do noviciado para o côro. A noviça ajoelhou aos pés da prelada, proferindo as palavras do rito, que são uma supplica de misericordia a Deus e á abbadessa, que a interroga ácerca do que pretende. Entre as mãos de Carlota estava a regra do patriarcha S. Bento, e n'essa postura devota e humilhada profere os votos. Á grade do côro, onde se passa esta scena quasi silenciosa, chega um sacerdote com a cruz processional entre dois candelabros, e após elle os paramentos.

A noviça cantou com a voz tremida a carta da sua profissão. As ultimas palavras mais as dissereis gemidos desatados de uma suffocante angustia. Lida a carta, o som melancolico do orgão parecia chorar com ella, cuja voz, em terceto com a da cantora e da mestra de noviças, entoou, tres vezes, o seguinte verso:

Suscipe, Domine, secundum eloquium tuum, et vivam, et non confundas me ab expectatione mea.

Carlota foi ajoelhar ante o altar da Virgem, e depôz no respaldo do altar a carta da profissão. O côro cantava, entretanto, um Gloria de tristissima toada.

D'alli, foi ao meio do côro a professante, e ajoelhou sobre uma alcatifa entre quatro candelabros; ajoelharam todos, e entoaram uma ladainha, acompanhada a orgão, e instrumental.

As freiras assistentes ergueram nos braços a noviça, emquanto se cantava o Veni, creator Spiritus, invocação de tanta religiosidade e compunção, que as lagrimas saltaram a um tempo de todos os olhos.

Carlota foi prostrar-se diante da abbadessa, que a despiu, ao passo que a trança dos cabellos era deposta n'uma salva de prata. Cingiram-lhe depois a touca e o véo, que o celebrante aspergira e incensara, e ajoelharam [136] com ella. «Recebe, donzella, o véo sagrado—disse a abbadessa, impondo-lh'o na cabeça—para que chegues sem mácula ao tribunal de nosso Senhor Jesus Christo, ao qual se dobram os joelhos no céo, na terra, e no inferno por toda a eternidade.» Sobre o hombro direito lhe collocaram em seguida umas disciplinas, acompanhando a acção com estas palavras: «Recebe, ó cara irmã, as armas da tua milicia».

O celebrante entoou uma oração, durante a qual as lagrimas da professante manavam copiosamente sobre as mãos de soror Rufina, que lhe amparava o rosto.

A prelada proferia as ultimas palavras da benção final, o orgão acompanhava Benedictio Dei Patris, esse hymno de acção de graças, que os anjos parecia sublimarem em accordes de celestial melodia, quando entrou na igreja um mancebo com tal impeto, que se fez reparado ás pessoas por entre as quaes rompeu com precipitada vehemencia.

—Já professou?—perguntou o individuo machinalmente a um rosto conhecido que proferira o seu nome,

—Agora mesmo.

—Professa!—exclamou Francisco Salter de Mendonça, correndo para as grades do côro—Professa! Tudo perdido, tudo perdido!

Encostado aos ferros do côro, com a fronte banhada de suor frio, e a luz dos olhos turvada, Francisco Salter estava já amparado entre os braços das pessoas que o reconheceram.

Fez-se um grande reboliço na igreja. A multidão agglomerava-se em redor do official de marinha, sem poder averiguar a causa dos gemidos que se ouviam no côro.

Não eram de Carlota Angela esses gemidos. A infeliz dirieis que adivinhou a entrada de Salter na igreja, porque, erguendo-se de repente, antes que a prelada pronunciasse as ultimas palavras da benção final, correu á grade, soltou um ai suffocado, como se outro não podésse já soltar do coração expirante, e caiu desmaiada nos braços de algumas freiras, que lhe tinham seguido o movimento arrebatado.

[137]

Soror Carlota foi transportada á sua cella, sem sentidos. Francisco Salter de Mendonça recobrou alento e razão, quando se viu espectaculo de tanta gente, e pediu licença para sair.

A serenidade que de repente lhe assomou ao rosto causava novo espanto aos amigos ou conhecidos que se empenhavam em o levar d'alli. Entre esses havia um que tinha o segredo d'aquella grande desventura, e lhe pediu mui encarecidamente que o acompanhasse para sua casa. Mendonça rejeitou com tranquilla urbanidade os offerecimentos, e parecia surdo ás consolações. O sorriso contrafeito, com que desmentia as lagrimas que lhe aguavam os olhos, presagiava alguma grande desgraça. Um suicidio foi o receio das pessoas a quem o mysterioso acontecimento foi de bôca em bôca revelado.

Por fim, Mendonça desopprimido do concurso que o rodeava ainda no adro da igreja, entrou no pateo do mosteiro, foi com sereno aspecto á portaria, e pediu á madre porteira o favor de o annunciar á senhora religiosa que acabava de professar. Concorreram algumas freiras a ouvir este recado, e todas á uma balbuciaram não sabemos que palavras de consolação religiosa que Francisco Salter parecia não ouvir.

Immovel permanecia elle, esperando a apparição de Carlota, quando lhe indicaram a grade onde elle devia esperar que lhe fallassem.

—É a snr.ª D. Carlota Angela que eu procuro—disse elle com imperturbavel firmeza.

—Pois suba para a grade, que o estão lá esperando.

—Mas quem é que me espera, senhoras?

—Alguem é...—responderam as freiras.

—Quem eu procuro, e com quem preciso fallar, é a senhora que professou ha pouco. Não conheço mais alguem n'esta casa.

—Pois queira subir...—disse o padre capellão do mosteiro, que n'este momento viera collocar-se ao pé de Francisco Salter—Eu acompanho v. s.ª á grade onde o esperam—continuou o padre, dando-lhe o braço, e guiando-o automaticamente para a grade, onde o estavam esperando.

[138]

Mendonça encontrou na grade uma freira desconhecida: era soror Rufina.

—Creio que não lhe será desagradavel—disse ella—encontrar uma tia de Carlota.

—Quizera antes, minha senhora, encontrar sua sobrinha.

—É impossivel; minha sobrinha não dá accordo de si, nem dará tão cêdo. V. s.ª devia presumir isto mesmo, antes que lh'o dissessem.

—Por que, minha senhora?!

—Porque minha pobre sobrinha o julgava morto, todas nós as amigas da infeliz o julgavamos como ella: eu mesmo agradeço a Deus as forças que me dispensa para poder vir a esta grade rogar de mãos erguidas ao snr. Mendonça que não diga á desgraçada uma palavra que a póde matar; não lhe lance em rosto a falta de palavra, que seria affrontal-a e dar-lhe o ultimo empurrão para a sepultura.

—E disse eu já que vinha lançar em rosto a Carlota alguma falta? Não venho, minha senhora, não. Eu vim a querer enxugar-lhe as lagrimas que a minha apparição lhe fez chorar.

—Carlota por ora não póde chorar, snr. Mendonça. Para tamanha dor não ha tal desafôgo por emquanto, e Deus sabe se alguma vez o haverá... Eu não conto já com a vida de minha sobrinha. Vamos ser n'este convento testimunhas de uma agonia muito atribulada. Deus lh'a dê curta, ou me leve a mim primeiro, por misericordia. Duas horas antes, snr. Mendonça, têl-a-hia talvez matado de alegria com a sua presença. Assim, matou-a, ha de matal-a de pena, de desespero, de dores infernaes, que não hão de obedecer aos confortos da religião.

