Title: Amor de Salvação
Author: Camilo Castelo Branco
Release date: October 21, 2008 [eBook #26988]
Language: Portuguese
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AMOR DE SALVAÇÃO
AMOR DE SALVAÇÃO
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO
A heavy price must all pay who thus err,
In some shape; let none think to fly the danger,
For soon or late Love is his own avenger.
Byron—Don Juan, c. IV. est. 73.
L'amour n'a point de moyen terme: ou il perd, ou il sauve.
V. Hugo—Les Misérables.
V. M.
PORTO
EM CASA DA VIUVA MORÉ—EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO
A mesma casa em Coimbra, rua da Calçada.
Casa de Commissões em Paris, 2bis, rua d'Arcole.
1864
PORTO—TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
Cancella Velha, 62
Meu amigo
Peço licença para inscrever o seu nome na primeira pagina d'este livro. Esta fica sendo para mim a mais prestante da obra. As outras são futilidades; por que lagrimas e alegrias de romance é tudo futil.
No Minho, em 1864.
Camillo Castello-Branco.
O leitor folhêa duzentas paginas d'este livro, e o amor de felicidade e bom exemplo não se lhe depara, ou vagamente lhe preluz. Tres partes do romance narram desventuras do amor de desgraça e mau exemplo. A critica, superintendente em materia de titulos de obras, querendo abater-se a esquadrinhar a legitimidade do titulo d'esta, póde embicar, e ponderar—que o amor puro, o amor de salvação vem tarde para desvanecer as impressões do amor impuro, do amor infesto.[8]
Respondo humilimamente:
Amor de salvação, em muitos casos obscuros, é o amor que excrucia e deshonra. Então é que o senso intimo amostra ao coração a sua ignominia e miseria. A consciencia regenera-se, e o coração, rehabilitado, avigora-se para o amor impolluto e honroso. Assim é que as enseadas serenas estão para além das vagas montuosas, que lá cospem o naufrago aferrado á sua tabua. Sem o impulso da tormenta, o naufrago pereceria no mar alto. Foi a tempestade que o salvou.
Além de que a felicidade, como historia, escreve-se em poucas paginas; é idyllio de curto folego: no sentir intraduzivel da consciencia é que ella encerra epopeas infinitas;—em quanto que a desgraça não demarca balizas á experiencia nem á imaginação.
Para o amor maldito, duzentas paginas: para o amor de salvação as poucas restantes do livro. Volume, que descrevesse um amor de bem-aventuranças terrenas, seria uma fabula.
O AUTHOR.[9]
Estava claro o céo, tepido o ar, e as bouças e montados floridos. O mez era o de Dezembro, de 1863, em vespera do Natal.
A gente das cidades pergunta-me em que paiz do mundo florecem, em Dezembro, bouças e montados.
Respondo que é em Portugal, no perpetuo jardim do mundo, no Minho, onde os inventores de deuses teriam ideado as suas theogonias, se não existisse a Grecia. No Minho, ao menos, se buscariam aguas lympidas para Castalias e Hipocrenes. No Minho, a Cythéra para a mãe dos amores. Nos arvoredos d'esta região de sonhos, de [10] poemas, e rumores de conversarem espiritos, é que os satyros, as dryades e os sylvanos sahiriam a cardumes dos troncos e regatos: que tudo aqui parece estar dizendo que a natureza tem segredos defesos ao vulgo, e como a entreabrirem-se á phantasia de poetas.
Mas que flôres... quer o leitor saber que flôres vestem os calvos e denegridos serros do Minho, em Portugal. São flôres a festões, cachos de corolas amarellas, viçosas, e aveludadas como as dos arbustos cultivados em jardins: é a florescencia dos tojaes, plantas repulsivas por seus espinhos, alegres de sua perpetua verdura, unicas a enfeitarem a terra quando a restante natureza vegetal amarellece, definha, e morre. E d'esse privilegio como que o agreste arbusto se está gozando soberbamente; pois que vos amostra as suas pinhas de flôres, e com os inflexiveis espinhos vos defende o despojal-o d'ellas.
E n'aquelle dia 24 de Dezembro de 1863 andava eu no Minho, por aquella corda de chans e outeiros, que abrangem quatro leguas entre Santo Thyrso, Famelicão e Guimarães.
Eu, homem sem familia, sem mão amiga n'este mundo, ha trinta annos sósinho, sem reminiscencias de caricias maternaes, bem-quisto apenas d'uns cães, que pareciam amar-me com a clausula de eu os sustentar e agasalhar; eu, que, n'aquelle tão festivo dia da nossa terra, não tinha colmado onde me esperasse um amigo pobre para me dar entre os seus um lugar no escabello, nem parente abastado, que de mim se alembrasse á hora [11] dos brindes com generosos vinhos em lucidos crystaes, eu, vendo-me com lagrimas em minha sombra, assim me fôra a contemplar a felicidade alheia pelas chans e outeiros do devoto Minho.
Eu caminhava a pé, guiando-me ao sabor da imaginativa idéa, que se deleitava em vestir de folhagem a arvore nua, e tristemente inclinada sobre o colmado do casalejo. Parava em frente de cada choupana, e meditava, e escutava o rumor das vozes que lá dentro, ou no ressaio da horta, se misturavam em dizeres alegres ou cantilenas allusivas ao nascimento do Deus-menino. Diante dos portões gradeados do proprietario rico é que eu não parava, nem meditava. Se lá dentro de suas salas iam alegrias, como em casa do jornaleiro, não sei: o certo era que as paredes da habitação opulenta não deixavam sahir uma nota para o hymno geral de graças e jubilo com que a pobreza saudava o Emancipador dos desherdados, o Senhor dos mundos, nascido e gasalhado nas palhinhas de um presepio.
O sol, desnublado de vapores, como nas tardes serenas de Julho, oscillava nas montanhas do poente, e azulejava as grimpas dos pinheiraes, d'onde eu, a contemplal-o, me esquecera da distancia a que me alongára da casa hospedeira d'aquella noite. Transmontado o sol, desceu das cumiadas um toldo pardacento a desdobrar-se pelos plainos, a confundir-se no fumo das aldêas, a identificar-se com o escuro dos arvoredos. Fez-se um silencio progressivo e rapido em redor de mim. Começava a noite sem bafejo de vento. Nem já a rama dos pinhaes[12] rumorejava aquelle seu saudoso sonido, que se me figura sempre a inarticulada toada de mui remontadas e remotissimas vozes de mundos que giram nas profundezas do espaço.
Tirei-me do meu enleio contemplador, e retrocedi pelo mal sabido atalho, antes que a cerração completa me tolhesse de enxergar ao longe o alvejar da casa, entre dous outeiros. Não valeu a precaução. Ás abas do declivoso montado, eram muitos os caminhos a cruzarem-se. Segui um á sorte; e, como prova de que a sorte nem em escolha de caminhos deixou de ser-me sempre boa, segui o peor e o mais transviado de todos. Por volta de sete horas, depois de dobrar uns serros inhabitados, achei-me n'uma póvoa, onde me disseram que eu, por aquelle caminho, chegaria mais cedo a Roma que ao local onde me destinava.
A pessoa, que respondeu assim á minha pergunta, fallou-me d'uma janella envidraçada, e acrescentou:
—O senhor, se não sabe o caminho, como de facto não sabe, pelo tino é incapaz de acertar. O que eu posso fazer é mandar alguem ensinal-o; mas, se não é força ir hoje, pernoite n'esta casa, e amanhã irá. Verdade é que, n'esta noite, custa muito a ficar em casa estranha; porém...
—Todas as casas são estranhas para mim...—respondi eu.
—Pois então, aceite esta que se lhe offerece da melhor vontade. O portão está aberto. Lá vou abaixo recebel-o. [13]
Entrei n'um vasto pateo, contornado de arcadas semelhantes ás da claustra monastica. Logo em seguida, o hospitaleiro senhor do magnifico edificio sahiu do escuro da arcaria, e disse-me antes de me vêr de perto:
—Eu já sei quem recebo em minha casa, e o meu hospede, se tiver memoria dos seus relacionados de ha quinze annos, tambem me vai conhecer.
—Pela voz ainda não—disse eu, encarando-o, sem vislumbres de vaga recordação.
—Alli temos luz—replicou elle—Muito velho e desfigurado devo estar, se nem á candêa me reconhecer vossê!...
Examinei-o á luz attentamente; e, como nem assim me acudisse á memoria semelhança de tal homem, retorqui:
—O senhor talvez esteja enganado commigo. É provavel que nos vejamos agora pela primeira vez.
—Então qual de nós é o romancista? Vossê que os anda a procurar, ou eu que estou manso, quieto, e estupido em minha casa? Quererá vossê ir dizer em alguma novella que encontrou n'um recanto do Minho um visionario chamado Affonso de Teive...
—Affonso de Teive!—exclamei eu—Affonso de Teive... o senhor?! Essas barbas... essa nutrição...
—E estes oculos...—atalhou elle.
—É verdade... esses oculos...
—E estes tamancos!...
—Pois, devéras, o senhor é Affonso de Teive... tu és Affonso... aquelle que tinha em Lisboa... [14]
—Uma casa no Campo Grande, e uma parelha de hanoverianas, e um phaetonte, e uma berlinda, e cavallos arabes, e paixões ideaes, e muitas paixões sem faisca de idéa... Sou eu! É este homem gordo, intonso, de oculos, de tamancos, este lavrador, que aqui vês, possuidor d'um thesouro que os reis do universo disputam ha dezenove seculos uns aos outros, e as nações disputam aos reis, e os individuos disputam ás nações, e cada individuo disputa e destroe em si proprio e com as suas proprias mãos: sabes que thesouro eu possuo, homem?
—A paz?
—A felicidade.
—Isso é uma historia!—atalhei eu—Pois tu achaste a felicidade?... e tu és realmente Affonso de Teive?... E estes dous pequenos?—perguntei eu, quando vi dous meninos entre seis e oito annos a correrem em direitura d'elle—são teus filhos de certo...
—São, e lá em cima não ouves o tropel que fazem os outros seis?
—Pois tens oito filhos?
—Espero o nono brevemente.
—E és...
Retive a palavra. Ia eu perguntar-lhe grosseiramente se elle era feliz com oito filhos; pergunta desculpavel ao Affonso, que eu conhecera desde 1845 até 1851.
Eu tinha visto Affonso de Teive, em Coimbra, n'aquella primeira época, matriculado no curso philosophico. Pertencia ao circulo de litteratos, creadores da [15] Revista Academica e Trovador; e tambem, nas horas furtadas ás palestras litterarias—quasi sempre controversias ácerca da primazia de Lamartine ou Victor Hugo—pertencia á grande tribu dos trossistas, gente arruadora e desatinada, para quem as saudosas tradições do famigerado José Lobo não tinham ainda esquecido. Esta dualidade em Affonso de Teive era uma distincção, que o tornava menos agradavel aos litteratos circumspectos, e menos estimavel tambem aos camaradas das assuadas e motins nocturnos. Affonso era poeta n'um genero galhofeiro, quando queria; e dedilhava o alaude das elegias, se lhe dava para lastimar-se, ou carpir saudades imaginarias de mulheres, suas amadas, fugidas d'este lamacento globo para os plainos balsamicos do céo. É o que me parecera a mim. Tinha dias de escrever jaculatorias em verso, que dariam fama a um eremita da Thebaida; n'outros dias, satyrisava a religião, os dogmas, e a propria divindade com os apódos e dialectica d'um desbragado discipulo de Voltaire. E o mais para assombro é que elle parecia sentir no coração o ascetismo de hoje, e a impiedade de ámanhã: agora, iria de poz o pallio da extrema-uncção murmurando as preces do povo, que não se peja de orar em publico e alta voz; e logo bem poderia succeder que, encontrando o mesmo prestito, não levasse a mão á fronte para tirar o gôrro. A um homem assim dotado de tão contradictorios espiritos, facil seria agourar-lhe grandissimos dissabores no trajecto da existencia: para os semelhantes d'aquelle funesto modêlo, as estradas communs da humanidade não conduzem[16] a paragem nenhuma certa; nem o coração nem o espirito aceitam leis immutaveis; a moral é um facto, cujas condições deve e póde infringir aquelle a quem ellas não aproveitam; em summa, Affonso de Teive dava a prever um desgraçado, a menos que em sua indole não sobreviesse uma das raras revoluções, que inopinadamente transfiguram o homem moral, se não é o abalo da mesma desgraça que opera esses prodigiosos reviramentos.
Tal conheci em 1845 em Coimbra o meu hospedeiro minhoto de 1863.
Encontrei-o, depois, no Porto em 1848.
Achei-lhe a mudança que influem os salões nos espiritos, para assim dizer, incultos da cortezania e graciosidade de que em geral carecem os mancebos sahidos dos cursos escolares.
Affonso de Teive tinha fama de rico. Escutei o que diziam os almotacés dos haveres de cada sujeito admittido á sociedade portuense—pessoas, que á vista do zelo com que indagam os minimos valores do sujeito, parecem habilitar-se para mordomisarem os bens de quem chega—e ouvi que Affonso era natural do Minho, filho unico já orphão de pae, e senhor de sua casa, estimada em cento e cincoenta mil cruzados. Em quanto a costumes, dizia-se que o rapaz era dado ao namôro, borboleteava por diversos camarotes do theatro de S. João, assoprava zelos e raivas entre umas tantas senhoras nos bailes, e pouco mais digno de censura. De escandalos, não rosnava cousa importante a opinião publica[17]. A mocidade do Porto, por despeito, ou por outro qualquer sentimento igualmente natural que desculpavel, é que, no intento de deprimir o Tenorio do Minho, divulgava, como quem diz muito secretamente a cousa, que varios maridos andavam enganados com Affonso de Teive; porém, como acontecia que os maridos indigitados se satyrisavam uns aos outros, observando e censurando cada um a demasiada confiança do outro, é hoje cousa difficilima de tirar a limpo se algum dos maridos se enganava, ou se todos se enganavam, ou se não se enganava nenhum. Se o leitor considera que seria curioso esquadrinhar o caso, eu de mim entendo que a humanidade não ganha com isso nada, e por tanto n'este, e em muitos outros artigos advenientes de moral duvidosa, ponho, e porei ponto, quando não seja preciso á contextura d'este romance desvelar factos censuraveis.
Affonso sahiu do Porto n'aquelle mesmo anno de 1848, com destino a França, segundo uns, e á Turquia, segundo outros. Os d'esta opinião diziam que elle, convencido de que tinha uma cara oriental, ia para terra onde podesse vestir-se de modo que o rosto lhe sahisse melhor do que entre uma gravata de laçarias portentosas e um canudo de felpo lustroso. E certo era que o typo physionomico do cavalheiro minhoto era sobremaneira arabe, por causa do nariz fino, dos olhos coruscantes, da tez azeitonada, do espesso bigode negro, e do comprimento e magresa do rosto. Se ajuntarmos a este composto de venturosas e aventureiras[18] feições o estar elle sempre fumegando por cachimbo turco, dir-se-ha que os turcos é que propriamente, lá na sua terra, o andavam imitando a elle.
Se foi á Turquia, é de presumir que rivalidades com o sultão, ou—peor ainda—tentativas de invasão ao harem o obrigaram a voltar a Portugal, onde os direitos de cada homem e de cada mulher estão muito mais razoavelmente definidos e garantidos. A verdade é que eu, no fim do anno seguinte, encontrei Affonso de Teive em Lisboa, cavalgando um donoso alazão ao lado de uma amazona, cujo mursello fazia admiraveis gentilezas de picaria. Deu-se este encontro no Campo Grande, n'uma tarde de corridas equestres. Alguem cuidaria que a soberba cavalleira, d'uma formosura invejavel na Circassia, devia de ser a esposa raptada d'algum gran-visir; pessoas, porém, melhor informadas, disseram-me que a esvelta dama era portugueza de lei, portugueza do Minho, dos arrabaldes de Braga, onde os reaes sensualistas do Islam mandariam subornar as suas sultanas, se soubessem que n'estas regiões as mulheres, que, por acaso, sahem feias das mãos da natureza, aprendem a ser bonitas com as flôres. Releve-se este orientalismo a quem está tratando de cousas asiaticas como a cara de Affonso, e o garbo peregrino de Palmyra.
Palmyra me disseram que se chamava a gentil creatura.
Posto que eu, em Coimbra e no Porto, me houvesse relacionado algum tanto intimamente com Affonso de [19] Teive, ainda assim, azado o ensejo de perguntar-lhe promenores d'aquella conquista—conquista se diz vulgarmente do que devêra mais de siso chamar-se, fartas vezes, derrota—nada indaguei, visto que elle, com insolito resguardo, se absteve de me dar ansa a esgaravatar-lhe cousas particulares da vida—particulares, dissemos, para sustentar á palavra a fama que o diccionario faz correr; sendo aliás de toda a evidencia que não ha ahi cousa mais nua, mais publica e assoalhada que tudo quanto se chamam particularidades da vida privada, mormente quando o divulgarem-se torna e redunda em philaucia d'uns tolos celebres, que seriam invejaveis, se as proprias corôas, com que cingem as frontes, lhes não dessem muito que doer com os espinhos escondidos—quero dizer em estylo espalmado: se as proprias mulheres, que lhes dão os triumphos, não fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos vangloriosos o castigo infernal do seu orgulho.
Foi-me preciso escutar os boatos correntes á conta da mulher que Affonso de Teive me não apresentou. Observei que ninguem a julgava honestamente, e assim mesmo ninguem lhe dava um epitheto indecoroso. A civilisação beneficia assim as mulheres que não podem adjectivar-se publicamente virtuosas, nem mesmo quando visitam com a esmola a mansarda do doente desvalido. N'esta especialidade, o jornalismo comporta-se louvavelmente. Quando um localista pregoa o donativo de alguns lençoes que opulenta matrona, por variar prazeres d'alma, já cançada dos transitorios gozos d'outra especie,[20] mandou a um asylo de lazaros, e diz que a humanidade abençôa a virtuosa senhora, não nos havemos de entalar com este decreto de virtude: a humanidade manda que o engulamos. O localista tem razão: é bom que a palavra virtude sirva de piedoso visco á liberalidade de pessoas, que desejam alguma vez, ao lerem-se virtuosas, experimentar a satisfação de se verem ir á posteridade na secção do noticiario.
O noticiario! Ninguem, que me conste, aprofundou ainda o que esta palavra encerra em si de humanitario! S. Paulo, todos os evangelistas, as catecheses derramadas de angulo a angulo da terra, em materia de caridade, não se avantajaram á missão do noticiario.
Se eu não tivesse de convicção minha que as acções meritorias dos gabos do mundo, quando disparam em proveito geral, não podem desmerecer no juizo divino, havia de cuidar que a mão, aberta em fontes caudaes de ouro vertido, como balsamo, sobre as chagas sociaes, bateria ás portas da região pavorosa, onde o peccado da soberba, alliado da vaidade, soffre a condemnação prescripta nos codigos de todas as religiões. A vaidade levanta o palacio em que se acolhem os desamparados d'um tecto de palha e d'uma enxerga de folha. A vaidade doura-lhe os frontaes do asylo, atapéta-lhe os porticos, ventila-lhe por janellas de luxuosa alvenaria os dormitorios, tudo lhe magnifica e opulenta em pedra e estofo: tudo lhe dá em desconto das dôres da velhice alanceada de enfermidades; tudo, excepto o pão da alma, a doutrina da paciencia, a communhão santissima, que refaz [21] o espirito quando o corpo desfallece. Tudo lhe dá, excepto um padre, um interprete do Christo, que dê vida de amor ao seio traspassado, e palavra de pae aos labios roixos d'aquelle crucificado, que lá do fundo do dormitorio contempla inertemente o deslaçar-se fibra a fibra d'aquelles corpos, alli postos como prêsa disputada, por mais alguns dias, á aniquilação...
—E não é isto o maximo quilate da beneficencia?
Que hei-de eu responder ao leitor illustrado, que me interrompe, assim de golpe, um discurso que lhe havia de mortificar o folego, pelo menos?!
Peço-lhe que me deixe contar-lhe em cincoenta linhas, pouco mais ou menos, como eu vi, n'uma terra d'estes reinos, crear-se, e prosperar um asylo de pobres.
D. Elvira era uma dama casada, que não tinha por seu marido aquelle amor que dá ao peito da boa esposa arnez de aço contra as frechas de um cupido estranho. O marido, nimiamente confiado em seus direitos, descuidou-se. Aqui está um mal enorme d'onde vamos vêr brotar uma enchente de beneficios á humanidade. O paradoxo demonstra-se d'este theor:
D. Elvira, desconfiada dos seus servos e servas, tomou como medianeira dos seus illicitos amores, uma octogenaria, que tinha quatro irmãos velhos, um marido velho, duas cunhadas velhas, e cinco sobrinhos velhos, todos mais ou menos glutões que ella, e alguns muito mais ociosos e patifes. D. Elvira occorreu por algum tempo ás precisões de toda esta tribu de immoraes, em obsequio á interventora indispensavel. Uma vez, D. Elvira[22] orçou as despezas annuaes d'esta peccaminosa obrigação, e pasmou do seu desperdicio. As avultadas esmolas, de mais a mais, eram secretas, porque o descobrirem-se daria rasto á suspeita. Na terra havia dous jornaes, e nenhum lhe tinha ainda chamado virtuosa, ao passo que a sua presumida rival D. Benedicta por mais d'uma vez tinha sido abençoada pelas gazetas; em nome do genero humano, em virtude de ter mandado aos presos os sobejos d'um jantar dado no dia natalicio do marido, a quem ella estimava tanto como a mim, quando souber que eu duvidei grandemente da virtude que os jornaes lhe deram. D. Elvira despeitada, um dia que o marido entrára d'ouvir o tocante sermão de um missionario ácerca de caridade, commoveu-se, e prégou tambem sobre a mesma virtude theologal. O marido maravilhou-se, enterneceu-se, e ouviu com lagrimas a proposta da fundação d'um abrigo de velhos e velhas desamparados, com as economias da esposa. Discutido o programma, escolhido o edificio, orçadas as obras de pedra e madeira, chegou a noticia ás gazetas. No dia seguinte, ambos os jornaes da terra retiraram os seus artigos de fundo para darem a circumstanciada noticia do caritativo instituto da virtuosissima senhora D. Elvira. Ambos os periodicos, á compita, lhe deram estes regalados e maviosos nomes: Pomba de beneficencia; anjo da caridade; sacerdotisa da lei de Jesus; mãe dos pobres; balsamo dos afflictos; esteio da decrepidez; lampada do Evangelho!
Lampada não gostou ella que lhe chamassem, porque[23] já a sua rival D. Benedicta costumava, não sabemos bem porque, chamar-lhe lampadario; seria talvez porque D. Elvira usava muito de vidrilhos na cabeça, os quaes brilhavam e scintillavam á maneira de lustre. Seria isso; mas D. Elvira aceitou os outros nomes com muita satisfação, e com grande faina, em menos de tres semanas, recolheu os doze velhos que estavam no segredo da sua caridade. O asylo tinha capacidade para vinte e quatro. Oito dias depois o numero estava preenchido.
E vai depois D. Benedicta, ciosa da popularidade que a sua rival vingára, combina-se com o marido, e delinea um outro asylo com capacidade para quarenta e oito velhos. Os jornaes que tinham gasto com a outra senhora os adjectivos, substantivos, e pronomes, empregaram em honra de D. Benedicta as interjeições. O artigo d'um começava por Ah! o artigo do outro jornal por Oh! Fundou-se o asylo de D. Benedicta. Como na terra não havia tanto velho, alguns marmanjolas de trinta annos, inimigos do trabalho, ou encanecidos nas cadêas, apresentaram certidão de idade de sessenta, e esconderam a sua bargantisse sob as azas caritativas de D. Benedicta, a quem as gazetas chamavam a santa!
Aconteceu que passados quatro annos D. Elvira mudasse de residencia para outro mundo, onde os necrologistas disseram que ella ia receber a palma do triumpho. A caridade do viuvo esfriou, e veio a um accordo com o marido da santa. Transformaram-se n'um os dous asylos, já abundantes de esmolas d'outras senhoras virtuosas, e assim chegou este humanissimo estabelecimento[24] a um grau de prosperidade que não deixa nada a desejar, segundo asseveram as gazetas da terra.
Agora queira o meu leitor curvar-se um pouquinho, e contemplar a raiz d'esta arvore evangelica, que braceja tão ridentes frondes e tantos fructos de benção! Veja que herpes, que podridão, que bicharia lá vai!
E com este episodio respondi á sua pergunta; e peço perdão de ter ultrapassado as cincoenta linhas promettidas.[25]
Sinceramente não sei corrigir-me do vicio das divagações. Ha quem defenda e demonstre que o romance philosophico deve ser assim alinhavado a exemplo de Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então dizem-me que as novellas são tractados de metaphysica. Se as minhas derramadas e extraviadas divagações fossem ao menos metaphysica! Ser eu, sem dar tino de mim, um escriptor subtil, imperceptivel, impertinente, medonho, e, acima de tudo, serio! Escriptor serio! quando se agarra a fama pelas orelhas, e a gente a obriga a dar pregão da nossa seriedade de escriptor, a gloria[26] vai procurar os nossos livros serios ás estantes dos livreiros, e lá se fica a conversar delicias com as brochuras immoveis, em quanto a traça não dá n'elles e n'ella.
O universo, e a humanidade principalmente ganha muito com os romances serios: exceptuam-se da humanidade os editores. Um meu amigo publicou seis volumes de novellas de costumes moraes a ponto de toda a gente dizer que não haviam taes costumes em Portugal. Recebeu muito abraço d'umas pessoas que tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos filhos a obediencia aos paes, aos proximos o mutuo amor, e á humanidade o temor de Deus. As seis novellas eram glossas aos dez mandamentos. Esperava-se a regeneração das velhas virtudes portuguezas, logo que o espirito publico se balsamificasse da uncção dos seis livros. Volvidos porém, uns dous annos, as estatisticas iam delatando em augmento a criminalidade publica. Espanto no meu amigo author, e desanimação melancolica nos editores! Não obstante, a gente grave continuava a dizer que o meu amigo, continuando a escrever por aquelle theor e geito, endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se entortava cada vez mais para elles, recommendaram ao escriptor moralista que vendesse a elles romances, e a quem quizesse os sermões. Ora, deu-se o caso de que este meu amigo era eu em pessoa.
Apesar dos baixios em que foram a pique os meus livros serios, teimo em ir n'este rumo, discorrendo opportunamente ácerca das grandes cousas e dos grandes factos como se viu do anterior capitulo. [27]
Volvendo a concluir as reminiscencias que tenho do antigo Affonso de Teive, resta-me ajuntar que o deixei em Lisboa no anno de 1851, e vim para o Minho onde me disseram quem era Palmyra, fallando eu em Affonso de Teive a um cavalheiro de Braga.
Em primeiro lugar, Palmyra tinha outro nome na sua terra. Fôra educada n'um convento; sahira do convento para casar com o filho do seu tutor, moço idiota e abominavel; e sahira de sua casa para a de Affonso de Teive, o qual por um acaso a vira nos arvoredos do Senhor do Monte, e de se verem á mesma hora em que ambos, embellesados no rumorejar d'arvores e fontes, pediam ao céo, ella o homem, e elle a mulher do seu destino, resultou amarem-se tanto que logo d'alli protestaram tacitamente immolar aos deuses infernaes o marido idiota—destino miserrimo que não descrimina entre idiotas e atilados. Estas informações sahiram-me com o tempo inexactas em muitos accidentes.
Não adiantou mais nada o cavalheiro bracharense; e isto já não era pouco para o meu espanto.
N'essa mesma época, occasionou-se-me conhecer o marido de Theodora, melhorada em Palmyra. Andava elle na feira do S. Braz em Landim, a tantos de Fevereiro, comprando bois, e vendendo cevados. Não lhe vi no semblante leve sombra de dissabor, nem osso descarnado. Vi que elle comia á tripa fôrra um chorumento jantar de carnes frias, em que predominavam as galhinaceas. Á sua direita estava uma mocetona espadauda,[28] escarlate, alta de peitos, e refractaria a toda a idéa de amor fino.
Disseram-me que esta moça apreciára devidamente o coração rejeitado por Theodora, e assava com perfeição as louras galinhas de que o marido abandonado hauria vigor com que resistia briosamente á sua desgraça. Vi tudo isto; e fiquei satisfeito. A gente folga de vêr assim remediadas as enfermidades da natureza. Quando em casos analogos, não ha victima nem algoz, e os personagens se acommodam na livre pratica da liberdade dos cultos, bem que o vicio não deixe de ser vicio, é comtudo consolador observarmos que uma certa philosophia é a melhor orthopedia para os aleijões de nascença de que a torta humanidade coxêa ha dezenove seculos.
É o que eu sabia e mais nada.
Como Affonso cahiu em esquecimento, nunca me deu para perguntar que feito era d'elle. As minhas desventuras não me davam ferias para farejar as alheias. Se alguma vez me passou pela idéa a esposa infiel do feirante de bois e cevados, imaginei-a reconciliada com o marido, e assim duramente castigada pela Providencia. Em quanto ao seductor, apostaria que elle, depois de ter desbaratado a casa, andava por Lisboa obscuramente solicitando um lugar de amanuense de secretaria ou aspirante de alfandega, se é que não tinha ido para o Brazil, com o seu diploma de bacharel em philosophia, colleccionar conchas por conta d'algum muzeu de historia natural. [29]
Agora vê o leitor o meu assombro justificado! É inquestionavelmente este homem gordo, de barbas intonsas, oculos, e tamancos o Affonso de Teive da Palmyra de Lisboa.
Elle aqui vai subindo as escadas, que nos levam á primeira sala. Cá estão em redor d'elle e de mim os oito filhos, que fazem bulha como trinta e dous. Creio que estou no pateo d'um mestre-escóla á sahida d'aula. Dous d'estes ferozes meninos tiram-me da mão o guarda-sol, abrem-n'o e fecham-n'o repetidas vezes, arremettendo contra os irmãos, que se defendem espancando a murros as varas da umbrella que gemem e entortam. Affonso gosta de vêr aquillo, e eu finjo tambem que não desgosto, nem receio de ser esfarrapado por aquelles innocentes.
Passamos ao seguinte repartimento da casa: era a sala de visitas, mobilada de alfaias antigas, cadeiras encouradas com chapas reluzentes, grandes bancas de pau santo, com gavetas atauxiadas de frisos metallicos e de marfim.
—A decoração diz com as minhas barbas!—reflectiu o risonho Affonso. Aqui é tudo portuguez—acrescentou, mandando inutilmente calar a gritaria dos meninos que, a meu vêr, legitimavam a raiva infanticida do Herodes—Até a linguagem é portugueza de lei: olha que estou fallando vernaculamente, meu amigo. Ha quatorze annos que tu me convidavas urbanamente a não insultar os Lucenas e os Sousas com as minhas[30] francezias. Vem vêr a minha livraria; se não queres primeiramente vêr minha mulher.
—Tenho muita honra e satisfação em ser apresentado a tua senhora—atalhei eu.
—Joaquim!—disse Affonso ao filho mais velho—Vai vêr onde está tua mãe; se estiver na cozinha, diz-lhe que temos cá um hospede, que não exige vestido de sêda. Que appareça como estiver.
O menino sahiu aos saltos de cegonha, e Affonso ajuntou:
—Minha mulher é um anjo, cujas azas brancas se não mancham na felugem da cozinha. Eu gosto que ella por lá se entretenha, se não bate-me n'estes bregeiros, que, como vês, são dignissimos de grossa pancadaria; mas eu amo estes diabinhos, que zombam de mim, e aturo-os, por que a dizer-te a verdade já me dóe a cabeça quando não ouço esta algazarra. E tu gostas de rapazes?
—Gosto muito, acho muito galantes os teus meninos; mas se me dás licença, dir-te-hei que em doenças de enxaquêca, o teu remedio não seria tão efficaz nas minhas como nas tuas.
—Bem sei—atalhou Affonso—Falta-te cabeça de progenitor, falta-te ouvido de pae que converte em musica no coração estes berreiros, que nem no inferno se poderiam receber como orchestra.
Não se fez esperar a esposa de Affonso.
Era uma senhora para senão descrever em romances, e para admirar-se entre seus filhos. [31]
É muito difficil e requer engenho grande tirar as semelhanças d'uma mulher, que se apresenta simples, modesta, e, logo á primeira vista, impropria de novella.
—Aqui está, e te apresento, minha mulher—disse Affonso, e tomou-lhe dos braços a creança mais nova, que lhe saltára ao pescoço, apenas a vira entrar na sala.
A esposa de Affonso de Teive respondeu acanhadamente ao meu palavroso comprimento, e tomou nos braços outro filho, que marinhava pelas costas da cadeira, e mostrava a cabeça sobre o alto espaldar de couro.
Como se não ageitava outra especie de conversação, fallei nos meninos, gabando-lhes a formosura e a esperteza. Affonso, que parecia não querer outra cousa, começou a contar-me anedoctas das suas creanças enthusiasticamente, algumas medianamente engraçadas, e outras que eu não pude ouvir, á conta da bulha que os pequenos faziam em volta da mãe. No entanto, fiz reparo n'ella.
A senhora teria trinta e oito annos, e formosura, por força natural, já decadente. Trajava roupas largas, talhadas sem esmêro, de droga ordinaria; a belleza das fórmas corporaes, denunciava-se apesar do trajo descuidado. Semblante assignalado de tanta doçura e bondade não sei que o haja. Poderia chamar-se tristeza de santa áquelle mavioso rosto pallido, quebrantado, e não sei que de scismador; a expressão, porém, dos olhos brandos, do sorriso quasi imperceptivel, do collo um [32] pouco inclinado em postura humilde, eram n'ella a alegria exuberante de santa sim, mas santa como esposa, santa como mãe, santidade de coração e alma repartidos entre Deus, esposo e filhos.
Pouquissimas palavras lhe ouvi na meia hora que se deteve comnosco. Conheci-lhe a inquietação cuidadosa no relancear d'olhos ao marido.
—Bem sei, disse elle. Vai, vai, que estás a pensar nas rabanadas e nos mexidos.
E ella, sorrindo, disse:
—Ainda me não apresentaste ao teu amigo como uma soffrivel interprete da arte de cozinha.
—Interprete!—exclamou elle—Tu és mais! Tu inventaste a sciencia da cozinha, que é muito mais sublime que arte. A tua modestia é que te não deixa vir á luz do mundo, d'este mundo cujas aspirações confluem todas para a gastronomia, com um tractado, que, ao mesmo tempo, me désse orgulho de ser teu marido, a quem tu deves esta vida retirada, sem a qual te faltaria espaço e remanso para as tuas especulações, em resultado do que vamos hoje cear as mais ambroziacas rabanadas que ainda os deuses coaram em suas celestiaes gargantas. A aldêa, meu bom amigo—continuou Affonso voltando-se para mim com solemne e galhofeira seriedade—a aldêa dispensa ao espirito investigador um curso completo de sciencias. A poesia do estomago, esta mais que todas poesia humanitaria, não se dá nas cidades; lá come-se materialmente; aqui dá-se ao espirito a presidencia em todas as materias assimilaveis. Estou com o [33] nosso admiravel Castilho n'estas memorandas palavras: «Longe de mim negar puerilmente ás cidades suas vantagens sociaes; digo só que para a poesia se não fizeram ellas; e que, se n'essa fragua algum engenho poetico resiste, se ahi canta, nunca ha-de ser tanto, nem tão bom, nem tão innocente, nem tão perfumado, como seria sem duvida nos campos.» E a poesia que é?—acudiu Affonso cortando-me o riso com que eu celebrava o desconchavo da citação—o que é a poesia se não aquelle estado diáphano e sublimado da alma, que se está engolfando e gozando n'um envolucro sadio, depurado de ruins vapores, e puro de toda a exhalação crassa d'um estomago derrancado, azedo, e intumecido? Pois has-de tu saber que um estomago limpo é a fonte de todo saber; e que a sciencia constructora dos selectos alimentos do sangue é a que mais de perto se relaciona e ata com a arte de exprimir cadentemente os affectos da alma—Logo...
A esposa tinha sahido quando esta abstrusa parlenda ia em meio, com ameaças de longo fôlego.
Eu estava ouvindo, como quem sonha, Affonso de Teive. Andavam já a formigar-me suspeitas de que o homem estava o seu tanto ou quanto embrutecido na aldêa; e posto que a defeza do paradoxal consorcio entre estomago e poesia viesse absolvida por um sorriso faceto, nem assim me descapacitei de que o espirito de Affonso havia soffrido profundas commoções que de todo em todo o transfiguraram, ou lhe transfiguraram os objectos do mundo exterior. Eu não podia convencer-me[34] de que a felicidade alterasse d'aquelle modo o genio e maneiras d'um homem, que eu jámais ouvira preconisar as regalias do estomago. Crêr que o bem-estar da alma procedia d'uma brutificação d'ella mesma, e que o encontrar esse bem obrigava a desatar-se a gente da convivencia de sujeitos policiados, de mulheres inspiradoras, e das magnificencias da arte, em fim, de tudo que todos buscam sofregamente, parecia-me absurdesa, e falsificação no caracter de Affonso de Teive.
Preparei-me, pois, para devassar o secreto reviramento que transformou em poucos annos o espirito menos propenso que eu vira á paz dos campos, e ao absoluto apartamento da sociedade.