—Que são confortos da religião?!—interrompeu Mendonça, carregando o sobre-olho com a turvação da blasphemia.

—Aterra-me essa pergunta, snr. Mendonça!

—Não se aterre, minha senhora: responda-me antes a uma pergunta: o Deus que ha de consolar Carlota é o mesmo que viu impassivel até este momento a minha desgraça e a d'ella?

[139]

—Altos juizos do Senhor! Por quem é não lhe falle essa linguagem á pobre Carlota! Ajude-a a supportar o peso da sua dor, com os olhos postos no céo. A impiedade não serve de nada, snr. Mendonça. A respiração da blasphemia traz para o interior do coração o fogo do desespero. Se a vir succumbida, dê-lhe animo para a paciencia, venha aqui todos os dias, dê-lhe a felicidade que a religião dos infelizes não condemna; amigo, seja o irmão extremoso da minha pobre sobrinha. Prometta-me isto, que eu vou prevenil-a pouco e pouco, até que ella possa encaral-o com firmeza e confiança. Se a accusar de inconstante, snr. Mendonça, olhe que a calumnia cruelmente. Ha de saber da bôca de Carlota que dois annos de martyrio ella tem amargurado n'este convento.

—Sei, senhora.

—Que desenganos, que torturas, que repetidas luctas com a desesperação, e que ferventes supplicas ella fazia a Deus para que a levasse, desde que lhe deram como certa a sua morte!

—Tudo sei, minha senhora. Já vê que a não posso condemnar. Eu venho pedir-lhe consolações, venho aprender a paciencia, venho pedir-lhe coragem para não tentar contra a minha vida.

—Peça, peça, e verá que a minha santa sobrinha lhe ensina a consolação do soffrimento, o bálsamo divino da paciencia, e o segredo de achar a alegria na vida que tão desgraçada lhe parece. Hoje não, snr. Mendonça; Carlota a esta hora precisa de que a animem, se é que Deus não quer que este golpe seja o ultimo no debil fio da sua existencia. Eu vou para junto d'ella, parece-me que a estou ouvindo pronunciar o seu nome, e eu corro a dizer-lhe que encontrei no snr. Mendonça o irmão, o amigo carinhoso da nossa Carlota. Deixa-me dizer-lhe isto, snr. Mendonça?

—Diga, diga, que é preciso salvarmol-a, ainda mesmo que ella me não torne a ver.

—Por que não ha de ella tornar a vel-o?! Então quer que a infeliz morra atormentada? Tenha compaixão de nós, snr. Mendonça! Outra freira d'esta casa talvez lhe pedisse que não voltasse aqui mais. Eu, pelo contrario, [140] lhe rogo que venha todos os dias, que seja testimunha de todas as lagrimas salvadoras que ella chorar, que lhe prometta uma affeição pura sem manchar a santidade das obrigações religiosas de Carlota. Pois a amizade immaculada não é o reflexo do amor divino? O Altissimo não condemna o coração de minha sobrinha, cheio de um amor que ha de entrar com a alma na bemaventurança. Eu tenho presenciado n'esta casa affeições de muitos annos, de longas vidas dedicadas ao amor do coração, sem comtudo macularem a religiosidade dos deveres. Todo o mundo tem obrigação de respeitar o amor de minha sobrinha ao homem que ella chorou dois annos, chorava ainda no instante em que lhe appareceu. Venha, snr. Mendonça, venha aqui todos os dias, e verá como o tempo amacia os espinhos que o mortificam. Ha de chegar a esquecer-se das dores que soffre n'este momento, e a sentir as lagrimas de uma amizade santa e pura.

O dialogo foi cortado por uma pressurosa chamada a soror Rufina. Carlota recuperando os sentidos, chamava Francisco Salter de Mendonça, e forcejava por evadir-se dos braços que a sustinham. Algumas religiosas estavam passadas de religioso terror, vendo-a, ainda vestida com os hábitos da profissão, invocar tão afflicta e descomposta o nome profano de um homem que, no entender das servas de Deus, devia considerar-se de direito morto, quando o não estivesse de facto. Algumas escrupulisaram de assistirem ao debate da professa nos braços das mais novas, e congregaram-se na cella da escrivã para decidirem que o demonio entrara no corpo de Carlota. O voto da mais auctorisada era que se chamasse o capellão para exorcismar a energumena. Outra acrescentava que, no caso infausto de contumacia diabolica, seria util e piedoso dar parte do successo ao bispo, para que este obrigasse Francisco Salter a sair do Porto, como perturbador d'aquella casa.

Entretanto, soror Rufina, chamada da grade, onde deixara Mendonça esperando saber o estado de Carlota, pedira ás amigas menos escrupulosas de sua sobrinha que a deixassem só com ella.

—Francisco desejava ver-te—disse Rufina.—Logo [141] que tenhas força e vontade irás ver o que é um amigo do coração, um anjo de paz que Deus te envia, assegurando-te que a felicidade do espirito não destroe a felicidade do claustro, que a esposa do Senhor póde ser a irmã estremosa do homem a quem amou.

Carlota cravava os seus grandes olhos no rosto risonho da tia, como se não comprehendesse. A freira continuou:

—Esperavas que Mendonça te viesse lançar em rosto a tua impersistencia, minha filha? Não, Carlota. Mendonça sabe tudo. Diz que vem procurar as tuas consolações, a fim de não tentar contra a propria vida. Vês tu, menina, que sublime encargo Deus te confia no momento em que as tuas angustias tocam o extremo? Tens de amparar a vida do nobre moço, de lhe dares consolações...

—Eu, meu Deusl eu consolal-o!—exclamou Carlota, arrancando impetuosamente o véo—Ha uma só consolação possivel para nós. Annullem-me os votos que fiz. Não posso ser freira, não quero ser freira. Deus sabe que fui atraiçoada, que professei, porque me mentiram, e eu não minto a Deus. Minha querida tia, eu sou agora mais desgraçada que nunca. Morro impenitente, se me não dizem que é possivel annullar um juramento falso que me obrigaram a dar.

—Carlota! tu não comprehendes a felicidade n'este mundo sem o crime?

—Crime! qual foi o meu crime? que fiz eu para merecer este castigo? Onde está Deus, que me não amparou antes d'este desgraçado passo que dei hoje, e me não mata agora, se não posso remedial-o?

—Isso é uma blasphemia, filha! o demonio da tentação não quer deixar-te gosar as alegrias puras que Deus te permitte.

—Alegrias, minha tia! Pois cuida que se engana assim a afflicção? Alegrias para mim, que estou condemnada a um carcere perpetuo, que hei de ver sempre entre mim e o esposo da minha alma uma barreira de ferro, que nem posso sequer esperar que elle venha recolher o meu ultimo suspiro?! Vel-o todos os dias... oh! esse é o mais horrivel de quantos padecimentos podia antever [142] a minha imaginação! Antes acabar no desespero, sem vel-o! Antes morrer aqui abafada sem que elle seja a desgraçada testimunha das minhas agonias! Que hei de eu dizer-lhe, ou que ha de elle dizer-me a mim? Se elle me pedir contas dos meus juramentos, se me lançar na rosto a minha falta de fé, se me perguntar como pude eu sobreviver á certeza de que elle tinha morrido, que hei de eu responder?

—Diz-lhe que vestiste o habito de eterna viuvez, que escolheste a vida mais pura, para que as orações por alma d'elle fossem mais gratas ao Senhor. Diz-lhe antes que escolheste o mais longo paroxismo de uma morte atribulada; que podeste acreditar que elle violara o seu juramento; conta-lhe tudo quanto a traição inventou em teu damno; diz-lhe que ainda convencida de que elle morrera, depois de atraiçoar-te, lhe perdoaste, e caíste de joelhos aos pés da cruz, pedindo á misericordia infinita que lhe perdoasse o perjurio. Que mulher houve n'este mundo tão forte da sua innocencia como tu para poder apresentar-se com o rosto immaculado na presença do homem que lhe vem pedir contas? Qual é o teu crime, infeliz? Não te disseram a ti que Francisco esposara outra mulher no Rio de Janeiro? Não te affirmaram que elle morrera depois? O silencio de dois annos não estava sempre confirmando o cruel desengano das tuas esperanças? Quem te ha de accusar, Carlota?

—Elle, minha tia. Eu tinha obrigação de não acreditar a calumnia! Eu fui mais vil e miseravel que os infames que urdiram a minha desgraça! Não tenho animo de lhe apparecer, não sei como possa defender-se a minha fraqueza, nem quero defender-me, porque sou eu a que me accuso de indigna do perdão d'este homem, que eu fiz tão infeliz... Ha um só remedio, minha tia... Se m'o não dão, nem quero mais vel-o, nem prometto respeitar a religião que nos manda supportar com paciencia o peso da vida... e que vida, meu Deus!... que vida de inferno me seria esta, se eu não podesse arrancar do coração esta braza viva que me está atormentando!

—Pois que queres tu, Carlota! Valha-me a Virgem Santissima! que se ha de fazer, infeliz creatura?

[143]

—Annullem-me os votos, deixem-me ir lançar aos pés de quem póde restituir-me a minha liberdade. Não posso ser freira, declaro bem alto para que todos me ouçam n'esta casa, e me desculpem do mal que eu fizer; não posso ser freira, sem dar grandes escandalos, sem insultar a virtude das pessoas que me rodeiam, sem amaldiçoar a hora em que professei, e a religião que me manda morrer sem desabafo.

—Carlota! pelo amor de Deus!—exclamou soror Rufina, tapando-lhe a bôca, e abraçando-a com convulsivo terror. Teme o castigo do céo, minha filha. Arrepende-te d'essas blasphemias, e Deus não permittirá que tu comeces a expial-as n'este mundo com a deshonra... Tu não sabes o que disseste, Carlota. Foi a desesperação que a fez assim fallar, minha Mãe Santissima; não consintaes que ella seja castigada! Alcançae de vosso Filho um bocadinho de refrigerio para esta desgraçada que a dor enlouqueceu.

A freira continuou uma supplica assim afflictiva diante da imagem da Mãe de Deus. Carlota Angela correra impetuosamente para o mais escuro da casa, e lá prorompera, sósinha, em prantos, que não eram de contrição, nem sequer de desafôgo á sua grande angustia. Apertavam-a ainda os frenesis da desesperação enraivecida e impia. Rebatia com gestos furiosos as timidas consolações da tia e da meiga Dorothea, cujas palavras mais suavemente lhe deviam fallar ao coração, se a quasi demencia a não tivesse assaltado com vertigens de quarto em quarto de hora.

Francisco Salter recebeu, ainda na grade, a triste informação do estado de Carlota. Perguntou elle a soror Rufina, se teria duvida em entregar-lhe uma carta. A freira hesitou emquanto Mendonça lhe não disse que a carta seria um lenitivo para Carlota, e talvez um balsamo de completa cura.

Qual deva ser a efficacia d'esse balsamo infere-se da carta que se copia textualmente no capitulo immediato.

[144]

XVII

Dans le monde tout est confondu. Les juges ne sont plus que des bourreaux, qui offrent des victimes humaines á ce Dieu mensonger qu'on appelle le Droit et la Justice. L'homme sans foi devient un sage et le sage une dupe. Le héros qui donne sa vie pour la vérité n'est qu'un malheureux fou, qui s'est sacrifié pour une chimère. Qu'il meure désespéré sur les pavés sanglants, objet de l'indifférence de Dieu et de la raillerie des hommes!

Jules Simon. (Le Devoir.)

«Carlota.

«O destino esmaga-nos, se succumbirmos. Coragem, intrepidez de desesperados, é a nossa salvação... A sociedade pôz-nos um pé sobre o peito: o coração geme nas agonias da morte violenta; mas não morrerá. Affrontemos os assassinos. Vamos direitos ao encontro da infamia. A nossa vingança é viver. A nossa vingança é enxugar as lagrimas, e suffocar os gemidos. A nossa vingança é fazer a sociedade responsavel perante a sua propria consciencia do crime que ella propria ha de condemnar, depois que nos queimou na alma o germen da virtude.

«És freira, Carlota Angela. Forçaram-te a violar a palavra jurada, cujo cumprimento vinha pedir. Disseram-te que eu te atraiçoara e morrera. Tinhas obrigação de defender a minha honra, emquanto eu não viesse da sepultura pedir-te perdão da perfidia. Não te condemno, nem sequer me queixo. Entre a perversidade dos que te rodearam e a tua innocencia, a lucta era desigual. Fraqueaste, porque a desgraça exigia que eu bebesse o ultimo trago do meu calix. Eu não podia deixar de ser infeliz até á extrema d'este inferno. Aqui deve ser o termo final da [145] minha condemnação. Não se póde ir mais além. Suicidar-me seria desmentir a fortaleza com que tenho arrostado a desventura até hoje. Chorar comtigo, devorar em silencio um dia e outro dia, na escuridade da desesperação, o resto de duas vidas tão miseraveis como as nossas, seria escolher a peior das mortes, o paroxismo prolongado, sem desafôgo nas crenças, sem refugio na esperança de outro mundo.

«Não creio, nem espero nada além d'esta vida, Carlota.

«Se te sentes arrebatada para a grandeza do Creador, repara na miseria das creaturas. D'este asqueroso lamaçal de sangue e lagrimas, para onde nos empurrou a mão humana, como queres tu que o espirito possa levantar-se para Deus?! Não ha justiça na terra, nem providencia no céo. O summo bem é um sonho dos corações opprimidos, quando a oppressão não estala os ultimos filamentos da fé, quando a angustia não é tamanha que cerre todos os respiradouros da alma. Se ha Deus, a sua inercia, á vista das atrocidades que soffremos, é igual á indifferença, á impotencia, ao nada. Nas minhas e nas tuas dores, a justiça eterna permaneceu insensivel, como se temesse ou approvasse a infamia dos homens.

«Não baixou do céo um anjo que te dissesse:

«Aquelle que te ama, vive em torturas, arcou já triumphante com a morte, esmagará por fim o preconceito da honra, e virá buscar-te. Não dês a Deus um coração que não podes dar. Não jures ante o altar um voto que implica a morte do homem que a estas horas, sobre o mar, me está pedindo que te dê forças para o soffrimento, que te illumine com um clarão de esperança, que te povôe os sonhos com a imagem d'elle.»