Estava a cêa na mesa. Que enorme cêa comemos, e que estrondoso ruido fizeram os meninos! [35]
No dia seguinte, ao domingo de festa que eu passei com Affonso, reapparecera o sol magnifico da vespera.
Affonso de Teive mandou apparelhar um ordinario garrano, o qual, no dizer do dono, era um luxo nas suas cavallariças, visto que Affonso raras vezes sahia para além dos muros da sua quinta. Da residencia do reitor veio de emprestimo uma egua apparelhada de albardão, e estribos de pau que pareciam alqueires. Depois de almoço cavalgamos, embrenhamo-nos por uns quinchôsos pedregosos, e sahimos á estrada entre Guimarães e Famelicão. Estava destinado um passeio de duas leguas. A[36] egua abbacial era tão firme no piso, que eu dei de mão ás redeas, formei d'um estribo o travesseiro, e deitei-me no albardão, para admirar horisontalmente a natureza, maneira de vêr que eu recommendo aos curiosos que ainda não viram assim a natureza. Ao meu lado ia Affonso de Teive, corcovado sobre o pescoço do garrano, que não obedecia á redea nem á espora: era preciso fallar-lhe rijo, ou espertal-o á paulada. E Affonso ria-se.
—Quem te viu e quem te vê, Affonso de Teive!—exclamei eu—Quem te viu em Lisboa n'aquelle cavallo preto, que levantava ferozmente as patas, como para te cuspir á calçada, e as abaixava humildemente e a tremer, se tu lhe murmuravas uma palavra. Quem te viu ao lado d'aquella Palmyra...
Mal proferi esta palavra, Affonso cravou-me os olhos subito abrazeados do antigo fogo. Fingiu que sorria, querendo esconder a mutação de rosto. Voltou a face para onde eu não podia vêr-lh'a; e, passados alguns segundos, murmurou:
—Lá se foi a alegria do nosso passeio.
—Porque?!—acudi eu—perdôa-me, se involuntariamente feri a tua sensibilidade... Eu cuidei que entre ti e o teu passado estava um abysmo incomprehensivel aos olhos da tua saudade... Pensei que ao homem feliz eram indifferentes as recordações dos bons e dos ruins tempos da mocidade.
Affonso deteve-se a encarar-me, e disse de golpe:
—Tu ignoras a minha vida desde 1850?
—Juro-te que não sei nada da tua vida, respondi. [37]
—E d'essa mulher, que chamaste Palmyra?
—Nada sei, senão que...
—Diz o que sabes... que hesitação é a tua?
—Apenas soube que era casada, que sahira d'aqui para Lisboa comtigo, e mais nada. As pessoas, a quem perguntei por ti eram os teus velhos amigos, que encolhiam os hombros, e diziam: «quem sabe lá.» Desde 1856 que te esqueci completamente. Argue, se quizeres, a minha desmemoriada amizade; mas a verdade é esta. Eu sou, pouco mais ou menos como todos os teus amigos.
Asserenou-se o aspecto de Affonso de Teive, e fomos indo silenciosos, até apearmos em Guimarães na estalagem da Joanninha, que está n'este mundo a competir em graças, limpeza, e poesia com a Joanninha de Almeida-Garrett nas Viagens.
Jantamos, sahimos a vêr a terra, que eu nunca vira em Dezembro, enxergamos á luz crepuscular umas famosas damas da velha cidade que resistiam ao frio da tarde, encostadas aos peitoris das suas janellas; entrevimos galantissimos olhos d'outras através das rotulas, que ainda agora nos estão contando virtudes d'outras eras, virtudes, que precisavam de rotulas, como as bellas flôres exoticas precisam de estufa.
Voltamos á estalagem, tomamos chá, e uns pastelinhos que hão-de ir futuro além relembrando o mavioso nome da snr.ª Joanninha. Depois pedimos duas camas n'um quarto, e tivemos a satisfação de vêr que nos davam um quarto com cinco camas, ou cousa assim. [38]
—Ha dez annos—disse Affonso—é esta a primeira vez que durmo fóra de minha casa. Acho-me só e estranho. Penso que estou a mil leguas de minha mulher e dos meus filhos.
—Eu vou mandar apparelhar as cavalgaduras—disse eu—e vamos embora que está magnifica a noite.
—Não—redarguiu Affonso—que preciso estar a sós comtigo, uma noite. Debaixo das telhas que cobrem minha mulher os meus labios não proferem o nome de outra. Ella já sabe que eu fico em Guimarães. Fallarei, e tu ouvirás, ou dormirás. Fallarei do homem que conheceste em 1851, para explicar o homem de 1863. Has-de vêr que lamaçaes atravessei, que resacas affrontei, como eu me bati de peito com as puas de ferro da desgraça, para chegar ao abrigo onde me encontraste. Não pasmarás então da minha velhice precoce: ser-te-ha assombro a minha vida. Se és infeliz, consolar-te-has. Se o não és, recearás sel-o.
A noite, como sabem, era de Dezembro.
Ás onze horas consummiu-se de todo a vella. Affonso de Teive continuou a fallar ás escuras. Ao rasgar da manhã, abrimos as portadas, e Affonso fallava ainda. [39]
No principio d'este anno de 1864, sahi de Ruivães, onde, por espaço de oito dias, me escondi á minha estrella funesta—a vigilantissima desgraça, que eu ia esquecendo. No termo d'este praso, estranhei o socego das minhas noites, faltou-me a mão do demonio que me arregaçava com dedos de fogo as palpebras quebrantadas de somno, e fui á procura d'elle.
Deixei o meu amigo na cumiada do outeiro, visinho de casa, com sua esposa e filhos. As ultimas palavras d'elle foram: «quando tiveres o livro escripto, deixa-me gozar a não vulgar satisfação de me vêr personagem, e [40] heroe d'um romance, que me promette uma immortalidade...»
—De quinze dias—interrompi eu.
Não longe da obscura paragem de Affonso de Teive, á margem do córrego chamado Péle, riacho, que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em letra redonda, assentei eu a minha tenda nómada. A minha tenda são uns vinte volumes, um tinteiro de ferro, e um cabo de penna de osso, que me deram n'outro ponto do mundo, onde ha quatro annos assentára tambem a minha tenda,—ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu sestro vagabundo: era no anno do Senhor de 1860, nos carceres da Relação do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não impedia que esta minha tão querida penna, tão amiga confidente d'aquellas trezentas e oitenta noites—de Janeiro todas, que lá a dentro dos congelados firmamentos de pedra, reina perpetuo inverno, e giam as abobadas, não sei se lagrimas, se sangue, se agua represada nos poros do granito,—não impedia, vinha eu dizendo, que a minha penna, com o seu incansavel fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos da alvorada, me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar de graças ao Senhor, e o confessionario onde abri minha alma ao perscrutar do anjo providencial que me dava a uncção dos athletas e dos grandes desgraçados, para mais affrontosos e excruciadores supplicios. [41]
Os meus vinte volumes, e o meu tinteiro de ferro, estão hoje sob o tecto gasalhoso d'uma alma que eu n'outras eras encontrei na minha. Não sei ha que seculos isto foi, nem que congerie de abysmos nos separam para sempre. Parei aqui, por que ainda aqui, a tempos, se me figura rediviva a imagem do passado, ainda aquella alma se me hospeda no coração em instantes de sonhos do céo, ainda a pedra tumular das affeições, cahidas á voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a saudade é ainda um affecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptivel que o passado nos herda.
A casa, onde vivo, rodeam-na pinhaes gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soido é a linguagem da noite que me falla: parece-me que é voz d'além-mundo, um como borborinho que referve longe ás portas da eternidade. Se eu não amasse de preferencia o socego do tumulo, amaria o rumor d'estas arvores, o murmurio do córrego onde vou cada tarde vêr a folhinha secca derivar na onda limpida; amaria o pobre presbyterio, que ha trezentos annos acolhe em seu seio de pedra bruta as gerações pacificas, ditosas, e incultas d'estes selvagens felizes que tão illuminadamente amaram e serviram o seu Creador. Amaria tudo; mas amo muito mais a morte.
Aqui, se Deus se amerciar de mim, embargando o passo ao anjo exterminador, que continuo me assaltêa os aditos do meu eden de quinze dias, aqui escreverei, [42] com quanta fidelidade a memoria me suggerir, a narrativa que Affonso de Teive me fez.
Seis mezes ha que se fez noite do meu espirito. Por arrebatados impetos de quem quer furtar-se ás garras de um imaginario dragão, tenho fugido para defronte do meu tinteiro de ferro, e avocado as graciosas imagens, filhas do céo, que, nos dias da mocidade fremente de más paixões, me refrigeravam a fronte, e disputavam ao encanto do mal, psalmeando-me o hymno de amor ao trabalho. O perdimento d'esse amor foi a suprema provação, a forja ardentissima em que minha alma foi lançada á voracidade d'um fogo depurante. Mas, no interior, por tudo em que sombreava a negrura do coração, eram tudo trevas, frio, lethargia, esquecimento.
Não sei de que futuro abril do meu porvir me veio esta manhã um bafejo aromatico de flôres, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace archanjo do contentamento. Passou o nuncio mysterioso, passou depressa, mas o meu espirito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus immenso que na immensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciencia repousada, prelibações de bem-aventurança, e honrada alliança com os homens.
Penso que estou escrevendo as tuas palavras, ó meu amigo, redemido a lagrimas, a ultrages, e a desapêgo do mundo. O clarão, que hoje alumiou a minha alvorada,[43] seria por ventura um reflexo das tuas alegrias. Ha dias me disseste:
«Sabes tu o que é ter um Deus, que nos escuta, que nos reprova, que nos louva, que nos povôa o espaço onde a alma insaciavel do homem encontra um vazio horrendo, uma respiração afflictiva?» Querias tu dizer-me que orasse? A ti o confesso em grandes enchentes de consolação, e ao mundo o confessarei sem o impio rubor dos miseraveis que perderiam sua alma antes que a irreligiosidade os escarnecesse: OREI, meu amigo; porque, n'um dos mais apertados trances de tua vida, quando m'o acabavas de contar, interrompi o teu silencio, perguntando:
—E que fizeste depois?
E tu respondeste-me:
—Depois, OREI.[44]
Affonso de Teive estudava, ha hoje vinte annos, em Braga, os elementos preparatorios para o curso universitario, quando viu Theodora, conhecida pela morgadinha da Fervença. Era ella então menina de quatorze annos. Affonso tinha dezesete.
As mães d'estes dous meninos, entre-vistos e amados com o innocente attractivo do beijo aerio na flôr a desatar-se e a enrubecer na tige, tinham sido condiscipulas na educação d'um convento. Apartaram-se para serem esposas, com promessa de se continuarem a amar em seus filhos, se a sorte lh'os désse com vocação para [46] se unirem. Votos de virgens ainda, feitos com as faces purpureadas do calor do coração, que as levava contentes aos seus novos destinos.
A mãe de Theodora igualou em fidelidade da palavra promettida a mãe de Affonso. Uma tristeza, porém, a desconsolava, e cada dia se espessava mais a escuridade em seu espirito: sentia-se morrer, aos trinta e tres annos, de enfermidade de peito, e deixava Theodora em annos verdes, solteira ainda, á mercê e alvedrio de tutores.
Na ultima phase de sua vida, foi ella a Braga com sua filha, de proposito a encontrarem-se com o moço predestinado a esposo, já esquecido, talvez, dos primeiros annos em que se haviam conhecido creanças. O vêr com que alegria elles se reconheceram, e saudaram, como avesinhas pousadas em uma mesma fronde ao mesmo arrebol da manhã, melhorou temporariamente a enferma; porém, a muito rogada vontade do Senhor não lhe concedeu os dous annos de vida pedidos para a effectuação do casamento. Segredos do céo previdentissimo; que, a não o serem, estes rogos de mãe, em favor da virgem, que vai ficar sosinha no mundo, com os seus dous inimigos—innocencia e formosura—taes rogos baldados, e indeferidos em Deus, induziriam a argumentar contra a mediação do Creador nas miserias que creou.
Apenas fallecida sua mãe, Theodora foi recolhida ao convento das Ursulinas, por deliberação d'um tio paterno, constituido espontaneamente tutor da orphan. [47]
Affonso, aconselhado pelo coração e por sua mãe, visitava a educanda, disfarçando as frequentes visitas com a innocente mentira de parentesco.
Theodora, com dous mezes de convento, desenvolveu-se e grangeou sciencia da vida que não alcançaria em dous annos de aldêa, da sua solitaria aldêa, onde tinha apenas aves, flôres, e estrellas a segredarem-lhe iniciações para amor. No convento, as prelecções eram menos vagas, e mais acommodadas á capacidade das educandas. É certo que as mestras não leccionavam ternuras; mas o zelo, com que ellas vedavam o pomo, dava a desconfiar que as precautas religiosas lhes tinham saboreado o travor; a não ser que o desdenhavam á mingua de dentes incisivos com que entrassem na casca d'aquelle execravel e tão convidativo fructo de Pentápolis.
Com menos de quinze annos, Theodora completou o exterior de suas graças, e o interior do seu espirito. A belleza sabia ella já quantas invejas lhe ganhava entre as condiscipulas, quantas intrigas, quantas reprehensões da mestra, á conta do muito enfeitar-se e remirar-se ao espelho. Não importava. A morgadinha da Fervença gostava de ser bella, de ser invejada, e perseguida das inimigas, com condição e resalva de ser admirada pelos galanteadores das suas perseguidoras. Em quanto ao espirito, o saber precoce de grades a dentro igualou-a, se não antes avantajou-a muito ao estudantinho de Ruivães que, contra toda a natureza e arte, em colloquio amoroso ficava [48] muito áquem de Theodora, e sahia do locutorio admirado da esperteza palavrosa da morgadinha.
Estas delicias do palratorio, porém, foram repentinamente suspensas.
O tio e tutor de Theodora, sabedor dos amorinhos, que as religiosas, contra o seu costume, tomaram entre dentes, impoz a sua jurisdicção tutelar. A educanda reagiu sem proveito, e Affonso desafogou em lagrimas a sua saudade.
A velha fidalga de Ruivães, avisada pelo filho afflicto, foi a Braga consolal-o, e d'alli partiu a casa do tutor, a lembrar-lhe o consorcio de Affonso e Theodora, desde muito pactuado entre ella e a sua defuncta amiga. O tutor replicou, dando como nullos taes arranjos, em quanto os meninos não estivessem em idade de os ratificar.
Affonso esmorecera em dolorosa lethargia, ao passo que Theodora pensava em fugir do convento. O instincto de associação, irrecusavel em empresa tão arriscada, deu-lhe a conhecer a unica pessoa capaz de auxilial-a.
Estava nas Ursulinas uma menina de Traz-os-Montes, de familia distincta, e costumes tambem distinctos em natureza depravada. Entrára alli como em prisão; não obstante, como o anjo das trevas nunca desampara as suas dilectas, lá mesmo lhe espiritou traças de poder entender-se com quem quer que foi que a viera seguindo desde a hora em que a familia a desterrára. E que traças[49] de infando successo, que revelação affrontadora da humanidade vai hoje eetampar-se n'esta pagina!
A menina transmontana abrindo á flôr dos labios o sorriso condolente d'um anjo de candura, assellou com um beijo no rosto da sua recente amiga o pacto de se coadjuvarem contra a tyrannia de paes e tutores.
E posta, desde logo, em discussão a materia, quiz a morgadinha da Fervença, sem mais rodeios, saber de que modo poderia fugir do convento. Libana achou arrojado o intento da fuga, e desesperado sem razão, quando se podia melhorar de sorte, sem correr o risco de ser presa e reposta no convento para nunca mais vêr sol nem lua. Contou ella, para exemplificar o perigo da fuga, a desgraça acontecida n'aquelle mesmo convento, uns trinta annos antes. Era a longa historia d'uma senhora, reclusa alli por violencia, que cuidando salvar-se pelos encanamentos subterreos dos escoadouros do mosteiro, morrera asphyxiada; e quando as freiras, a familia e as justiças a julgavam foragida no estrangeiro, um operario occupado da limpeza dos vallos, encontrou um cadaver quasi esphacelado, mas ainda reconhecivel pelos trajos. Semelhante historia, contada e ouvida n'aquella casa sempre com horror, fez sorrir a morgadinha, e tirou-lhe do peito virginal esta observação: «Tendo eu de morrer na immundicie dos canos, antes me deixaria morrer entre a immundicie das freiras. Lá em quanto aos aromas enjoativos, tanto faz estar lá em baixo como cá em cima.» A resposta foi mais estirada e espirituosa no seu genero; [50] mas assumptos d'esta grossura só podem tratal-os curiosamente engenhos claros e eminentes como o poeta dos Miseraveis, que poetisa os escoadouros de Paris com o mesmo acume de estylo com que fallaria dos jardins perpetuamente olorosos do Elysio.
Resolvida a sobre-estar do plano da fugida, Theodora travou-se de mui intima amizade com Libana, e formavam a sós um partido, que se fazia respeitar pela audacia da lingua, e soberba de sua prosapia e abundancia de meios. N'este conloio entrava uma servente de fóra e uma criada de dentro, mediante as quaes Affonso de Teive recebia cartas de Theodora, e um cavalheirote imberbe de Traz-os-Montes, primo de Libana, recebia as cartas de sua prima.
N'uma tarde de Agosto, sahiram as duas meninas a tomarem a fresca na cêrca. Com o geito scismador e melancolico em que iam, dirieis que eram as duas graças a procurarem a terceira, que lhes fugira enamorada d'alguma divindade incognita. Quem as visse, áquella hora, depurativa das fezes de maus pensamentos e más palavras, havia de cuidar que o seu dialogo, todo ferventes arrobos e cantares ao empyreo, versava sobre os céos de Santa Thereza de Jesus, ou semelhantes devaneios do espirito embebecido no foco luminoso dos bem-aventurados.
Agora se recostam ellas n'um escabello de cortiça, cujo espaldar lhe formam almofadas de fofas murtas, matizadas da flôr do maracujá. Perto d'ellas trepida uma fonte; no tanque, onde a lua já principia[51] a espelhar-se, coaxam as rans; a viração cicia nas ramas do pomar; zumbem os insectos, espanejando-se ao frescor da tardinha. As duas candidas meninas, enleadas na poesia do quadro, realçam-no e completam-o.
Ouçamos a musica d'aquelles seraphins.
Dizia Theodora:
—Se me eu pilhasse fóra d'aqui!... N'estas tardes tão bonitas, havia de ser tão bom andar eu a passear com o meu Affonso!... Queimado morra o meu tutor e mais o filho! Se não fosse aquelle bruto, não estava eu engradada! Ó Libana, tu não farás com que nos escapemos d'este inferno! Olha... lá está a madre porteira a espreitar-nos da grade do canto!...
Libana voltou desabridamente as costas á madre porteira, e acudiu n'estes termos aos anhelantes desejos da sua amiga:
—Olha, Lóló, não te zangues. A gente, a final, ha-de sahir d'aqui, muito a tempo de gozar a vida. Se não formos tolas, podemos ir gozando mais do que temos feito. Queres tu saber o que me diz o meu Alfredo? Queres vêr quanto elle me ama? que sacrificio quer fazer por amor de mim? Olha, eu não quiz dizer-te o que me elle pediu na carta de hoje, com medo que tu me aconselhasses a não ceder; mas cedo, filha, cedo que a paixão não tem leis. Pede-me para vir ser minha criada.
—Tua criada!—exclamou Theodora.
—Minha criada; pois então?—replicou Libana, [52] abaixando o tom de voz, abafada pelo frouxo do riso—Não ha nada mais facil. O meu Alfredo tem cara de mulher, e não tem ainda barba. Diz elle que se veste á moda das raparigas da minha terra, que me procura com uma carta fingida de minha mãe a pedir-me que receba a portadora como criada; cá no convento ninguem póde impedir-me que eu a receba; a gente hade ter todo o cuidado que se não descubra o logro; e... tu... que me dizes, Lóló!
Theodora acudiu com o rosto chammejante de alegria:
—Olha lá, Lili, o meu Affonso tambem tem cara de mulher, pois não tem?!... Se elle viesse tambem para minha criada era tão bom!
—O peor é que elle é conhecido, por ter cá vindo muitas vezes—observou Libana—O meu Alfredo é que só veio aqui no principio uma vez, e ninguem o conhece... Não vamos nós botar tudo a perder, Loló!
—Que pena!—exclamou a morgadinha com os olhos no céo e a mão direita sobre o coração latejante—Que pena que o meu Affonso não venha tambem para cá!... Ó Libaninha, vê se inventas alguma cousa, se não a tua amiga morre de tristeza!...
E, dizendo, escondeu o rosto, aljofrado de quatro lagrimas, no seio da amiga.
Que lagrimas! D'onde veio ou para onde foi o anjo da innocencia, quando um peito virgem tem d'aquellas lagrimas, e uns olhos, que ainda não viram os hediondos espectaculos da farça do mundo, podem choral-as! [53]
Fechou-se a noite. Já a sineta havia chamado as duas meninas rebeldes ao primeiro e segundo aviso. Ergueram-se, deram-se o braço, e foram, na cella de Theodora, continuar o recendente colloquio do jardim.
Theodora, a não poder ser feliz, exultava com as venturas da sua amiga. Animou-a á temeridade de receber o atrevido rapazola de Tras-os-Montes, idolatra d'um personagem de romance, unico que em sua vida lêra, o Lovelace, de quem se propunha imitar o entrajamento de mulher. O tolo! Ainda bem que as asneiras, copiadas dos romances, costumam ter, na vida real, umas sahidas muito desgraçadas ou irrisorias! Ainda bem, para desdouro dos livros desmoralisadores, e luzimento d'outros livros de san moral, que só fazem mal ao publicador que os não vende.
Este Alfredo, que vivia occulto nas cercanias de Braga, applaudido por Libana em seu projecto, foi á sua terra preparar os vestidos, e ensaiar-se em tregeitos mulheris.
Libana tinha uns irmãos, oriundos do mesmo tronco de pae e mãe, os quaes pelos modos, não tinham de que espantar-se do descomedimento e desatino da filha e irman; d'onde vinha o serem elles grandemente avelhacados, astustos, e espiões das tramoias de Alfredo.
A villa era pequena e de soalheiro. Correu logo por algumas boccas, até aos ouvidos dos interessados, o estar-se fazendo roupinhas e saiotes, e outros atafaes de mulher, afeiçoados ao corpo de Alfredo. Sem detença, [54] um dos irmãos de Libana sahiu para Braga; o outro ficou d'atalaia aos movimentos do imitador de Lovelace. O que se escondera em Braga foi avisado a tempo que Alfredo vinha de jornada. Uma engenhosa combinação com as authoridades lançou a rede tão a ponto que o infeliz foi capturado na portaria das Ursulinas, vestido de camponeza transmontana, e d'alli, entre baionetas, e escoltado de rapazio, percorreu todas as estações judiciarias desde o regedor até ás caricias do carcereiro.
As religiosas, conscias do escandalo, requereram ao prelado bracharense a expulsão da reclusa que deshonrava o convento e contaminava de sua desmoralisação as outras meninas. Foi, portanto, Libana entregue a seu irmão, que a levou para casa. Esperava-se geralmente que esta donzella, agourada para estremados desastres, tivesse um fim de exemplo a mulheres desgarradas do trilho da virtude. Os prognosticos da opinião publica erraram, como se ha-de vêr n'um futuro livro.
A gente não sabe ainda bem como este mundo está feito.[55]
O escandalo, que felizmente abortou á portaria do convento, poz de sobre-rolda os paes de familia, que tinham meninas a educar nas Ursulinas, e deu ás insomnes freiras um sexto sentido de observação. Dentro do mosteiro reinava a opinião de que Theodora tinha bastante capacidade para tomar criada, conforme o gorado systema de Libana. Além d'isto, depois da expulsão da transmontana, a morgadinha, em vez de quebrar de orgulho e reportar-se, enfuriou-se mais, e sahia com invectivas e chacotas ás freiras velhas, clamando a vozes descompostas que a mandassem embora, se lhes não servia[56] assim. A communidade offendida e esgotada de paciencia, consultado o tutor da educanda, assumiu o uso ou o abuso dos antigos poderes monasticos, e encerrou-a no seu quarto, com ameaças de a fecharem no tronco. Theodora esmoreceu diante da força mixta das freiras e dos padres capellaens, que promettiam supprir com o pulso a inefficacia da eloquencia persuasiva.
Vagamente informado da situação da sua amada, Affonso de Teive foi á portaria do convento, no heroico proposito de ir arrancar a victima de sobre as aras da theocracia despotica. A porteira, senhora de oculos e de muita virtude, offereceu peito de martyr ás injurias impias do acriançado amante. Porém, como quer que o acaso alli encaminhasse um cabo de policia, quando Affonso gesticulava e vociferava um menos mau improviso contra os conventos, o cabo, com as mãos atadas na cabeça, correu ao regedor, e este acudiu no supremo lance, já quando o allucinado alumno de rhetorica, estrondeava na porta valentes murros, chamando Theodora a clamorosos gritos.
Travado pelos braços pujantes das authoridades, Affonso não pôde resistir á surpreza do assalto. Escabujou e esbraveou em quanto as forças da raiva o aqueceram; a final cahiu exanime nos braços da lei, balbuciando ainda «Theodora!» Estava a instaurar-se-lhe processo, quando a fidalga de Ruivães chegou a desfazer com a sua respeitavel presença, e auxilio dos mais importantes cavalheiros de Braga, a criminalidade pueril do filho.
Affonso, levado por sua mãe, foi para casa, deliberado[57] a deixar-se morrer. Cahiu de cama, e tresvariou em febres de mau caracter. Todavia, os cuidados maternaes, cooperados pela robusta natureza dos dezeseis annos, salvaram-no. Os olhos, durante a morosa convalescença, choraram-lhe de continuo; os sonhos eram-lhe ainda supplicios de que despertava em brados e soluços; não obstante, a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa chegar o agro e adstringente de uma lagrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores incuraveis são os que desabafam em rancorosas explosões.
A parentela do illustre pimpolho, alvorotada pelas lastimas da fidalga, reunira-se em conselho, e alvidrára que Affonso de Teive fosse completar os estudos preparatorios em Lisboa, hospedando-se em casa d'um seu tio desembargador. O moço obedeceu ás exhortações e rogos de sua mãe, depois que a extremosa senhora lhe prometteu e asseverou que, a despeito de tudo e de todos, Theodora, no praso de um anno, seria sua esposa.
Os parentes embicaram, resmoneando que o morgadio da Fervença o era só em nome, sem vinculo, nem fôro em ascendente conhecido. Contra estas razões se insurgiu Affonso em termos que fariam a illustração democratica d'um botequineiro antes de ser cavalleiro do habito de Christo. A fidalga, mais ufana de proceder do tronco dos primitivos christãos, iguaes entre si e iguaes ante Deus, que vaidosa de aparentar-se com os Pinheiros de Barcellos, e os Corrêas e Lacerdas da Honra de Farelaens, votou com seu filho, dizendo «que na casa de Ruivães sobejava a fidalguia e faltava a felicidade.» [58]
Foi Affonso para Lisboa com o capellão. O tio desembargador gasalhou-o nos braços, e as primas, filhas do bondoso magistrado, á mingua d'um irmão, começaram logo a dizer que Deus lhes dera um, e, como tal, o não deixariam voltar mais, sem ellas, á provincia.
Pouco montam tantas caricias para o contentamento de Affonso. Ralam-no saudades, emmagrecem-no os jejuns, amarellece-o a tristeza. Nas aulas é mau estudante; no circulo dos condiscipulos é um automato que ri por comprazer, e vai sem saber que vai para onde o impellem; em casa com as primas é um aborrecido, que nem ao menos as acha bonitas, nem scisma sequer em adivinhar as charadas metricas, e logogriphos figurados, em que todas são eximias, e sobre modo impertinentes.
A senhora de Ruivães recebe de todos os correios instantes cartas de Affonso accelerando as diligencias para o casamento. A consternada mãe já por terceiras pessoas mandou sondar as difficuldades que importa combater. De Braga dizem-lhe que Theodora já sahiu do encerramento da cella, e tem o convento todo por homenagem, salvo o palratorio e a cêrca. Ajuntam as informações que o tutor da morgada frequenta semanalmente o convento, e algumas vezes vai com elle um filho, rapaz de figura absurda, com uma gravata vermelha, capaz de seduzir uma nação de pretos, e uma casaca archeologica, de cabeção tão copioso que parecia enrolar um capote.
A descripção poderia ser acoimada de desgraciosa; mas de hyperbole não. [59]
Este sujeito chama-se Eleuterio Romão dos Santos, por ser filho de Eleuteria Joaquina, e de Romão dos Santos, tutor de Theodora, lavrador abastado, visinho do mosteiro de Tibães.
Eleuterio tem vinte e dous annos; quiz aprender a lêr com seu tio padre Hilario; mas a natureza oppoz-se-lhe, logo que elle, apoz um anno de canceira, entrou a soletrar palavras de tres syllabas. Vencido pela natureza, padre Hilario desistiu, visto que lhe era vedado arejar o cerebro do sobrinho por uma fresta aberta a machado.
O filho unico de Romão dos Santos recebeu em upas de alegria a noticia da sua incapacidade para soletrar nomes de tres syllabas. No dia seguinte, o pae mandou-o á feira dos nove com uma junta de bois. O rapaz effectuou a venda dos bois com tamanha astucia e vantagem que logo d'alli se deu a conhecer a sua vocação. Uma segunda mercancia robusteceu-lhe o credito, que outras vieram confirmando, até que Romão deu ordem illimitada de dinheiro a Eleuterio para poder negociar em bezerros e vitellas.
Estava o rapaz n'este auge de glorificação propria, e inveja dos visinhos, quando falleceu a mãe de Theodora. A orphan, apenas sua mãe cerrou olhos, foi conduzida para casa de Romão, seu tio paterno. A criança ia lagrimosa e carecida de meiguices e consolações de alguma senhora, que lhe fallasse a linguagem polida á qual estava afeita. Em casa de Romão havia sómente a snr.ª Eleuteria Joaquina, creatura chan, que, a cada soluço da sobrinha, dizia quasi sempre: [60]
—Não chores, pequena; que a morte é portêllo que todos temos de passar.
E, para não dizer sempre o mesmo, variava d'este theor:
—Isto, como o outro que diz, é hoje tu, amanhã eu.
Eleuterio, porém, menos versado em lugares communs de pezames aldéãos, querendo consolar sua prima, tirou estas palavras do peito:
—Senhora prima, olhe que o chorar faz mal ás meninas dos olhos. Deixe-se de estar a suspirar, que não lhe dá remedio. Agora o mais acertado é divertir-se pelas feiras. Vem ahi a de Villa Nova de Famelicão, onde eu levo vinte e duas juntas de bezerros. Se a snr.ª prima quizer, vamos comprar de meias algum gado, e deixe cá isso á minha vigilancia, que eu, dentro d'um anno, prometto dar-lhe dinheiro de ganho com que ha-de comprar um grilhão de duzentos mil réis, e umas arrecadas de lhe chegarem aos hombros. O mais quem morreu morreu, é ditado dos velhos.
—Quem morreu é rezar-lhe por alma—atalhou com má grammatica, mas com piedosa intenção, o tio padre Hilario.
Theodora estava a rebentar de raiva, quando Eleuterio recolheu ao bucho das cruas sandices outras muitas que já lhe ferviam nos gorgomilos.
Ahi está uma amostra de Eleuterio Romão dos Santos.
O conselho de familia deliberou o ingresso da orphan[61] nas Ursulinas. A menina acolheu agradavelmente a noticia, por se desentalar assim da oppressão do primo alvar, e da tia, mais boçal do que racionalmente se deve permittir á bondade de uma pessoa qualquer.
Logo que a mãe de Theodora morreu, o tio, que lhe conhecia o valor dos bens, lançou contas ao futuro, e deu como realisavel um casamento, que vinha a ligar as duas casas maiores da freguezia. Custou-lhe a ceder que a pupilla se lhe distanciasse de casa; mas os votos dos outros membros venceram, fundados na precisão de educar a menina, que fôra creada com mestras, e de todo estranha á vida agricola.
Entretanto, Romão predispoz o filho a cuidar seriamente no bonito arranjo, que lhe sahia a talho de fouce: estylo figurado e pittoresco em que são inventivos os nossos camponezes, e em que Romão primava sempre que tinha entre mãos algum bonito arranjo, o qual vinha a ser sempre um arranjo feio para o proximo.
Eleuterio, ao principio, disse que a prima lhe parecia um arenque. Fundava o desdenhoso a sua critica na magreza delicada e cortezan de Theodora. Entre os galans da estôfa de Eleuterio mulher de encher olho queria-se vermelhaça, alta de peitos, ancha de quadris, roliça e grossa de pulsos, com os queixos tumidos de gargalhadas estridulas, e as facecias equivocas, e os estribilhos patuscos sempre engatilhados nos beiços grossos e oleáceos. Theodora era o envez de tudo isto. [62]
Faz pena vir aqui a ponto o descrevel-a, quando o contraste lhe fica tão de perto.
Theodora, aos dezeseis annos, era um modêlo acabado de formosura, como raras se vos deparam nas raças patricias, que o concurso de circumstancias, umas espirituaes, outras physiologicas, aprimoraram. A pallidez era n'ella o principal caracteristico das bellezas de eleição, á escolha de olhos onde parece que os nervos opticos vem da alma, e não do cerebro a tecerem a retina. A mulher pallida é a que vem cantada em poemas e estremada em romances: ora, quando a poesia e prosa conspiram a dar a realesa do amar e padecer á mulher pallida, havemos de curvar-lhe o joelho, na certeza de que ella se fará amante e martyr, por amor do poema e do romance, ainda mesmo que a natureza lhe tenha temperado o coração d'aço. Póde ser que semelhante clausula, no decurso d'este livro, acuda á retentiva do leitor.
Relumbravam no alvor das faces de Theodora olhos negros, não vivos, antes morbidos, como se a queda das longas palpebras, iriadas de veias azuladas, lhes vedasse o raio de luz em cheio que rebrilha, aquece, e regira os globos visuaes. Do nariz diremos que, n'esta feição, a mais rebelde aos desvelos da natureza, tão extremada se mostrára ella, que bastante lhe fôra aquella perfeição para desmentir os que a taxam de desprimorosa. Em labios, não sei se me valha das figuras antigas—rosas e coraes, romans e carmim—se me avenha com esta verdade prompta e fluentissima que d'um [63] traço copia como o pincel, e d'uma phrase exprime tudo, como em phrases de Castilho: «era um osculo perpetuo de innocencia.» Como isto sahe bem na musica da expressão; e que bello seria o mundo, se as boccas formosas estivessem sempre absorvidas no osculo perpetuo da innocencia! Ó Theodora, se tu então morresses, o teu rosto trasladado em marfim, ainda agora nos seria a imagem dos labios nunca despregados do beijo d'algum anjo, resabiado ainda da voluptuosidade dos anjos mal-avindos com o candor celestial. Mas tu cresceste, e deformaste-te, ó chrysalida! A tua essencia de céo vaporou para lá no alar-se de alguma virgem, irman tua, que o Senhor chamou na ante-manhã do primeiro dia nebuloso de sua vida; e o que de ti ficou foi a formosura e a desgraça da mulher.
Mas, afóra a essencia pura do céo, que esvelta, que peregrina mulher cá se ficou a ostentar as galas mundanas, esse opulento nada que desaba do altar da nossa idolatria a um roer surdo de vermes e podridão!
Esta ultima palavra tolhe-me de continuar a descrever Theodora. Esmoreceram-me os espiritos. Cahi da minha phantasia na lagôa fétida da verdade. Achei-me como ás margens d'uma sepultura regélida do giar d'uma noite de Dezembro. Parou-me o sangue no pulso, inteiriçaram-se-me os dedos, e a penna desprende-se. Assobia o nordeste pelas arestas dos jazigos, e remexe e sacode de sobre esta pedra umas corôas humidas de orvalho, crystallizado em lagrimas; são corôas de perpetuas sagradas á formosura, que se julgou immorredoura,[64] á sexta hora do seu breve dia. Lá vão as corôas no bulcão do vento; lá vão esgalhadas as frondes do chorão e do cypreste; lá vai tudo; a memoria dos vivos lá se foge tambem d'esta sepultura: tudo foi; só tu ficaste, ó Cruz! [65]
Belleza absoluta, de têlhas abaixo, ha uma só, que é a da mulher formosa; e, na variada manifestação de belleza em diversidade de typos, ha uma superior formosura, que constitue o bello universal, o bello que prende e leva todos os olhos. A mulher, assim dotada, tanto impressiona o espirito educado na visão e admiração das maravilhas da natureza e arte, como o espirito desculto de toda a compostura e discernimento. Dá-se o exemplo d'esta cousa formulada em these abstrusa na embriagadora influição dos olhos de Theodora no animo selvagem de Eleuterio. A menina de quatorze annos, que o lerdo [66] vaqueiro comparava a um arenque, appareceu-lhe aos dezeseis na grade do convento, e atordoou-o. O moço, querendo exprimir ao pae a sensação recebida n'aquella hora, disse com expansiva naturalidade:
—Quando ella me espetava os olhos, havia de dizer que a minha alma estava fóra do corpo! Eu queria dizer-lhe alguma cousa, e a lingua grudava-se-me ao céo da bocca. Quem me dera ser rei, e que ella fosse uma pastora de cabras!