«Fallou-te assim um anjo, Carlota? Não. Em redor de ti estava o terror do desconforto, o silencio da desesperação, o desamparo, e as piedosas lamentações de algumas almas boas que te mostravam o céo, porque a vida se te havia convertido em inferno.

«Eu gemi n'um carcere longos mezes. Visitou-me a fome, a sêde, o frenesi da loucura, o terrivel nunca mais, essas duas palavras malditas que encerram todo o fel das [146] amarguras humanas. E, no tumultuar de tantas penas injustas, nunca a justiça divina me disse que esperasse o dia do resgate, a corôa do martyrio immerecido, a vista da mulher chorada que me vinha consolar nos instantes do lethargo, e fazer suave a pedra em que eu encostava a cabeça abrasada. Nunca. Gemi no desamparo, como o malfeitor repulsivo, que a sociedade lançou de si maldito, e maldito de Deus nem sequer podia esperar a purificação do remorso.

«Que mal fizeras tu, pobre mulher? Por que te mortificaram os homens, e como consentiu um Deus justiceiro o tormento que te deram?

«Que mal fizera eu, homem de consciencia pura, que passei os annos da minha mocidade estudando os raros exemplos de virtude que me encantavam o coração?

«Padecemos, porque fomos escravos da honra, Carlota Angela.

«Se eu passasse por cima dos respeitos humanos, terias sido minha amante, serias hoje minha esposa, e a sociedade apontar-nos-hia como modelo de amor fiel e devotado a todos os sacrificios. Faltou a culpa, para que a fortuna nos não ludibriasse. Era necessario o crime para sermos hoje felizes. A virtude o que é?

«A minha honra reduziu-me a isto que eu sou. Sacrifiquei-te aos deveres que a minha probidade me impunha, e fiz-te a desgraçada que hoje és.

«Quero salvar-te, Carlota, e quero que me salves.

«Apparece-me, filha da minha alma; vem ouvir-me, porque a nossa época de felicidade começa hoje. Não ha para nós n'este mundo mais que nós mesmos. Tudo que se oppozer ao destino que vamos seguir, é mentira, é perfidia, é uma nova traição que te armam, Carlota.

«Sorri á esperança, martyr! Irradie em volta de ti o sol de esperança que me está abrilhantando o futuro. O coração delira-me de alegria no peito, onde não cabe. Agora conheço que me pertences, que te não perdi, que és mais minha por um direito de torturas, que valem mais que todos os juramentos. Sacode as algemas que a hypocrisia te encadeiou nos pulsos. Deixa voar o coração, que um voto sacrilego ou impostor te assellou ao nada da [147] uma esperança estupida ou fementida. És livre, Carlota. A tua alma não podia obedecer ás suggestões de malvados, porque era minha.

«Agora te digo que venho pedir contas do teu juramento.

«Carlota Angela, estou aqui! Pertences-me.»

A freira acabava de ler esta carta, e correra á grade, onde a esperava Mendonça.

Não dizem os nossos apontamentos o que se passou na grade. Se escrevessemos de imaginação, dava-se aqui um dialogo plangente, travado de exclamações, umas de expansão maviosa, outras de frenesi insano. O mais natural, na situação dos dois infelizes, é chorarem longo tempo silenciosos. Devia a sua dor ser uma das que suffocam e entalam na garganta o gemido. A desesperação mataria n'elles o jubilo de se verem: a freira não poderia dizer a Mendonça: «sou tua». N'aquellas grades, duras e inflexiveis como o «cumpra-se» terrivel do destino, estava escripto o impossivel. Entalal-as, espedaçal-as, só a mão sacrilega do crime poderia. Carlota ha de rasgar o véo, ha de calcar o habito, ha de passar por cima da sua virtude, da sua religião, do seu esposo celestial, se quizer dizer a Mendonça: «sou tua».

Devia, pois, ser melancolico além do exprimivel o que ahi se passou n'essa grade; triste, e desgraçado direi, a julgal-o pelas consequencias, que se vão descrever, com um certo pezar em que esperamos tomem os leitores o seu quinhão de pena, se não todos, ao menos aquelles que não dão nada pela felicidade da terra, quando ella implica offensa ao Senhor do céo.

Se as calamidades que promanarem d'esse encontro não forem das que matam os agentes da sua propria desgraça, e, ao mesmo tempo, escandalisam a moral, a quem ha de a moral condemnar? em que ponto d'esta escabrosa senda da vida quereis que se levante o signal de aviso para acautelar os ignorantes do abysmo que as flores escondem?

Nao sabemos, não o sabem os que teem a experiencia das quédas, e vão caíndo sempre no golfão, para onde os allicia com blandicias uma attracção satanica. [148] Estamos fartos até ao tedio de ouvir dizer que o homem é bom, que o homem é mau. O homem não é bom nem mau de seu natural: é aquillo que o fazem ser; é o que realmente deve ser n'este mundo, segundo a organisação d'este mundo, organisação viciosa, aleijada, falsa, peccaminosa, quer o defeito começasse no paraizo terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram inventando através das civilisações.

O leitor tem o juizo necessario para se não dar á canceira de interpretar essas linhas assim com assomos de dogmaticas. Este romance pecca por acaso em divagações philosophicas, e n'isso está cifrado o merito não vulgar de um livro que sustenta o caracter singelo e lhano desde a primeira pagina, para que aos mais myopes se não esconda a luz debaixo do alqueire.

Reparou soror Rufina em sua sobrinha, na volta da grade; achou-a serena de mais, risonha até; um lampejo de alegria interior que lhe reaccendia nos olhos a luz que as lagrimas haviam apagado. A velha freira, já apalpada por infortunios de amor, não conjecturou d'aquella inesperada alegria tão innocentemente como Carlota cuidava. O temor que a sobresaltou presagiava a verdade, mas tão desgraçada era a verdade, que a freira antes quiz desmentir o proprio presentimento, do que interrogar a sobrinha, innocente talvez.

—Como vens alegre, Carlota!—disse ella.

—Fiquei mais desopprimida, minha tia; o muito chorar faz bem... estou muito melhor, e agora espero vencer o infortunio.

—Com que armas, filha?

—Com que armas?... Com as da resignação... A maldade, a guerra que o mundo faz a fracas mulheres como eu, só com a paciencia se sustenta.

—E Mendonça aconselhou-te a resignação?—disse a freira com suspeitoso intento.

—Elle? tomara o infeliz quem lhe ensinasse o remedio das suas afflicções... Nenhum de nós é forte; somos ambos por igual desgraçados e fracos para luctar com as perfidias que nos fazem, ou que nos fizeram. O remedio unico é gemer até á morte, dar á sociedade o regalo [149] de nos esmagar, soffrer-lhe na garganta o pé com evangelica submissão. Entende-o assim, minha tia?

—Que modo de perguntar é esse, Carlota?! Eu estranho-te...

—Estranha-me!? Pois queria que eu voltasse da grade mais afflicta do que fui?

—Não; esperava que as tuas palavras fossem mais sinceras, filha.

—Pois não são?!

—Ha ironia n'esse elogio que fazes á tua paciencia. O coração de uma mulher não é assim. Concilias-te muito depressa com o sacrificio. A virtude não se alcança assim tão rapida, e essa paciencia, que te impões, é a virtude suprema. Não, Carlota, não. Tu... Tremo dizer-t'o...

—Diga, minha tia.

—Tu, filha, meditas um desatino.

—Um desatino!...

—Sim, Carlota; tu intentas fugir do convento—disse a freira com pavor.

—Não, tia...—balbuciou a trémula religiosa, mudando subitamente do semblante sereno para os gestos alvoroçados da surpreza, do mêdo, reflexivos da agitação interior que fizera n'ella o ar assombrado da tia.

—Não balbucies, desgraçada. O teu rosto está confessando o desvario do coração. Diz com animo, filha, confia á tua amiga essa resolução funesta, que não executarás, sem que as minhas lagrimas te demovam de tal desgraça. Oh! não faças tal, infeliz, que te deshonras para o mundo, e te perdes para Deus.

—Minha tia!—exclamou Carlota, abraçando-a, e soluçando palavras inarticuladas.

—É pois certo?—tornou a freira.

—É certo, minha tia, é certo que ou Deus me mata, ou eu fujo.

—Jesus! Maria Santissima! Que dizes, Carlota!

—Não posso desdizer-me, minha querida tia. Eu sou do homem que amo. Não vejo nada n'este mundo senão elle, e as suas lagrimas. Mas as suas lagrimas são-me menos preciosas que a vida de Francisco. Soffreu muito o meu desgraçado amigo, soffreu muito; é preciso que [150] eu o indemnise com a minha reputação, com a vida, com os soffrimentos de todas as pessoas que me estimam. Eu hei de ser menos infeliz, e elle será feliz quanto se póde ser...

—Á custa de um crime... Carlota!

—De um crime que é o resultado de muitas infamias urdidas contra a nossa felicidade. É um crime só o nosso, um só; Deus perdôa, e, se não perdôa, aceito o inferno, se ha inferno, aceito...

—Cala-te, desgraçada, que insultas a religião; cala-te ahi, que enlouqueceste, Carlota, e Deus bem sabe que a tua razão desvaria!

—Não, minha tia. Eu sinto-me no meu perfeito juizo: a desesperação enlouquecia-me de antes algumas vezes; mas a esperança restituiu-me hoje o vigor da minha antiga razão; com a differença que de antes assustal-a-hiam os juizos do mundo, que a subornavam, e hoje a minha razão vê tudo como tudo é, sente-se livre, e capaz de destruir todos os obstaculos que uma falsa piedade me pozer.

—Mas tu não és já senhora de tuas acções, Carlota!—bradou a tia com azedume.

—Sou. Emancipou-me o infortunio. Se me cortarem todos os meios da fuga, resta-me o recurso do suicidio; apparecerei morta no pateo do convento.

Soror Rufina ficou tranzida. Carlota contemplou-a com pezar n'aquelle quietismo terrivel. Estava a pobre senhora com a face apoiada sobre os joelhos, e as mãos erguidas. A filha de Norberto quiz divertil-a da lethargia; mas a gélida face da freira parecia de pedra, apenas as lagrimas borbulhavam incessantes nas mãos da sobrinha.

Ao lado, porém, da consternada anciã estava a imagem de Francisco Salter. Carlota queria consolar, promettendo o impossivel; mas o coração recusava-se á mentira.

A freira benedictina promettera fugir n'aquelle dia. Se não soubera esconder a traição, tambem não seria capaz de revogal-a, ou differil-a para mais tarde.

[151]

XVIII

Venite ad me omnes qui laboratis, et onerati estis, et ego reficiam vos.

Jesus Christo.

Soror Rufina comprehendeu mal a exaltação de Carlota. No conceito da ingenua religiosa, sua sobrinha, posto que tentada pelo espirito das trevas a dar um passo de desesperada, um passo do altar para o abysmo, do limbo de esperanças celestiaes para o inferno das eternas dores, não chegaria a deixar-se vencer, caíria contrita aos pés da cruz antes de infamar-se e infamar o mosteiro com a fuga.

Carlota, por sua parte, não desmentiu a conjectura da freira, por isso que, por espaço de dois dias, esteve reclusa na sua cella, orando e chorando, quasi sempre sósinha, porque tanto a Cecilia como a Rufina pedia que a deixassem desafogar a sua angustia a sós com a imagem do Senhor, sua consolação extrema e unica.

Não podemos, porém, asseverar que as lagrimas e orações fossem o constante exercicio da freira benedictina. Duas ou tres cartas, que Francisco Salter de Mendonça recebeu, foram de certo escriptas em intervallos pouco edificantes d'esses dois dias, se devemos, do que aconteceu ao terceiro dia, avaliar o conteúdo d'ellas.

Ás tres horas da madrugada d'esse terceiro dia, que era o setimo do mez de setembro de 1811, Francisco Salter de Mendonça estava já desde a meia noite, encostado ao muro da cêrca do mosteiro, n'aquelle angulo que confina com a ultima casa da rua do Loureiro, hoje bem conhecida pela «Estalagem do Cantinho». Não averiguamos como elle conseguiu do locatario d'essa casa, que [152] devia ser um sujeito de maus costumes, licença para engatinhar através do telhado, até alcançar o muro na parte onde é facil o salto para a cêrca.

Ao dar das tres horas no campanario do mosteiro, branquejou rente com o angulo do muro, que fórma a especie de fortim de ameias sobranceira á Porta de Carros, um vulto que desceu ao pomar, e ahi se sumiu por alguns minutos á vista do anciado Francisco Salter.

Era Carlota Angela, a professa benedictina, que fugira do thalamo do divino esposo, e a cada passo que dava comprimia no peito o coração que o phantasma do seu crime apavorava. Os minutos que se demorou no pomar, cerrado, por cuja copa o clarão da lua, já desmaiado pelos alvores matutinos, se coava, traçando sombras movediças, foram uma demora causada por uma syncope.

Francisco Salter, suspeitando isto mesmo, ou receiando o arrependimento, saltou o muro, deixando içada a escada de corda por onde Carlota devia subir, e foi direito ao pomar. A freira soltou um grito de terror quando viu ao pé de si um vulto. Salter proferiu o nome d'ella com amorosa angustia.

Mendonça tremia.

Não ha coragem de homem que vença a commoção d'estes lances. O silencio religioso que reinava alli; os trajos da religiosa, ainda os mesmos com que horas antes assistira á sua ultima oração em communidade, excepto a touca e o escapulario; esse intimo abalo com que a Providencia se denuncia nos corações mais endurecidos pela negação da falsa consciencia do irreligioso; e, sobretudo, a lucta de todos esses sentimentos com a paixão imperiosa, e o plano irrevogavel d'esses dois infelizes, fora, talvez, a causa do quebranto, e quasi desfalecimento de espirito em que ficou Mendonça ao apertar nos braços, pela primeira vez, Carlota Angela.

—Não posso!—exclamou ella—não posso dar um passo... Começo a sentir o castigo do céo... Receio morrer aqui.

—Não morrerás, Carlota...—acudiu Mendonça, apertando-a ao seio com vehemente ternura misturada de supersticioso [153] sobresalto—Deus só castiga o crime das que abjuram os votos que faz o coração. Vem, Carlota, mais alguns passos, pouco nos falta já; d'aqui a momentos verás fugir esse terror, que me está opprimindo tambem a mim. Vem, amiga da minha alma...