Se a linguagem fosse mais joeirada de plebeismos, a concisão da idéa poderia attribuir-se a Shakspeare. A mais crystallina agua é a que rebenta de penhascos ermos: assim, de espiritos selvaticos, resaltam por vezes umas idéas limpidas, d'uma sensibilidade original, que faz pensar.
Romão ficou contente da resposta, decorou-a, e assim a pespegou a Theodora. A menina, vesada á linguagem mais florida ou mais delicada de Affonso, riu interiormente dos termos rusticos do primo, e de fóra compoz o gesto para fingir que o não entendera. O tutor, porém, instinctivo avaliador do capital do tempo, sem saber que os economistas inglezes chamavam ao tempo capital, repetiu, já dilucidando-as, as palavras de Eleuterio, aproando o discurso ao ditoso remanso do casamento, que elle, na sua locução figurativa, denominava um lindo arranjo.
A morgadinha ouviu anciada o tio, e respondeu com um ataque de nervos, que era já o terceiro que a insultava; sympathica doença em meninas pallidas, se é o amor [67] contrariado que lhes desmancha o apparelho nervoso. Theodora soluçava agudos gemidos, que iam reboando pelos dormitorios. Acudiram algumas freiras, e transferiram-na á sua cella. A prelada foi á grade averiguar do accidente, e sahiu convencida de que a orphan era uma douda, a quem Libana, de impudíca memoria, ensinára a fingir ataques nervosos. Romão dos Santos sahíra do convento no proposito de consultar um egresso do Carmo sobre os tregeitos e feitios que vira em sua sobrinha, para applicar-se-lhe a reza purgativa de demonios, se o frade entendesse que ella os tinha no corpo. O zeloso e invencivel demonifugo foi ao convento, avistou-se com a suspeita energumena, mandou ás freiras que depozessem ácêrca das malfeitorias attribuidas ao espirito immundo, e retirou-se capacitado de que a morgada da Fervença estava possessa d'uma legião de travessos e intrigantes diabinhos que usam, contra todo o natural, aninhar-se entre religiosas, não as poupando mesmo, quando ellas tomassem o expediente salvador do conhecido gallego da fabula de Almeida Garrett. Era illustrado o egresso.
No entretanto, soubera Theodora que Affonso de Teive fôra para Lisboa. Esta partida azedou-lhe a vaidade, sem embargo de ter sabido a destemperada arremettida que elle fizera contra a porteira, e as vergonhas e trabalhos que lhe ia custando ao pobre moço aquella façanha. Porém, ninguem lhe dissera que dôres o pozeram á borda da sepultura, que saudades o crucificavam em Lisboa, e que vans solicitações fazia a mãe de [68] Affonso para assegurar á filha da sua defunta amiga a certa realisação do casamento.
Sobreveio ao despeito o enojo crescente, que mortificava a reclusa, sempre espiada, e perseguida de velhas conselheiras, que tomaram á sua conta salval-a. Ao despeito e ao enojo, acresceu o visital-a com mais frequencia, e um pouco melhorado de figura, seu primo Eleuterio. D'antes, a cabeça exterior do moço era horrida, toda escadeada da tesoura habil em tosquiar rezes, tufada de grenhas, com umas rêpas caracoladas sobre as orelhas, e aquelle todo lustroso de azeite. Depois, appareceu Eleuterio com o cabello cortado á escovinha, e os caracoes banidos. Depoz a casaca no gavetão-museu da familia, e envergou uma judia, como se usava então, com matizes e florões nas costas, e borlas de apertar no pescoço. A pantalona continuava-se em polaina até á ponta do pé, e abotoava sobre meio palmo do artelho com botões de madre-perola. Além d'isto, o pae deu-lhe o relogio avoengo, que, no continente e conteudo de caixas sobrepostas, parecia a baixella d'uma familia, desde a tina do banho até á bacia do lavatorio. Os berloques d'este thesouro, que não regulava ha quarenta annos, eram placas de differentes pedras, e sinetes periformes de tal tamanho, que pareciam armas de defeza.
Theodora custou-lhe a reconhecer o primo Eleuterio, afóra mãos e pés, que nenhuns outros podiam confundir-se com os d'elle, a despeito mesmo das torturas em que os trazia entalados. O rapaz tinha conquistado [69] de sua prima uma admiração comparativa: era já grande salto dado para dentro do coração da menina.
Li em algures, e estou convencido d'uma verdade que sôa como paradoxo: e é que o espirito de cada pessoa tem muito que vêr com o modo como ella está entrajada. A intellectualidade apouca-se e confrange-se quando o sujeito se olha em si, e se desgosta da compostura dos seus vestidos. O desaire do espirito como que se identifica ao desaire do corpo. As idéas sahem coxas e esconças do cerebro; a expressão tardia e canhestra denuncia o retrahimento da alma: ha o quer que seja phenomenal que eu tivera em conta de desvario meu, se muitos sujeitos me não tivessem confessado semelhantes segredos de psycologia, em que o alfaiate exercita importante alçada.
Demonstrado isto, explica-se o atavio de palavras com que Eleuterio se sahiu no palratorio, no dia em que se mostrou desfigurado a Theodora. De vez em quando, o moço baixava modestamente os olhos requebrados sobre os berloques, e ao levantal-os para sua prima já nos beiços lhe borbulhava alguma idéa bonita. Igual fortuna o bafejava, quando, acaso ou por acinte, se via de polainas, abotoadas tanto ao justo da canella, que se ficava algum tempo narcisando nos pés.
D'este primeiro colloquio sahiu a morgada pensativa. Algumas senhoras, grandemente e astuciosamente admiradas, entraram na cella da menina a perguntar-lhe se era, em verdade, seu primo Eleuterio o paralta que a [70] visitára. Theodora respondia que sim entre ufana e desdenhosa. As freiras benziam-se, e exclamavam:
—Que perfeito rapaz elle se fez! Ninguem havia de dizer o que sahia d'alli! Em Braga não passeia outro que o valha, nem quem o exceda.
—Seu primo é uma figura que dá na vista!—ajuntava a mais maliciosa das freiras para não ficar em peccado com a sua consciencia.
Theodora, quando acordou na manhã seguinte, viu duas imagens: uma a ennevoar-se e esvair-se como sonho que a memoria não póde já reter: era a imagem de Affonso; outra avultou-lhe completa nos menores traços, radiosa, animada e animadora: era a imagem de Eleuterio Romão dos Santos.
Ergueu-se alegre, abriu a janella do seu cubiculo, aspirou o ar do céo que nunca lhe parecera de tão lindo azul, e invejou as aves que volitavam mui serenas gorgeando, ou regirando umas jubilosas voltas, que á menina se figuraram as delicias da liberdade.
Amava ella Eleuterio Romão?! Não amava, disse-o ella, e eu juro nas palavras de Theodora. O que ella amava era a liberdade; os anhelos de sua alma anciavam sofregos um viver, que o temperamento lhe estava pedindo a gritos, gritos que a sociedade não escuta, não acredita, e não perdôa. O que ella via em Eleuterio era o homem já desfigurado da repulsão primeira; o homem aceitavel como libertador de um seio que quer encher-se de perfumes, sem se dar em servidão ao homem, que lhe vai descancellar os adytos do mundo. Assim é que [71] muitas mulheres tem amado aquelles que as salvam; d'este amor, assim chamado por não haver mais elastico epitheto que dar á cousa, é que surdem os irremediaveis infortunios, os odios irreconciliaveis, e as affrontas que levantam as campas, encerram algozes e victimas, e ficam ainda de pé sobre ás lousas infamadas, pregoando o opprobrio dos filhos gerados no crime e amaldiçoados na infamia de suas mães... Colho as vélas; que, n'este rumo, ia varar em semsaboria encapotada em moralisação: cousa duas vezes importuna.
Conseguira, n'este tempo, a senhora de Ruivães que uma secular das Ursulinas entregasse uma carta á morgada, carta de esperanças, alento, e consolações, com miudas noticias dos padecimentos do filho em Ruivães, e das penas e receios que o desesperavam em Lisboa. Terminava a carta promettendo á menina que, antes de cumpridos dous annos, os votos de todos se haviam de realisar diante de Deus, com tanto que Theodora con- servasse firmeza, coragem, e constancia.
—Dous annos!—disse entre si a morgada—Esperar dous annos n'este purgatorio!... Se Affonso me ama, porque não ha-de vir já roubar-me d'este carcere? Dous annos! e viveria eu aqui tanto tempo á espera de não sei que?! Eu captiva aqui dous annos, e elle em Lisboa a divertir-se!... Se ao menos eu o esperasse em liberdade, os dias iriam menos arrastados; mas, privada dos prazeres que elle está gozando, esperar um futuro talvez duvidoso... é loucura! Quem me diz a mim que Affonso, n'este espaço tamanho de tempo, se não [72] apaixona por outra? Se me elle ama, como dizia, e a mãe me diz agora, quem nos impede de casarmos já? Se somos muito novos, lá virá occasião de envelhecermos. O que eu tenho, meu é já; ninguem m'o rouba por eu casar contra vontade do conselho de familia... Dous annos!...
E, n'aquelle dia e nos dous seguintes, Theodora, de cinco em cinco minutos, dizia: Dous annos! e ficava meditativa, até de novo exclamar: Dous annos!
Respondeu a morgada á mãe de Affonso que a sua saude se havia perdido na oppressão e dissabores d'aquella vida, em que tão contrariada se via. Dizia mais que a precisão de se livrar de tal captiveiro a obrigaria a dar-se como esposa a um homem que ella não amasse. Queixava-se da ausencia e silencio de Affonso, e citava o namorado da sua amiga Libana como exemplo de rapazes apaixonados. Concluia desejando a Affonso todas as venturas d'este mundo, em quanto ella se deliberava a experimentar todas as desditas.
A virtuosa de Ruivães, lendo o final da inesperada carta, acolheu-se á sua capella, e longo tempo esteve em joelhos pedindo á Virgem que defendesse Theodora dos seus funestos instinctos.
E, desde aquella hora, a mãe de Affonso, com quanta delicadeza de admoestação e brandura affectuosa pôde, desviou o filho de pensar em Theodora como futura companheira de sua vida. Affonso pedia instantemente explicações de tal mudança no espirito de sua mãe; e ella, podendo responder com o mais idoneo [73] documento, que era a propria carta da morgada, dilatava as suas razões para mais tarde. E, ao mesmo tempo, escrevendo a Theodora, conjurava-a a ter mão de sua imprudente mocidade, descrevia-lhe o quasi nada que conhecia do mundo, citava-a para diante da virtuosa memoria de sua mãe; mas não mais lhe fallou de Affonso.
A morgada não deu peso a tal omissão, nem achou rasoavel o sentimentalismo da fidalga; irritou-se mais por lhe não responderem ao artigo essencial de sua carta, que era apressar-se o casamento, visto que a sua saude corria perigo.
Eleuterio, cada vez mais assiduo na grade, já tinha uma outra judia côr de alecrim, outras pantalonas apolainadas, um collete de veludo escarlate, e um cavallo de marca, apparelhado a primor, e obediente ao freio para todo o genero de upas e galões. Theodora gostou d'isto, por que um dos anhelos era a equitação: sonhara-se muitas vezes cavalgando selim razo, trajada em amazona, com as dobras do amplo véo ondulando no phrenesi de desapoderado galope. O cavallo—faz pejo dizel-o! foi muito no determinar-se a morgada a responder categoricamente ás timidas perguntas do primo Eleuterio. Assim foi. Ageitado o ensejo, a menina, balbuciando com artificial pudor, disse que estava disposta a tomar estado, visto que a idade lh'o permittia. Eleuterio, perplexo, de ouvil-a, sem ousar suppor-se o noivo escolhido, sopesava o bofe [74] direito, cuidando que estava alli o coração; quando, porém, a prima lhe disse:
—Faço aquillo que meu tio Romão quizer... Caso com quem elle determinar...
Eleuterio expediu um ai de desafogo, e riu-se alvarmente, esfregando as mãos.
Por amor d'este successo vim eu a desenganar-me de que a natureza anda muito abastardada e contrafeita no theatro e nos romances. Casos analogos d'aquelle tenho-os visto remedados com tregeitos e exclamações inversas da logica da natureza. No romance todos os Arthures ou Ernestos, ao saberem que são amados, empallidecem, suam, ajoelham, declamam, quando não podem oscular com frementes soluços a mão da mulher amada. No theatro, em lances identicos, tenho visto desmaiar sujeitos, que matariam a futura sogra e o proprio pae, se lhe atravancassem o caminho da felicidade. Rir ás cascalhadas é que eu ainda não vi amante ditoso nenhum, no instante solemne de se crêr amado. Eleuterio Romão dos Santos é o primeiro modêlo que a natureza me offerece.
E a verdade é só uma. Ao beijo da felicidade, que endouda e transporta, o homem, que não estoura em explosões de riso, deve de estar mui calcinado de coração. Dramaturgos e romancistas, por via de regra, são umas pessoas aridas, frias, e falsas, que inventam a natureza, depois que desbarataram a sensibilidade, exagerando as generosas commoções que receberam d'ella.
Theodora gostou medianamente dos modos de seu [75] primo. Antes ella o queria falsificado no molde dos romances, que a menina transmontana lhe emprestára; mas, ainda assim, aceitou com paciencia a linguagem desartificiosa d'aquella ingenua e bruta alma.
Aquietado do seu arrebatamento, Eleuterio Romão dos Santos fallou assim:
—Cheguei ao que desejava, graças a Deus! A pena que eu tenho é não ser tão rico como Sansão. (O padre Hilario quizera leccional-o em sagrada escriptura: fallou em Salomão, ao que se presume, e o rapaz, assim como odiava o soletrar palavras de tres syllabas, deve suppôr-se que tambem em materia de historia, preferia os individuos de duas aos de tres syllabas.)
E continuou:
—Se eu fosse tão rico como Sansão, prima Theodora...
N'isto, como lhe não occorresse idéa nenhuma com que fechar a oração condicional, levou a mão á testa, e roçou a epiderme com o aro d'um robusto annel que trazia no dedo indicador. Idéa magnifica! Tirou o annel, e lançou-o ao regaço de Theodora. Tinha o annel um grosso topazio, engastado n'um circulo de perolas. Theodora examinou o objecto, e enganada pela circumferencia do aro, esteve quasi a pensar que era uma pulseira.
—Faz favor de encaixar no dedo, prima—disse Eleuterio.
—Não me serve—disse a menina.
—É que está magrinha das mãos...—replicou o [76] moço—Pois guarde-o, e quando engordar o porá no dedo. Lá que a prima ha-de engordar com os ares de Tibães, isso é que não falha. Vamos a tratar da dispensa, e acabar com isto. O que eu queria era ser tão rico como Sansão.[77]
As filhas do desembargador Figueirôa rodeavam o primo Affonso de agrados, de gozos familiares, e recreios, tendendo tudo a divertil-o de sua taciturna melancolia. A senhora de Ruivães, escrevendo a seu irmão, pedia-lhe que se descuidasse em materia de estudos, e tomasse muito a peito a distracção do filho, qualquer que fosse o gasto que ella houvesse de desembolsar. Os prazeres da sociedade eram temporãos ainda para a idade de Affonso. Bailes e theatros atediavam-no só em cuidar que havia de ir affrontar-se com centenares de mulheres entre as quaes nem sequer em sombra se lhe [78] offerecia, como agro alimento de saudade, a imagem de Theodora. O pudor dos dezesete annos, a indole nada communicativa, o receio de ser posto a riso por suas primas, encrudesciam, na soledade silenciosa, a paixão do moço. Comprára-lhe o tio, por ordem de sua irmã, um cavallo. Affonso recebeu a dadiva com satisfação, por poder assim, quando lhe aprazia, alongar-se da cidade, e refugiar-se em alguns arvoredos das quintas limitrophes de Lisboa.
O local mais attractivo do seu espirito era a quinta dos condes de Pombeiro, em Bellas. Desde o reinado de el-rei D. Manoel que as gigantes arvores d'aquella magestosa ancian estavam frondeando, e asylando as gerações de aves, como para alegrarem com suas musicas, e gasalharem com suas sombras o moço foragido do estrondear da cidade. Por alli as horas lhe corriam placidas, contentes nunca, bem que a tristeza d'entre arvoredos, ao murmuroso cahir d'agua em sonora bacia, seja uma particular tristeza, que, relembrada depois, dá rebates de saudade, saudade como a sentimos de alegrias para sempre idas com a sazão das breves e donosas verduras da vida.
De cada vez que Affonso ia á quinta predilecta, em cada arvore nova entalhava as letras iniciaes dos dous nomes, que elle imaginava, apesar da distancia e dos revezes, atados para sempre com applauso de Deus. Este pagão d'amor e por amor, á imitação de todos os amadores visionarios, cuidava que a divindade se intromette n'estas brincadeiras da terra, chamadas paixões, [79] passatempo de muito folgar que, algumas vezes, nas suas folganças e corrimaças, esbarra na sepultura aberta, e lá se atira em corpo, deixando cá fóra a alma infernada na deshonra e na execração. E querem os pobresinhos, com o peito aberto ao abutre de suas chimeras, que Deus intervenha nos seus infernados brinquedos!...
E Affonso, escondido nas sombras escuras de Bellas, chorava por Theodora, e, alteando o rosto ao céo, pedia ao Senhor que lhe visse as lagrimas, e houvesse piedade d'ellas.
O desembargador inquietava-se com as longas ausencias do sobrinho; mas não o contrariava. As filhas é que mais se queixavam da selvatiqueza do primo, que se ia á aldêa a conversar com arvores e penedos, e deixava suas primas que tanto se interessavam em divertil-o. N'estes queixumes das gentis meninas, transparecia um mal disfarçado despeito de todas e de cada uma. Qualquer d'ellas, a resguardo das outras, havia pensado em ser a mais amoravelmente olhada dos olhos de Affonso, o galhardo moço, que tantas graças tinha, como se lhe não bastasse ser rico! O amador da orphan das Ursulinas, se podesse suspeitar que suas primas conjuravam em disputar-lhe uns grãosinhos do incenso de Theodora, não faria menos que odial-as. Estes escrupulos são a religião, o ascetismo dos illuminados de amor, illuminados lhes chamarei eu em respeito do leitor maior de trinta annos, e compaixão de mim, que ambos nós já fomos tambem illuminados, e não é por nossa vontade que estamos[80] agora atolados n'este lamaçal, onde, por sobre todas as desgraças e vergonhas, ainda queremos vêr na superficie lamacenta e torva espelharem-se as estrellas do céo da nossa mocidade!
Affonso esperava ainda. Sua mãe mentia-lhe. Seu tio, aferrado ás tradições de avós, devia de tramar a quebra do casamento destinado com uma menina, apenas formosa, rica, e pura como um anjo a quizera para si. É o que Affonso pensava do silencio da mãe, e das reflexões do velho.
Estava, uma tarde de Agosto, Affonso em Bellas. Desde o dia anterior que não voltára a Lisboa. O tio, como elle não voltasse ao segundo dia, metteu-se á sua carruagem, e foi procural-o, e entregar-lhe cartas recebidas do norte. Uma era de sua mãe, outra d'um seu tio paterno, fidalgo de Barcellos, o mais acerrimo impugnador do casamento de um Teive Lacerda Corrêa Figueirôa, com uma mulher da Fervença, que, dizia elle, por nome não perca.
A carta da mãe dizia simplesmente:
«Não era digna de ti, meu filho, Deus bem m'o tinha dito, e o coração estalava-me em ancia de t'o dizer. Agora, meu filho, ou cumpre o que o tio Fernão te pede, ou faz o que a honra te aconselhar.» E poucas mais expressões de conforto religioso; mas insinuantes como sabem dizel-as as mães, que nunca se temem de corar diante de seus filhos.
A carta de Fernão de Teive era mais prolixa versando[81] quasi toda sobre o casamento de Theodora com Eleuterio.
Parecem-me dignos de extracto uns relanços d'esta carta, que eu copiei do original. Não parecem de fidalgo velho, e estranho ao estylo picaresco do folhetim:
«....... Eu estava em Braga, de visita aos primos Vasconcellos do Tanque, e acaso vi o cortejo nupcial da morgada sem morgadio. Predominavam as eguas de albardão e rabicho na parte equestre do prestito, que era luzido, por que os arreios brilhavam, principalmente as barbellas. O noivo ia desencabrestado, visto que tirára bula para isso, quando tirou dispensa do parentesco. A morgada, com cara relamboria, levava ares fulos; e procurava as estrellas ao pino do meio dia, pasmada de vêr que ellas não vinham á janella admiral-a. Eu, lembrando-me que a vergontinha da Fervença esteve a querer trepar pelos troncos de Farelães e Numães, dei louvores a Deus, e parabens aos nossos antepassados!.............
«Perguntei quem eram os figurões do prestito. O meu sapateiro conhecia quatro. Varreram-se-me da memoria os nomes, e só me lembro que levavam cara de terem bebido em jejum á saude da noiva. O lapuz do noivo queria montar á Marialva; mas o ginete, quando chegou á Cárcova, festejou a suciata com quatro couces que iam apanhando os jarretes[82] da morgada, como amostra dos que ella ha-de levar do marido................
«Tinhas a côrte celestial a pedir por ti, Affonso! Quando te deu na venêta ser marido de Theodora, em quanto a mim tinhas lido o folheto que reza de uma que era formosa e sábia. Vai ás arcadas do Terreiro do Paço, que lá a encontras pendurada no cordel do livreiro cego. Theodora por Theodora, antes a do papel de mata-borrão, que est'outra é um borrão da tua mocidade, que felizmente o tempo ha-de gastar................
«Agora é tempo de te dizer que tens uma prima, e eu tenho uma filha. Se a queres esposar, vem quando estiveres farto da capital. Está senhora, e foi educada como as senhoras da nossa raça. Aos meus olhos de pae, Mafalda parece-me gentil e esvelta. Em palavras é discreta como se os cabellos, em vez de puro ouro, lh'os tivesse embranquecido a experiencia. Em acções creio que nenhuma ainda praticou de que me não deva honrar, e bemdizer a mãe que a educou, e o sangue illustre que lhe fórma o coração.
«Tua mãe compraz-se na minha resolução. Vem gozar as delicias puras d'uma mocidade bem encaminhada, e recebe a benção de teu tio
Fernão de Teive.»[83]
Lidas estas cartas, Affonso levou o lenço ao suor da testa e ás lagrimas, que lhe cahiram a quatro. O tio, já avisado do successo de Braga, discursou largamente de pitada no dedo, e os oculos montados na mais grave das attitudes. Affonso diz que o não ouvira longo tempo, e o abominára depois que o ouvira.
Quizera o desembargador leval-o comsigo na traquitana; mas o moço rebellou-se arrogantemente contra as ordens do velho, já irritado da pertinacia do sobrinho em ficar, terceira noite, fóra de casa. Affonso internou-se de corrida entre o arvoredo, n'um impeto de desesperação ou loucura. O magistrado deixou-o, e foi para Lisboa, d'onde participou á irmã o resultado das cartas, e aproveitou o ensejo para vaticinar que Affonso ia caminho da demencia a passos de gigante.
Disse-me Affonso que, n'aquella noite, fôra ter a Mafra; e repousára, na madrugada, encostando a cabeça a um degrau do templo. Ao nascer do sol, quiz agitar-se em nova caminhada; mas o cavallo, prostrado de fadiga e fome, resistiu impassivel á espora. Esta contrariedade, que faria rir o leitor, pungiu acerbamente Affonso. A mais tragica desventura tem uma physionomia comica, se bem lh'a procuramos. Escusavel seria o riso de quem observasse o cavalleiro, roxo de febre e colera, esporeando os ilhaes do esbuxado cavallo, decepado de jejuns, e correrias arabes pelos descampados, onde seu dono acalmava[84] as vertigens da paixão! Que funesta sorte a do irracional que dá em poder de tal amo! O infeliz, privado do dom da palavra, nem sequer póde questionar com o dono a supremacia da sua racionalidade!
Em quanto o cavallo reparava as forças na manjadoura, Affonso escreveu a sua mãe, pedindo-lhe recursos para se ausentar de Portugal, e licença para se demorar no estrangeiro até poder regressar esquecido de Theodora. Escreveu tambem ao tio Fernão, lastimando-se de não poder aceitar a felicidade das mãos de sua prima Mafalda.
Feito o proposito de viajar, o phrenesi descahiu em sombria, mas serena tristeza.
O céo negro abria-se-lhe, a instantes, em relampagos de luz. Atirava elle com a alma ao futuro, ao vago, ao sonho indelineavel, e retrahia-se com ella a uns rapidos assomos de alegria, que não eram senão rebates de esperança, esperanças tão amigas dos dezoito annos! Viajar era-lhe já uma ancia; cria-se resgatado assim das penas, e só assim que nenhum outro lenitivo humano lhe poderia já valer.
Embebecido n'esta esperança, voltou para Lisboa, e recolheu-se tranquillo a casa do desembargador. Ninguem fallou em Theodora. As primas forcejavam por distrahil-o sem mostrarem proposito d'isso. O velho proferia maximas umas de Seneca, outras d'elle ácerca das paixões; abstendo-se, porém, de apontar o alvo onde iam bater as sentenciosas frechas. Affonso, n'aquelles[85] oito dias, podera recopilar maximas e proverbios com que, no decurso de longa existencia, regesse as suas acções, e repartisse sciencia de bem viver por todas as pessoas transviadas do caminho direito; porém, confessa o inattento sobrinho do apotegmatico desembargador que apenas se recorda de que eram em latim as maximas de Seneca, e quasi latinas as do tio em virtude do estylo graudo e philintiniano em que as compozera. O certo foi que Affonso não aproveitou nada, nem mesmo o gosto da latinidade.
Mais vernaculo mentor lhe estava reservado, como ao diante se verá.
N'um dos dias em que Affonso estava esperando recursos para se expatriar com a sua dôr, chegou a Lisboa a fidalga de Ruivães. Affonso, desgostoso da surpreza, bem que as lagrimas o consolassem ao vêr sua mãe, receiou que ella viesse apostada, com o imperio dos prantos ou da authoridade, a demovel-o de viajar. A santa senhora, entrando-lhe na alma, sorriu benignamente, e disse-lhe:
—Eu vim despedir-me de ti, meu filho, já que tu, antes de sahir de tua patria, não quizeste ir abraçar tua velha mãe, e abraçal-a talvez para nunca mais a tornares a vêr. Vim eu, sabe nosso Senhor com que fadigas aqui cheguei. Mas sempre te devo dizer, Affonso, que eu ouvi muitas vezes contar a tuas avós que era costume em nossa geração nunca sahirem da patria para as guerras contra a Hespanha os militares ainda mancebos e os generaes já encanecidos, sem irem de Lisboa ao Minho[86] despedir-se dos seus, e orarem em commum diante da cruz a que suas mães tinham orado com elles tenrinhos nos braços. Este era o uso da nossa familia antiga, meu filho, e não sei por que não ha-de continuar comnosco tão salutar costume. Aos pés da cruz a que elles oravam, tambem eu orei comtigo em meu seio, e lá aprendeste de minha bocca as tuas primeiras orações. Sempre pensei que o meu nome ao menos—nome dôce de mãe que te estremece—seria algum tanto mais em teu coração, e esse pouco bastaria a que o meu Affonso, disposto a desterrar-se sem mais outra razão que a sua pouca força de alma, o não havia de fazer, sem me ir dar com anticipação o abraço, que eu lhe pediria nos ultimos instantes da vida. Aqui estou eu, pois, meu filho, para te abençoar, e ficar pedindo a Jesus Nosso Pae que te guie, e ampare, e restitua aos que te ficam chorando. Em quanto a dinheiro, Affonso, tu dirás o que queres, que prompto está. Prasa a Deus que elle te não sirva de ruina ou deshonra.
O desembargador, que estivera ouvindo esta affectuosa e branda censura, quando a irmã concluiu, foi direito ao sobrinho, bateu-lhe no hombro com severidade, e clamou:
—Acorda, coração de pedra!... Córa de pejo, e dôa-te o arrependimento, filho mau!
—Meu mano—disse a senhora—o nosso Affonso não é mau filho, nem tem acção de que deva corar. Se a tivesse, eu não seria a mãe que sou. O que elle tem [87] é ser infeliz; mas quem o encaminhou n'esta má vereda fui eu.
—Tu, Eulalia?! Como assim?—perguntou o desembargador interdicto.
—Eu, eu fui, quem primeiro lhe fallou em Theodora, e lhe preparou o coração para captivar-se da filha da minha primeira amiga da mocidade. Cuidava eu que o nascimento honrado de Theodora a dispensaria de herdar fidalguia, para que ella fosse excellente esposa de meu filho, e digna de o ser do filho da mais illustre mãe. Eu enganei-me, e elle foi enganado por mim. Affonso apaixonou-se; quando lhe quizemos valer, era tarde; tardiamente aconselhei; e meu filho, se não fosse um anjo, poderia ter-me obrigado a discreto silencio, quando eu, pouco ha, lhe chamei fraco.
Affonso lançou-se em pranto desfeito, aos braços de D. Eulalia; e, após curtos instantes de offegante silencio, exclamou:
—Eu não irei viajar, se a sua vontade é essa, minha mãe. Eu tenho em sua alma um thesouro de bens e de alegrias. Viva, minha querida mãe, o que eu mais necessito é a sua vida!
—Graças vos dou, meu Creador e Redemptor!—clamou a senhora, muito commovida, com as mãos postas—Grande é o poder que daes ao coração maternal! Eu não vos merecia tanto, meu Deus! mas a vossa misericordia não mede os merecimentos pela afflicção com que as mães vos chamam!
E, volvendo o rosto ao filho, cobriu-o de beijos, e [88] tomou-o para o seio com o fervor e mimo com que o acariciava na infancia.
O magistrado e as filhas solemnisavam o espectaculo chorando e rindo de contentamento.[89]
Verei se posso repetir, sem inexactidão sensivel, o que Affonso de Teive me contou, com seguimento aos successos descriptos.
«Nenhum rapaz dos meus annos—dizia elle—exerceria tão dolorosa violencia sobre o seu espirito. Jurei commigo de nunca mais proferir o nome de Theodora, e mesmo convencer minha mãe de me ter esquecido d'ella. Eu não sabia a que porta do inferno fôra bater, sacrificando-me puerilmente a uns pontos de dignidade, que homem nenhum de annos experimentados conseguiu vingar. Em presença de parentes, e relações[90] de minha familia, atava com arames em brasa a mascara da minha agonia, contra a qual minha propria mãe involuntariamente dardejava insultos. Quando ella me dizia: «Estás esquecido d'aquella louca, meu filho! as minhas orações foram ouvidas no céo» ou quando meu tio, com alegres gargalhadas me applaudia, dizendo: «Sempre entendi que eras homem, meu rapaz!» então a minha angustia exacerbava-se, e eu, assim que as attenções me deixavam senhor meu, ia esconder-me a chorar, a chorar com as mãos postas; e, muitas vezes, d'este inutil rogar á piedade divina, erguia-me para escrever a Theodora cadernos de papel, que queimava, antes de apagar a luz, ao entrar o sol no meu quarto. Que noites aquellas!...
«Minha mãe deteve-se um mez em Lisboa. Adivinhei-lhe o desejo de me trazer comsigo para a provincia; mas a obediencia não podia levar tão longe a abnegação. Recordar estes sitios, vêr além os horisontes de Braga, cuidar que ainda havia de encontrar, fortuitamente, Theodora, ou alguem que me fallasse das felicidades d'ella, isto apertava-me tanto a alma, que eu sentia em mim um desfallecimento de coragem, uma quasi precisão de pedir a todos em altos brados que me amparassem.
«Então pensei em ir para Coimbra, onde esperava eu que mil rapazes de todas as condições e feitios me arrancariam de mim proprio, e levariam em suas folias, ou me habituariam o espirito ás consoladoras occupações do estudo. [91]
«Minha mãe accedeu promptamente á minha vontade.
«Fui para a universidade, muito escasso de preparatorios, e por isso me matriculei em philosophia. Logo aos primeiros dias conheci que fôra um erro confiar nas distracções juvenis de Coimbra. Alistei-me primeiramente na roda dos moços-velhos, gente ridicula; mas d'uma ridiculez que não distrahe ninguem. Cada um parecia que trazia dous oraculos na cabeça: antes de expenderem os seus dogmas, punham-se á escuta da inspiração; e, ao abrirem a bocca, a propria Minerva das escadas latinas cuidavam elles que se apeava do sóco para escutal-os. Zanguei d'estas creaturas infestas, e fui-me inscrever na fila dos litteratos militantes, gente de pouco saber, de muitas maravalhas, questionadora por necessidade de adivinhar a discutir o que não sabia da leitura, emfim, futuras esperanças da patria, que bem sabiam que uma diminuta sciencia, com muita ousadia, basta para attingir os pinaculos sociaes. Tinham estes rapazes um jornal. Publiquei sem assignatura uma das muitas poesias que eu tinha escripto nos arvoredos de Bellas, nos tempos em que a imagem lagrimosa da reclusa das Ursulinas ia lá commigo a ouvir a voz de Deus nas harmonias da terra. A poesia tinha a religiosa suavidade d'um amor que se alliava aos santos enlevos do coração virgem. Os litteratos disseram que eu imitava Lamartine, e que mesmo o traduzia quasi litteralmente em algumas strophes. Ora, eu não tinha ainda lido Lamartine: fui lêl-o, e corei de vergonha pelo grande [92] poeta comparado commigo. Em todo o caso, desgostei-me dos meus collegas por se darem uns ares de tolice muito por ahi fóra dos limites rasoaveis. Passados tempos dei ao jornal uma outra poesia, fremente de paixão, arrojada, vertiginosa, escripta depois do meu desastre. Os meus collegas avisaram-me de que a academia, lendo a minha ode, declarára que eu traduzira Victor Hugo. Fui lêr depois Victor Hugo, e lastimei que os soberanos do genio estivessem sujeitos ás chufas de todo o mundo, sem excepção dos litteratos meus contemporaneos da universidade.
«Enfadado d'uns sandeus, que nem mesmo eram recreativos, bandeei-me com os trossistas, iniciando-me para isso nas libações homericas da genebra e cognac do Troni. Á primeira vez que me embriaguei, recobrando o tino, envergonhei-me; lembrou-me minha mãe, e chorei. Não impediu isto que me aturdisse segunda vez. Os meus socios de delirio diziam que eu, embriagado, era um moço de boa companhia, alegre, sarcastico, ironico, eloquente, e mesmo espirituoso. E, em verdade, das minhas perdas de razão ficavam-me lembranças de ter visto o mundo de outra côr, e de haver idealisado formosas chimeras douradas por novas e esplendidas auroras d'outro amor. Comecei a sentir saudades da embriaguez quando, no uso integro das minhas faculdades, me acommettiam os terrores da noite infinita do meu coração, horas roubadas ao tormento dos parricidas, asco acerbo a tudo que em volta de mim revelava alegria, odio mesmo á luz que me amostrava os [93] espectaculos da natureza, em que n'outro tempo a minha alma, toda oração, toda absorvida, se evolava em effluvios de admiração para o Altissimo.
«N'este perdimento de dignidade terminei o primeiro anno, com approvação plena, e resolvi passar as ferias em Lisboa.
—Com approvação plena!—atalhára eu Affonso de Teive.
«Por que não?—respondeu elle—As minhas noites eram quasi todas desveladas, depois que me recolhia fatigado das assuadas e disturbios. Se o torpor me não adormecia, a visão de Theodora sentava-se em frente da minha mesa, e dialogava commigo, ella no tom escarnicador da mulher ovante da sua deshonra, e eu no accento supplicante de quem já não tem que pedir senão piedade. A refugir d'este supplicio, ferrava com desespero dos livros da aula, lia-os, e relia-os sem comprehendel-os; mas, esmagado o coração sob as mãos de ferro da vontade, conseguia entender, decorar, e expôr com clareza, uma ou outra vez, as idéas dos compendios. Os meus creditos firmaram-se desde que me estreei vantajosamente n'uma lição.
«Pediu-me minha mãe que a visitasse em ferias, embora me demorasse poucos dias. Sem me negar aos seus desejos, consegui que ella fosse ao Porto passar commigo a estação dos banhos de mar. Annuiu a santa senhora.
«Os meus dias corriam magoados, mas serenos em [94] Lessa da Palmeira, onde se haviam reunido alguns parentes nossos de casas mui distantes umas das outras. Meu tio Fernão concorreu com minha prima Mafalda, que o jovial pae me tinha desenhado sem encarecimento. Fôra a minha companheira dos brincos infantis. Viram-na os olhos da minha razão depois á verdadeira luz. Era bella, e triste. A seriedade taciturna de Mafalda, se não fosse vaidade de raça, seria um dialogar permanente com o namorado anjo da sua innocencia. «Se eu podesse amal-a!» dizia eu a minha mãe, que se tornára para mim, n'aquelles dias menos opprimidos, uma segunda consciencia. E minha mãe, com a summa delicadeza da sua virtude, pedia a Mafalda que me obrigasse a fallar, que me fizesse lêr alguns livros recreativos em voz alta. Instado por minha prima, escolhi a leitura da Noite do Castello ou os Ciumes do Bardo. Comecei a lêr pelo livro; porém, á segunda pagina, dei de mão insensivelmente ao livro, e declamei de côr com tamanho enthusiasmo, e com a voz tão vibrante de lagrimas, que minha mãe rompeu em soluços, e minha prima empallideceu de assustada da minha intimativa. Aqui tens tu um lance que eu não posso agora relembrar sem rir! O que tudo isto me parece, visto d'aqui, do alto dos meus tamancos, e através d'estes oculos de tres graus!