—Não posso, Francisco... não posso...—tornou ella, soluçando, pendurando-se-lhe dos hombros com afflictivo modo, e olhando em redor com a vista assombrada de visões medonhas—Vae tu, que eu torno para o meu supplicio... Vae, meu amigo, que não póde haver felicidade sem Deus. Não queiras ser cumplice do meu crime, porque o has de expiar commigo. O melhor, na minha desgraça, é morrer, Francisco; morrer martyr, morrer digna de pedir ao Senhor por ti...

Francisco Salter balbuciava apenas monosyllabos. As palavras da freira calaram-lhe na alma um spasmo atribulado. Carlota sentia-o tremer como ella, ou mais ainda: o seu terror augmentava, com o silencio de Mendonça, com aquella especie de assentimento que elle dava aos presagios d'ella.

Por um momento se afigurou ao amante da religiosa que a desgraça era inevitavel. Calara-se o coração. Era o espirito religioso que sobrepujava o animo robusto do capitão de marinha. Tinham-o, talvez, debilitado os infortunios. Fizera-o, talvez, supersticioso a desgraça, se não quereis que possa chamar-se influxo providencial este mêdo. Por que não dizemos antes que a desgraça o fizera crente? Por que não estaria entre ambos o anjo do Senhor, o anjo Custodio que pedira ao Altissimo um raio da sua divina graça com que alumiar, a dois corações que se despenhavam, a profundeza do abysmo?

Carlota parecia banhada d'esse raio celestial, quando se lançou aos pés de Mendonça de mãos erguidas, orando, póde dizer-se, orando assim:

—Não me leves d'aqui, meu amigo. Não me queiras fóra do amparo divino que me deu esperanças de te encontrar no céo. Guardemos para lá os nossos amores felizes, amores bemaventurados por uma eternidade. Temos merecido tanto com os nossos martyrios, Francisco... deviamos de ser tão caros á piedade de Deus... não sejamos [154] agora indignos da sua misericordia, e crueis para comnosco... A minha vida será curta no convento, e fóra do convento. Deixa-me morrer aqui; serás menos infeliz. Eu não me importa a deshonra do mundo: a infamação não poderia matar-me; mas, lá fóra, espera-me uma dor maior que todas, a do remorso, a da contrição impossivel sem a emenda.

Carlota proseguiu soluçando no seio do amante palavras inarticuladas, ás quaes responderam por fim as lagrimas copiosas de Mendonça, as primeiras que elle chorava doces e suavissimas, quaes se o Senhor lh'as désse como prelibação aprazivel das alegrias que sua alma teria em galardão do sacrificio.

Era já quasi dia claro, quando a freira benedictina, encostada ao braço de Mendonça, foi sentar-se no degrau da porta por onde uma hora antes saíra com a resolução de não mais entrar. Ahi, d'esse abraço derradeiro que se deram silenciosos, arquejantes, convulsivos, não saberemos dizer qual fosse a infinita angustia.

É certo que Francisco Salter, ao desapertal-a dos braços estremecidos em que ella proferia n'um gemido o ultimo adeus, cruzou os braços e disse:

—Vae, Carlota, que eu não posso disputar-te a Deus. Vae, filha da minha alma, que eu alimentei com lagrimas, que eu mereci a preço dos tormentos que nenhum homem supportou, para finalmente te ceder a um phantasma que me diz que não pódes ser minha. Recorda-te... olha para mim, Carlota, e assombra-te da grandeza da minha angustia e da minha paciencia. O homem que tanto padeceu para merecer-te, vae, sem ti, procurar a morte do corpo onde Deus quer que ella o espere depois da morte da alma, do assassinio lento de um coração que se teria salvado se ha tres annos te arrancasse aos braços de teu pae. Fui demasiadamente honrado para este mundo e para esta sociedade. Não quiz respirar este ar corrompido em que vivem os felizes... devia morrer. Por fim, devias ser tu a que me apontasses o teu remorso como estorvo a pertenceres-me. Fica, minha amiga, com a tranquillidade do teu espirito. Por ti soffri muito; mas não era o teu soffrimento o premio que eu vinha pedir-te [155] agora. Quiz dar-te a felicidade, e cuidei que t'a dava. Quiz levar-te commigo aos pés do representante do Eterno na terra, para lhe supplicarmos que houvesse de Deus perdão para ti, que não poderas ser o que a desgraça te aconselhara que fosses. Diz-te o coração que o teu crime não póde ter reparação: é Deus que t'o segreda, Carlota, e eu não ouso argumentar contra as inspirações que te baixam do céo. Vae, pois, esposa de Christo, vae para o teu santuario, e chora-me ahi, chora-me emquanto eu viver; depois, ora por mim, porque a minha alma só as tuas orações podem purifical-a, e erguel-a á presença do divino Juiz. Adeus, Carlota.

A freira, do limiar da porta estendera ainda os braços para Mendonça, exclamando:

—Vem cá, Francisco, vem cá... escuta-me, por piedade!

—Carlota! Carlota!—disse uma voz, que os fizera estremecer a ambos.

Era soror Rufina, que surgira no angulo do muro, entre as ameias que cercam o terraço por onde a freira conseguira evadir-se.

Francisco Salter de Mendonça, admiravel de dignidade, retrocedeu, aproximou-se de Rufina, baixou ligeiramente a cabeça, e tomando Carlota pela mão, disse:

—Deus sabe que ella é cada vez mais digna d'elle. Assista com piedade ás agonias d'este anjo. Sua sobrinha, senhora, veio aqui buscar coragem para a morte, e ensinar-me a morrer com honra. A vida honrada já ella m'a tinha ensinado: faltava-me a morte, que devia ser de desesperança impia, se esta santa me ensinasse o segredo de expirar abençoando a desgraça.

Foram as ultimas palavras de Salter, palavras que a joven freira já não ouvira, porque os braços de sua tia lhe estavam sendo amparo na perda dos sentidos.

[156]

XIX

As religiões no meio do seculo, são como as ilhas no meio do mar, que ás vezes por invasões do mesmo mar se vão comendo, e soçobrando, e padecem suas injurias da visinhança deste poderoso adversario. Mas se nas ilhas ha tempestades, que será no coração dos mares? Oh! alegrem-se as ilhas, e multipliquem-se! que ainda com a communicação tão visinha dos mares, estão muito mais firmes e seguras que elles.

P. Manoel Bernardes. (Floresta.)

Decorreram alguns mezes, tres seriam, depois do terrivel combate d'aquellas duas grandes almas comsigo mesmas.

Os succedimentos d'este lapso de tempo chegaram ao meu conhecimento contados de diversas maneiras.

Dizem informações do mosteiro, que a religiosa Carlota Angela, recobrando o vigor que o susto religioso lhe quebrantara, tentou de novo evadir-se, n'um impeto de delirio, pela porta de serventia dos carros que abre para o largo de S. Bento: tentação diabolica de que a energumena pôde salvar-se por intercessão do patriarcha, o qual n'esse momento lhe empeceu a fuga com o baculo, que a cegou com sua vivida refulgencia. Isto, pelos modos, não está bem averiguado, nem canonicamente se encampa, como milagre, á crendice dos leitores.

Outras informações mais racionaes dizem que Francisco Salter de Mendonça fora, no decurso d'esses tres mezes, com pontualidade quotidiana ao mosteiro, onde passava horas e horas na grade, com Carlota Angela, e com sua tia, algumas vezes.

A tradição, porém, mais corrente, e sustentada por [157] pessoas coevas de grande auctoridade, é que Francisco Salter não voltara ao convento depois d'aquella fuga mallograda, senão anno e meio mais tarde, já vestido com o habito da ordem benedictina.

Foi-me, portanto, necessario pedir informações a um conventual de frei Francisco da Soledade, que assim se chamou na religião o capitão de marinha. Queria eu que me contasse qual foi o viver d'esse desventurado no mosteiro; que assombrosas pelejas se deram n'aquelle seio, antes que o habito o amortalhasse; quantas vezes a luz da graça divina alumiou o coração blasphemo do noviço; quantas vezes a mão glacial da morte lhe esfriou na fronte os estos afogueados da desesperação.

Colleccionei das vagas lembranças do egresso que fora seu companheiro de noviciado em Tibães, as seguintes miudezas, que apenas satisfizeram a minha curiosidade:

Francisco Salter apparecera na manhã do dia seguinte áquella noite do anterior capitulo, no mosteiro de S. Bento da Victoria pedindo ao dom abbade que o admittisse a noviciado. Mendonça era alli conhecido como sobrinho do afamado monge, que ajuntava ao lustre do nascimento e ao das lettras a santidade sufficiente para que o mundo lhe perdoasse uma velleidade de moço, da qual velleidade procedera Francisco Salter.

O abbade acolhera-o de bom animo, suspeitando, porém, passageiro desgosto de coração. Teve-o em sua casa alguns dias, esperando o conselho do tempo, até que, senhor das mágoas do mancebo, acreditou na firmeza da resolução e na efficacia do balsamo.

Decorrido um mez de prova, Francisco foi fazer noviciado para a casa de Tibães, e ahi é que o meu informador o tratou com intimidade mediana, porque o noviço vivia tão taciturno e triste, que os seus companheiros, por pena, o não importunavam com frivolos allivios.

Sem embargo da pouca convivencia, notou o egresso que as noites do noviço deviam de ser atribuladas, porque nunca de manhã lhe vira os olhos sem raios de sangue, e como que ainda crystallinos dos residuos de lagrimas regeladas pelo frio das manhãs.

[158]

Observara elle mais que, nas obrigações do côro, Francisco era pontual, mas os seus labios, nem sequer murmuravam as orações do breviario. E, posto que para os companheiros houvesse censuras do mestre por motivos identicos, Francisco nunca fora reprehendido, nem ainda procurado na cella, se alguma vez faltava ao côro. D'isto inferiam os demais noviços que o seu companheiro trouxera do Porto especiaes recommendações do dom abbade.

Acrescenta que Francisco, ás horas em que os noviços passeiavam na cêrca, não saía do seu cubiculo, ou ia sentar-se no claustro lendo a Imitação de Christo, livro que nunca lhe esquecia; ou lia um por um os singelos epitaphios das lagens que formam o pavimento do claustro.

Notava-se que durante um anno o mysterioso noviço apenas recebera uma carta do dom abbade, em que lhe era dada a nova de que todos os seus papeis estavam legalisados canonicamente para poder professar, concluido que fosse o tempo do noviciado.

N'este pouco se resume o que pude alcançar do egresso indifferente ou desmemoriado.

Quem nos dirá, pois, as angustias do amante de Carlota Angela? O coração.

Consultemos o coração aquelles que o tivermos.

Revivamos algum tormento da alma, se o tivemos na vida, e teremos inducções remotas do que seria aquelle demorado paroxismo, aquelle lento suicidar-se em presença de homens que não lhe entendiam as lagrimas, nem saberiam nem poderiam enxugar-lh'as, se as entendessem.

A imagem de Carlota devia de estar sempre entre elle e o Christo. A luz da graça divina devia de ser muitas vezes deslumbrada pelo reflexo da labareda que o abrasava no intimo.

A phrase blasphema prenderia muitas vezes á consolação do Kempis. As mãos convulsas deviam travar do habito para rasgal-o sobre o seio onde batia o coração amante, do bravo, do homem de amor e batalhas, do que a sociedade fizera atheu, antes que a desgraça fizesse religioso.

[159]

E, se assim não acontecia, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto póde! Abençoadas sejam as angustias, que levam pela mão o filho da desventura ao pé de uma cruz, e o hasteam n'ella como holocausto, que se consola por saber que ha um Deus compassivo a vel-o em suas torturas.

É o que necessitam os grandes infelizes, e esse olhar misericordioso do Senhor, que reanima e salva do inferno dos homens aquelle que os homens desampararam mutilado em todos os affectos, espedaçado em todas as cordas do coração, que não coube na terra, repellido da communhão dos innocentes prazeres d'esta vida, condemnado a expiar no flagicio da sua dor immerecida as culpas que os grandes perversos não expiam, á vista de suas victimas.

Se, pois, Francisco Salter caía de joelhos, paciente e consolado, aos pés do crucificado, abençoada seja a religião de Jesus, que tanto póde!

Desde o dia em que frei Francisco da Soledade professou, a freira benedictina recebeu regularmente novas d'elle, escriptas de Tibães, onde o frade prolongou a sua residencia.

Faziam-lhe saudades os sitios onde tanto chorou.

Aviventara com a sua angustia as arvores seculares, os penhascos, e as cruzes que lhe ouviram os gemidos.

Essas existencias insensiveis viviam-lhe na alma, e custava-lhe o desprender-se d'ellas.

O coração affeiçôa-se aos logares onde soffreu ou gosou, quando o goso não é crime, nem o soffrimento a desesperação da alma corrompida. As alegrias do impio, e as tristezas do perverso, essas não deixam traços indeleveis de suavissima saudade ou branda mágoa no coração.

Frei Francisco sabia que morrera para o mundo, e o ermo de S. Martinho de Tibães era-lhe um sepulchro grato, uma lousa amiga sua, já polida dos prantos d'elle. Impetos ainda de coração mal domado o impelliam para Carlota. Mas quem era n'este mundo a professa benedictina? Era um cadaver como elle, uma existencia passada, uma vaga imagem que esvoaçava entre a cruz e o [160] monge, e parava um momento para lhe verter nas mãos erguidas uma lagrima.

Que importavam as visões da noite, esse fitar de olhos lagrimosos na lua, e nas estrellas, nas nuvens encapelladas, e no clarão do relampago?

Que valia ao pobre coração do frade estrebuxar ainda nas agonias do amor, no paroxismo horrivel d'esse suicidio de tantas vidas?

Que conforto lhe seria baixar do céo os olhos sobre si, e ver-se amortalhado?

Não recorramos ao milagre para explicarmos a tranquillidade do espirito que de repente abjura o mundo, e se lança desesperado ás misericordias divinas.

Terrivel deve de ser o preço da tranquillidade, quando não é a morte que a traz. A morte, sim: essa será sempre a bem-vinda dos desgraçados, porque Deus lhe fez de gêlo a mão que ella põe no seio abrasado do afflicto.