«Minha mãe impediu a continuação da leitura, e Mafalda nunca mais desejou ouvir-me. Observei mais arrefecida, e muito menos attenciosa, minha prima, [95] desde aquella explosão de ciumes, por conta do poeta Castilho. Isto inquietou-me tão de leve, que nem a vaidade me magoou.
«Estavamos em Setembro, e eu já tinha entrouxado as malas para voltar a Coimbra. Fui despedir-me dos sitios, onde as horas me tinham sido mais tranquillas, na soledade. Velejei n'um barquinho rio acima, e aproei á ribanceira, d'onde se avistava o arruinado e já em parte desfigurado conventinho de extinctos franciscanos. Á sombra d'um arco manuelino, que havia sido a portaria do arrazado templo, meditei nos frades, no convento, no refugio dos desamparados do mundo, nas lapides profanadas que mãos impias arrancaram de sobre as cinzas de muitos corações, extinctos com o segredo de sublimes torturas. Meditei, e maldisse a civilisação, que fechára os aditos da paz, quando a guerra sacudia as suas serpes mais inexoravel; maldisse a illustração, que aluira a enfermaria dos empestados do vicio, quando a peste ardia mais devoradora. A minha angustia era ainda immensa, por que eu não podia dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho de melhor mundo.
«Descendo o rio, lá me ficavam ainda os olhos e as saudades nas ruinarias do convento. Desembarquei na ponte, onde minha mãe me estava esperando. Detive-me a passear com ella pelo braço, e a referir-lhe as minhas idéas sobre os conventos. A virtuosa rejubilava-se ouvindo-me, e dizia, em raptos de contentamento, que eu estava da mão do Senhor, e que, apesar[96] do mundo, havia de trilhar sempre os vestigios de meus religiosos avós, alguns dos quaes tinham morrido martyres da fé nas pelejas dos soldados de Christo contra os mahometanos. Ouvia eu aprazivelmente a chronica de meus ascendentes, gloriosamente mortos na Africa e no Oriente, quando vi ao longe, na estrada do Porto, á sahida de Matosinhos, com direcção á ponte, uma senhora cavalgando um alentado cavallo, ao lado d'um cavalleiro menos cuidadoso das arremettidas garbosas do seu.
«Minha mãe assestou a luneta, e murmurou:—Valha-me Nossa Senhora dos Remedios!... Se me não engano...
«Quem é?—atalhei eu. Minha mãe demorou a resposta. Os cavalleiros, no entanto, avisinharam-se a galope. Antes de conhecel-a, adivinhou-a o coração, que me repuxou á cabeça uma onda de sangue... Era Theodora, Theodora, deslumbrante de formosura, gentil como as magnificas chimeras do pincel inspirado, visão que me não parecia para olhos turvados de verem as fealdades d'esta vida... Não te espante o ardor d'esta linguagem. Eu fiz agora pé atraz vinte e quatro annos da minha vida, e senti-me reviver n'aquelle momento... Agora, espera um pouco... Deixa-me tomar fôlego, recordando minha mulher e meus filhinhos. [97]
Affonso, passados dous minutos, continuou, demudado já o semblante da jovialidade com que principiára.
«Theodora reconheceu-me. A turbação do meu animo era como uma vertigem, e assim mesmo vi-lhe todos os lances de olhos, todas as linhas alteradas d'aquelle adoravel rosto. Fitou-me. Estremeceu; vi-a estremecer na quasi paragem convulsiva que fez o cavallo. E eu busquei o apoio do hombro de minha mãe, e senti-me comprimido nos braços d'ella. E a magia satanica do olhar da bella mulher empederniu-me; arrefeci; d'ahi [98] a pouco era fogo vivo a minha fronte; cuidava que a via ainda; e ella tinha passado. Puz então a mão sobre o meu coração, e já lá encontrei a de minha mãe.
«Caminhamos para casa, e não trocamos palavra. Entrei no meu quarto, lancei-me sobre a cama, abafei o rosto nas almofadas, e vinguei-me do meu infortunio a chorar. Chorei, e senti-me desopprimido. Fui ao quarto de minha mãe, e achei-a de joelhos orando. Quaes lagrimas me deram allivio? seriam as d'ella ou as minhas? As d'ella, que o homem, quando chora, desafoga uma paixão, e abafa n'outra: a do odio. Prantos que salvam são os da dôr immerecida, os apêllos das iniquidades do mundo para o tribunal da Providencia. E eu, quando chorava, amaldiçoava, e pedia vingança.
«No dia seguinte, fui para Coimbra.
«Concentrei-me com a visão da ponte de Lessa. Não me deixou aquelle adorado demonio recahir na minha miseria da embriaguez. Para que?—dizia eu—Se tenho de voltar á razão para encontral-a com a tenaz ardente da tortura?
«Quinze dias depois da minha chegada, abri uma carta marcada em Braga. Oscillaram-me as pernas, e cuidei ouvir dentro do peito o despegar-se-me o coração, uma dôr que eu não sei se é commum de todas as organisações, dôr que eu tenho tantas vezes experimentado, que já a considero aleijão dos vasos sanguineos. A carta era de Theodora, as linhas muito poucas, e assim, se bem me lembro: «Foi o mau anjo da minha vida que me levou para onde tu estavas, Affonso. Faltava-me [99] o inferno de hoje. Não bastava o remorso: era necessaria a fatalidade do amor, da paixão. D'aqui por diante ha-de rasgar-me o peito a desesperação dos reprobos, que Deus lançou de si. Arrasto-me a teus pés a pedir-te perdão. Não me amaldiçôes tu d'hoje em diante. Se tens padecido, perdôa, e Deus te dê o triumpho na bemaventurança; se te esqueceste, escarnece-me. Que vingança maior? Adeus. Alegra-te, que eu desejo a morte, e ella virá salvar minha pobre alma d'este miseravel corpo.»
«Que lucta, meu amigo! As horas d'aquelle dia e d'aquella noite foram uma continuada alternativa de alegria douda e de excruciante agonia! Começava a escrever-lhe, e rasgava logo as cartas, envergonhando-me diante de minha propria consciencia. A paixão ia tocando as extremas onde principia a perversão moral. Já me queria parecer que não era indignidade nenhuma responder-lhe eu, quer insultando-a, quer atirando-lhe aos pés com o meu coração infame. Ultrajal-a e adoral-a era então a despotica necessidade da minha cabeça allucinada.
«Eu carecia de um amigo, e não tinha nenhum a quem mostrasse as secretas dôres, que escondera de todos. Tive ancias de uma alma, que me escutasse. Lembraram-me todos os que mais tinham convivido commigo. Sem excepção d'um só, eram todos futeis, e incapazes de me pouparem á sua zombaria, se me vissem chorar. Suffoquei-me, atirei-me aos braços da minha algoz phantasia, deixei-me dilacerar pelo abutre da soberba,[100] soberba de não ser ridiculo em nenhuma das minhas desgraças.
«Passaram tres dias. Na minha banca estavam tres cartas fechadas, e os fragmentos d'outras, que eu destinára a Theodora. Abri as cartas, reli-as, tive pejo e tedio de mim, rasguei-as e fui embriagar-me.
«Porque? porque não havia de ser eu o que seria todo o homem, abrazado de amor, ou sequioso de vingança? Que tinha que eu, condoendo-me ou escarnecendo-a, lhe perdoasse? Se alguem se rira de mim abandonado d'ella, que maior victoria queria eu, senão a de fazer risivel o marido da mulher castigada por sua mesma abjecção? Esta philosophia hedionda, com que se pavonea a philaucia de muitos sujeitos, celebrados pela inveja e admiração d'outros miseraveis do mesmo formato, quem me privou de a seguir, e aproveitar n'um caso da vida, em que a minha cura não podia esperar-se da religião, da moral, ou da volubilidade do meu caracter? Não lhe respondi; é o que sei dizer do meu inflexivel pundonor dos dezenove annos. Era uma feroz vingança que eu me infligia á conta do covarde quebranto em que me deixára a apparição da mulher vil, arreiada com as pompas da felicidade.
«O meu segundo anno de Coimbra foi um continuado suicidio. Desbaratei a saude em toda a especie de desregramento e libertinagem. Não dei nos olhos da academia, porque, n'aquelle anno de 1846, a fermentação da guerra civil absorvia os espiritos alvorotados dos academicos. Fechou-se a Universidade em Maio, [101] quando eu, extenuado de insomnias e empeçonhado de bebidas estimulantes, cahi de cama, com o sincero desejo e alegre esperança de que me não levantaria mais.
«Escondi de minha mãe aquelle estado em quanto me não assalteou o remorso de a não chamar ao meu leito, e confessar-me da vileza de alma que me levára a destruir a minha vida por meios tão ignominosos. Foi esta vergonha que me salvou. Pedi com ancia e lagrimas aos medicos que me salvassem. Disseram-me que fosse para a Madeira recobrar vigor, e viajasse depois um anno nos paizes temperados e arborisados. A meu vêr, a sciencia queria dizer no seu receituario que eu estava em vesperas de encetar uma viagem barreiras a dentro da eternidade.
«Confiei na juventude, na vontade de viver, e ergui-me. Sahi de Coimbra para o Porto. Tenteei o meu espirito, animando-me a procurar as montanhas saudosas, os meus queridos pinheiraes de Ruivães, os regatos crystallinos, orlados de verduras em que minha mãe me via creança, a colher boninas para lh'as entretecer nos cabellos. A minha alma amava então estas cousas com o transporte arrobado e sereno dos tisicos: é que o envolucro já lhe não empecia o filtrar-se n'ella o calor da luz ideal, aquelle calmo ambiente em que se degela o sangue coalhado no coração.
«Venceu o desejo da vida. Isto que, um anno antes se me antolhou feio e inhabitavel, aformoseou-m'o então o anhelo de viver. Até a côr do céo, d'onde me choveram as alegrias dos dezeseis annos, me sorria e chamava. [102] Nem já o temor de me encontrar com Theodora pôde conter-me. Que importava? Eu cuidei que a porção de minha essencia, captiva do amor d'ella, se tinha caldeado e vaporado ao fogo, d'onde eu sahira refundido, e mui estranho ao homem do outro tempo.
«Surprehendi minha mãe, sentada á sombra da carvalheira da porta, relendo as minhas ultimas cartas, escriptas com a ternura da alma alumiada pela alva d'um melhor dia. Ao contacto do peito da virtuosa, senti exuberancia de saude, de alegria, e de uncção religiosa. Então me considerei estreado em nova existencia.
«Esperava eu que se abrisse a Universidade para ir a Coimbra repetir o segundo anno, cujas disciplinas nem sequer as tinha visto no index dos compendios. Minha mãe dissuadia-me de voltar a Coimbra, dando como desnecessaria a formatura a quem não havia de ganhar a vida por ella. Eu, porém, desejava instruir-me; dava-me como necessario recolher idéas que ao depois me aligeirassem no estudo os annos de toda a vida, que eu designára passar na casa, onde meu pae tinha vivido a sua, com todas as ditas da paz. Minha boa mãe transigiu. A dôce creatura, accusando-se sempre de motora da minha desgraça, obrigára-se a expiar pela abnegação e condescendencia. E de mais, ella temia que, alguma hora, me reapparecesse a visão de Lessa.
«Que presentimento!
«Dias antes da minha destinada partida, fui ás Taipas despedir-me de meu tio Fernão, que estava em Caldas. Ao entardecer sahi com minha prima Mafalda[103] a passear na carvalheira. Já era escuro, quando nos fizemos na volta de casa. Ao atravessarmos a alamêda dos banhos, acercou-se de nós um vulto de mulher rebuçado n'uma capa alvacenta. Mafalda apertou-me o braço convulsivamente. O vulto parou em frente de nós, e disse n'um tom ironico:—Consintam que os contemple na sua felicidade: é um prazer dos felizes verem-se admirados.
«Reconheci a voz de Theodora. Mafalda sentiu o tremor do meu braço, e reconheceu-a tambem de instincto.
«Desviei-me do caminho trilhado para seguir ávante. Theodora deixou cahir a dobra da capa, em que occultava meio rosto, e disse n'um tom arrogante:—Veja, snr. Affonso de Teive! Veja, que ainda sou formosa! O coração está esmagado; mas a face ainda conserva as graças que poderiam arrebatar maior alma que a sua.
«Deteve-se alguns segundos arquejante: eu ouvia-lhe o latejar do alto seio no fremito da sêda do corpete. Depois, com um gesto de arremesso, lançou-me aos pés um volume, e afastou-se a passo rapido.
«Levantei o objecto arremessado, e conheci que eram papeis e um objecto de mais solidez, deviam de ser as minhas cartas. O restante que seria?!
«Mafalda ia murmurando:—Que mulher, santo Deus! que ousadia!... Eu bem desconfiava que era ella. Quando tu estavas a dormir esta tarde, vi passar esta mesma creatura, assim encapotada sobre um grande[104] cavallo, com um criado de farda. Tua mãe tinha-me dito como a vira em Lessa, e meu pae descreveu-m'a tão pelo miudo que a adivinhei. Não t'o disse, e pedi a Deus que te levasse depressa d'aqui...—Não receies, minha boa prima—disse eu a Mafalda—que esta mulher na minha vida, já agora, apenas póde ser um estorvo de tres minutos, quando eu passeio nas Caldas—Minha prima replicou:—Não te illudas, meu primo: esta mulher é a tua sina maldita.
«Sorri-me, e fui examinar o pacote. Eram as cartas cintadas com uma fita preta, e d'esta fita pendia uma pequena chave; era tambem uma caixinha de tartaruga fechada. Entendi que a chave pertencia á caixa. Abri-a, e vi uma trança de cabellos, com tres flôres resequidas compostas entre as madeixas, como se as estivessem enfeitando. Reconheci as tres flôres: tinha-lh'as eu levado do jardim de minha mãe, em dia dos seus annos.
«Tirei a trança, e insensivelmente, a contemplal-a, achei que a tinha perto dos labios. Circumvaguei os olhos, a examinar que me não vissem. Estava sosinho, e fechado... Beijei os cabellos de Theodora, meu amigo! Peço-te desculpa de não corar agora; consinto, porém, que, se alguma vez escreveres esta historia, ponhas seis pontos de admiração, quando chegares aqui, e discorras o melhor que souberes e poderes, ácerca da miseria do bruto que chora, e beija tranças de cabellos, do bruto que ri de seu mesmo vilipendio, do bruto, em fim, chamado homem. [105] «Ia depôr as madeixas no cofre, receioso de alguma surpreza, e então vi um papel dobrado no fundo da caixinha. Era uma carta. Escondi-a sofregamente, fechei os cabellos, escondi o cofre e as minhas cartas no sacco de noite, e palpitante de commoção sahi do meu quarto, e fui respirar no escuro d'uma varanda, onde presumia não encontrar alguem.
«Apenas sorvi um hausto de ar, que me chegou ao coração impregnado das auras balsamicas da minha mocidade, ouvi um respirar alto e tremente. Fui á extrema da varanda, e vi minha prima, com as faces entre as mãos, repuxando ao seio os soluços com anciada violencia. Chamei-a carinhosamente. Interroguei-a. Quando bem a comprehendi, não sei dizer-te que entranhado compungimento me cortou a alma! Cahiram-me nas mãos as lagrimas de Mafalda... Perguntei-lhe por que chorava. Respondeu-me:—São as primeiras lagrimas: é por ti que as choro, meu primo. Deus deixa-te perder... Não ha ninguem que te possa salvar d'aquella mulher.—E, desprendendo-se das minhas mãos, fugiu a soluçar.
«Eu levantei olhos ao céo, e disse, em meu espirito, com terror quasi infantil:
—Não deixeis que eu me despenhe no mesmo abysmo, d'onde a vossa misericordia não tem querido salvar-me!
«E cuidei que o céo, se abrira á minha oração com um milagre.
«A imagem de Theodora passou ante mim; vi-a [106] repulsiva, abjecta, vilissima, e prostituida. Subito, n'um disco luminoso, desenhou-se-me o vulto angelical de Mafalda, com a face em lagrimas, humilde como uma santa, e ao mesmo tempo altiva como a virtude sem nodoa.
«Amei então minha prima; todas as estrellas do céo m'a estavam bem-fadando para mim; todos os rumores da noite diziam commigo um hymno ao Senhor que me descaptivára das ciladas da mulher fatal, que no descaro mesmo de sua audacia me fascinára, e com aquelles cabellos tecera o baraço de estrangulação da minha dignidade.
«Fui, fervoroso de ternura, em busca de minha prima. Encontrei-a á cabeceira do leito de seu pae. Chamou-me o tio para os pés da sua cama. Sentei-me com inquieta alegria. O velho achou-me outro em olhar, em tom de voz, em ar de rosto. Queria saber o segredo da transformação. Perguntava a Mafalda se o sabia. A menina sorria com aquella distincta angustia que lacera a alma sorrindo, por que as lagrimas só servem para exprimir os soffrimentos communs.
«Assisti ao chá de meu tio, pedi-lhe a benção, e recolhi-me ao meu quarto. Minha prima despediu-se de mim sem me fitar no rosto. A sua natural altivez soffria, depois que eu a surprehendêra chorando provavelmente. Este resguardo augmentou a divinisação de Mafalda.
«Fechado na minha alcôva, abri a carta de Theodora. Está n'este masso lacrado, ha quatorze annos. Quebre-se[107] o lacre, por amor da authenticidade da historia... Aqui a tens. Lê tu, em quanto eu dou folga aos pulmões. Ha muito anno que não fallei tanto tempo!
Li a carta de Theodora, cujo traslado segue:
«Quem te disse a ti que eu tinha cahido diante de mim mesma, Affonso?
«Quando te dei eu direito de suppôr que o teu silencio, em resposta a um grito do coração, me esmagaria os brios de mulher, que, d'um sopro, faz saltar de suas vestes a lama do teu desprezo?
«Quando eu te appareci magnifica de dedicação, fizeste-te mesquinho tu. As minhas lagrimas figuraram-se-te o pus d'um coração corrompido; e eram soro do mais nobre sangue.
«Não podeste chegar com a fronte á altura da minha, e apedrejaste-m'a!
«Quem cuidas tu que és, soberbo senhor, que voltas o rosto da tua escrava, e não sabes sequer usar a misericordia de dizer á mulher, que te ama, que não seja infame, amando-te?!»
N'este ponto suspendi eu a leitura, tomei a respiração, e disse:
—Esta senhora tem estylo, ou eu não entendo nada de estylos! Que interrogatorio!
«Podes rir, que eu tambem cá estou mordendo os beiços para não espirrar uma casquinada na cara do antigo Affonso de Teive—disse o meu amigo.
—Mas o estylo—tornei eu sinceramente agradado da leitura—o estylo aqui não póde ser a mulher:[108] aqui, ha, pelo menos, a triple intelligencia de tres escriptores de melenas sacudidas aos quatro ventos da inspiração! Por Hercules! Isto sim que é mulher... e «aqui ha que vêr» como diz o Garrett.
—E que lêr—ajuntou Affonso de Teive—continúa, se queres.
Perfilei as minhas faculdades intelligentes, e segui a leitura:
«A contas, homem de ferro, que endureceste o teu fragil barro d'outro tempo ao fogo de baixas paixões, a contas com a mulher desprezivel!
«Que fazias tu, quando eu me estorcia de saudades de ti, e dôres do meu captiveiro, dentro das grades das Ursulinas?
«Quando soubeste que a tyrannia me fechava a sete chaves n'uma cella, e me media os atomos de ar, que eu respirava a furto, que fazias tu para resgatar os quinze annos d'uma mulher que queria o sol das flôres, das aves, dos mendigos, do ultimo verme que se arrasta e cumpre o seu destino debaixo dos olhos de Deus?»
—Parece-me, reflecti eu, que esta senhora arredonda ambiciosamente os periodos, meu caro Affonso; e, se me dás licença, direi que ha estylo de mais n'este periodo!... Estou morto por te perguntar que impressão te fazia isto ha quinze annos!...
«Lê, e no fim fallaremos—disse Affonso. E eu li:
«Não respondas. A vil, a abjecta, a desgraçada é generosa. Não respondas. Ri, e escuta. [109]
«Abandonada por ti, enganada, não sei por que nem com que fim, por tua mãe, achei-me fraca para cruzar os braços, e esperar a morte. Á borda do abysmo, vi uma tabua de salvação. Sabia que, segurando-me n'ella, as mãos se rasgariam em chagas incuraveis. Sabia-o; mas agarrei-me á tabua de salvação. Escutei a desgraça; que não tinha outro anjo, nem outro demonio que me aconselhasse. Escutei-a, e aceitei o marido que ella me deu. Perdi-me para a vida da alma; mas encontrei a vida dos olhos e dos ouvidos, e do seio, onde me roia a serpente da soledade e do desabrigo.
«Vi arvores, vi estrellas, ouvi os canticos da terra e os amorosos murmurios da natureza festiva. No centro do mundo era eu a unica mulher sem mãe, sem pae, sem amigo, sem coração que se abrisse ás cinzas do meu. Não importa. Via o sol no firmamento; e para além do sol, a infinita luz dos que bem-disseram a mão do Senhor que, á sua vontade, desdobra um crepe de trevas sobre os corações, que, em sua innocencia, não ousam interrogal-o como Job!»
—De mais a mais—reflecti eu—lida nos livros sagrados!... Posso, sem indiscrição, perguntar se a authora d'esta carta morreu ou vive escorreitamente?
«Espera que a concatenação dos factos te elucide—respondeu Affonso.
Prosegui, lendo, com espanto maior que o meu [110] costume, se acerto de topar cousas escriptas por pessoas de juizo duvidoso:
«Trasbordou um dia a amargura de minha alma. Não sabia onde me levava a vertigem. Corri leguas. As arvores, que gemiam um som, as fontes que tinham uma voz, os trovões que estalavam do céo de bronze, as catadupas que bramiam no despinhadeiro, tudo me dizia o teu nome. Corri as montanhas que nos viram meninos; reconheci a fraga onde nossas mães se sentavam; orei á cruz de pedra, que está na quebrada da serra. E não te vi. Dous mezes te procurei, sem balbuciar o teu nome. E, quando ha um anno te avistei encostado ao hombro de tua mãe, a voz do meu orgulho de desgraçada disse-me: Se elle quizer que tu te percas por elle, amanhã não terás honra, nem familia, nem marido, nem creatura sobre a terra que te não insulte.
«E escrevi-te, Affonso! Aquelle papel era uma renunciação, aquellas palavras queriam dizer:—Dá-me a perdição como salvamento; dá-me a infamia como gloria; o mundo vai apedrejar-me, e eu cuidarei que elle me acclama virtuosa; todas as devassas me julgarão indignas d'ellas; e eu, contente da minha deshonra, estenderei benignamente a mão a todas as miseraveis, que m'a cuspirem.
«E tu, Affonso? Como me julgaste morta para a virtude, aproximaste-te do cadaver, pozeste-lhe sobre o peito um pé, calcaste, viste-lhe nos labios o sangue do coração, e escarraste-lhe! [111]
«Voltei do outro mundo. A mulher, que viste ha pouco, era um phantasma. Os cabellos negros, que adornastes com tres flôres n'aquelles formosos quinze annos, cahiram-te aos pés. As flôres vem aradas do fogo do inferno. O phantasma voltou ás suas labaredas, para nunca mais te crestar o riso dos labios com as chammas dos seus olhos. Vai tu ao céo, e pede a Deus que me deixe adorar-te na eternidade das penas. Pede-lhe que me dê eternidade para a expiação, e eternidade para o amor. Adeus.»
Não sei bem dizer d'onde me vieram as lagrimas. Sei que terminei a leitura da carta, já quando os olhos mal discriminavam as letras.
Como a gente, ás vezes, chora?...
Sorriu Affonso do meu melindroso sentimentalismo, retorceu destrahidamente os longos bigodes por sobre a barba listrada de fasciculos brancos, afogueou o seu cachimbo de barro negro, e continuou:
«Eu é que verdadeiramente chorava, quando acabei de lêr esse papel. Ficas sabendo a impressão que em mim fez a carta de Theodora. Não ha vergonha que eu omitta n'esta confissão geral. Sou o juiz do homem que fui. Julguei-me e condemnei-me ao opprobrio de levantar da lama o coração velho, e mostral-o com nausea ao enojo dos que vão passando... [114]
—Mas eu não vejo ahi cousa indecorosa de que te envergonhes!...—atalhei.
«Vês, pelo menos, a baixeza do meu espirito, senão antes a crassa sandice de pensar que as accusações de Theodora estavam justificadas por essa frandulagem de palavras sonoras, e apostrophes melo-dramaticas. O castigo da minha miserrima estupidez virá depois... Lá chegaremos.
«Li terceira vez a carta, e abri a janella do meu quarto. O vento ramalhava nas carvalheiras, e o céo d'aquella noite não tinha uma estrella. Appeteci embrenhar-me na escuridão do arvoredo. Abri de manso a porta do meu quarto, e, pé ante pé, ganhei a varanda d'onde era facil o salto á rua. Acabava eu de saltar, quando do escuro de uma janella contigua á varanda, me surdiu a voz de Mafalda.—Não tinhas necessidade de saltar, primo—disse ella—Chamasses que se te abriam as portas.
«—Estás a pé ainda, minha prima?—perguntei eu, corrido da surpreza, e algum tanto contrariado da espionagem.—Nunca me deito mais cedo—respondeu ella com brandura—Quando as noites são assim tristes, gosto de as vêr... Está vento, primo;—continuou retirando-se—não estejas ahi ao ar desamparado. Boas noites.»
«E fechou rapidamente a janella.
«Encaminhei-me á alamêda dos banhos, na inepta esperança de vêr alli vestigios de Theodora, ou não sei se ella mesma. Não sei ao que ia. É impossivel[115] explicar o intento que nos impelle em casos semelhantes, quando a gente, alguns annos depois, inquire de si mesmo o sentido das suas intenções: são actos estranhos á razão, dos quaes só póde desculpar-se o delírio. A verdade é que eu fui á alamêda, e andei, palmo a palmo, recordando-me do local em que ella me sahiu, e a direcção que tomára na retirada. Sentei-me n'um dos bancos de pedra, e conjecturei se ella teria estado alli sentada. Cerrei ouvidos a todos os rumores para escutar o som das palavras de Theodora, que me ecoavam do intimo coração. Atirei com a alma supplicante e desesperada áquelle céo de bronze, negro como ella. Pedia a Deus o esquecimento da mulher, com a vehemencia do justo atribulado que pede a corôa do triumpho.
«Levantei-me, e andei por as trevas, esbarrando nas arvores, e refrigerando o fogo da testa e mãos nas fontes e charcos que topava. Ao arraiar da manhã, estava eu nas raizes da Falperra. Senhoreou-me então um somno lethargico e invencivel. Adormeci com a face encostada á raiz d'uma arvore, e acordei, coberto de camarinhas de orvalho, ao calor dos primeiros raios do sol. Retrocedi pela estrada das Taipas, e entrei em casa, quando meu tio Fernão, admirado de minha falta, andava indagando dos criados, se eu sahira de madrugada.
«Mafalda appareceu-me com o semblante pallido, os olhos raiados do muito chorar, e o azul-violeta das olheiras carregado e distendido até meia-face. Meu tio [116] ligeiramente alludiu á minha falta, na presença da filha. Sahimos da mesa de almoço, e entramos na sala, onde Mafalda recordava as suas musicas ao piano, e, algumas vezes, se acompanhava cantando. N'este dia, a adoravel penitente sentou-se ao piano; e, com uma só das mãos, dedilhou umas toadas monotonas, mas celestialmente saudosas e melancolicas. O velho acenou-me, a occultas da filha. Segui-o; sahimos, e caminhamos a pé na direcção das ruinas de Citania. A meio caminho estava uma casa alagada, com uns lanços de muro ainda em pé. O velho avisinhou-se das ruinas, estendeu o braço com o indicador apontado, e disse: Aquelles pardieiros pertenceram a teu tio-avô Christovão de Teive. N'aquelle tempo, os homens de vida infamada, quando os ultimos invernos lhe geavam na cabeça, e os sinos, dobrando a finados, lhes attrahiam os olhos para a sepultura, o remorso penetrava-os até ao amago, e estorcia-os nas roscas das suas mil viboras, até que Deus se amerceava d'elles, e os tomava para o seu tribunal. Teu tio-avô foi um mau desgraçado. O amor de uma mulher da côrte entrou-lhe no coração, e apodreceu-lh'o á força de lhe derrancar o sangue com as torturas da perfidia. O moço empestado veio para a provincia, e sevou o seu odio em quantas victimas pôde surprehender adormecidas no regaço do seu anjo de innocencia. Aos quarenta annos, pesou sobre elle a maldição de Deus. Desde a raiz dos cabellos até á raiz das unhas chagou-se-lhe o corpo de lepra. De repente, em redor d'elle fez-se uma solidão horrenda. Desampararam-no[117] todos. Nem os engeitadinhos, indigitados como filhos d'elle, ousavam chegar-lhe um pucaro de agua. Christovão de Teive tinha esta casa, aqui afastada de visinhos, construida não sei para que fim ha tres seculos. Aqui se encerrou e viveu quinze annos aquelle vivo amortalhado nas ulceras da sua pelle. A sua companhia era a ama, que o amamentára, e que Deus, em recompensa, preservou da terribilissima enfermidade. Morreu o desamparado, legando esta casa á mulher que lhe cerrára as palpebras. A enfermeira foi depós elle, devolvendo a casa aos herdeiros de seu amo. Cincoenta annos depois, quando eu aqui vim, encontrei estes pardieiros. Dos nossos parentes ninguem poz pé a dentro das soleiras, que alli estão, onde existiram as portas...
«Deteve-se meu tio breves instantes, e concluiu:—Affonso, o divino Mestre doutrinava com parabolas: o homem d'estes calamitosos tempos moralisa com exemplos. Teu tio-avô começou como tu: vê tu, meu sobrinho, se vingas um correr de vida melhor que o d'elle. Se uma mulher te cancerou o peito, esconde-te, depura-te, faz-te bom, e depois volve ao mundo a procurar a felicidade do coração. Em quanto esse dia de regeneração não chegar, foge das mulheres puras. Eu tenho uma filha unica, um thesouro que Deus me confiou. Minha filha chora por ti. Affonso, se as lagrimas d'ella te não resgatam das presas d'uma mulher perdida, foge, e foge hoje mesmo. Agora, silencio, Affonso...
«Na madrugada do dia seguinte, sahi das Taipas, e fui para Ruivães. Dias depois, desisti do plano de me [118] formar, e fui para o Porto. Sahia um vapor para Liverpool: embarquei, e estive na Inglaterra; passei a França; e de França fui residir na Suissa uns seis mezes. O arrependimento de deixar minha mãe e a minha terra seguiu-me sempre. Resolvi regressar por muitas vezes; mas, fatalmente, a primeira imagem que eu via, voando em espirito á patria, não era a de minha mãe. Ella sempre, Theodora sempre!
«Ao cabo de um anno de expatriação, voltei para o Porto. Dava-me então como curado. A memoria d'ella era já fria: o pulso não se accelerava, nem do coração me subia á cabeça um golfo ardente de sangue. Fui alegrar minha mãe, ao lado da qual encontrei Mafalda, que lhe assistia á convalescença d'uma perigosa enfermidade. Notei sensivel mudança no rosto de minha prima. Os risos do anjo tinham ascendido ao céo no perfume de suas orações. A coruscante luz d'aquelles olhos tinham-na apagado os prantos. As madeixas cahiam-lhe soltas sem flôres, sem ornatos, como dons de quem os esquece, ou não sabe de que elles valham ás venturas da existencia. Porém, formosa da aureola santa da dôr sem culpa. Que paixão me avassallou n'aquelles primeiros dias! com que religiosidade eu beijava a mão de minha mãe aquecida pelos labios d'ella! Recordo-me de a encontrar sosinha no pomar. Sentei-me ao lado da mulher purissima. Tomei-lhe com subita sofreguidão os dedos que me offereciam um pomo. Não ousei beijar-lh'os... apenas balbuciei: minha querida irmã!... Mafalda[119] respondeu—Deves assim chamar-me, por que eu já me afiz a chamar minha mãe á tua, meu primo.
«A paz dos primeiros dias, aquelle suave repousar do espirito, entre as duas carinhosas almas, que m'o distrahiam com as indiziveis doçuras da domesticidade, durou menos de tres semanas. Ao sentir-me fatigado da igualdade de todas as horas, angustiei-me, e cobrei horror do meu futuro. «Que abominavel homem sou!» dizia eu no meu intimo senso, repellindo-me a mim proprio com uma restante força de virtude—Se me repugna o crime, por que a não esqueço? Se a não posso esquecer, para que me devoro n'estas covardes tentativas de lhe fugir? Odeio-a, e, em minha alma lhe exoro perdão d'este odio. Se me doe o coração saudoso d'ella, abomino-me, e recurvo sobre mim proprio as unhas d'esta feroz paixão.
«A fugir de mim mesmo, ia abrigar-me sob os olhos de Mafalda. Ella via nos meus olhares a submissão imploradora, e não entendia a covarde procedencia d'aquelle fital-a com tanta brandura. Apreciou-me erradamente. Teve-se em conta de amada. E, quando eu mais atormentado pelejava com a visão de Lessa e da lamêda das Caldas, Mafalda rehavia do céo os jubilos de outros dias, e a purpura do rosto. A compadecida amargura, com que eu a fitava, afigurava-se á ingenua menina a expressão do amor contemplativo, como ella o sentira e escondera sempre de todos, salvo de seu pae.
«Minha mãe, a occultas da sobrinha, perguntava-me[120] a respeito d'ella cousas, cujo fito estava posto no casamento. Eu respondia a verdade, como se Deus necessitasse interrogar a minha consciencia. Mostrava receios de ter desbaratado as flôres do coração, ao apuro de não ter já virtudes que me fizessem um digno esposo d'ella. Minha mãe não podia entender-me; obrigava-me suavemente a explicações, e, ouvindo-me, dizia soluçante: «Não se quebrou ainda o fatal encantamento!... Deus te salve, meu desgraçado filho!»
«A quarenta passos de distancia de minha casa está uma cruz de pedra tosca, sobre uma peanha de cantaria. A esta cruz se referia Theodora, na carta que lêste. Quando ella tinha seis annos, esteve com sua mãe uma temporada em nossa casa, e voltou alli aos nove. Algumas vezes nossas mães se sentaram nos degraus do cruzeiro, em quanto nós, com vergonteas floridas de acacias e arvores de fructa, teciamos uns desageitados festões que dependuravamos dos braços da cruz.
«Levou-me para lá o coração dez annos depois. Sentei-me na peanha da cruz. Acaso relanceei os olhos pela pedra, que lhe formava o sôcco, e vi letras. Reparei, e reconheci os caracteres de Theodora. Eram duas datas: 5 de Julho de 1848, com a assignatura inicial T. P. Seguia-se a outra, em letras mais de fresco: 10 de Setembro de 1849, com as mesmas iniciaes, e as seguintes palavras: Aqui veio orar a alma penada. Eu estava então em 15 de Setembro[121] d'aquelle anno. Cinco dias antes, pois, alli tinha estado Theodora.
«Recolhi-me com febre. Á celestial graça de Mafalda, que me sahiu ao tope da escada, respondi com uma affectuosidade falsa. Importunava-me o anjo. Eu queria então uma orgia infernal. Queria arder e palpitar no deleite sequioso, que zomba dos deveres, e insulta o espantalho da moral, impassivel carrasco das organisações ardentes. O aspecto mavioso de Mafalda era uma lança que me traspassava. Fugi-lhe, e, por alguns dias, raras horas nos encontramos.
«Voltei novamente ao cruzeiro. Do braço esquerdo da cruz pendia uma corôa de flôres do campo; e, na base, inscripta outra data: 20 de Setembro de 1849—Meia noite—O sol de amanhã queimará as flôres; mas o braço da cruz redemptora permanecerá aberto para os desgraçados. T. P.
«Eu queria esconder de minha mãe estas inscripções, feitas a lapis. Embebi um lenço em agua, e desfil-as. Hei-de agora confessar-te que a pertinacia de Theodora, por algumas horas, me pareceu ridicula.
—Tambem a mim me está parecendo isso, ainda agora—observei eu, animado pela confissão da pessoa, menos idonea para embicar no irrisorio romanticismo da esposa de Eleuterio Romão dos Santos.
«Mas, proseguiu Affonso de Teive—esta judiciosa critica, no dia seguinte, converteu-se em piedade... [122]
—Em amor—atalhei.
«Amor, sim, amor indomavel, amor faminto de vêl-a e de ouvil-a, de chorar com ella, de arrebatal-a ao marido, e insultar a sociedade e Deus na posse d'ella.
«Esporeava-me este designio, quando entrei em casa. Minha prima estava na primeira sala. Ergueu-se. Tomou-me com brandura a mão, levou-a ao coração arquejante, e disse-me:—Os braços da cruz redemptora estão sempre abertos para os desgraçados. As palavras, embora escriptas por mão criminosa, são santas. Meu pobre Affonso, já que ella te deu a desgraça, aceita-lhe tambem o conselho.—Beijou-me a palma da mão, e sahiu da sala.