As cartas de Carlota Angela eram um adeus repetido ao seu amigo, um convite festival para a eternidade. Nem uma só reminiscencia do passado escurecia a linguagem lucida da prophetisa que descrevia as alegrias do céo. Era tudo porvir, tudo paragens do vôo que ella ia desferir da margem da sepultura para além. Dos seus soffrimentos nada lhe dizia: os da alma abençoava-os, os do corpo chamava-lhes o doce pungimento dos espinhos da sua corôa gloriosa.

Soror Rufina, amiga do monge benedictino, escrevia-lhe menos enlevada em extasis. Fallando-lhe da sobrinha, contava-lhe os rapidos progressos de uma tisica irremediavel, e da paciencia christã com que ella via aproximar-se o termo de suas dores. A ultima carta que lhe escreveu, revelava-lhe o desejo que sua sobrinha mostrara de ver o seu amigo, o seu esposo celestial, uma vez, uma só vez antes de morrer.

Frei Francisco mediu as suas forças, e pediu a Deus que lhe aniquilasse as que elle sentia para encarar Carlota, se eram peccaminosas.

Seis mezes depois de professo, o monge foi ao Porto, e recolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Victoria. D'ahi [161] consultou soror Rufina sobre a sua ida ao convento, porque entrara n'elle o presagio de que a infeliz succumbiria ao vel-o desfigurado, encanecido, e triste como o espectro de uma felicidade morta, que os vermes roazes da desventura tornaram pavorosa.

Rufina sondou sua sobrinha, e Carlota, antes de responder, sentiu uma convulsão estranha, que lhe fez espirrar do seio borbotões de sangue. Passada a crise, que julgaram derradeira, Carlota disse anciosamente que aceitava a visita do seu irmão, e quanto mais depressa, mais grata lhe seria.

Cuidavam as amigas da moribunda que similhante impressão lhe seria salutar.

Os medicos, com a sua costumada innocencia, conjecturavam que a presença do monge faria uma grande revolução nos elementos desorganisados da vida de Carlota, e agouravam a possibilidade de uma cura por meios todos moraes.

N'esta esperança, que fazia sorrir a freira, frei Francisco foi avisado para encontrar Carlota n'uma grade.

Espectaculo indescriptivel!

Frei Francisco entrara na grade onde dezoito mezes antes concertara a fuga de Carlota. Alli se trocaram, em phrases cortadas de suspiros, queixumes contra o destino; porém, as esperanças deslumbrantes acudiam logo com as promessas de uma vida cheia de prazeres, prazeres embora criminosos no tribunal dos homens, porém perdoaveis, talvez, aos olhos de Deus. D'alli saíra Francisco Salter de Mendonça, o capitão de marinha, com o coração fremente de aspirações, e até de soberba por ter calcado, ao cabo de tantas desventuras, a inexoravel desgraça.

Oh! quão mudado agora! Como elle se estava examinando diante do seu passado! O que se passaria n'aquella alma, e n'aquella fronte inclinada para as mãos cruzadas sobre o seio! Porque não deu o Senhor duas lagrimas áquelle infeliz!

Carlota Angela appareceu, encostada ao braço de sua tia. O monge erguera-se, e voltado para ellas baixara a cabeça, e não mais erguera do chão os olhos. Encostando [162] uma das mãos á banqueta da grade, sentia-se o tremor d'este movel sob a pressão convulsa. Apenas a madre Rufina proferira alguns monosyllabos, Carlota fitara os olhos lucidos de um brilho sinistro no habito do monge, e, voltando-os, silenciosa, para sua tia, parecia perguntar-lhe se era aquelle Francisco Salter.

—Francisco!—balbuciou ella.

O frade estremeceu a esta voz, e encarou a freira.

—Francisco!—repetiu ella com a voz quasi desfallecida—és tu?

—Não vol-o disse, minha irmã, que me não conhecerieis?—disse o benedictino com um violento sorriso.

—Conheço, conheço...—tornou ella, sentando-se, ou caíndo na cadeira aonde a tia se esforçara em sental-a.—Era assim que eu o via nos meus delirios, irmão da minha alma. Cá o sentia no coração morrendo assim... Faltava-me ouvir este som de finados que me está cortando os ultimos fios... É por mim, ou por ti, Francisco?... por ambos...

De feito, soava um dobre a finados na torre do mosteiro. Expirara momentos antes uma religiosa d'aquella casa, a quem Carlota pedira que intercedesse ao Senhor por ella, a fim de que a chamasse a si antes que se apagassem os cirios do funeral da agonisante. Esta fizera um gesto affirmativo, e expirara com os olhos fitos na freira.

Carlota proferira aquellas palavras, e pedira uma gotta de agua. Emquanto soror Rufina descera á portaria a buscal-a, a freira introduziu a custo o braço pela grade e disse:

—Francisco! dá-me a tua mão.

O monge tomou a mão de Carlota, e, ao apertal-a, sentiu a frialdade humida da mão de um cadaver. A posição da religiosa era violenta, com o peito encostado aos ferros, e a tosse suffocava-a. Frei Francisco fez esforço para afastar o braço, mas debalde. Aquella mão apertava como a do naufrago em trances de morte. Um frouxo de tosse salpicou de sangue o braço do monge, e em seguida, já quando Rufina entrava na grade com o copo, a mão de Carlota decaíu com o braço ao longo da grade, a fronte pendeu para as costas da cadeira, o [163] outro braço já se não ergueu para tomar o copo da agua que lhe roçava os labios humidos de sangue.

—Minha filha!—exclamou a atribulada freira. Carlota descerrou as palpebras, relanceou a vista quasi apagada para o monge, e fechou-as de novo, murmurando:

—Ouviu-me Deus!

Rufina soltou um ai vibrante, e caiu de joelhos aos pés da sobrinha.

Frei Francisco ajoelhou tambem, e disse com terrivel serenidade:

—Oremos por ella. Meu Deus! recebei a martyr em vosso seio!

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CONCLUSÃO

Cinco annos depois, vivia ainda no mosteiro de S. Martinho de Tibães frei Francisco da Soledade.

Os leitores de mais rija e invulneravel organisação admiram-se de que tal homem podesse viver tanto.

A mim custar-me-hia tambem a crel-o, se m'o não fizessem acreditar pela data da lousa que vi na claustra d'aquelle mosteiro, com os meus proprios olhos.

Viveu cinco annos para purificar-se e fazer-se digno da esposa que o esperava no céo.

Quereis saber a purificação qual foi?

Norberto de Meirelles e sua mulher, quando a filha expirava, luctavam com as extremas perseguições da fortuna infausta.

Mezes depois, estavam pobres, pobres até á indigencia.

Frei Francisco chamou estes infelizes para a visinhança do mosteiro, e dava-lhes tres partes do seu pão. A communidade, quando conheceu tamanha virtude, repartia tambem do seu por elles. A mãe de Carlota expirou nos braços do monge, o velho sobreviveu-lhe um anno, e expirou quinze dias antes de frei Francisco.

Francisco Salter saíu d'este mundo, quando já não tinha a quem perdoar em nome de Carlota Angela.

Vêde-me do céo a mim, e a todos os infelizes, almas bemaventuradas!

Não foi a minha imaginação que vos creou! Logo que eu me senti soffrer em vós, a vossa passagem na terra deixou vestigios.

FIM.