«Mafalda tinha visto, primeiro que eu, as palavras de Theodora. Comprehendera o mysterio, resistira ao impeto de as tirar, e, desde aquella hora, promettera a Deus exercitar todos os recursos de seu coração para me acautelar das cavillações da mulher ardilosa.
«Que poderia fazer a simples creatura? O infinito das forças humanas fez ella em meu resgate; mas muito já por noite dentro de minha vida lhe havia de conceder o céo um pleno dominio em minha razão.
«Logo, ao outro dia, Mafalda pediu-me que sahisse com ella a um passeio longe por esses pinhaes fóra até ao mosteiro de Landim.
«Sosinhos?—lhe perguntei—Por que não! sosinhos, com os nossos anjos da guarda, e o coração de tua mãe comnosco, meu querido Affonso.
«Sahimos. Mafalda ia taciturna. De encontro ao [123] meu braço direito batia-lhe o coração com celeridade irregular. E eu sentia um enleio, uma constricção de alma, que não atinava com os termos communs d'uma palestra entre dous primos. No alto d'um sêrro, d'onde haviamos de descer para umas veigas, Mafalda sentou-se, e abrangeu com os olhos lagrimosos a redondeza dos horisontes. Perguntei-lhe que razão tinha para chorar. Respondeu-me que a mortificava a idéa de me vêr ir talvez para sempre do lado de minha mãe e dos parentes que me estremeciam.
«Quem te disse que eu deixo minha mãe e parentes?—redargui—Dizes-m'o tu, se eu t'o perguntar com as mãos postas—respondeu ella, pondo as mãos em supplica.
«Tartamudiei confusamente. As minhas palavras vinham falsificadas do espirito. Aqueceram-se-me as faces, porque eu não estava afeito a mentir. O coração teve quinhão d'este pejo: a meiga creatura, que me interrogava, tinha uns ares de divinisação, que me incutiam uma especie de escrupulo religioso.
«—Vejo que te afflijo, meu primo—interrompeu Mafalda—És ainda bom, que não podes mentir á tua amiga. Queres ir ao teu destino... Vai, mas... escuta-me...
«Seguiu-se um longo silencio, que ella mesma interrompeu, exclamando, em pranto desfeito:—Não posso!... A Virgem do céo não ouviu os meus rogos!...
«Acariciei-a com o melindre de irmão, instando-a [124] a que fallasse. Articulou ainda algumas palavras desatadas, faceis, porém, de se ligarem em meu espirito prevenido. Atalhei-a muito commovido, n'estes termos: «Deves ter directo instincto do céo, minha prima, por que a tua alma virginal é pura de toda a falsidade, e não póde ser enganada. Sabes que eu vou fugir, sem eu ter annunciado a nossa mãe este novo golpe. Fujo, minha irmã, por que entre a tua celestial dedicação e as minhas desvairadas paixões está o infinito. Tu és a creatura que ainda não sonhou o mal, sedenta d'uma alma cheia das crenças da juventude. Vês a minha vida, posta em assedio pelas tentativas da mulher unica do meu amor, da mulher perdida para mim e para si propria perdida... observas isto com teus olhos inexperientes, e pasmas do poder infernal d'esta mulher. Oh! que Deus te livre de ainda veres o mundo, despido das vestes que a tua candura lhe empresta! Deus te poupe a debruçares-te sobre o abysmo d'onde se tira a luz, ao clarão da qual se observam as chagas da sociedade. Esconde-te de mim, e de todo homem que viu o mundo; esconde-te, anjo do paraiso, para que nenhum homem te diga o que viu. Eu não sei como ousaria contar-te as minhas desventuras, Mafalda. A tua linguagem perdi-a, quando sahi d'estas florestas, onde nós nos entendiamos como as avesinhas do céo se entendem. Que hei-de eu dizer-te hoje? Com que termos te mostrarei a minha indignidade!
«Mafalda poz-me com muita suavidade a mão na [125] bocca, e disse:—Não digas mais nada, meu irmão, que já disseste tudo... A mulher unica do teu amor... a mulher unica do teu amor é... ella!...—Os soluços embargaram-lhe a voz. Falleceram-me a mim espiritos com que tentasse consolal-a. Todas as palavras, sem vehemencia de dentro, seriam pallidas e vans. Mentir, bem que eu podesse, de que serviria?... O meu silencio era angustioso. Recriminava-me por me ter exposto áquelle dialogo...»
«Com satisfação a vi erguer-se, e dizer-me:—Voltemos, primo?... Vamos para casa. Não percas instantes da companhia de tua mãe. Vamos...»
«N'este momento, á raiz da serra, onde ia a estrada de Landim, passava uma mulher cavalgando a galope. Ia sósinha. Eu não a tinha visto ainda, quando Mafalda, apontando-a com o braço tremulo disse:—A mulher unica do teu amor...
«N'este instante, esqueci o anjo, que me estava alli chorando, não sei mesmo se desejei que Deus o chamasse para a sua patria; e adorei o demonio, que passava lá em baixo, com o véo esvoaçante, por entre nuvens de pó, sacudidas das patas do arremessado cavallo. [126][127]
Cerravam-se cada dia mais espessas as trevas em volta do perplexo animo de Affonso de Teive. A obsessão de Theodora não lhe dava treguas. Nas circumvisinhanças de Ruivães já se fazia reparada a amazona, umas vezes sósinha, outras seguida do lacaio, e algumas vezes ao lado do marido, a quem ella não prestava mais attenção que ao lacaio. Affonso, em quanto a mim, resistindo á tentação, iniciava-se para consociar-se no reino celestial com os santos da sua familia, mortos sob o estandarte da cruz; mas, a juizo de muita gente, muito menos benemeritos da auréola [128] da santidade. Morrer com o céo a abrir-se além no horisonte, ouvindo já os hymnos dos anjos, é glorioso e exultante; porém, morrer gotejando em lagrimas o sangue do coração, sem visões bemaventuradas, sem estimulo de predestinado, morrer do amor de uma mulher que se arrasta submissa aos pés do triumphador que a despreza e adora... sublime extravagancia, se querem que lhe eu não chame santissimo martyrio!
A mãe do lastimavel moço, antes de avisada da intentada partida d'elle, resolveu impôr-lhe o seu arbitrio de mãe com severidade. Informada por Fernão de Teive, sabia que Theodora fazia miudas investidas ás redondezas de Ruivães, e que Affonso não era estranho, bem que a não houvesse encontrado, aos planos da impudente mulher. A palavra «adulterio», no espirito de D. Eulalia, tinha uma significação de horror, como se o crime não tivesse exemplo na humanidade, nem remorso que o contrapesasse na balança da misericordia divina. O pavor de que um filho seu, um descendente de santos, e, pelo menos honrados varões, podesse dar ao mundo o escandalo de tamanha perversidade, accendeu-a em louvavel indignação. Inesperadamente é chamado Affonso ao quarto de sua mãe para ouvir estas pesadas e seccas palavras:
—Eu preciso de morrer em paz com o mundo, que nunca escandalisei, penso eu, e Deus me perdôe se a minha vaidade me faz esquecer as culpas. Em quanto viva, peço-te, como amiga, se não devo antes ordenar-te[129] como mãe, que me poupes á vergonha de esconder a face, quando me pedirem contas dos sentimentos de religião e honra que te insinuei na alma. Temo que me perguntem que fiz eu da herança, que teu pae fiou de mim para te eu ir entregando, assim que tivesses razão para recebel-a... herança de virtude e probidade que tu levas em principio de desbarate. Mando-te que te retires para longe d'esta terra. Vai para Lisboa, se te agrada; ou vai viajar, se antes queres. É bom que saibas os cabedaes que tens. A tua casa rende seis mil cruzados: conta com elles, e com o valor das propriedades, se, para salvação de tua honra, precisares que ellas se vendam. Não voltes para mim sem me poderes jurar, pelas cinzas de teu pae, que a lembrança peccaminosa de Theodora morreu em teu coração. Deus Nosso Senhor te abençôe, filho. A minha ultima oração será rogar ao Creador que restitua á casa onde as gerações legaram umas ás outras a tradição de grandes serviços a Deus ligados a grandes serviços á patria: religião, honra, e trabalho, o nobre trabalho da espada de uns, e da sciencia d'outros. Tu sahes da trilha de teus avós, consumindo tua mocidade em dissabores de que ninguem, senão eu, póde compadecer-se. Vai. Se poderes, sê forte, sê homem. Se a ultima fraqueza te levar ao ultimo crime, guarda ao menos uma parte da alma para a contrição no remate da vida.
Nunca, até áquella hora, Affonso vira e ouvira assim sua mãe. Mesmo na admoestação, denotára sempre[130] o pesar com que o fazia; e para o compensar da magoa, acudia logo com as caricias. Por causa de Theodora, as reprehensões eram sempre disfarçadas na grave mas dôce persuasão do conselho. Querer afastal-o de si, nem por sombra de palavra o indicára nunca. E agora, no semblante, na rigidez da phrase, na postura do rosto, e arrugado da testa, Affonso achou tanta mudança para espantar-se como affligir-se.
Ia elle responder, e ella, para logo, d'um gesto de silencio, o fez calar, dizendo:
—Não te quero ouvir: Deus que te ouça; mas vai. Cá fico eu velando os dias d'esta menina, que teve a desventura de te amar. Consolar-nos-hemos eu e ella, orando por ti. Ámanhã partirás. Tua mãe ordena.
Affonso, ao despedir-se de sua mãe, teve a intuição de que a não veria mais. A maior agonia da sua vida, até áquelle momento, foi essa. Ajoelhou-se a beijar-lhe as mãos, que molhou de lagrimas. E ella abençoou-o serenamente, com os olhos no crucifixo do seu oratorio. Ao lado d'elles, estava Mafalda, livida, hirta, tranzida d'um frio, que a fazia tiritar. Não chorava. Podia comparar-se a sua atribulação á da mãe que tambem tinha enxutos os olhos. Porém, quando Affonso lhe estendeu a mão, e disse: «adeus!» ella, arrancou do intimo um cortante grito, e lançou-se nos braços d'elle, debulhada em pranto. [131]
Foi Affonso de Teive para Lisboa. Como ia desgostoso e intratavel, rejeitou a aposentadoria em casa do tio desembargador. Mobilou casa no bairro de Buenos-Ayres, na menos frequentada das ruas. Desligou-se do trato das relações adquiridas em casa do magistrado, e evitou novos conhecimentos. Vestiu de livros as paredes do seu gabinete, propondo-se o recreio do estudo, e o trabalho mesmo da composição, sem o intento de fazer-se conhecido no mundo litterario. Em quanto o espirito se lhe entreteve nos apetrechos de casa e aconchegos de quem tencionava viver n'ella os dias e as noites,[132] curtos intervallos de magoa o assoberbaram; assim, porém, que o bulicio cessou, e os tapetes das elegantes salas não davam rumor de um passo, e Affonso, sentado á sua banca de estudo, ouvia apenas as cadencias do pendulo do relogio, condensaram-se-lhe em volta do espirito as nuvens torvas, que se haviam rarefeito, bafejadas pela aragem da esperança, e nunca tão compressora o sopesou a mão da tristeza. Os livros atediavam-no; o escrever acendia-lhe o espirito a um grau penoso de excitação. Todos os seus manuscriptos fragmentarios ou desatados, que eu vi treze annos volvidos, accusavam uma obstinada paixão da qual o poeta hauria argumentos contra a Providencia que o desamparára, na batalha comsigo mesmo.
Aos vinte e dous annos, aceitar longo tempo e voluntariamente um jugo de vida assim, é virtude imaginaria. Para outras civilisações, lá estava o deserto do anachoreta, e a Palestina do cruzado: um e outro se deixavam devorar das angustias do ermo, ou cortar do ferro islamita; e lá iam encontrar-se no céo, a cobrarem o seu patrimonio de alegrias infindas, ganhado a troco d'uma hora de orgulho satisfeito—que mais não é o contentamento d'esta breve fugida que fazemos do ventre á sepultura. N'estes tempos, porém, a tanta luz, a tanto estrondo, em tamanho desentranhar-se a terra em novos enfeites de si propria, agora que o céo se deixa contemplar, já não como paragem de futuras vidas, senão como estrellado involtorio d'este globo cujas delicias nos foram dadas em desconto do breve tempo que [133] as saboreamos; agora, em summa, que o viver sem gozar é um triste, senão estupido, preludio da morte, em redor da sepultura, que loucura é esta de Affonso de Teive que não rompe mundo a dentro, com seis mil cruzados de renda, vinte e dous annos, bizarria de fidalgo, e physionomia dotada de graças attractivas de todos os olhos?
Era necessario que a sociedade culta delegasse um dos seus ornamentos a intimar Affonso de Teive para comparecer, réo de lesa-illustração, á barra do seculo XIX. O enviado, escolhido a ponto, foi, como por acaso, encontrar Affonso na matta da Penha-Verde em Cintra, onde o tinham chamado saudades das suas arvores de Ruivães.
D. José de Noronha, sugeito de trinta annos, filho segundo d'uma casa titular de Lisboa, cursára alguns estudos da Universidade, contemporaneo de Affonso. Pertencia á tribu dos trossistas, e gozava as honras de caudilho nos disturbios, e maiores honras ainda de primeiro estomago em digestão de vinho. Contava-se que D. José de Noronha bebia por um pipo de almude, quando não tinha á mão o alguidar, taça ordinaria das suas libações. Este facto, presenciado com assombro e inveja, avantajou-o em consideração aos socios da taberna, e conferiu-lhe voto deliberativo em todas as barganterias nocturnas. Affonso de Teive, algum tempo associado aos tonantes, declinou da sua estima o illustre companheiro, indistincto dos outros em sua opinião. Separados pela mudança de costumes, raras vezes se [134] viam, e mais raras se tratavam. D. José cognominava de renegado o fugitivo socio, e divulgava que o miseravel nunca bebera uma garrafa de genebra, sem se embriagar. Equivalia esta denuncia a uma grave deshonra.
Abandonada a carreira dos estudos, por força de successivas reprovações, D. José foi para a familia, que o recebeu sem espanto do mau exito, nem mesmo pesar. O fidalgo libertino tinha bom patrimonio materno, e um pae, cujo desregramento de vida absolvia os desatinos do filho. A sociedade recebeu-o prazenteiramente, deu-lhe a primeira linha na cohorte dos elegantes, e victoriou-o com alguns tropheus de conquistas, comminadas no codigo penal, e gloriosas nos salões. D. José absteve-se da ebriedade em publico, é isso verdade; mas indemnisou-se em vicios, que seriam muito mais nocivos á humanidade, se as maiorias compartissem dos ultrages afflictivos, que vão na intimidade obscura, e mesmo na publica exposição das familias. Não vem isto para dizer que todas as familias ultrajadas se afflijam. Em Lisboa, principalmente, as excepções são tantas, que suaria o topete quem quizesse achar a regra. Lá, haveis de encontrar muito d'uma cousa chamada «philosophia», sciencia, que foi necessario inventar-se, á medida que umas certas virtudes de portas a dentro deram em saltar pelas janellas, e voar por ahi fóra, não sei para onde, naturalmente para a India, onde as viuvas se queimam em demonstração de fidelidade aos maridos defunctos. Ha-de ser isso.
Affonso de Teive reconheceu D. José, que sahiu [135] d'um rancho de senhoras a comprimental-o. Eram cousas diversissimas vêl-o em Coimbra, ou alli em Cintra ao lado das senhoras da primeira distincção, como lá se diz, e quasi sempre em rigorosa verdade, omittindo-se a qualidade distinctiva. O menos preço em que o fidalgo do Minho tivera o de Lisboa, desvaneceu-se logo. A compostura, o trajo, a seriedade, os ademanes, aquillo tudo, digamol-o assim, aromatizado do palacio e côrte, demudou a má opinião de Affonso em estima attenciosa e quasi amigavel.
Em breves termos, se disseram mutuamente as suas residencias, convencionando-se logo em se encontrarem e conviverem a miudo. D. José de Noronha, como da terra, foi o primeiro a visitar Affonso. Frequentaram-se assiduamente, e chegaram a termos de se hospedarem á vez, e ás temporadas de tres dias, nas casas um do outro.
Claro é: Affonso contou suas penas, com sincera expansão, ao amigo. Era o primeiro estranho a ouvir-lh'as. Mostrou-lhe as cartas de Theodora, encarecendo-lhe a belleza, superior mesmo ao genio revelado na escripta. Nada menos que genio o meu pobre Affonso descobrira nas cartas da esposa de Eleuterio Romão. D. José de Noronha, por sua parte, passava do espanto ao assombro a cada periodo interrogativo da famosa missiva, que me fez rir e chorar—caso unico na minha vida extraordinaria.
—E tu podeste, Affonso—disse D. José—podeste resistir a esta mulher?!... És aleijado, ou [136] tens peito de rocha, ou cheiras a santo! Abre-me bem os refolhos do teu espirito. Esclarece-me este phenomeno. É certo que nunca respondeste a esta mulher, nem a procuraste?
—É certo—respondeu Affonso, quasi envergonhado da confissão.
—Ó pobre Joseph! ó mallograda Hiempsal! Conheces bem a Hiempsal... a esposa do ministro de Pharaó! Quantas capas tencionas assim deixar em lindas mãos?... Ai de ti, Affonso de Teive, que, a final, sahirás do mundo sem capa, e coberto de lama!... Tu não sabes que estás em 1850, e que tens de alijar a carga de dous seculos, se não quizeres ir a pique, varar no ridiculo inexoravel com os homens da tua fortuna e da tua figura. Origines ficticios, que nem sequer resalvam com o estudo dos attributos divinos a sua ignorancia dos attributos humanos... Pobre Theodora... a formosa mulher, que se rojava a teus pés, quando tu, por brio mesmo de tua vaidade ferida, devias ter ido beijar-lhe os cabellos, e não arrancar-lh'os. Pobre menina, casada com um homem chamado Eleuterio... que mais?
—Eleuterio Romão dos Santos—disse Affonso, sorrindo no tom imitante do dizer galhofeiro do amigo.
—Eleuterio Romão!... Eu não sei—proseguiu D. José—se amaria a esposa de um homem chamado Eleuterio!... Mas, nas condições de cara e estylo em que está Theodora, amaria, quer-me parecer que amaria, Affonso, obrigando-a a promover o chrysma do conjuge...[137] Fallemos serios, serios como rapazes, que tem o estricto dever de não serem palermas, do contrario seremos victimas de todos os Eleuterios. É necessario que escrevas a essa mulher; isso não te priva de escreveres a outras muitas, visto que estás aqui a ares, e tens ainda a balda de escrever meditações... Que ratão és tu, Affonso! Eu, em Coimbra, achava-te uma graça! Quando tu publicavas no «Trovador» umas lamurias lamartinianas, que davam idéa de seres um desgraçado, que vivias das brizas do claro Mondego, e tu, meu patarata, em quanto fazias chorar as meninas com os versos, emborcavas torrentes de cognac por uma catadupa esponjosa que muitas vezes receei que me apeasses do meu pedestal!... Patusco!... Fallemos agora serios. Escreve á Theodora, se tens algum resto de pudor... Não me digas que estás soffrendo por ella, que deixaste por ella tua mãe, que renunciaste ao amor de um anjo por causa d'ella... Não me digas tal, que eu nem posso admirar-te a virtude nem a parvoice. A virtude seria medir o espaço que separa a tua alma do coração atraiçoado de Theodora, e interpor n'esse espaço trinta mulheres, com tanto que te não privasses da companhia de tua mãe, nem lhe désses desgostos muito menores que este. Devias adorar tua prima porque era um anjo, e devias desejar a outra porque era um demonio. Que fizeste tu quando ella casou? Choraste, e com tamanho aggravo dos teus brios que consentiste que o mundo te visse chorar, a ti, rapaz de vinte annos, gentil, e rico! Pondera bem n'esta vilipendiosa calamidade, meu caro [138] Affonso. Salta sobre dez annos de tua existencia para diante, e diz-me que nojo te ha-de fazer este Affonso, quando o Affonso de 1860 achar que tem o mesmo nome, e quasi a mesma figura!...
E continuou por largo espaço n'este sentido.
Escutava o filho de Eulalia o discurso de D. José, lardeado de facecias, e, por vezes, attendivel por umas razões que se lhe cravavam fundas no espirito. As réplicas sahiam-lhe frouxas e mesmo timoratas. Já elle se temia de responder cousa de fazer rir o amigo. Violentava sua condição para o igualar na licença da idéa, e por vezes, no desbragado da phrase. Sentia-se por dentro reabrir em nova primavera de alegrias para muitos amores, que se haviam de destruir uns aos outros, a bem do coração desprendido salutarmente de todos. A sua casa de Buenos-Ayres aborreceu-a por afastada do mundo, boa tão sómente para tolos infelizes que fiam do anjo da soledade o despenarem-se, chorando. Mudou residencia para o centro de Lisboa, entre os salões e os theatros, entre o reboliço dos botequins e concurso dos passeios. Entrou em tudo. As primeiras impressões enjoaram-no; mas, á beira d'elle, estava D. José de Noronha, rodeado dos próceres da bizarria, todos aporfiados em tosquiarem um dromedario provinciano, que se escondêra em Buenos-Ayres a delir em prantos uma paixão callosa, trazida lá das serranias minhotas. Ora, Affonso de Teive antes queria renegar da virtude, que já muito a medo lhe segredava os seus antigos dictames, que expor-ser á irrisão de pessoas d'aquelle quilate. É [139] verdade que ás vezes duas imagens lagrimosas se lhe antepunham: a mãe, e Mafalda. Affonso desconstrangia-se das visões importunas, e a si se accusava de pueril visionario, não emancipado ainda das crendices do poeta inexperto da prosa necessaria á vida.
Escrever, porém, a Theodora, não vingaram as suggestões de D. José. Por ventura, outras mulheres superiormente bellas, e agradecidas ás suas contemplações, o traziam preoccupado e algum tanto esquecido da morgada da Fervença.
Mas, um dia, Affonso, n'uma roda de mancebos a quem dava de almoçar, recebeu esta carta de Theodora:
«Compadeceu-se o Senhor. Passou o furacão. Tenho a cabeça fria da beira da sepultura, d'onde me ergui. Aqui estou em pé diante do mundo. Sinto o peso do coração morto no seio; mas vivo eu, Affonso. Meus labios já não amaldiçoam, minhas mãos estão postas, meus olhos não choram. O cadaver ergueu-se na immobilidade da estatua do sepulcro. Agora não me temas, não me fujas. Pára ahi onde estás, que as tuas alegrias devem de ser muito falsas, se a voz d'uma pobre mulher póde perturbal-as. Olha... se eu hoje te visse, qual foste, ao pé de mim, anjo da minha infancia, abraçava-te. Se me dissesses que a tua innocencia se baqueára á voragem das paixões, repellia-te. Eu amo a creança de ha cinco annos, e detesto o homem de hoje.
«Asserena-te, pois. Esta carta que mal póde fazer-te,[140] Affonso? Não me respondas; mas lê. Á mulher perdida relanceou o Christo um olhar de commiseração e ouviu-a. E eu, se visse passar o Christo, rodeado de infelizes, havia de ajoelhar e dizer-lhe: «Senhor! Senhor! é uma desgraçada que vos ajoelha e não uma perdida. Infamias uma só não tenho que a justiça da terra me condemne. Estou acorrentada a um dever immoral, tenho querido espedaçal-o, mas estou pura. Dever immoral... por que não, Senhor! Vós vistes que eu era innocente; minha mãe e meu pae estavam comvosco.
«Abafaram-me n'uma jaula; eu queria amar-vos fóra dos violentos ferros, deixei-me matar diante da vossa imagem por um sacerdote do vosso culto. O vosso sacerdote, Senhor Deus da Justiça, praticou uma immoralidade, levantando sobre as faculdades d'esta alma esmagadas o patibulo do meu coração. Foi immoral o dever, que me legislaram em vosso nome, Senhor. E eu, sem vociferar contra o mundo, que me arroxêa a gonilha no pescoço, a vós ajoelho, Deus dos reprobos das alegrias d'este mundo, exorando-vos que me deis um amigo.
«É o que eu diria ao Deus da adultera e da Magdalena, Affonso. E o Senhor piedoso havia de ouvir-me, e de tua alma, fulminada pela inspirativa misericordia do Justo dos justos, sahiria um gemido piedoso por a mulher desamparada. Sê meu amigo!»
Recusava-se Affonso a deixar vêr a carta: era, porém, uma descortezia sonegal-a, entre moços, que francamente[141] haviam alli relatado á competencia, as façanhas amorosas dos ultimos quinze dias.
—Homem indigno da nossa estima!—exclamava D. José de Noronha—Grande cynico! podes tu negar aos teus amigos dous minutos do innocente prazer de ouvirem o estylo d'uma Sevigné provinciana, que, para ser mulher de época, só lhe falta affeiçoar-se a um homem que lhe rasgue os horisontes d'um destino esplendido!? Venha a carta!
—A carta! a carta!—exclamaram todos, empunhando os copos.
—Um brinde á formosa das montanhas!—bradou D. José.
—Depois de lida a epistola!—emendou um commensal.
—Antes e depois!—redarguiu o proponente do brinde, e ajuntou:—Á saude de Theodora, bella e espirituosa, amada e amantissima, pura quanto póde sêl-o a mulher que nos braços d'um marido reserva para o homem amado a virgindade do coração!
—Á saude de Theodora—conclamaram todos, exceptuando Affonso, cujo aspecto arguia tristeza.
Seguiu-se um brinde enthusiastico ao ditoso Affonso, que sobrepunha a formosa minhota a quantas lisboetas de tez e olhos arabes lhe tinham offerecido a alma n'um sorriso.
Affonso agradeceu, com gesto de mal dissimulado dissabor.
Reiteraram os convivas o pedido da carta. Affonso [142] hesitava ainda. O mais ebrio d'aquella mocidade patricia, representante dos mais illustres appellidos da época heroica de Portugal, ousou tomar a carta de sobre a mesa, e abril-a com estrondosos applausos dos outros. Affonso de Teive estendeu impetuosamente o braço, e tirou a carta da mão do hospede.
—Isso é um insulto a todos!—exclamou D. José de Noronha.
—Não é insulto—replicou o de Ruivães—é preito a todas as mulheres, e com especialidade ás desgraçadas.
Disse, e incendiou o papel na chamma do castiçal em que acendiam os charutos.
O tom amargo d'aquellas palavras commoveu os convivas, que, por bom acerto, se encontraram todos de indole sentimental, quando as vaporações alcoolicas lhes ennublavam a porção intellectual, que era n'elles diminuta, como de direito heraldico. D. José, compondo o rosto d'uns vislumbres de rectidão e bom discurso, perorou ácerca da probidade de Affonso, e, em nome dos communs amigos, agradeceu a lição, e levantou novo brinde ao hospedeiro moço que tão digno era da estima dos homens como da confiança das mulheres.
Este capitulo não dispensa uma nota illustrativa, respondendo temporanmente á critica illustrada que me perguntar como pude eu pôr em traslado uma carta [143] queimada á luz do castiçal, minutos depois que Affonso a lêra? É por que o rascunho d'esta carta, escripta com entrelinhas, emendas, e borrões, escripta por Theodora, estava ainda em poder de Affonso de Teive em Dezembro do anno proximo passado. Opportunamente se dirá como Affonso de Teive se apossou do rascunho. Então a critica verá que poucas cousas succedem na vida tão naturalmente.
Relevem-me estas demasias de escrupulo: que eu difficilmente consentirei que a má fé me apanhe em flagrante inverosimilhança.
Assim é que eu quizera que se escrevesse a historia patria, com este timbre e rigor de verdade. Por mingoa de desvelos analogos na averiguação dos factos historicos é que nós ainda não sabemos bem quantos filhos bastardos fizeram os nossos monarchas: falha que desluz algum tanto o panegyrico das virtudes dos reis portuguezes. Aprendam os historiadores. [144] [145]
No mesmo dia, um deputado chegado do Minho, entregou a Affonso uma carta de sua mãe, incluindo outra de Mafalda. A senhora de Ruivães felicitava o filho por saber que elle procurava os passatempos da capital, admoestando-o a que procedesse honradamente no gozo dos prazeres, para que elles se não derrancassem em flagellos da consciencia, e infamia. Mafalda, em poucas linhas, pedia-lhe que se não esquecesse d'ella, e fosse fiel á promessa de estimal-a como irmã.
O deputado bracharense era sujeito que sabia as cousas para as dizer, e saltava a quatro pés por cima d'isto que chamam delicadeza em assumptos de coração. [146]
Pelo que, o expansivo deputado fallou assim a Affonso:
—Ainda me lembro de v. exc.ª, quando rapazola estudava rhetorica em Braga. Está certo de ser agarrado pelo regedor, quando foi ás Ursulinas atacar as freiras? Pois fui eu quem, a pedido de sua mãe, lhe vali no processo instaurado.
—Não sabia—atalhou Affonso—Aproveito a opportunidade para agradecer a v. exc.ª...
—Não tem de que. Mas, com effeito—volveu o deputado, a rir de esperto—olhe v. exc.ª o que fazem mulheres... ou mulherinhas... por que a final a morgadinha da Fervença acanalhou-se até ir casar com um bruto de Tibães... Soube isto v. exc.ª?
—Perfeitamente. Era impossivel que eu o não soubesse...—respondeu attentamente Affonso.
—Eu conheço Eleuterio Romão dos Santos—continuou o informador—O homem torce as grandes orelhas que tem, por que ella tem-lhe feito dar a agua pela barbella. V. exc.ª ha-de saber isto...
—Não sei senão que Theodora é mulher de Eleuterio.
—Então eu lhe conto. A rapariga tem figados, e ninguem o dirá vendo aquella lesma, que parece feita de manjar branco. Assim que entrou em casa, e se viu com o sogro Romão e com a sogra Eleuteria deu ao diabo a cardada, poz-se nas suas tamancas, e mobilou as suas salas e os seus quartos á moderna. O Eleuterio quiz reguingar-lhe; mas ella, ás primeiras testilhas, fallou[147] em divorcio, ou cousa peor ainda, que era, pelos modos, fugir de casa, e procurar v. exc.ª O marido poz as mãos na cabeça, quando ouviu fallar em divorcio. A fortuna alli é quasi toda de Theodora. Se ella se levantasse com o seu casal, o velhaco do tio, que preparou semelhante desgraça de casamento, dava um estouro. Começaram a fazer-lhe todas as vontades á moça. Para que lhe ha-de ella dar? Imagine lá v. exc.ª para que lhe deu na veneta?
—Eu sei cá...—disse anhelante de curiosidade Affonso.
—Fez-se doutora!... Mandou comprar dous carros de livros ao Porto; fechou-se no seu escriptorio, que parecia uma livraria de convento, e começou a lêr de noite e de dia. Lá de dia passe; mas de noite, dava isso que pensar a Eleuterio casado á face da igreja, e dono da mulher pelos seus justos cabaes. Passado tempo, deu-lhe outra mania: fez-se cavalleira, e rompia a galope pelo campo de Santa Anna em Braga, a levantar poeira que parecia um esquadrão de cavallaria! Não parou ainda aqui o desarranjo d'aquella cabeça! Tomou lacaio, deu-lhe libré avivada de vermelho, e andava por essas estradas do Minho com o lacaio em correrias de douda. Uma hora viam-na em Landim, outr'ora em Santo Thyrso, depois em Lessa de Palmeira... Que novidades lhe estou contando!...—concluiu sorrindo o narrador.
—E do procedimento d'ella que se dizia?—atalhou[148] Affonso, vivamente empenhado nas revelações do chanissimo legislador.
—Do procedimento d'ella a que respeito?—perguntou o deputado, com suspeitoso sorriso.
—Amantes, quero dizer se a opinião publica lhe dava amantes.
—Eu lhe digo: quando v. exc.ª estava em Lessa com sua mãe, e a morgada lá foi com o marido, alguem disse que o marido era um simplorio. Ora isto parece-me que alguma cousa queria dizer...
O deputado espirrou uma risada de finura velhaca, e ajuntou:
—Depois, quando v. exc.ª esteve em Ruivães uma temporada, e Theodora sahia para aquelles lados, já todo o bicho careta dizia que o adulterio estava provado por todos os artigos do codigo, e por mais alguns que esqueceram aos corpos legisladores.
Aqui deu o representante de Braga uma segunda risada, expressiva de agudeza muito mais faceta. Affonso sorriu-se, e deixou-o esvasiar a pojadura da verbosidade chula.
—Não se falla por lá de mais ninguem que eu saiba—tornou o deputado—Mas o marido! aquelle palerma, que lhe não vai á mão, e a deixa andar em filistrias de cavallo e lacaio, faz-me pena, sinceramente lh'o digo, por que houve alguem que me affirmou que a mulher, quando está fechada na livraria, não o admitte á sua presença, e até me disseram que ella passa toda a noite a consultar os seus livros! Logo: aquelle marido [149] está n'uma posição critica, matrimonialmente fallando. Parece-lhe isso, snr. Affonso?
Aqui expediu o sujeito terceira risada, que tinha idéa occulta, a meu vêr, inconciliavel com o comedimento desejavel n'uma pessoa grave... de mais a mais deputado a côrtes!
—E como está ella?—perguntou Affonso—Ainda é bonita?
—Agora é que ella está completa. Encheu muito de hombros, e tudo á proporção. Está muito alta, e esvelta, que parece ingleza. E o garbo com que ella sacode um cavallo... V. exc.ª está a mangar commigo?—perguntou de subito o deputado, após um instante de reflexivo silencio?
—Se estou a mangar com v. exc.ª?! que pergunta!
—Sim! pois o snr. Affonso vem-me perguntar a mim se ella está bonita?! Quem sabe melhor que v. exc.ª como ella está?!... Ora, meu amigo, vá contar essas historias aos da Lourinhã. Cá para mim vem barrado!
—Dou-lhe palavra de honra—redarguiu Affonso—que a minha pergunta foi sincera. Eu vi Theodora; mas tão de relance, que não pude reparar-lhe nas feições.
—A sua palavra de honra tem para mim o peso d'um Evangelho,—tornou gravemente o cavalheiro de Braga.—Pois, senhor, o mundo está enganado. A voz geral dá v. exc.ª como amante de Theodora. Eu não me[150] atrevia a dizer-lh'o tanto ás escancaras; porém, chegadas as cousas a este ponto, fique sabendo que ninguem acredita na sua innocencia, excepto o Eleuterio, que é muito bom homem.
É escusado dizer que o individuo riu de novo, esfregou as mãos, e exclamou abruptamente aguilhoado pelo instincto oratorio:
—Ainda ha quem case! Ainda ha victimas que espontaneamente se offereçam no altar das mulheres! Chegamos a um tempo em que ninguem póde sinceramente dizer que conhece seu pae. Os assentos dos baptismos estão todos falsificados. Os mandamentos da lei de Deus, o nono sobre todos, vai ser tirado do cathecismo. Vem ahi um tempo em que o artigo da lei santa ha-de ser assim reformado: «Não desejarás a tua mulher para não incommodar os direitos do proximo!» Onde irá isto assim parar, snr. Affonso de Teive?
O deputado entre serio e risonho, prolongou por tres quartos de hora, em estylo declamativo, um aranzel de lugares-communs, entremeado de pilherias, com referencia á degeneração da sociedade, no capitulo casamento. Affonso achava picante de grosso sal a iracundia comica do legislador, e estimulava-lhe a veia. A final o deputado, contente de si, foi para S. Bento, mais que muito persuadido de ser elle o predestinado para levantar voz no parlamento decretando a moralisação das familias.
Affonso ficou pensativo. As revelações lisongeavam-no. O odioso do caracter de Theodora desvaneceu-lh'o[151] a impressão já magestosa, já condolente do viver da morgada. Uma sublime desgraçada!—dizia elle comsigo—Uma sublime desgraçada, que, ligada a mim, seria a mais sublime das creaturas!
E, trabalhado por esta idéa que pertinazmente lhe martellou no animo, Affonso de Teive arrependeu-se de ter queimado a carta recebida na manhã d'aquelle dia. Queria relêl-a, mettêl-a a beijos na retentiva do coração!
Á noite foi ao theatro, e entreteve-se largo tempo com D. José de Noronha. Versou a pratica sobre o aceitar benignamente os acommettimentos de Theodora. D. José mostrava-se já enfastiado da imbecilidade moral do seu amigo, e, por tanto lhe pedia, que de todo em todo esquecesse a mulher, e se portasse como rapaz de certa ordem; ou obedecesse ao coração, aceitando a felicidade das mãos fosse de quem fosse.
N'esta mesma noite, o moço, vencido a final pela irresistivel necessidade de ser semelhante a todos os homens, escreveu uma estirada carta. Principiava nas recordações da infancia de ambos: devia de ser alta e amoravel poesia, como o coração a trasborda, se d'um ponto negro da vida os olhos rompem as trevas, e vão lá ao longe remergulhar-se no pelago da luz, que mais não ha-de raiar em nossos dias. Tristeza mais que todas magoativa!
Depois, memorava os dias de amor, desabrochado já o seio em plena florescencia, com os seus desejos balbuciados em phrases todas alma e enleio, dulcissima linguagem,[152] que era ainda a das chimeras pueris, mal desvanecidas no trajecto da infancia á adolescencia. Poesia ainda, flôr sempre lustrosa e verdejante, porque a sua tige está continuo a medrar em lagrimas, d'onde paixão nenhuma hedionda dos vindouros tempos lhe ha-de extirpar a raiz.
Seguia-se o recordar as dôres atrozes do abandono d'ella, quando o moço em Lisboa e Ruivães, duas vezes se atirára aos braços da morte, aceitando o inferno, se o lembrar-se o condemnado da mulher que amou na terra, não era lá o maximo tormento.
A final, após os queixumes, subia-lhe do coração aos olhos n'uma lagrima o perdão. Perdão e amor: que não ha ahi, em alma humana, perdoar ingratidões sem beijar a mão que nos alanceou. Esquecer, sim; mas esquecer é desprezo, não é perdão.
Escripta e fechada a carta, sobreesteve Affonso no remettêl-a. Acaso iria ella, sem desvio, ás mãos de Theodora? As injustas suspeitas não poderiam ter Eleuterio de sobre-aviso? E, de mais, reatadas as ligações de estima, iria Affonso, contra a vontade de sua mãe, para casa, e sustentaria alli o cortejo á mulher casada?
Estes quesitos fallavam á razão; porém, a pobresinha da razão, estava já escondida na consciencia, e a consciencia ensurdecera com a guisalhada do baile carnavalesco em que seu dono a mandára estudar os costumes do seu tempo.
Foi a carta com direcção a Braga. Era dia de feira quando ella chegou ao correio: estava alli o marido de [153] Theodora vendendo cereaes. Foi á lista postal vêr se seu pae tinha carta de parentes do Brazil; e, como não se entendia bem com os nomes maiores de tres syllabas, pediu que lhe lessem a lista inteira. Quando o obsequioso leitor chegou a Theodora Palmyra Villar de Sousa, exclamou Eleuterio:
—É a minha mulher! Ha-de ser carta do livreiro.
Convem saber que a morgada se entendia directamente com os seus livreiros fornecedores.
Eleuterio foi tirar a carta, e deu-lhe nos olhos, afóra o lustre do sobre-escripto, o lacre azul fechado com armas, e, mais que tudo, a marca de Lisboa.
Não me atrevo a compôr o soliloquio de Eleuterio Romão. Sei que elle andava com a carta ás voltas, entre mãos, e ás vezes esfregava entre dous dedos o papel, como se pelo tacto podesse inferir do contheudo. Estava com elle o regedor da sua freguezia, o mesmo que lêra a lista, e lhe lia na alma agora.
—Que estás a malucar, Eleuterio?—disse elle—A modo que essa carta te deu no gôto!...
—A fallar a verdade—respondeu o marido de Theodora—esta letra não na conheço, nem estas armas reaes!... Minha mulher não conhece ninguem em Lisboa, e estas letras, compadre, parece que rezam Lisboa.
—É como diz: Lisboa, sem tirar nem pôr. E então?... achas que ella...
—Estão-me a dar guinadas de abrir isto!... Que dizes tu, compadre? [154]
—Eu cá, se fosse commigo, já a carta estava aberta. Mulher minha a ter cartas, sem eu saber de quem!... Deus me defenda!
Palavras mal eram ditas, que Eleuterio quebrou o lacre, e passou a carta ao regedor, dizendo:
—Lê lá... ella é tamanha! parece uma sentença!... Vamos vêr isso, que eu já me não sinto escorreito.
O regedor tomou o manuscripto de oito paginas entre as mãos, poz-se em attitude abrindo as pernas em circumflexo, tossiu, tomou folego, deu crena de saliva aos beiços, e leu engasgadamente: «D'onde vem esta celestial harmonia, que a minha alma ouviu, quando o céo me bafejava a infancia, e as delicias todas da existencia me eram prenunciadas nos sonhos?...»
O regedor revirou os olhos pasmados a Eleuterio, e disse:
—Tu percebeste isto, compadre?
—Assim me Deus salve, que não percebi palavra,—respondeu Eleuterio Romão esbugalhando os olhos sobre a escripta cabalistica.
—Portuguez acho que é!—tornou o regedor, consultando a opinião do compadre.
—Isso é, lá portuguez é... Ora torna a dizer.
O leitor repetiu, e disse:
—Falla aqui em alma, e sonhos, e delicias. Sabes que mais? Isto, seja lá o que fôr, não me cheira bem!... Aqui, Deus me perdôe, ha maroteira d'aquella casta!... [155] Deixa-me vêr mais um bocado a vêr se pesco alguma cousa. E, continuando, leu:
«Sonhos de anjo, alumiados pela imagem lucida da filha da minha alma! volvei, volvei, orvalhai a flôr requeimada, dai uma lufada de primavera ao meu coração regelado pelos frios d'esta infinda noite... Oh minhas donosissimas chimeras!...»
—E agora entendeste?—voltou o regedor—eu estou como a Felicia d'Abrantes, peor que d'antes. Isto se não é latim, é o diabo por elle!
—Queres tu que se pergunte a alguem!?—acudiu Eleuterio—A gente ha-de achar quem lhe explique isto cá em Braga... Falla-se ahi a um padre que eu conheço, ao capellão das Ursulinas.
—Dizes bem... Tu não has-de ir para casa sem tirar isto a limpo... Queres tu vêr que ahi vem o homem que nos explica o negocio?—perguntou o magistrado administrativo—É meu compadre Fernão de Fonte Boa.
Era Fernão de Teive, conhecido por de Fonte-Boa, por ser lá o seu morgadio. Com o velho fidalgo vinha Mafalda, apoiada no braço d'elle, com doentio aspecto.
O regedor descobriu de longe a cabeça, e sahiu ao encontro de Fernão, que o recebeu com o agrado dos antigos fidalgos.
—Que é feito de ti, compadre, que te não vejo ha cem annos?—disse o velho—Desde que te fizeram regedor, acho que não cuidas senão em fabricar deputados,[156] e comer os salpicões dos recrutas passados pela malha! Anda lá, meu homem, que em tempos melhores havias de ganhar o posto de capitão-mór, que geito para comer os saudosos lombos tens tu. Então que é feito, rapaz? quem é aquell'outro? Se me não engano, é o Eleuterio do Romão.
—Para servir a v. exc.ª—disse Eleuterio com tres mesuras de cabeça exageradas—Sou eu para servir a v. exc.ª
Fernão inclinou um olhar ironico sobre o hombro da filha, e disse com um mal represo frouxo de riso:
—Aqui tens o marido da morgadinha da Fervença.
Mafalda escassamente lançou um olhar ao sujeito, e baixou os olhos com gesto de notavel commoção.
E o regedor tirando a carta da algibeira, disse:
—Eu queria consultar o meu excellentissimo compadre a troco d'uma carta que nem eu nem meu compadre Eleuterio entendemos. A gente, como o outro que diz, o que sabe é de lavoura, e mal assigna o seu nome. O caso é este: aqui o compadre achou no correio esta carta p'rá mulher. Teve lá seus arrepios, e abriu-a. Começamos a lêr, mas nem p'ra traz nem p'ra diante. As palavras parecem portuguezas, acho eu; mas nós não sabemos o que ellas rezam. Se o senhor compadre fizesse favor de lêr isto...
Fernão de Teive ia a tomar a carta já aberta da mão do regedor, quando sentiu extraordinario peso no braço esquerdo, olhou em sobresalto, e viu Mafalda a desmaiar,[157] com o rosto banhado de suor. Chamou-a, e ella, expedindo uns agudos soluços, quiz em vão pendurar-se do pescoço do pae. Tomou-a o velho nos braços com tremente anciedade, e transportou-a para dentro de uma loja, pedindo a brados um facultativo.
O regedor e Eleuterio seguiram Fernão, afflictos do successo. Na mão do regedor estava ainda a carta. O velho, sem atinar com o motivo do accidente, olhou machinalmente para o papel, e teve um repellão intuitivo, sem ainda o comprehender.
Tirou com desabrimento a carta da mão do compadre, examinou-a pela luneta, leu as primeiras linhas, desviou os olhos, meditou, lançou de arremesso o papel ao chão, e disse:
—Deixem-me... não sei o que é... Vão-se embora...
Os homens iam sahir, quando elle os chamou com phrenesi, pediu a carta, e desfêl-a em pedacinhos, exclamando:
—Isto não é nada, nada vale, podem ir com Deus.
Eleuterio estava assombrado, e o compadre abria e fechava a bocca em signal do seu espanto e compaixão. Em boa fé, o regedor acreditou atacado de demencia o velho, ao vêr a filha em trances de morte. Afastaram-se em consultas, dando cada qual sua razão do caso, bem que Eleuterio ia mediocremente satisfeito da rasgadura da carta.
Quando recobrou o alento, Mafalda levou as mãos ao rosto do pae, e murmurou mui carinhosa: [158]
—Perdôe-me, por quem é! Perdôe esta fraqueza da sua infeliz filha!
—Pobre anjo—balbuciou o velho—Que has-de tu fazer-lhe? Deus mandou-te aquelle desengano... Recebe-o tu, reportada e humilde, de suas divinas mãos. Precisavas d'isto, para em fim te convenceres.
Mafalda pediu ao pae que a levasse ao primeiro templo aberto. Ajoelhou ao altar do Senhor dos afflictos, chorou, e viu as lagrimas do velho ajoelhado á beira de ella. Ergueu-se com pacifico semblante e disse:
—Estou melhor, meu pae. Deus não falta aos infelizes sem culpa, nem mesmo aos culpados... Tambem orei pelo primo Affonso.
—Eu não orei—disse o pae—mas rasguei o documento de sua infamia. [159]
Affonso de Teive contava os dias, e, no ultimo dia, a hora e instantes em que devia receber carta de Theodora. Esperou uma semana em alvoroço, e já, ao decimo dia a mallograda esperança o atormentava. A incerteza da recepção alliviava-o por momentos; outros, porém, sobrevinham em que elle se considerava desconsiderado pela caprichosa ou vingativa mulher. O mais graduado oraculo do seu conselho, D. José de Noronha, racionalmente, opinava que a mulher, authora de taes cartas, por força devia responder; e do silencio concluia que se transviára a resposta enviada. Chegou a confirmação d'esta hypothese, na seguinte pergunta de Theodora: [160]
«Instantemente rogo que no primeiro correio, me digas se me escreveste. Sobejam-me razões para conjectural-o. Estou em ancias. Esta incerteza martyrisa-me mais que o teu desprezo. Responde-me depressa. Dirige a tua resposta—pedida com lagrimas—para Barcellos. Calculo o dia em que ella deve alli estar. Irei pessoalmente recebel-a. T. P.»
Lida a pergunta, Affonso abancou para responder. Posta a primeira palavra, ergueu-se de salto. Chamou o criado da cavalhariça. Mandou pençar os cavallos para jornada longa. Sentou-se a escrever a D. José de Noronha. Cuidou seguidamente dos aprestos para a partida; e, duas horas antes da sahida do correio, galopava na estrada do Porto. A meia jornada fraquearam os cavallos. Affonso fez remonta em Coimbra, sem discutir o preço das novas cavalgaduras, e chegou a Barcellos duas horas primeiro que o correio.
Quando apeou na estalagem de Barcellinhos, encostou a cabeça esvaida á borda d'um leito, e adormeceu. Rompia a manhã. A mim me contou elle que, dormindo uma hora, acordára tranzido do horror de um sonho. Vira Theodora em trajos de bacchante, revolteando umas walsas lubricas, e atirando-se ebria, e torpe de impudicicia, aos braços d'um homem. Era um sonho; mas, ao despertar, Affonso sentia abrir-se-lhe o coração a golpes de arrependimento. A prostração era invencivel: adormeceu outra vez, e sonhou que via sua mãe agonizante nos braços de Mafalda. Acordou espavorido; ergueu-se arrancando a mãos freneticas aquella imagem da fronte; [161] o arrependimento era já lançada de remorso. Abriu o relogio: viu que era ainda tempo de fugir... Diz elle que fugiria... ai! eu não creio que elle fugisse, não! Chamára o criado para arreiar os cavallos... eis que, ao cimo da rua sôa tropel de ferraduras, e faz-se rapida paragem á porta da estalagem. Affonso descora, vai de encontro ás vidraças, e vê apear a morgada.
O quarto d'elle era contiguo á sala commum. Já Affonso lhe ouvia os passos escada acima, e logo a voz ordenando ao lacaio que amantasse os cavallos e fosse receber as suas ordens. Foi elle manso e manso espreitar pela fechadura. Respirava em arquejos ao visinhar-se da porta. Curvou-se, inspirando sofrego o ar que lhe sahia a sacões do peito. Viu-a. Estava com o braço esquerdo encostado á mesa central da sala, e a face reclinada para a mão. Com a direita chibatava, como alheada do que fazia, o pó acamado no roçagante vestido de casimira verde escuro. Verde era o véo do chapéo, que, momentos depois, ella tirou com um rapido movimento, e rojou ao longo da mesa. Levou ambas as mãos ás fontes, afastando os anneis dos cabellos, que se encaracolavam rosto abaixo até ás espaduas. Demorou-se momentos n'aquella postura. Ergueu-se impaciente, e passeou d'um a outro lado da casa, vibrando o chicote, e tirando com força pelo trancelim d'ouro do relogio. Volveu a sentar-se, com o rosto voltado em cheio contra a porta, d'onde Affonso a observava. «Poucos traços lhe vi então das feições menineiras com que a deixára—me disse elle—Da menina admiravel o que ella ainda tinha era o ar angelico; [162] mas a belleza da mulher deslumbrava as reminiscencias da creança.»
Venceu Affonso os impetos que o empuxavam para abrir a porta. Esperou, sem saber o que: esperava o desencantamento, esperava o dom da palavra retrahido ao coração.
Entrou o lacaio que ella mandou logo ao correio com um bilhete alli escripto a lapis. Desde este momento, Affonso já sabia o que esperava: queria vêl-a affligida com a falta da carta. No intervallo, Theodora chamou o criado da hospedaria, e pediu café. O criado, ouvidas as ordens, dirigiu-se ao quarto de Affonso: este viu-o, e afastou-se. Aberta a porta subtilmente, perguntou o criado se s. exc.ª queria almoçar. Affonso respondeu com um aceno negativo. Fechada a porta, perguntou Theodora:
—Quem é que está n'aquelle quarto?
—Não sei, fidalga—respondeu o moço.
Affonso repoz-se á fechadura.
Chegou o lacaio.
—Trazes?—exclamou ella como assustada.
—Não ha, minha senhora.
—Não?!—bradou ella batendo o pé—É impossivel! É impossivel! Deve lá estar uma carta!...
—Saberá v. exc.ª que eu li a lista primeiro, depois fui dentro perguntar ao homem que dá as cartas—disse o lacaio, e sahiu.
—Inferno!—clamou ella estorcegando os dedos [163] que estalavam nas articulações.—Maldita eu seja, que tão aviltada me tornei!
Sentou-se a arfar, e a chorar, e logo depois levantou os pulsos comprimindo as fontes.
Pôz depois as mãos enclavinhadas junto dos labios, encostou a barba ao pollex da mão esquerda, abaixou a cabeça, e meditou.
Entrava o criado com a bandeja. Theodora, estremecendo como atemorisada, relanceou os olhos sobre o criado, e disse-lhe com desabrimento:
—Deixe ficar. Cá me sirvo. O lacaio que almoce, e apparelhe.
N'este momento Affonso abriu a porta, e disse com a voz convulsa:
—Um passageiro pede uma chavena do café de v. exc.ª
O leitor já sabe por todos os romances, por todos os dramas, e por todos os actos da vida real, semelhantes, muito ou pouco, a este, o que Theodora fez. Um ah! ou dous, é o nariz de cêra para todas as surprezas, fabricado desde Homero, ou mais de longe. Adão, quando viu Eva, devia dizer: ah! A Eva, quando viu a serpente, se não fugiu eu vou jurar, sem menoscabo do historiador Moises, que mais ou menos nervosa, exclamou ah! A interjeição é coeva do homem, que nasceu cheio de espantos.
Espanto, porém, igual ao da morgada, se o houve, foi o meu, quando Affonso me disse que Theodora não expediu do seio interjeição nenhuma, nem ah!, sequer. [164]
—Pois que?!—perguntei eu com a respiração abafada—Que disse ella?!
—Levantou as mãos, ajuntou-as sobre o seio, postas em oração; depois, cahiu em joelhos, ia cahir, quando eu, ajoelhado tambem, a recebi, a desfallecer.
—Não disse nada, por tanto!... E desfalleceu sinceramente?
—Fazes-me essa pergunta como quem conheceu a mulher...—respondeu Affonso—Asseveras-me que te estão contando factos ignorados?
—Pois eu podia saber o que se passou na estalagem de Barcellinhos?!—repliquei—Eu ignoro d'essa mulher tudo, menos o que toda a gente sabia. Vi Palmyra em Lisboa comtigo... mas, se tu crês que um homem, acostumado a fazer romances, é uma especie de naturalista, que só com um osso recompõe um animal desconhecido, admitte-me que eu tenha adivinhado a alma inteira de Theodora com os poucos, mas caracteristicos traços que me deste do seu caracter. Authorisado, pois, pela tua pergunta, afouto-me a dizer que o desmaio da amazona foi menos de theatral, por que nem sequer foi precedido da inevitavel interjeição. Assim que me disseste, Affonso, que ella não desentranhou do intimo seio um estridulo ah! entendi que Theodora era mais artificial que o proprio artificio, mais theatral que o mesmo theatro.
—A narrativa—redarguiu Affonso de Teive—vai perdendo a seriedade que demandava o caso. Cansaço ou enojo, dir-te-hei que me sinto já constrangido n'estas [165] memorias. Acho-me um pouco identificado com a minha vida passada; repassei o Lethes interposto, e olho com saudades para as margens que deixei. Se, como diz o Dante, nada ha ahi mais triste que recordar na miseria os tempos felizes, é, pelo menos nauseabundo recordar em tempos felizes vergonhosas miserias. Todavia, como já agora, inexoravel romancista, me não dispensas o remate d'este longo prologo do capitulo final do meu livro—livro que eu chamaria Amor de Salvação—concluirei a historia, e irei depois purificar meus labios no rosto de meus filhos.
—Theodora—continuou Affonso—quando quiz abrir os olhos, arrancou-se dos meus braços, exclamando:—Repelle-me, que eu sou indigna de ti. Agora reconheço a minha miseria, agora que te vejo, ó Affonso, ó anjo da minha infancia, que eu deixei fugir para o seio da mulher digna, da mulher pura, da creatura perfeita para quem tu nasceste!...
—Ha ahi muito estylo—interrompi—A mulher compunha! Vê-se que leu e aproveitou. O deputado de Braga é que tinha olho de D. João de Maraña para as mulheres de letras. E depois?
—Eu venci o espaço que ella deixára recuando e abracei-a. N'este movimento, senti nas faces o contacto dos caracoes desfeitos. Osculei-a na fronte...
—Gosto—atalhei—do comedimento honesto da palavra... Osculei-a... sim, senhor... Assim é que um pae de oito filhos conta a historia dos seus beijos. E ella tambem te osculou? [166]
—Sofregamente, doudamente, segurando-me a face pelos cabellos.
—Isso tambem é de rigor theatral. A mulher conhecia a scena!—perdôa as interrupções. De proposito as faço para te dar azo a inspirares fôlego novo, visto que já te afadiga o conto. E vai depois...
—Rebentou-me a bolhões do peito a eloquencia da paixão. Era uma alma virgem que se abria. Abria-se um thesouro intacto, d'onde nem sequer tirára uma palavra para mentir a outra mulher. Ella entrecortava-me, sorvendo-me as expressões nos labios, ou abafando-m'as no seio palpitante e ardente como o arquejar estuoso do vulcão. Este lance febril, de minutos no viver de meu espirito, absorvêra uma hora, segundo a vida do tempo...
—E depois—acudi eu—começaram a tratar de assumptos circumspectos com discreta serenidade.
—Contou-me ella que o marido, com ar de tyranno tolo...
—A phrase é d'ella, tyranno tolo?—perguntei.
—É. Desgostar-me-hia o tom zombeteiro com que me ella fallava do pobre homem, se eu não estivesse...
—Corrompido—conclui—Querias dizer isto?
—Era isso verdadeiramente. Dizia, pois, ella que o marido lhe fallava em correspondencias de Lisboa, mordendo o beiço, ou esgaravatando nos pavilhões dos ouvidos, costume d'elle, quando os ciumes lhe faziam prurido nas orelhas. [167]
—Disse-t'o assim ella?—interrompi com a mais ingenua irritação.
—Disse-m'o assim, com pouca differença, mezes depois, quando eu estava mais corrompido que ella para provocal-a ás originalidades da sua veia sarcastica: do que me confesso em opprobrio meu. Delineamos o nosso futuro. Foi ella quem o programmou. Iriamos para longe. Propuz Lisboa, ou Madrid, ou Paris. Quiz Lisboa, no intento de requerer divorcio. A fuga teria execução antes de oito dias. Eu ficaria em Barcellos, disfarçado, occulto, durante o dia. Á meia noite apearia a um oitavo de legua de Tibães. Theodora estaria no seu gabinete de estudo, e as vidraças coariam a luz da sua lampada, companheira das lucubrações intellectuaes, insuspeitas ao marido. Referendado o programma e rubricado com um osculo (repara, que não me descomponho) ouvi estropeada de cavallo na rua. Momentos depois...
—Querem vêr que chega Eleuterio!—atalhei com alvoroço e alegria parvoa, senão cruel.
—Eleuterio Romão dos Santos, em pessoa, tropeando nas escadas que subiam para a sala, onde nós estavamos tranquillos como Paulo e Virginia (perdoai-me santas almas a comparação!) nos rochedos de S. Domingos! Agora tu, Caliope, me ensina a contar o successo estranho!... Eleuterio viu ainda o desencadearem-se os braços de Theodora do meu pescoço. Parou, estacou, empederniu-se, estupidificou-se no limiar da porta. [168]
—E Theodora? narra-me da esposa surprehendida; que fez ella?—perguntei com inquieto empenho.
—Theodora, pendidos os braços, fitou Eleuterio com sobranceria, deu dous passos, postou-se diante de mim, e disse, voltada para o marido:
—Que me quer? A minha alma é livre.
—Esperava outra cousa eu! Isso parece-me estupidamente immoral. É caso novo e feio esse! E tu, que fizeste tu?
—Nada.
—Dos tres é quem andaste melhor. Parabens! E elle, o marido, que fez depois? que respondeu á Panthasilea?
—Respondeu que lhe ia dar cabo da casta, e tirou uma luzente podôa de dous gumes do bolso interior da judia.
—Uma podôa! Outra novidade! E arremetteu com ella?
—Quando elle sacou do ferro, passei para a frente de Theodora.
—Desarmado?
—Desarmado: as pistolas estavam no meu quarto. Mas a Panthasilea virgiliana, como tu apropriadamente a denominas, repelliu-me com um braço, e mostrou na extremidade do outro uma pistola abocada ao peito do marido.
—Novidade terceira!—acudi eu, quasi suspeitoso da logração do conto—Tu não estás inventando, Affonso? [169]
—É inepta a pergunta; mas perdoavel. Não invento, meu amigo. Conto verdades que me entristecem. Recordar-me agora do gesto consternado do marido d'ella, punge-me devéras. Tremia-lhe o ferro na mão ameaçadora, e já o rosto se lhe estava banhando em lagrimas. Desceu o braço quebrantado por agonia mais lacerante que a ira, e fitou em mim os olhos chammejantes. De mim, relanceou-os á mulher; e, desafogando a custo as palavras, disse:
—Castigada te veja eu, e Deus me vingue!
—Não esperava eu que elle dissesse isso. Ha concisão e angustia suprema n'esse appellar a Deus—reflecti eu condoido, não obstando têl-o visto, como fica escripto, no arraial de S. Braz de Landim, annos antes, em geito de muita felicidade, e grande frescura de animo e coração—E continuei no meu impertinente interrogatorio, tendo em vista que o leitor fosse bem informado:—Eleuterio, depois, sahiu, ou que fez?
—Chorou, embebeu as lagrimas no lenço, e disse: «Eu não te obriguei a ser minha mulher. Se casaste foi por que quizeste. Se tinhas outra inclinação, não dissesses a meu pae que me querias.»
—Que impressão fizeram em ti essas palavras tão simples e sinceras?—perguntei.
—Má impressão!—respondeu Affonso de Teive—pessima impressão! Desviei involuntariamente os olhos d'ella: a razão sahiu por momentos do seu chiqueiro, e teve dó da alienação da minha pobre alma. Eleuterio, por ultimo, rematou assim: «Não tenho mulher.[170] Vou para minha casa, e vai tu para a tua.» E sahiu. Theodora voltou-se para mim, atirando a pistola sobre a mesa, e disse: «Estou livre. Aqui me tens, Affonso. Aqui está a tua Palmyra, com o virgem coração que lhe conheceste, mais valioso do que era, mais depurado dos instinctos maus, graças aos trabalhos que me angustiaram a vida. Queres-me assim, Affonso?...
—Abraçaste-a fervorosamente, convulsamente—interrompi eu.
—Não: disse-lhe com uma falsa graça no rosto:—quero-te assim: partiremos hoje mesmo para Lisboa. «E os meus fatos, as minhas joias?—perguntou ella—Tenho brilhantes que eram de minha mãe.»—Deixa-os. Terás brilhantes, se elles forem precisos á tua felicidade—«A minha felicidade!—exclamou Theodora, ajoelhando-se-me de mãos postas—a minha felicidade é uma choça comtigo, no ermo, no isolamento de todos os prazeres da sociedade»—Ergui-a com amor. Tocou-me o contraste d'aquella humildade com a arrogancia da resistencia ao marido.
—A esta procella de commoções violentas, seguiu-se um intervallo de silencio morno, concentração por ventura dolorosa em que os nossos olhares mutuamente se interrogavam. Eu via minha santa mãe, e a purissima imagem de minha prima. Theodora não sei o que via: póde ser que estivesse lendo a pagina negra do seu destino, voltada pela mão do Senhor. Eu de mim esforçava o contentamento no rosto: os olhos viam-na embellezados; o ambiente escaldante que ella aquecia com o seu [171] halito coava-me lume até ás medullas dos ossos; mas o formidavel grito da moral repercutia-me no senso intimo da minha queda. Desgraçadas e atrozes ligações as que principiam assim! É que a sentença da justiça divina foi já lavrada.
Theodora abriu a janella da sala e aspirou com força; encostou-se ao peitoril, com os olhos cravados nos cabeços da serra da Tranqueira.
—Em que meditas, Palmyra?—perguntei-lhe eu.
—Em minha mãe, que era virtuosa como a tua—respondeu ella.
Esta dôr nobre, tão singelamente revelada, fez-me bem ao coração. Commoveu-me aquelle dizer de mulher, no tom da maviosa feminilidade que sôa tão brando e compadecedor nas almas de rija tempera, como era a minha. Fallamos de nossas mães, e com tantas caricias de expressão saudosa, que terminamos, beijando um do outro os olhos cheios de lagrimas.
No mesmo dia, por volta da tarde, sahimos caminho de Lisboa.[172]
Volvido um mez sobre os successos descriptos, Affonso de Teive e Palmyra—que nunca mais se chamou Theodora—viviam n'um palacete ao Campo Grande, por ser entrada a sazão estiva.
O interior esplendido da casa sobreexcedia o exterior magestoso. Nas cavalhariças escarvavam, arrifavam e relinchavam os cavallos de trem e de passeio. No pateo, os lacaios limpavam e bruniam os arreios, e as equipagens. Sentia-se o respirar da felicidade, como escondida das invejas do mundo, n'aquelle magnifico aposento. O dono d'ella gozava-se da fama de opulento fidalgo do Minho; porém, o thesouro, que a publica admiração mais lhe encarecia, era Palmyra. [174]
Frequentavam a casa de Affonso de Teive alguns dos amigos, que D. José de Noronha lhe dera, moços da primeira fidalguia. Ao verem a mulher, por quem Affonso desprezava todas, acharam e disseram, sem lisonja, que elle tinha soffrido e amado pouco. A espectativa de D. José fôra surprehendida pelo excedente d'uma formosura, graça e talento, não imaginados. Estes gabos, porém, proferidos a medo na presença d'ella, eram tão respeitosos e aferidos no padrão do melindre palaciano, que Affonso de Teive, nem por sonhos, aventou a possibilidade d'uma intenção desleal do amigo. Palmyra, por sua parte, quando os seus hospedes e convivas, no mais accêso dos brindes em lautos banquetes, lhe balanceavam o incensorio dos louvores, baixava os olhos, inclinava a cabeça, e mostrava aceitar resignada o incenso, em obsequio aos thuribularios.
Era aquella a atmosphera inebriante dos anhelos da morgada da Fervença. Lembranças de sua vida conjugal em Tibães afastava-as com repulsão.
A imagem de Eleuterio fazia-lhe vergonha de si mesma. Tornou-se desnecessaria a leitura ao recreio das suas noites. Preferia, á falta de theatros, passear a cavallo ao clarão da lua, ladeada de Affonso e de D. José de Noronha, a mais intima e feliz testemunha dos prazeres de Affonso. Tinham noitadas de estenderem a Cintra os seus passeios, ora serenos e contemplativos, ora em correria vertiginosa, á vontade e capricho de Palmyra, cujo cavallo negro ella denominára...
—Eleuterio?!—perguntei eu, cuidando que adivinhára,[175] quando o meu amigo chegou a esta altura da historia.
—Não, nem tanto...—respondeu Affonso—chamava-lhe Lucifer.
—Que desprezo do monarcha do inferno! Parece-me que Palmyra não tinha virtudes para zombar assim do personagem que provavelmente lhe ha-de pedir eternas contas da nomenclatura do quadrupede!
Vamos no proseguimento d'esta celestial felicidade, em que o inferno apenas lembrava em virtude do nome do cavallo.
No termo de um anno, Affonso de Teive tinha escripto, a largos prasos, pouquissimas cartas a sua mãe. N'outro relanço viria mais bem cabido o fallar-se da virtuosa senhora e da angelical Mafalda. A promiscuidade faz-me susto de vituperal-as. Mas é preciso dizer que D. Eulalia, em cumprimento da sua promessa, remettia ao filho as quantias avultosas que elle exigia, e o producto d'uma quinta de sua legitima paterna, logo que Affonso lh'o determinou. Fernão de Teive comprára a quinta clandestinamente por intervenção do seu mordomo. O ouro entrava em torrentes n'aquella voragem, d'onde retornava em carruagens, em baixellas, em festins, em sêdas e brilhantes, em apostas soberbas no jogo, em extravagancias de soada fama, em emprestimos aos commensaes. No decurso dos doze mezes, apenas Fernão de Teive mandou um triste memento homo ao reboliço d'aquelles jubilos. Eram estas palavras unicamente: «Lembra-te, Affonso, de teu tio-avô [176] Christovão de Teive.» Affonso sorriu e perguntou a Palmyra se lhe via signaes de lepra. A jovial creatura, informada da intencional allusão, cascalhou umas risadas de que muito se compraziam os ouvidos do amante, as quaes, no dizer de D. José de Noronha, tinham uma alegria contagiosa, que faziam bem aos infelizes. Affonso não respondeu ao velho de Fonte-Boa; mas, n'uma hora de solidão em seu particular gabinete, sommou as parcellas hauridas de sua casa, e espantou-se; calculou a quantia necessaria para vinte annos de vida, e descobriu que no fim de dez annos devia estar morto, para não pedir esmola aos parentes. Levantou-se pensativo d'esta operação arithmetica; sahiu do gabinete; e encontrou Palmyra a lembrar-lhe a conveniencia de arrematar um camarote de S. Carlos, que estava a lanços. Affonso respondeu tristemente: «Pois sim.» Palmyra não viu linha alguma extraordinaria no rosto do amante: beijou-lhe os olhos, e disse: «És um anjo!»
Desde aquelle fatal dia dos calculos sobre as despezas de vinte annos, Affonso scismava a miudo nos dez que restrictamente lhe offereciam os seus presumptivos cabedaes, contando já com o fallecimento da mãe. «Infame clausula dos meus calculos!» dizia elle com os olhos a reverem lagrimas de remordente remorso, treze annos depois.
Palmyra, a final, deu tento da melancolia de Affonso; e ainda antes de consultar-lhe a causa, perguntou se a não amava já. O interrogatorio affligiu o moço. Reconheceu que faltavam n'aquella mulher as sérias qualidades[177] de espirito para lhe escutar o motivo de suas abstracções, em meio dos favores da fortuna.
Manifestou Palmyra o seu insoffrido orgulho. Similou um recolhimento de amargura cavillosa. Pranteou-se, perguntando ao céo, em attitude tragica, se a expiação começava tão cedo. Affonso acariciou-a, já condoido d'ella, e revelou, com desdem de seus proprios temores, a causa mesquinha d'elles. Palmyra observou-lhe que a fortuna d'ella, a sua parte, excedia o valor de vinte e cinco contos, e propoz-lhe requerer-se divorcio, desde logo. O bizarro moço recusou a proposta, ajoelhando em espirito, á generosa offerta de Palmyra.
Passou a nuvem. Requintaram os gozos e as despezas. Projectaram-se passeios ao estrangeiro. D. José de Noronha era grande parte e conselheiro n'estes prospectos de recrescente felicidade. Lembrou Palmyra a semana santa em Sevilha. Foram a Sevilha, detiveram-se por Hespanha dous mezes até presentirem uns longes de fastio. Voltaram a Lisboa no ante-gosto de planeadas excursões á Italia. Affonso de Teive entrou no seu escriptorio, em busca de cartas, e abriu primeiro uma das duas de Mafalda, antes que Palmyra o surprehendesse a lêl-as. Rezava assim a primeira:
«Meu primo. A nossa mãesinha está muito adoentada, e causa receios ao medico de Braga, que vem aqui todos os dias. Não me authorisou a chamar-te; mas eu, depois de consultar meu pae, resolvi participar-te isto, e pedir-te que venhas vêr esta santa. Ella não cessa de chorar e rogar a Deus por nós. Vem pedir-lhe [178] que, ao sahir d'este desterro, continue a pedir no céo por ti, por mim, e por todos os infelizes. Tua prima, Mafalda.»
Era datada esta carta em 6 de Abril de 1852.
A outra, datada em 18 do mesmo mez, continha o seguinte:
«Meu primo. Acaba de expirar tua mãe. São cinco horas da manhã. Morreu-me nos braços. Dava tres horas o relogio, quando ella disse que havia de expirar quando raiasse o dia. Assim foi. Fallou de ti até á ultima, e ordenou-me que te mandasse uma carta, que ella escreveu no segundo dia de sua enfermidade. Admirei que não me respondesses ao menos á que eu te escrevi então. Deus sabe o que vai na tua vida. A santa lá está no céo: ella conseguirá o que fôr melhor para ti, em conformidade com os decretos do Altissimo. Aqui está meu pae a cuidar n'estes tristes preparativos para o enterro. Já dobram os sinos. Não me deixam escrever as lagrimas. Adeus, Affonso. Tua prima, Mafalda.»
Affonso, concluida a leitura d'esta segunda carta, bradou: «Meu Deus, meu Deus!» e cahiu de joelhos, escondendo a face nos estofos d'uma othomana.
Acudiu Palmyra aos gritos. Affonso ergueu-se, com as mãos no rosto, e, abafando os soluços, pôde dizer: «Morreu minha mãe!»
—Chora, no meu seio—disse ella commovida—chora, meu querido filho! Tens ainda este grande coração que te abriga na tua angustia. [179]
Estas palavras alancearam mais a alma do meu amigo. Pareceram-lhe um sacrilegio, uma injuria á memoria da mulher, cuja vida fôra uma enchente de virtudes. «O coração da adultera a dar abrigo á dôr de um filho!» Era a consciencia que assim lhe gritava, não era ainda o tedio. Era, talvez, a repugnancia de se encostar ao seio da mulher por amor de quem deixára morrer sua mãe, esquecida, desprezada mesmo, lembrada algumas vezes como senhora mieira da casa, cujo herdeiro elle era.
Affonso pediu a Palmyra que o deixasse sosinho. Ferida em sua vaidade, considerando-se inutil em consolar o homem fraco, o homem debulhado em lagrimas, Palmyra cruzou os braços e abanou a cabeça. O atribulado moço não vira aquelle gesto; mas ouvira as palavras que o denunciavam:
—Não basta o amor da mulher amante para consolar as saudades de uma mãe. Eu tambem a tinha, quando te amava, e abriguei-me no teu coração. Que differença!...
Affonso irou-se; mas abafou a colera n'um gesto de impaciencia. Palmyra comprehendeu-o, retirou-se, lançando os olhos ás duas cartas, que estavam abertas. Encostou-se á mesa, e leu-as sem lhes pôr mão. Lidas, sorriu-se, remexeu ainda na lingua uma ironia infame, não ousou proferil-a, e sahiu. É que a mulher impura muitas vezes espumára o pus do cancro do orgulho, que a roia, na face immaculada de Mafalda, que o moço indiscreto[180] algumas vezes, com fatuidade, relembrava como desgraçada na sua amoravel dedicação.
Assim que Palmyra sahiu, Affonso, a tremer calefrios, deslacrou a carta de sua mãe. Dizia assim:
«Meu filho. Muito ha que eu peço a Deus que me despene. Já me cançava a vida com tão aturado padecer, e nenhuma esperança de remedio.
«Agora espero que a misericordia do Senhor me attenda; e, se me diz verdade o coração, é chegada a hora de eu escrever umas linhas, que te serão mandadas quando eu tiver passado.
«Bem sabes tu, meu filho, que eu, cheia de terror do teu peccado, voltei para Deus a minha afflicção, e nenhuma palavra de censura te escrevi. O que eu podia fazer para livrar-te estava inutilmente feito. Era tardio tudo que fizesse depois. A infeliz creatura estava já comtigo. Ninguem sem ordem do céo poderia remil-a de sua perdição. Á minha presença veio o desgraçado marido de Theodora pedir-me que te movesse a influir no animo de sua mulher o recolher-se n'um mosteiro. Consultei primeiro a vontade divina, e depois a razão humana. As minhas orações, se podessem com Deus alguma cousa, lá iriam ter á tua alma em abalo de consciencia. O Senhor não quiz. As pessoas a quem pedi voto sobre escrever-te, segundo o pedido do homem de Theodora, todas me disseram que eu ia abaixar a minha dignidade n'um requerimento vão e desconforme á natureza da tua desgraça. Abaixar a minha dignidade não me custava nem humilhava;[181] mas, sem esperança de te mover com as minhas pobres razões, antes quiz orar, e orar sempre a quem tudo podia.
«Bem sabes, meu filho, que eu, nem mesmo ao remetter-te n'um anno o rendimento de quatro, afóra o producto da quinta vendida, nada te disse respeito á causa dos teus desperdicios, promettedora de tua inevitavel pobreza.
«Conheci que eu, em tua vida, já nem sequer valia para amiga, muito menos devia esperar respeitos e amor á minha authoridade de mãe. Disse commigo que era irremediavel a tua desgraça, e esmoreci de todo em todo.
«Mandou o Senhor para o meu lado tua virtuosa prima. Choramos ambas; mas o anjinho, mesmo em prantos, consolava a pobre que lhe via a alma em grandissimas mortificações.
«Agora, meu filho sempre querido, é tempo de te abençoar, de te perdoar as dôres que me déste, e rogar-te que me vejas aos pés do Altissimo, se a sua misericordia me descontar as agonias nas muitas culpas de minha vida. Não te mortifique o pezar de me haver deixado morrer, sem que a tua vida se lavasse, pelo arrependimento, do deshonroso crime que a disforma. A todo o tempo, se sentires o voluntario brado da consciencia, escuta-o, remedea-te, e foge de ti mesmo para te encontrares na justiça benigna do perdoador de crimes iguaes. Eu serei então em espirito comtigo[182] para te ajudar a reformar o teu animo, e alentar em teus desfallecimentos.
«Dos desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na velhice, se Deus t'a der, como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa, que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós.
«Se alguma vez voltares aqui, e tua prima fôr viva, estima-a, em paga dos carinhos que lhe fico devendo, e do beijo de filha, que ella me ha-de dar, quando eu expirar em seu seio. Aqui te lança sua derradeira benção a tua boa mãe, Eulalia.» [183]
Encerrou-se Affonso por espaço de oito dias, inconsolavel aos afagos de Palmyra. Os amigos, seus socios de vida viciosa e soberba de sua culpa, e contubernaes logrativos das dissipações, enfureciam-lhe o tormento do remorso. Furtava-se á vista d'elles, fechando-se, quando vinham, com o semblante composto de falso compadecimento, lembrar ao amigo, em lucto de oito dias, que um homem de razão clara tinha obrigação de ser superior a soffrimentos communs e naturalissimos, taes como a morte de uma mãe. Palmyra ia ao salão receber os pezames, e combinava-se com os cavalheiros admirados da pusillanimidade de Affonso. «Eu soffro muito—dizia ella a D. José de Noronha alquebrando o rosto em desconfortada[184] pena—ao vêr que a minha solicitude consoladora nada póde com Affonso. O coração da mulher, que renunciou á satisfação do dever, e se immolou aos caprichos transitorios d'um homem, deve tambem renunciar o poderio de desviar d'uma sepultura os olhos d'elle. Assim se é castigada, quando se é culpada como eu.» A taes razões, proferidas com os olhos no tecto, respondia D. José de Noronha:—Eu hei-de acreditar que Affonso deixou de amar apaixonadamente v. exc.ª, quando elle se confessar um monstro, e a honra fôr banida d'este mundo. Eu só comprehendo o esquecimento da honra, quando é preciso sacrifical-a a uma senhora como v. exc.ª Ainda bem que ha uma só, para se não abjurarem os deveres sociaes.—Ora, o estylo de Affonso—digamol-o de corrida—era muito mais lhano e correntio.
O filho de Eulalia, passado o primeiro mez de lucto, disse com suaves maneiras a Palmyra que o seu animo estava passando por estranho reviramento, no tocante a prazeres falsos do mundo;—que resolvia diminuir as suas relações e as suas superfluidades;—que tencionava occupar algumas horas na leitura, em que felizmente Palmyra o acompanharia, revivendo a sua esquecida affeição aos livros;—que aceitava como inspiração de sua santa mãe o desapegar-se de regalos vãos, deleites de mera vaidade, que perdem seu sabor ainda antes de se acabarem: finalmente, concluiu Affonso: «Vivamos como amantes que dispensam serem admirados para serem venturosos.» [185]
Palmyra sorriu, e disse:
—Bem sei... bem sei, Affonso.
—Que sabes tu? perguntou brandamente o moço—Diz o que sabes, minha amiga.
—Comprehendo a mola occulta do teu novo programma de vida... É o cansaço... Já me chamas tua amiga. A mulher, que ama, quando lhe dão tal nome, sabe que é cousa de pouca monta para quem lh'o dá. Falla-me claro: sentes o entojo de impressões novas? As cartas de tua prima é que levantaram em teu espirito essas poeiras de tardia virtude? Nada de refólhos, Affonso. A minha opinião é que nenhum de nós se constranja. As pêas, impostas mesmo pelo dever, são um infortunio muito meu conhecido. Fazes-me pena, se o experimentas. Amas tua prima, Affonso?
—Não amo minha prima—respondeu serena e pacientemente o moço—Se amasse Mafalda, de certo não estaria ao lado de Palmyra. Estimo-a como irmão; respeito-a religiosamente hoje, por saber que o ultimo alento de minha mãe o recebeu ella nos labios... Porém, que tens tu com minha prima? Que injustas referencias são essas que continuamente lhe estás apontando? Que mal te fez a triste menina, que vive e morrerá sem outro prazer senão o da sua virtude mal remunerada n'este mundo?...
—Virtude!...—interrompeu Palmyra franzindo os labios no sorriso da ironia injuriosa—Sempre a virtude de tua prima em campo para contrastar naturalmente os meus vicios!... Pouquissima generosidade é a [186] tua Affonso!... Terei eu de ouvir ainda de tua bocca o libello e a condemnação das minhas culpas?! Póde ser, póde ser, e eu, envelhecida pela experiencia de poucas semanas, não terei de que espantar-me.
—Offendem-me as tuas injustiças—redarguiu Affonso soffreando a impaciencia—Que direito te dou para tanto?
—Direito? queres, por acaso, dizer-me que estou em tua casa?!
—Essa pergunta é aviltante, Palmyra!... Onde está a tua intelligencia, a tua critica, e propriamente a tua vaidade?—redarguiu Affonso de Teive—Desconheço-te, estás a descer sem impulso estranho...
—A descer da tua consideração?—acudiu ella resabiada.
—Quem o duvída? A mulher de alma nunca faz semelhantes perguntas a um homem como Affonso de Teive. Queria eu dizer que não te dava direito, ou causa a offender-me.
—Bem!—tornou ella amaciada a voz com falso accordo—Aceito a explicação. Perdôemo-nos reciprocamente, e sejamos... sejamos... amigos, sim?
—Como tu feriste ironicamente a palavra amigos!...
—É que me não tôa bem nos ouvidos do coração—replicou Palmyra risonha, chegando a face aos labios do moço, que a beijaram friamente.
—Em quanto ao teu novo traçado de vida—volveu[187] ella—queres que se cumpra, em rigor, como está ordenado, sim?
—Ordenado, não é o termo proprio—Consulto-te, expuz em breve as minhas razões; mas se te despraz...
—Apraz-me tudo que te contenta, meu Affonso. De hoje em diante reformam-se os nossos costumes. Vendem-se os trens? trespassa-se o camarote? vamos habitar uma casa modesta... Queres, Affonso? Tambem eu.
Não escapou a Affonso o tom ironico de taes perguntas. Cahiu em si de repente, e viu-se em começos de castigo. Apagaram-se muitas luzes do altar em que elle tinha o bello barro idolatrado. Fugiram-lhe para sobre o tumulo de sua mãe os olhos d'alma, e viram Mafalda de joelhos na lagem da capella com a face apoiada no marmore do jazigo. As luzes restantes do altar ficaram para lhe amostrar o odioso da mulher de Eleuterio.
Ás perguntas retrincadas não respondeu Affonso... Ergueu-se, e sahiu do seu quarto. Refugiou-se no mais recondito do palacio, para chorar a salvo do opprobrioso sorriso de Palmyra. Depois, voltou ao seu escriptorio, e escreveu a Mafalda esta carta, significativa de mudança temporaria, senão fundamental, em seu espirito:
«Prima Mafalda. Vai ao pé do tumulo de minha mãe, e repete-lhe as palavras d'esta carta. A justiça de Deus esmaga-me. Sou eu que vergo debaixo do fardo de affronta que levantei da lama com minhas proprias mãos. O arrependimento dos desvarios da mocidade não costuma atalhar tão cedo a carreira dos [188] grandes desgraçados. Fere-me Deus tão cedo! é por que me quer desatar d'este jugo de infamia. Auxiliem-me as orações de minha mãe, que eu sou fraco. Venham golpes de desengano, bem pungentes, para que se faça o dia da razão em minha vida. A aurora d'este dia já aponta; mas o meu coração ainda está envolvido em trevas, e cheio de amargura. Santas devem ser as tuas orações, Mafalda. Eu dobro o joelho ante a memoria de nossa mãe, ouso invocar a sua intercessão no céo; sei que a alma bemaventurada não repelle o mau filho que a crucificou nos ultimos annos, quando me ella pedia seio onde encostar as suas cans. Mafalda, anjo solitario, que vês com os olhos puros as estrellas da nossa infancia, ora por mim, dá-me a tua piedade, que nenhuma outra me dá este mundo. Escreve-me, diz ao teu veneravel pae que me escreva. Lembra-lhe os pardieiros das Taipas... Diz-lhe que o neto de Christovão de Teive sente já no coração o corroer das ulceras que carcomeram a pelle do emparedado. Amai-me ambos, defendei-me de mim proprio, que o esteio da religião não póde com o peso de meus desatinos. Teu primo, Affonso.»
Mandou Affonso lançar a carta na caixa postal. Um quarto de hora depois, entrava Palmyra, fremente de raiva, com a carta aberta, exclamando:
—Isto é uma grande miseria, e uma grande infamia, snr. Affonso de Teive! A minha dignidade vem pedir que esta affrontosa carta seja reformada.
Affonso lançou mão da carta, e recuou horrorisado [189] da villania de Palmyra. Seccou-se-lhe a garganta e labios ao queimar d'um halito de colera que lhe calcinava o peito. Não pôde fallar. Sahiu do quarto, chamando a brados o criado a quem incumbira a remessa da carta. Já não era criado de Affonso o miseravel que vendera o sigillo de seu amo pelo ouro d'elle mesmo: fugira bem remunerado. No entanto Palmyra esbravejava de sala em sala, soltando gritos pavorosos. Affonso, congestionadas as fontes de sangue, e o coração em arrancos no peito, fincava os dedos nas carnes da face, tapando os ouvidos para não ouvir os clamores da mulher cuja furia recrescia á proporção do desprezo com que os proprios criados lh'a escutavam.
Affonso de Teive sahiu aforrado como quem foge; foi lançar a carta por sua mão; divagou horas no mais desfrequentado dos arvoredos do Campo Grande. Ahi sentiu orvalhos do céo esfriar-lhe o afôgo da febre. Olhou ao céo com mãos erguidas, e disse: «oh minha mãe!» Ao cahir da noite, voltou a casa, e viu no pateo o gig de D. José de Noronha. O seu lacaio particular, antigo criado de sua mãe, acercou-se cautelosamente d'elle, e disse-lhe:
—Fidalgo, não se afflija... Tenha animo, fidalgo, e não deixe fazer o ninho atraz da orelha.
O chulo da phrase offendeu-o, e a intenção mysteriosa ainda mais.
—Que queres dizer, animal?—perguntou Affonso.
O criado coçou-se fechando os olhos, e respondeu:
—Lá em cima está o snr. D. José de Noronha. [190]
—Que tem isso? não o tens aqui visto tantas vezes? Responde.
—Tenho, tenho, e Deus sabe se cá por dentro me não tem dado guinadas de lhe partir na cabeça o gig.
—Por que? Vem cá... Entra n'esta loja commigo... Falla claro!—dizia Affonso com suffocativa vehemencia—Que desconfias tu de D. José?
—Desconfio, fidalgo, que a snr.ª D. Palmyra não é fiel a v. exc.ª
—Mentes! mentes!—bradou Affonso—Prova-m'o, senão mato-te.
—Não ha-de matar, se Deus quizer, senhor morgado—volveu tranquillamente o Tranqueira, nome que merece lembrado.—Faz favor de tomar ar, e ouvir com socego. Estes negocios não vão assim de afogadilho. Dê tempo ao tempo.
—Não é tempo ao tempo, é já, já, immediatamente. Diz o que sabes, Tranqueira, que se me fende a cabeça.
—Fidalgo, ahi vai o que sei. O criado que fugiu esta manhã, sem que eu lhe podesse pôr os dez mandamentos, foi cá mettido pelo lacaio da senhora, e era lá muito collaço d'ella. Uns dias por outros, pisgava-se do serviço o rapaz, e andava por lá quatro horas. Antes de hontem, tirei-me dos meus cuidados, e fui-lhe na pista muito á socapa. Levei-o d'olho até á rua de Santa Barbora, e lá esgueirou-se-me. Querem vossês vêr que o diabo as arranja? disse eu cá c'os meus botões. Estará elle mettido em casa do D. José de Noronha? Meu dito [191] meu feito! D'ahi a menos de tres credos sahia o malandro de casa do tal supplicante, e vinha anda que anda por alli fóra. Sahi-lhe eu d'uma travessa, e disse: «Tu d'onde vens, Antonio?» O patife engasgou-se, e nem p'ra traz nem p'ra diante. Tate! disse eu, aqui ha tratantada. Se elle fosse a cousa boa dizia-o. Puz-me a considerar no que havia de fazer. Eu se lhe digo que o vi sahir de casa de D. José, espanto a caça, e fico por mentiroso, dizendo o que vi a meu amo! Que hei-de eu fazer? Embucho o que sei; tomo á minha conta espreitar a ama...—a ama! que a leve o diabo, que quem me paga é o fidalgo!—espreito e se pilho a melgueira em termos, esbarronda-se o negocio, e meu amo dá cabo d'este ladrão que o veio deshonrar a sua casa.
Affonso, além da voz do Tranqueira, ouvia um zunido e fisgadas dentro do craneo, como se lá se contorcesse e mordesse o cerebro um enxame de vespas.
O criado continuou:
—Antes de hontem á noite appareceu aqui o D. José. Fui em palmilhas atraz d'elle. Vi-o entrar na sala do tapete azul, e retirei-me assim que vi v. exc.ª entrar tambem com a senhora. Desde então não tornou cá senão agora; mas como lá está com elle outro amigo, acho que não tem duvida, e por isso vim para aqui esperar o fidalgo. Aqui está o que eu sei, meu amo. Bote lá as suas contas, e deixe-me dar uma carga de lenha ao tal menino, se fôr preciso.
Affonso poz a mão direita sobre o hombro do Tranqueira, e disse: [192]
—Obrigado, teu amo agradece-te os cuidados que tens com a sua honra. Recommendo-te que não digas uma palavra a tal respeito. Ouves, Tranqueira?
—Então isto fica em agua de bacalhau?—perguntou o criado, abrindo e fechando as mãos.
—Já disse: nem uma palavra. Os teus cuidados agora passam para mim.
—Bem me fio eu n'isso!—murmurou o lacaio na ausencia do amo.
Affonso entrou no seu quarto; viu-se a um espelho: esperou que o rubor da excitação se descorasse, compoz o semblante, e passou á sala onde estavam Palmyra, D. José de Noronha, e um particular amigo d'este.
Palmyra, no sophá, tinha os braços em cruz sobre o seio, e a face inclinada sobre elles. D. José de Noronha folheava sobre a jardineira as Mulheres de Walter-Scott. O amigo estava sentado na poltrona contigua ao sophá. Cortejou Affonso os dous cavalheiros, depois de estender a mão a Palmyra, com tão demasiada ceremonia, que lhe não roçou as pontas dos dedos. Esta acção, depois da lucta da manhã, pareceu naturalissima á esposa de Eleuterio. Depois, achegou-se serenamente de D. José, observou a Flora Mac-Ivor do romancista escocez, concordou com D. José na primazia da gentileza d'esta heroina, disse poucas mais palavras, e pediu licença para recolher-se, obrigado por uma fortissima enxaqueca. Tudo isto com um natural irreprehensivel.
Entrou Affonso no gabinete de Palmyra. Havia alli uma secretária de mogno, com espelhos, cravejada de [193] gavetinhas moldadas pelo feitio dos antigos contadores. Tiradas as gavetas da primeira serie, encontravam-se uns falsos de segredo, conhecido d'elle, que fôra o primeiro possuidor da engenhosa alfaia. Instigado pela suspeita, tirou Affonso pelos botões da gaveta central: estava fechada, e as duas lateraes abertas. Concluiu que a do meio segredava uma revelação. Procurou um ferro geitoso com que fazer saltar a fechadura: serviu-lhe a ponta d'um punhal. Cedeu a fragil lingueta, estalando. Tirou Affonso a gaveta, que continha joias: levou o dedo ao imperceptivel botão que abria o falso, e tirou dous macetes de cartas, e uma solta. Abriu esta, e leu as primeiras linhas. Uma sombra de duvida seria estupidez maxima. Dizia: É preciso cuidado com o lacaio de A. Encarou-me hontem de certa maneira... Emprega o nosso Antonio na espionagem d'alguma suspeita. Amanhã vai commigo o D. A. M. se fôr propicia a occasião elle sahirá a tempo. &c.
Passou Affonso ao seu quarto para deliberar meditando. Que lance para meditações! D'ahi a pouco ouviu o rugir das sêdas de Palmyra. Lançou-se apressado sobre o leito, com a fronte entre as mãos.
—Estás melhor?—disse ella maviosamente.
—Não.
—Cuidei que estarias deitado. Que has-de tomar, meu filho?—Volveu ella, inclinando-se ao rosto de Affonso—Que tomas de ceia?
—Nada. [194]
—Estás ainda muito irado contra mim?—replicou ameigando-o.
—Deixa-me, que me custa fallar. Vai á sala, se está lá gente.
—Irei, se de nada te sirvo aqui, e de mais a mais te importuno. Ainda lá estão aquelles maçadores... Logo voltarei a saber de ti. [195]
Voltou Palmyra á sala, e, momentos depois, reappareceu no quarto d'Affonso, perguntando se D. José de Noronha e D. Antonio Mascarenhas podiam, não incommodando, visital-o. Affonso respondeu, sem alteração, que lhes agradecia o cuidado; mas, confiado na amiga familiaridade com que o tratavam e eram recebidos, esperava que o deixassem estar em silencio, a vêr se assim a dôr de cabeça se mitigava. Palmyra entrou bem assombrada na sala, e disse a D. José: «Não ha que desconfiar. São saudades de Mafalda, rebuçadas nas saudades da mãe.»
Entretanto, Affonso, lançando-se do leito, examinava[196] os fulminantes das pistolas... Seja elle o narrador d'este indescriptivel trance:
«Ao tempo em que eu revocava toda a minha reflexão para bem definir os actos sequentes ao homicidio, senti no coração uma rija pancada, e, para assim dizer, quasi apalpei ante meus olhos desvairados o vulto de minha mãe. Depuz as pistolas, e ajuntei as mãos. Ainda agora me maravilha a passagem rapida da vertigem, em que a minha honra me impunha matar o infame, para a tranquilla consideração sobre a inefficacia do homicidio como vingança da perfidia. Attribuo esta mudança inverosimil, segundo a logica das paixões, a mais forte poder que o da alma humana. N'esta suspensão, pedi ao espirito de minha mãe que me acudisse com o conselho salvador. Não ouvi resposta alguma, nem o meu entendimento concebeu algum designio. O que vi foi a imagem de Eleuterio, na sala da estalagem de Barcellinhos, no momento em que, lavado em lagrimas, dizia á mulher: «Castigada te veja eu, e Deus me vingue!»
«Eis aqui a resposta da alma bemaventurada; eis aqui as indirectas respostas da Providencia.
«Entendi que soára para mim a hora da expiação, annunciada pela visão do marido, cortado de angustias, superiores á minha. Faziam-se acceleradas transformações em meu animo; todas, porém, estranhas ao primeiro intento de matar. Lembrou-me fugir a occultas de minha casa, e esconder da infame e do mundo a explicação da minha fuga. Acudia-me logo outra idéa argumentando contra a miseria d'aquella. Lembrou-me[197] propor a Theodora a separação, reservando a razão da proposta. Não sei quantos projectos disparatados ou irrisorios se atropellaram na minha pobre cabeça. «Serei eu um covarde?» perguntava eu logo á minha consciencia. Vinha então outra vez Eleuterio postar-se ante mim, e dizer á mulher que o fitava com desprezo: «Castigada te veja eu, e Deus me vingue.»
«Desligado da menor premeditação, assalteou-me de repente uma idéa, cujo alcance e desfecho eu não curei prever. Tirei dos bolsos as cartas de Palmyra, encontradas no segredo da secretária, e dirigi-me á sala. Ao sahir da porta do meu quarto vi um vulto a sumir-se na extrema do corredor. Estuguei o passo, e o vulto parou. Era o meu criado Tranqueira. Perguntei-lhe o que fazia alli. «Estou de plantão» respondeu elle. Ainda agora, ou agora verdadeiramente, é que eu posso rir da resposta e admirar o homem que a deu. Inclinou-se ao meu ouvido, e continuou: «Como dei fé que o patrão se deitou, não quiz deixar o negocio ao Deus dará: é o que foi.»
«Entrei na sala a passo mesurado, e quasi a subitas. Estava D. José ao lado de Palmyra na mesma othomana. D. Antonio folheava as Mulheres de Walter-Scott. Palmyra estremeceu, ao vêr-me assomar debaixo do reposteiro. D. José, embrutecido pela surpreza, não se moveu da posição denunciante da extrema familiaridade. Em minha presença, nunca elle se assentára a par de Palmyra no mesmo estôfo. Voltando a si da estupefacção[198] de momentos, ia levantar-se, quando eu lhe disse:
«—Não se incommode, snr. D. José de Noronha. Está bem. Os meus amigos em minha casa são os donos d'ella.
—Essas maneiras exquisitas, Affonso...—tartamudeou D. José, em quanto Palmyra, perplexa ainda, manifestava sua duvida no abrimento da bocca e esgazeado das faces.
«Não respondi á banal reflexão de Noronha. Voltei-me para D. Antonio, e disse-lhe:—O snr. Mascarenhas é de mais aqui. Se fôr propicia a occasião, elle sahirá a tempo—diz a carta do nosso amigo D. José. V. exc.ª devêra já ter sahido.
«Relanceei de revez um olhar a Palmyra. Vi-a sobresaltada e livida, agitando-se em convulsos movimentos, sem todavia se erguer do sophá. D. José erguera-se, apoiando-se ao espaldar de uma cadeira. D. Antonio encarava-me com ares de pavor. Eu continuei:—A figura do snr. Mascarenhas n'este quadro é de mais. Queira sahir.
—Eu vou com D. Antonio—disse o Noronha.
«—Elle que o espere na rua—respondi, voltando levemente a cabeça sem o encarar.
«D. Antonio tomou o chapéo com presteza, abaixou a cabeça a Palmyra, e sahiu, cortejando-me.
«A mulher da estalagem de Barcellinhos voltou ao corpo de Theodora. Eil-a em pé, com a serpente da soberba a enfuriar-lhe os gestos. [199]
—Que significa isto?—exclamou ella—Acabemos esta situação sem grandes scenas! Que vem dizer-me o snr. Affonso?
«Confessarei que me senti pequeno diante d'este cynico interrogatorio! Que havia eu de responder á mulher, que rebatera com escarneo e arrogancia as moderadas aggressões do marido? Com que direitos ia eu alli, deshonrado, pedir contas de sua e minha honra, a ella que estava perdida? E, se a infamia era commum de ambos, por que ambos eramos criminosos, que falsos brios tinha eu por mim a inspirar-me uma resposta digna d'aquellas perguntas? Sómente assim posso agora dar-me contas de minha mudez de então.
«E ella, acorçoada pelo meu espantado silencio, proseguiu:—Abjurei dos deveres da honra, perdi-me, atirei-me cegamente aos seus braços, snr. Affonso de Teive. Satisfiz os seus caprichos, favoreci-lhe o orgulho de ter uma odalisca no seu palacio, prestei-me a enfeitar de falsos risos o meu semblante, mostrei-me ao mundo com o ar alegre da escrava que idolatrava a sua servidão, em quanto o snr. Affonso, enlevado nos ideaes amores d'uma prima...
«—Infame!—atalhei eu—Se tem de citar nomes de mulheres no seu arrazoado, procure-as, se as conhece, nas derradeiras paragens do vicio!... Não suje o nome de mulher alguma; toda a mulher, não cahida na ultima abjecção, impõe respeito á amante de D. José de Noronha, hospedada em casa de Affonso de Teive.
—Bem!—exclamou ella—a amante de D. José [200] de Noronha agradece a hospedagem, promette mesmo pagal-a da altura da sua independencia, e vai sahir, impondo silencio ao insultador.
«—Pois saia—tornei eu—mas leve comsigo o esterco com que sujou a minha casa!—e, dizendo, atirei-lhe ao rosto os macetes das cartas.
«Palmyra, como se um aspide lhe mordesse um pé, deu um salto de fera enjaulada. D. José de Noronha tremia.
«E eu continuei, voltado contra elle:—A infamia é assim: tem esses desmaios de covardia, que desarmam o odio, e levariam á piedade, se o nojo não estivesse áquem da virtude da compaixão. Snr.ª D. Palmyra, aqui tem um paladino, que a não ha-de deixar corar sem desforço diante dos seus insultadores. Siga-o. Tem uma sege ás suas ordens, se o seu pudor lhe não permitte entrar no carro do amante. Em quanto ao snr. D. José de Noronha, saia, e espere-a na rua.
Palmyra fugiu da sala em arremettidas de louca. D. José sahiu com o rosto abatido sobre o peito. E eu cahi extenuado sobre uma cadeira, cuidando morrer alli afogado de congestão de sangue no coração. D'ahi a momentos ouvi o gritar estridente de Palmyra, e um grande reboliço no pateo. Quiz debalde levantár-me. As pernas tremiam-me como se todos os nervos me estivessem golpeados.
«Abaterei agora a linguagem tragica do successo para te narrar o que se passava no pateo.
«O Tranqueira, posto de plantão, como elle dissera, [201] não sahiu da sala de espera, ou do proximo corredor. Momentos antes da sahida de D. José, descera elle ao pateo. Quando o aturdido infame ia passando, sahiu Tranqueira do seu quarto com a lanterna do serviço das cavalhariças. Avisinhou-se de D. José, metteu-lhe a luz á cara, e disse-lhe: «O fidalgo, se me não engano, leva a sua pontinha de febre!... Acho-o muito vermelho; e não será mau refrescar-lhe a cabeça. «Disse, depoz a lanterna, sobraçou-o pela cintura, fincou-lhe a mão esquerda no gasnête, levou-o de borco sobre a cisterna do deposito d'agua para os cavallos, e baldeou-o dentro, exclamando: «Ha-de ir fresco, ha-de ir fresco, seu alfacinha!» Os outros criados ainda quizeram valer-lhe; mas Tranqueira desfizera-se do jockey de D. José, rechaçando-o com um pontapé tangido por furia, digna de melhor adversario. O desgraçado cahira de cachapuz, e lográra logo romper com a cabeça á flôr d'agua; mas do pescoço abaixo ficou empoçado, sem poder marinhar aos bordos da cisterna, á mingoa de pega onde afincar as unhas. O instincto da vida vencera o da vergonha. D. José gritava, e o Tranqueira, dando-lhe as boas noites, fôra para a cavalhariça arraçoar os cavallos. Os brados chegaram aos ouvidos de Palmyra, a tempo que o jockey se erguia do pontapé que o desintestinára, para, muito a custo, acudir ao amo. Desceu Palmyra anciada ao pateo, no momento em que o eleito de sua alma, na bocca da cisterna, sacudia as bicas d'agua, e tiritava estalejando as maxillas.
«Fulminou-a o ridiculo! Só o ridiculo podia sossobrar[202] aquella alma de tempera, feita para reagir a todos os embates. Retrocedeu do portão para o escuro do pateo. Nem a commiseração lhe deu alentos para se aproximar do ensopado moço. Odiou-lhe talvez a covardia n'aquella hora. Odiou-se talvez a si propria. Não sei. Avisaram-me que ella estava prostrada, e sem sentidos, no lagêdo do pateo. Dei ordem ás criadas que a transportassem ao seu leito. Minutos depois, abandonei a minha casa, levando commigo o criado que me vira nascer, o unico homem diante de quem eu podia chorar. [203]
«No dia seguinte, mandei de Cintra o criado a casa, informar-se dos successos decorridos... Quererias tu... agora penso que tu desejas saber como foi aquella minha noite... Passei-a na ida para Cintra. Quer-me parecer que parte de minhas faculdades moraes ia atrophiada. Volteavam em redor de minha intelligencia uns corpos, ora negros como o recesso dos abysmos, ora igneos como as fitas dos coriscos. Nem a memoria de minha mãe se mesclava ao revolutear das minhas concepções desconcertadas. Era a febre, a procella do sangue encapellada na cabeça. O criado teve o instincto de comprehender-me. Raras palavras me disse com resposta. Algumas vezes senti-me aferrado pelo seu braço; era [204] quando eu ia despenhar-me do cavallo, sem dar tento da vertigem.
Contava-me elle depois que eu, a intervallos longos, expedia gritos que lhe eriçavam os cabellos, e vociferava insultos, esporeando freneticamente o cavallo.
Aqui tens a minha noite: não tenho outras memorias. Apenas me recordo que aos primeiros assomos da manhã se romperam os diques das lagrimas, e chorei por muito tempo.
O criado partiu de Cintra com ordem de colher noticias. Voltou, entregando-me um papel aberto, que o escudeiro lhe dera, escripto por Palmyra. Era uma declaração de divida indeterminada, ou que havia de fixar-se pela avaliação dos objectos de seu uso, que ella, ao sahir de minha casa, levava comsigo. Deviam ser vestidos e joias. Palmyra, por tanto, havia sahido na manhã d'aquelle dia.
Ao entardecer, quando a tristeza cahia do céo, como um lucto de almas não já desditosas, mas ainda arraiadas do iris da esperança, confrangeram-se-me em dôr ineffavel as fibras do coração, dôr de saudade voracissima, saudade de Palmyra, desejo ardente de vêl-a não sei se para cahir-lhe de joelhos aos pés, se para escarrar-lhe no rosto. Nenhum allivio pedido a todas as potencias de minha imaginação, pedido a Deus, e ao amor de minha mãe, nenhum conforto experimentei. Era a desesperação, que pensa no suicidio. Deitei-me, confiado na esperança de cahir em lethargia de sentidos. Revolvi-me sobre espinhos em incendio febril. Se algum [205] instante o sopor me desfallecia, pulava-me o coração com tamanho impeto que eu espertava convulso, atirando-me do leito contra a janella, em agonias de estrangulado. O maximo horror das minhas visões era ella, nos braços d'aquelle miseravel, áquella hora. As minimas circumstancias d'um espectaculo de devassidão, as mais secretas, e lubricas minudencias se me traçavam patentes a uma claridade infernal. A oração, esse divino desabafo de enormes afflicções, nem esse bem me valia um relampago de socego á alma. Começava orando, a anciedade recrescia, a fé desamparava-me, e então sobrevinha o desprezo de Deus, a negação da Providencia, e um feroz deleite de blasphemar. Eu amava a mulher abysmada, a mulher prostituida! Eu, santo Deus, com instinctos tão nobres, educação tão religiosa, e respeitos tão profundos á dignidade! Pensava-o eu assim; dava-me eu então os epithetos usurpados á honra!... Eu que me infatuára perante o mundo de acorrentar á minha vaidade a mulher formosa, em cuja fronte a moral escrevera um estigma, que eu cobria de brilhantes e flôres, cuidando que a sociedade havia de respeital-a assim, e humilhar-se diante da minha affrontadora opulencia! Eu, verme esmagado, ousar pedir contas a Deus da iniquidade do seu arbitrio, e renegal-o como ente inutil ao remedio da minha desgraça!...
«Mal me entreluziu a manhã, fiz apparelhar os cavallos, e voltei para Lisboa sem proposito feito. Durante a caminhada, o meu velho Tranqueira, em quanto as cavalgaduras se desfadigavam, acercou-se de mim com[206] os olhos envidrados de lagrimas, e disse a medo: «Meu amo, vamos embora de Lisboa; vamos para a nossa terra, que Deus e a Virgem Maria dará remedio.» Não respondi; mas pensei. A quietação da minha aldêa convidava-me; porém, entrando em espirito no interior da minha casa de Ruivães, ouvia com pavor o som dos meus passos n'aquellas salas desertas: faltava-me minha mãe alli: o anjo consolador fugira antes do meu resgate. Acudia-me á lembrança a minha triste Mafalda, a irmã terna, a meiguice da virgem compadecida; porém o meu coração, a porejar o esqualor da sua hedionda chaga, rejeitava os balsamos d'um affecto purificador.
«O tumulto das grandes cidades, com o seu engodo, attrahente da desordem da vida, quadrava mais á minha alma sedenta de não sei que filtros de lagrimas e sangue. Estava traçado o meu plano, quando cheguei a Lisboa. Qualquer resolução sacode o mais paralysado espirito. Senti-me forte para entrar em minha casa. Fui ao gabinete de Palmyra, e abri as suas gavetas despejadas de todas as cousas d'algum valor. A minha razão logrou um momento de lucidez: afigurou-se-me rasteira a indole de uma mulher, que, em conflicto de tamanha vergonha, tivera animo para se andar por suas proprias mãos enfardando vestidos e enfeites, no intento de vestir as galas seductoras de amantes novos. Refugi como envilecido dos aposentos de Palmyra. Fui ao meu quarto. Fiz encaixotar as minhas roupas. Guardei a correspondencia de minha mãe e de Mafalda. Queimei os restantes papeis, excepto as cartas de Theodora[207] das Ursulinas. Por quê? Nem eu sei. Queria aquellas memorias da creança que então morrera...
—«Chamei os criados, e despedi-os. Mandei fechar as portas ao meu Tranqueira, e, n'esse mesmo dia, expedi ordens para a venda de carruagens, cavallos, e mobilia. Alguns amigos conseguiram rastrear a minha residencia obscura n'um hotel inglez em Buenos-Ayres.
«Procuraram-me, e eu não os recebi. A minha vaidade envergonhava-se d'elles. Nem a despedaçadora curiosidade de saber o destino de Palmyra pôde vencer o orgulho escarnecido.
«No fim de nove dias, recebi carta de Mafalda, respondendo á minha. Eil-a aqui: «Ambos te queremos do coração, Affonso. Meu pae não diz a teu respeito palavra de censura: chama-te infeliz, e mais nada. Quando tua mãe dizia em ancias: «perdi meu filho!» o meu bom pae ajuntava sempre: «elle virá, minha irmã, que a sua indole é boa.» Mostrei-lhe a tua carta, e vi-o chorar; pedi-lhe que te escrevesse, e elle disse-me: «escreve-lhe tu, com a benção de teu pae; diz-lhe que o amas sempre: eu dou-lhe o amor da minha Mafalda, consinto que ella o ame; é o mais que posso dar-lhe.» Estas palavras escrevo-t'as por sua ordem, e desconfio que são inuteis para a tua felicidade. Ainda assim, em quereres a nossa amizade, primo Affonso, nos dás grande satisfação.
«Vejo que vives muito amargurado, desde que morreu a nossa chorada mãe. Se te mortifica o pezar de não ter vindo assistir-lhe á morte, tranquillise-te a [208] certeza de que ella te perdoou. Bem sabes que santinha e que mãe ella era. Eu fui lêr á beira da sua sepultura a tua carta. Li-a em voz alta, cortada de gemidos. Depois orei muito, e levantei-me de ao pé d'ella tão desopprimida e satisfeita que tomei por instincto do céo a minha alegria. Póde ser que esta carta vá encontrar-te no gozo do allivio que eu senti então.
«Bom seria, meu primo, que tu mandasses cuidar um pouco nos negocios da tua casa. Meu pae faz o que póde, e dirige o teu procurador; mas receia de não zelar os teus interesses como queria por falta de saude, e pela distancia em que vivemos de Ruivães.
«Adeus, meu querido irmão. Cuida em ser feliz, e lembra-te com amizade da tua Mafalda.»
«Respondi logo a esta carta, participando a minha prima que ia sahir para Pariz, no proposito de assentar alli a minha residencia. Expressões affectuosas escassamente lhe disse as vulgares, as necessarias á formalidade de relações entre primos que se estimam. É que eu via em mim o aviltado homem que estava sendo, e de Mafalda mesmo tinha eu um certo pejo, vaidade ainda, a vaidade do homem que se julga desapreciado aos olhos de uma mulher, que o vê rejeitado d'outra, embora villissima, embora repulsada da sociedade de mulheres aptas para honestamente avaliarem o merecimento do homem desprezado. Eu não queria nem podia, coberto de infamia por Palmyra,[209] ir acolher-me ao amor de Mafalda. E depois, e sobre tudo, meu amigo, bem que eu quizesse, não poderia amal-a então como a teria amado quinze dias antes, insuspeitoso da lealdade de Palmyra. Sabem os experimentados, poderás tu sabel-o, que é uma excepção d'almas futeis a passagem rapida d'uma affeição a outra, quando nos pesa o opprobrio d'uma perfidia. O coração está lanhado, a fronte não ousa erguer-se para a mulher do amor de salvação, a dignidade geme sob um peso de vilipendio, que cuidamos lêr nos olhares affrontadores de todo o mundo, olhares que por vezes exprimem compaixão. Mas o que é em casos taes a piedade, senão injuria?!
«Escrevi ao meu procurador ordenando-lhe a venda de todas as minhas propriedades, salvando a casa e quinta de Ruivães. Na volta do correio, avisou-me elle de que havia comprador prompto; e, poucos dias depois, recebi ordens de pagamento de trinta mil cruzados. Com estas ordens, vinha carta de meu tio Fernão de Teive. Dizia assim: «Tua prima está enferma, por isso não te escreve; e eu tambem adoentado e tristonho mal posso escrever-te. Recebemos a nova da tua mudança para Paris. Vai com Deus, Affonso. Póde ser que a tua felicidade lá esteja. Folgo de te vêr ir desligado da personagem que, segundo me dizem, foi a final o que era rigoroso que fosse. Diante da mulher perdida todos os homens são iguaes. Quereres tu o privilegio que o marido não teve, seria um absurdo do teu orgulho. Theodora está em Braga promovendo [210] o divorcio a fim de levantar-se com o seu patrimonio. O Eleuterio, por intervenção de um meu compadre, quiz que eu entrasse como ouvinte e conselheiro em suas cousas. Aceitei o convite como quem tem pouco que fazer, e passa as suas horas na cama a agasalhar a gôta. Sou o depositario do borrador das cartas que ella te escrevia, seductoras em verdade, e dignas de irem á estampa. Onde foi esta mulher aprender tanta palavra?! Estou em dizer que anda aqui muito amor de diccionario; e os successos posteriores levam-me a crêr que era ainda peor o amor da creatura. Aqui estou eu a fallar comtigo á laia de rapaz! e o caso é que a dôr do calcanhar esquerdo espalhou.
«O teu procurador avisa-me que vendeu as tuas quintas de Leiroz e Gestal. Para te não dizer cousas tristes, e evitar que torne a dôr do calcanhar, ponho aqui ponto. Mas sempre te direi, como irmão de tua mãe, e teu amigo devéras, que, exhaurido o teu patrimonio, tens a minha casa. Se eu morrer—e ainda bem!—antes d'esse dia (dia, talvez, inevitavel!) deixarei dito a Mafalda que seja sempre o que tua mãe e eu fomos para ti: o coração devotado sem condições. Adeus. Quando tiveres vagar, escreve-nos de Paris—Teu tio F. de Teive.»
«Alegrou-me a nova da ausencia de Palmyra de Lisboa. O dragão do ciume desencravou-me as garras do peito. Que estupida alegria! A suspensão da perfidia que importava ao desaggravo do meu orgulho? Quão lastimaveis e ridiculos somos, se uma vez perdemos o [211] norte da legitima, da decente probidade! Nenhum liame da sã moral resiste ao cancro do coração. Até o regenerarmo-nos tem para nós um certo ar de baixeza de animo, scena de comedia que faz rir o mundo.
«E eu, ancioso de um mundo novo, fui para França. Que cuidas tu que eu ia procurar em França?
—O methodo mais facil de gastar os trinta mil cruzados—respondi eu.
—Não me lembravam os trinta mil cruzados: ia procurar uma mulher; ia procurar o amor de salvação.
—E encontraste-o em França?
—Encontrei.
Ao oitavo dia de residencia em Paris, Affonso de Teive não sabia que fazer da sua pesada inercia. Fechado no quarto de um hotel, ouvia os estrondos da Babylonia, e suspirava pelos silencios da sua aldêa. Apresentára as cartas de cavalheiros de Lisboa na embaixada portugueza, recebera a visita dos compatriotas distinctos em Paris, e convivera nos primeiros dias em bailes, theatros, e jantares. Saciou-se prestes aquella contrafeita sofreguidão de vida, e logo uma subita e glacial atonia lhe ennegreceu os prazeres, almejados de longe, como iniciação para outros, que inteiramente lhe obliterassem da memoria as dôres passadas.
E, no termo de oito dias, uma consolação unica lhe [214] restava: era o ante-gosto de voltar á casa deserta de Ruivães, e esperar alli ao lado do jazigo de seus paes o breve termo de sua irremediavel tristeza.
Affonso, porém, tinha vinte e quatro annos. A natureza contramina estas renunciações intempestivas. Uns repentes impensados sacodem a alma de sua modorra, e a sobre-excitam a desejos vagos, bem que ephemeros. A materia não é um impassivel envoltorio de corações entorpecidos. É preciso que a vida sensitiva se amorteça antes da actividade moral para que as paixões mallogradas vinguem o total quebranto do homem.
Entrou Affonso na sociedade, levado pela mão da esperança, que promettia guial-o ao pé da mulher salvadora. Mal encaminhado ia aos salões de Paris. Os conhecedores d'aquelle «mundo» contaram-lhe as historias de cada mulher, que tinha ares de poder salvar alguem: no geral eram creaturas, que procuravam quem as salvasse das incertezas do futuro pelo casamento justificado e santificado com algumas centenas de milhares de francos. Estas eram as filhas dos generaes do imperio, as filhas dos estadistas em começo de fortuna, as filhas dos gentis-homens cujos appellidos contavam sua antiguidade de Carlos Magno para além. E todas estas meninas, esperançadas em salvação, e em requesta de salvadores, quando encaravam no vulto melancolico de Affonso de Teive, imaginavam-no um galante moço que, ao contemplal-as, dizia magoadamente entre si: «Se eu fosse rico!...» E ellas, olhando-o de soslaio com discreta reserva, diziam: «Se tu fosses rico!...» [215]
Quando Affonso tomou a peito rectificar este juizo dos seus amigos, avisinhou-se das mais aureoladas do azul-celeste da innocencia, e averiguou que as mais singelas á vista eram as que mais a ponto fallavam, em termos rigorosamente arithmeticos, de fortunas deslumbrantes, de casamentos projectados. E, se elle, com a portugueza e bemdita poesia dos nossos amores de sala, aventurava algumas phrases de idyllio sobreposse, as ligeirissimas creaturas ouviam-no distrahidas, como, no theatro, ouviriam musica de Donizetti, e encheriam de melodias a alma, em quanto assestavam o binoculo no filho do banqueiro.
Comprehendeu logo Affonso de Teive que não servia á alta sociedade parisiense. Um forasteiro, que vai a Paris com trinta mil cruzados, e deixa na patria uma quinta, que valeria menos de metade d'aquella quantia improductiva, deve contar que no caminho do hotel aos theatros e salas, aos festins e concertos, em menos de dous annos, com alguma parcimonia nas despezas, se lhe hão-de escoar as ultimas mealhas. Os haveres de Affonso, postos á disposição da filha do marechal do imperio ou do marquez decahido com os Bourbons, dariam uma dezena de toilettes da esposa. Esta dura verdade calou-lhe no animo, afastando-o do concurso de mancebos, que malbaratavam cada mez fortuna sobreexcedente á d'elle. Penoso desengano ás portas do grande mundo onde elle tencionára retemperar o coração ao bafejo das primeiras mulheres da época, e da França. Tinha, por tanto, que descer ás inferiores camadas, abaixo [216] mesmo da media. N'esta mais difficil lhe seria o escolher um rosto distincto e uma alma no estado da innocencia do anjo: trancava-lhe as portas a cobiça que lá vai dentro, imitando-as a elevarem-se até emparelharem com as invejadas mulheres da classe alta. Elle, cuja razão se alumiára á luz do facho do universo, á luz de Paris, viu-se qual era, correu-se da sua comparativa pobreza, e refugiu dos bailes, das cêas, e dos concursos em que o seu peculio se ia desnervando á custa de sangrias inevitaveis.
Madrugou, um dia, Affonso de Teive ambicioso de riqueza. N'esta hora, e pelo tempo fóra de oito mezes, fez-se em seu coração um quietismo espantoso! Descuidou-se do esmero no trajar; era-lhe já como indifferente o reparo da mulher. Vendeu o tilbury e o cavallo. Mudou para hotel menos dispendioso. Traçou plano de batalha á fortuna, e entrou no jogo de fundos, onde os felizes, a um relanço de olhos da boa fada, accumulavam enormes cabedaes, facto demonstrado por milhares de exemplos.
Foi feliz nos ensaios timidos, e em pouco. Prosperaram-lhe outros de maior risco. Cuidou-se bemfadado para emprezas maiores. Vieram as alternativas, equilibrando-se. Começou Affonso a estudar seriamente os mysterios d'aquelle jogo, com enthusiasmo e absoluto menosprezo de tudo mais. Dizia-se elle: « refaça-se a fortuna, que depois se reconstruirá o coração. Dinheiro, muito dinheiro, para comprar uma alma pura em Paris, onde a raridade tornou carissimo o genero!» [217]
Sossobrado por um revez, perde metade do seu capital. Desanima, e esmorece em força moral. Vai a medo á barra do Potosi, e crê que está alli um abysmo a tragar-lhe o restante, e depois a elle. Que fará empobrecido no extremo? Venderá a casa, a quinta, a capella, e o tumulo de sua mãe? Lembra-lhe a mãe, e invoca a alma santa a coadjuval-o na empreza immoral. A santa infunde-lhe uma insuperavel desanimação diante do perigo. Associa-se a jogadores felizes. Balancea-lhe a fortuna entre pequenos desastres e pequenos lucros. Ao fim de oito mezes, a sociedade quebra, e Affonso de Teive tem de seu algumas libras, e cincoenta que o Tranqueira delicadamente lhe introduz na sua gaveta, os seus ordenados e economias de muitos annos.
O criado amigo, testemunha das lagrimas e das vertigens, ousa aconselhal-o que volte para Ruivães, e se restaure limitando-se ao rendimento de sua casa. Affonso enfuria-se contra o criado, exclamando: «Sabes o que é a minha casa de Ruivães? São quarenta carros de pão cada anno»—E vinte pipas de vinho, e uma de azeite—ajuntou o criado. «Que vale tudo isso?»—perguntou Affonso. O Tranqueira fez a conta pelos dedos, e respondeu:—Feitas as despezas do grangeio, vale seiscentos mil réis. «E hei-de eu viver com seiscentos mil réis por anno!—clamou Affonso—eu! habituado ao luxo, com vinte e cinco annos, com precisão de aturdir a minha existencia nos prazeres, que só a muito dinheiro se encontram em toda a parte do mundo!» [218]
O criado encolheu os hombros, e disse entre si:—Valha-nos a alma de minha santa ama e senhora!
Medita Affonso vender o resto de seu patrimonio; e para logo lhe occorrem estas palavras da ultima carta de sua mãe moribunda: Dos desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos esta casa onde nasceste, e a quinta que te dará abundante pão na velhice, se Deus t'a der como tempo de merecer o céo. Aqui nasceu teu pae, e muitas gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa, que tens n'ella a sepultura de teus paes e avós.
Desfallece-lhe a sacrilega coragem de negar a sua mãe o derradeiro pedido. Mas a necessidade atroz abriga-o a desviar os olhos d'um tumulo para enxergar não longe a indigencia em Paris, a indigencia relativa com as galas do passado.
Estas agonias são as supremas de sua vida. Palmyra, a memoria da mulher fatal, nem por sonhos o perturba. Apparelham-se-lhe affrontamentos maiores. A vergonha do pobre mostra-se-lhe mais aviltante que a vergonha de atraiçoado. Pensa, sonha, contorce-se, alenta-se, desmaia, recobra-se, sempre a scismar na rehabilitação pelo ouro, na reparação do seu capital; porém, de que modo, sem capital nenhum?... Salvadora idéa!...
Escreve ao tio Fernão d'este theor:
«Perdi-me, perdi o que trouxe de Portugal, estou pobre. Eis-me mais castigado que o padecente dos pardieiros das Taipas. Elle refugiou-se aos quarenta annos,[219] ainda rico do mundo. Eu tenho vinte e cinco annos, a honra perdida, a rehabilitação impossivel, aptidão para nada, o espirito derrancado no gozo de infames delicias: e, para sustentar esta vida corroida da lepra, resta-me a quinta de Ruivães. Eu sei que a fome não iria lá bater-me ás portas, sei que ainda tenho de meu o talher na sua mesa, meu tio, mas Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia n'um d'estes comoros de terra, onde os sepultados não tem nome. Minha mãe pediu-me que não vendesse a casa onde está o jazigo de meus avós. Os meus avós são os de meu tio Fernão de Teive. Aqui venho eu offerecer-lhe a minha quinta. Compre-m'a, meu tio, que a vontade de minha mãe está cumprida. Lá fica Mafalda, o anjo, para ajoelhar diante d'aquellas lapides sagradas. Compre-m'a, senão eu, de mãos postas, pedirei a minha mãe que perdoe ao reprobo, que lhe vendeu os ossos, na vespera do dia da fome. Seu sobrinho Affonso.»
Fernão, lida a carta, em presença de Mafalda, abriu os braços á filha, que parecia finar-se n'elles. Das ancias e lagrimas sahiu ella com uns gritos afflictissimos, pedindo ao pae que valesse a Affonso, sem demora. Fernão, carecedor de ser consolado da desgraça do sobrinho, tinha de aquietar o alvoroço da filha, promettendo e cumprindo logo tudo que fosse da vontade d'ella, que era tambem um dever d'elle a cumprir já com [220] o parente, já com a memoria de sua irmã. Foi instantaneo o contentamento de Mafalda.
—E depois?—exclamava ella—E depois, meu pae, em se lhe acabando o dinheiro da quinta, quem lhe acudirá?
—Nós—respondeu de alegre aspeito o pae.
—Nós?—tornou ella entre alegre e amargurada—mas não vê o que elle diz?...
—Que diz elle, creança, que diz elle? Lê-me tu o que elle diz...
—Olhe, meu pae... Affonso de Teive antes de estender a mão á piedade mesmo dos seus ha-de esconder a sua ignominia num d'estes comoros de terra onde os sepultados não tem nome. O pae entende isto muito bem...
—Entendo; mas não me assusto. A gente ha-de pensar: primeiro, o essencial, é mandar-lhe o dinheiro, e dizer-lhe que os tumulos de Ruivães, e as casas, e as terras são d'elle, como até aqui.
—E aceitará?—replicou Mafalda—Tomará elle a dadiva como esmola?
—Ó mulher!—retorquiu o velho—tu estás uma argumentadora dos meus peccados!... E o mais é que lembras com juizo essa especie!... O doudo é capaz de rejeitar, se eu dou dinheiro e quinta! Pois bem: diga-se-lhe que eu compro a quinta, e mande-se-lhe os quinze mil cruzados, que é o valor da cousa. Vou ámanhã ao Porto. O dinheiro está ahi. Fico sendo o proprietario de tres quintas de Affonso. Cá te ficam, menina. Tu, [221] depois, a teimares no proposito de morrer solteira, dá-lh'as, se elle viver. Que mais quer a minha filha?
Mafalda ajoelhou a beijar-lhe as mãos. Ergueu-a o pae com muita ternura, enxugou-lhe as lagrimas no lenço em que embebia as d'elle, e disse, sofreando os soluços:
—Que esperas tu d'este rapaz, Mafalda? Quando virá Deus em auxilio d'esse tão fraco e desventurado coração? Filha... estima-o; mas não o ames assim com esse amor que te devora a mocidade! Que vinte e quatro annos os teus tão desconsolados e estranhos ás menores alegrias de tua idade!... E tu não cahes em ti, filha, não vês que Affonso está cada vez mais longe de te avaliar!?
—Sei, meu pae—respondeu Mafalda com serenidade.
—E então?... sabes, e não te vences...
—Não posso vencer-me, Deus sabe que lhe tenho pedido auxilio, e nem assim...—As lagrimas saltaram-lhe novamente, e logo os arquejos do peito, ancioso de ar.
—Pois bem, meu amor—tornou o pae, duplicando as meiguices—Eu absolvo a tua fraqueza, já que o Altissimo te não fortalece. Quem sabe, filha, quem sabe os segredos do porvir? Ha milagres mais assombrosos. Póde ser que elle ainda venha para ti com o coração purificado, e o tributo da mocidade avaramente pago. Mais bom marido será então. Que te diz lá no intimo a voz do teu anjo? Serei propheta, minha filha, serei? [222]
Mafalda sorriu-se, e murmurou:
—E não podia ser assim, meu pae?! Ás vezes, sonho-o; tenho horas em que me julgo louca, no meu contentamento sem causa, sem esperança!... Tres cartas recebi d'elle em oito mezes, e que frias expressões! Quando eu o considerava esquecido, por amor d'aquella creatura, é que elle me escrevia mais amoravel; agora, que é livre, e de mais a mais infeliz, parece que nem se quer me estima! E, ainda assim, meu pae, eu tenho presagios, em meu coração, alegres como a sua prophecia.
—Pois então pede a Deus que me dê vida para que eu os veja realisados... mas, filha, a realisação da prophecia, se vier, já me não achará vivo... [223]
Decorridos seis mezes, Fernão de Teive, perigosamente enfermo e desenganado, dialogava assim com sua filha, ajoelhada sobre o estrado do leito, com a face inclinada aos labios requeimados d'elle:
—Bem t'o disse eu, menina. A realisação da prophecia, se vier, encontra-me sem vida.
—Não ha-de morrer, meu pae!—clamou Mafalda beijando-lhe a fronte.
—Não peças a Deus isso, que os meus padecimentos são incomportaveis... Verdade é que te deixo quasi sosinha; mas ahi estão teus tios de Barcellos que te levarão para sua companhia em quanto não poderes voltar á casa onde morre teu pae. Não chores assim que me affliges,[224] Mafalda... Triste cousa que um moribundo não possa fallar aos seus com a presença de espirito dos que esperam viver muito... E, a final, Deus sabe quem vive e quem morre!... Póde ser que eu não vá d'esta... Pois então, menina, que tem que conversemos placidamente?!... Bem... esse ar de conformidade está bem ao rosto angelico de minha filha... Fallemos no nosso Affonso... Inventa lá tu um meio de lhe mandar recursos. Se é verdade o que soubemos por via do tio desembargador, o rapaz está mal. O jogo dos fundos arruinou-o segunda vez, ou reduziu-o a muito pouco...
—Mas as cartas ultimas—atalhou Mafalda—não fallam em negocios...
—Pois isso é o que mais me persuade da informação do tio de Lisboa. Se Affonso prosperasse, dizia-o; elle, que se cala, é que está desgraçado.
—Oh meu Deus!—exclamou a filha—diz bem, meu pae, Affonso está desgraçado... Não o confessa para que lhe não mandem alguma esmola os parentes.
—Isso mesmo; e por isso mesmo pensemos em remedial-o com todo o melindre. Não te occorre nada, filha?
—Manda-se-lhe o dinheiro, peço-lhe eu muito que o aceite... elle ha-de condoer-se das minhas palavras...
—Não gosto d'esse meio: desapprovo a invenção. Ahi vem padre Joaquim dar-nos aviso.
Padre Joaquim era um modêlo de padres, capellão da casa, havia trinta e cinco annos; padre que se me ia fugindo d'este romance por um cabellinho: o que seria [225] novidade nos meus livros. Quando eu poder architectar uma novella sem padre, hei-de chamar-me romancista puxado de imaginação. O mestre dos escriptores floridos, Almeida Garrett, segundo disse e provou, tinha o vezo dos frades. Elle, e eu, cá muito no couce processional dos seus discipulos, havemos de fazer amar os frades, e os padres, pelo menos os padres-capellães bem procedidos e venerandos como padre Joaquim, capellão da casa de Fonte-Boa.
Explicou Mafalda ao padre o motivo a cujo respeito se lhe pedia aviso.
O clerigo tomou rapé, reflectiu, consolidou o seu raciocinio com outra pitada, e disse:
—A minha opinião é que a snr.ª D. Mafalda case com o snr. Affonso.
Fernão, fraco de peito para rir, tossiu uns frouxos de riso que desconcertaram a gravidade do reverendo. Mafalda fitou os olhos em seu pae, receando que o esforço o estivesse mortificando.
Padre Joaquim voltando-se á menina, disse no tom de quem dá satisfação:
—Dar-se-ha caso que eu dissesse algum desproposito?... Parecia-me que sendo os dous contrahentes primos em primeiro grau, obtida a devida dispensa, nada mais acertado para o fim de melhorar a situação apertada do snr. Affonso...
—Não disse desproposito nenhum, padre Joaquim—acudiu Fernão de Teive—Pelo contrario, aventou a mais moral e desejavel das sahidas n'estes apertos. [226] Mas o que nós queriamos era soccorrel-o sem que ninguem casasse.
—Parece-me isso justo e exequivel. É mandar-lhe dinheiro por pessoa capaz—respondeu categoricamente o sacerdote.
Fernão, com prazenteiro rosto, acudiu:
—Quer o padre Joaquim ir a Paris? Não temos outra pessoa que o iguale em capacidade.
—Irei ao fim do mundo no serviço de vv. exc.as
—E se o primo Affonso—disse Mafalda—rejeitar o dinheiro?
—Se rejeitar o dinheiro, volto com elle para casa: signal é que lhe não é preciso.
—Se o rejeitar por ser de condição independente, e tomar como esmola o favor do pae?—replicou Mafalda.
—N'esse caso cito-lhe os meus authores nas materias vaidade, soberba e orgulho: e hei-de convencel-o a aceitar o dinheiro.
—Vai o padre a Paris—disse Fernão—Ámanhã parte para o Porto: lá o dirigirão. Prepara tu, Mafalda, a bagagem do snr. padre Joaquim. Tira o necessario para o meu enterro, e manda tudo mais, que encontrares, a Affonso.
—Enterro!—exclamou Mafalda, escondendo o rosto no seio do pae.
Ao escurecer recrudesceram os padecimentos de Fernão de Teive. Por volta de meia noite, com toda a luz da razão, e clareza de voz pediu os sacramentos, e conversou[227] até ás duas horas. Ao amanhecer dormiu um somno quieto, e acordou afflicto. Pediu a extrema-uncção, e respondeu durante a ceremonia as palavras rituaes em irreprehensivel latim. Depois, chamou a filha, beijou-a, deu-lhe a beijar o crucifixo, que tinha entre mãos, reclinou-se para o hombro d'ella, dizendo:
—Sobre este hombro expirou minha irmã... Se alguma vez vires o filho da santa mulher dá-lhe um abraço... e tu, filha... adeus até ao céo.
Mafalda rompeu em altos clamores. Fez-lhe o pae um gesto de silencio com os olhos.
Foi este o derradeiro gesto d'aquelles olhos, fitos já na aurora da eternidade, e fechados para sempre sob os labios de sua filha. [228][229]
Eram atrozmente verdadeiras as informações communicadas pelo desembargador Figueirôa sobre a desfortuna de Affonso de Teive em Paris.
Os quinze mil cruzados, producto supposto da quinta de Ruivães, enguliu-os a voragem do jogo de fundos, á qual o allucinado moço se atirou ás cegas, contando com a vicissitude favoravel, por ter sido infeliz nas outras.
Resolveu matar-se. Esta deliberação contrabalançou as agonias da pobreza desesperada.—Como via a morte no leve movimento d'um gatilho, deixou de encarar o futuro. Que lhe importava morrer pobre?! Encheu-se de coragem, e deu graças a Deus pela fortaleza[230] que lhe dava. Ajuntou os objectos de ouro e pedras que reservára para aquella hora premeditada. Chamou o criado, e disse-lhe: «Vende isso que ahi está. Creio que o valor d'essas cousas bastará ao pagamento do que te devo em dinheiro e soldadas: se algum resto houver a maior, leva-o para te passares á tua terra.»
—E o fidalgo onde fica?!—perguntou o Tranqueira.
—Aqui!—disse Affonso.
—Pois tambem eu, patrão! Já agora, tenha paciencia; gastei a mocidade em sua casa; a velhice por cá a levarei n'esta endiabrada terra, como Deus fôr servido. Guarde lá o fidalgo as suas cousas, que eu não as quero, nem lhe pedi nada. Para eu viver, basta-me uma carroça e um cavallo estropiado. Arranje v. exc.ª a sua vida, que eu cá me irei arranjando.
—Cumpre as minhas ordens, Tranqueira!—replicou Affonso com fingida severidade.
—Perdoará, snr. Affonso...—volveu o criado—É a primeira vez que lhe desobedeço. Eu não recebo nada em quanto o não vir com outro arranjo de vida.
—Faz o que quizeres...—redarguiu o moço, embolsando a punhados os objectos que offerecera ao criado, na intenção de sahir para vendel-os.
Tranqueira desconfiou do intento suicida do amo. Apenas esta suspeita lhe saltou de repente ao animo, atravessou-se á porta do quarto, exclamando:
—O fidalgo não é homem, por mais que me digam! Ha Deus ou não ha Deus?! Então sua mãesinha [231] esteve a criar um menino na lei de Christo, para v. exc.ª dar esta sahida! Pensa que eu não sei o que lá tem na cabeça? O snr. Affonso quer dar cabo de si... Pois, ande lá por onde quizer, que eu nem de dia nem de noite o largo mais... Matar-se, por falta de dinheiro, um moço de vinte e cinco annos, que sabe lêr e escrever, e em boa saude! Isso não o faz homem nenhum no seu juizo! Quem precisa trabalha; se não é n'isto é n'aquillo. E os que perdem tudo o que tem n'um fogo, ou no mar, matam-se? Ora, snr. Affonso, eu dos annos que tenho ainda não topei homem tão desanimado!... Valha-o a alminha da snr.ª D. Eulalia! Quer o fidalgo uma cousa? Eu vou vender algum d'esse ouro que ahi tem, e vamos para Portugal. Seu tio desembargador mostra que é seu amigo, e o snr. Fernão de Fonte-Boa morreu sempre por v. exc.ª Não se lhe pede dinheiro nem cousa que o valha; pede-se-lhe que o arranjem em algum emprego limpo. Trabalhar não é vergonha, é honra, fidalgo!... Que me diz? que responde ao velho Tranqueira que o trouxe ao collo, e aqui está de joelhos aos seus pés?
E abraçou-se-lhe aos joelhos, com os olhos inflados de lagrimas.
Affonso levantou-o nos braços trementes de grata commoção, e disse-lhe com transporte:
—Trabalharei, meu amigo, trabalharei... Descança, que eu não me mato... A desgraça me irá matando.
Com referencia áquellas chãs e firmes expressões do servo rustico, me disse Affonso: [232]
«Eu tinha lido na vespera d'aquelle dia uns livros de insinuante moral, e consolação a desvalidos, pedindo-lhes crença que me esteiasse na desesperada crise de homem, sem nenhum escape na cerrada negridão de sua vida. Doutrinas e exemplos de evangelica uncção, factos tormentosissimos de angustia e admiraveis de conformidade, desde Job até ao maior homem do mundo na rocha de Santa Helena, nada me impressionára, nada me demovera do suicidio. Vi uma restea de luz instantanea reflectida do rosto de Mafalda! Pensei que era o anjo da santa melancolia a despedir-se do precito, que o repellira. Ainda o apêgo á existencia, exprimindo-se nas phrases positivas d'ella, me quiz mostrar a felicidade possivel no casamento com minha prima. Afastei com tedio de mim proprio este impudor d'alma envilecida pela desgraça. O homem rico não reconhecera a virtude de Mafalda, senão para admiral-a; o homem desvalido havia de ir depois pedir á virtuosa que o aceitasse como marido!... Tive medo que outra vez me acommettesse o pensamento vil. Dei-me então pressa em abreviar o termo da lucta! Depois d'isto, como é possivel que as rudes palavras d'um criado me abalassem desde a profundeza de minhas convicções ácerca da coragem do homem que se mata? Como logrou elle o que os livros consoladores não vingaram, nem os estimulos indecorosos a um casamento rico? Foram aquellas palavras: quem precisa, trabalha, ditas pelo homem que as tirára da sua consciencia, como se ellas lá descessem do céo, n'aquelle momento, para me serem ditas, não [233] pela pagina de um livro, mas pela bocca de quem as dizia, chorando.»
Affonso de Teive, com mais coragem do que a necessaria para o suicidio, dirigiu-se a uma casa de commercio de judeus de procedencia portugueza, residentes em Paris. Conhecera Affonso um mancebo d'esta familia no concurso das pessoas bem qualificadas. Procurou-o, e contou-lhe o seu estado, offerecendo-se a trabalhar no escriptorio, segundo sua aptidão. Os commerciantes aceitaram-o como terceiro ajudante de guarda-livros com ordenado de dous mil francos.
Vendeu Affonso as suas joias, e alugou uma mansarda, que mobilou, consoante a escolha de Tranqueira, pobre e limpamente. O criado comprou um cavallo, a que elle chamava um milagre, e uma carroça, com que trabalhava de carrejão, nas horas occupadas do amo. Ás horas convencionadas, o Tranqueira ia buscar em marmitas um jantar economico para ambos, todavia aceado e abundante. Affonso passava em casa as noites, estudando a lingua ingleza para poder adiantar-se na sua carreira, até merecer os seis mil francos de primeiro adjunto ao guarda-livros.
Se era feliz assim?
Oh! não: nem tudo que é honroso se ha-de crêr que seja felicidade. A degenerada natureza do homem quadra violentamente com as mudanças assim abruptas, com as quedas de tão alto! O magnificente amante de Palmyra, o moço blandiciado nas salas do seu palacio do Campo Grande, reclinado por sobre coxins de sêda, inventando[234] regalias com que desanojar a sua ociosa saciedade, certamente não podia escrever odes á fortuna amiga, quando sahia de escrever cifrões no escriptorio mercantil. O reportar-se tambem não é ser feliz; é, no maximo das vezes, um martyrio consecutivo de triumphos obscuros; porém, martyrio sempre!
E, depois, Affonso entrava futuro dentro, phantasiando mudanças, chimeras, paradoxos, que o volvessem a uma felicidade, que elle bem nem mal sabia definir, ou estremar do que vulgarmente se diz que ella é. D'estas vãs e ardentes consultas ao porvir, voltava o moço ao refrigerio do trabalho, e assim o tempo ia derivando, branqueando-lhe os cabellos, e quebrando-lhe os espiritos.
Em Lisboa era sabida a situação de Affonso de Teive, não que elle a contasse. Escrevia ao tio Fernão raramente, sem de leve tocar em negocios. Respondia ás cartas d'algum raro amigo, que o julgava ainda em circumstancias de lhe não pedir emprestimo para se resgatar de Clichy.
N'este tempo, recebeu elle novas de Palmyra, não solicitadas. Dava-lh'as assim um dos seus commensaes de Lisboa:
«...... A mulher surgiu aqui, vinda não sei d'onde, pompeando com tanto esplendor e mais estupidez que no teu tempo, ou melhor direi, no teu reinado.»
«Vi-a em S. Carlos, hontem, sosinha na friza. Disseram-me, porém, que lá, no reconcavo do camarote, [235] estava um homem gordo, de tez abronzeada, e vista suina. Dizem que é brazileiro do Minho, outros diziam que era o marido envergonhado. O D. José de Noronha, desde o banho da cisterna, nunca mais se endireitou do espinhaço, e vai a tisico irremissivelmente. Não ha memoria d'uma catastrophe assim nos fastos dos Lovelaces patifes d'este nosso quintal do tio Lopes. O D. Antonio de Mascarenhas assevera-me que Palmyra nunca mais teve uma palavra de consolação para o derreado amante. O teu criado matou estes amores com tamanha ignominia, que já não ha ninguem que queira amar mulher em casa onde haja cisterna... Irei dizendo o que souber da Laiz minhota.........»
Affonso leu glacialmente a carta, e não respondeu ao noticiador.
—Que sentimento fez em ti essa nova?—perguntei eu.
Affonso encolheu os hombros, e disse:
—O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não ha infamia d'alma que desça até ahi. Odio tambem não, que o odio quer vingança, e eu dava-me já por vingado da mulher a resvalar, no plano inclinado, não sei até que ordem de abysmos. Era piedade o que eu sentia, e tanta que, se me viessem dizer que Palmyra, dentro de um anno, perdera a formosura, que vendia, os bens, que herdára, e se desgraçára até á extremidade de pedir o pão de cada dia, eu faria do meu pão dous[236] quinhões, e um mandar-lh'o-ia, sem insulto nem palavra recordadora do passado.
Esta foi a resposta de Affonso de Teive. Eu acreditei, porque tinha visto o mundo, e não ha nada que eu não acredite. [237]
Ao escriptorio commercial, onde o meu amigo trabalhava, chegou, ao fim da tarde, do dia 15 de Julho de 1853, um empregado da embaixada indagando a residencia do portuguez Affonso de Teive.
Sahiu com o esclarecimento em demanda d'outro portuguez, que se apresentára ao ministro, com importantes recommendações de Lisboa. A nota da residencia era rua Vivienne, 104, 5.º andar, lado esquerdo; quem a recebeu da mão do encarregado foi uma senhora, que a passou logo a um sujeito de cabellos brancos, trajado de sacerdote.
O leitor não se deixa surprehender mais tarde: já sabe que a senhora é Mafalda, e o sacerdote é o capellão padre Joaquim de S. Miguel. [238]
Padre Joaquim entrou n'um fiacre com o guia posto á sua ordem pelo ministro portuguez. Apearam ao portão do predio; perguntaram ao porteiro se o morador do quinto andar, lado esquerdo, estava em casa. Sahiu do interior da loja, residencia do porteiro, o criado de Affonso, o qual, reconhecendo padre Joaquim, lançou-se a elle de modo que o ia afogando ao primeiro abraço.
—Ainda vives, Tranqueira?—exclamou o clerigo—E sempre com o pequenito de Ruivães!?...
—Até á morte, snr. padre mestre!... Pois por aqui? V. s.ª por estas terras?... Que é feito do snr. Fernão? e da fidalguinha?
—Leva-me lá acima, homem, que pelos modos temos que marinhar—atalhou o padre.
—Ponha-se aqui ás minhas costas, que eu levo-o lá, snr. padre Joaquim!—disse o Tranqueira, ageitando-se para ser cavalgado.
—Estás doudo de alegria, velho! Deixa-me ir por meu pé. Vossês cá no paiz da civilisação já andam uns ás cavalleiras dos outros?... Olha lá... não avises teu amo. Quero vêr se me elle conhece ainda.
Affonso estava escrevendo a seu tio Fernão de Teive, quando o padre entrou.
—Veja se se lembra, snr. Affonso!—disse o capellão.
—Lembro!—clamou Affonso erguendo-se a abraçar o clerigo—Vem de Fonte-Boa? Que faz em Paris, padre Joaquim?
—Podemos ficar a sós?—perguntou o clerigo. O [239] Tranqueira sahiu, e o guia, esclarecido em francez por Affonso, retirou-se.
—Eu estava a escrever a meu tio Fernão...—disse Affonso...
—No outro mundo sómente se recebem orações, e não cartas—atalhou o padre.
—Morreu meu tio!?—exclamou o moço.
—Lá se foi para Deus aquelle justo. Pouco antes de expirar, deixou-lhe um abraço ao snr. Affonso. A snr.ª D. Mafalda foi a depositaria do abraço...
Affonso escondera o rosto nas mãos a soluçar.
—Elle merecia-lhe essa saudade—continuou o padre—que era muito amigo de v. exc.ª
—Minha desgraçada prima!—exclamou Affonso—que vida vai ser a d'ella n'aquella solidão, sem pae, sem uma alma que a estremeça!...
—Sua prima não está em casa... Está em Paris.
—Como? em Paris!... onde está Mafalda?!
—Na hospedaria, esperando que vamos. Não se demore.
Affonso desceu a trancos as precipitosas escadas, sem dar tino de que o padre as descia apalpando com a bengala, muito de espaço, exclamando:
—Sempre será bom que pare lá no fundo para me apanhar, se eu fôr de rôlo, ó snr. Affonso!
A anciedade do moço confundia as perguntas acceleradas de modo que o padre, no transito do fiacre ao hotel de Mafalda, nem tempo teve de deliciar mais que tres pitadas com o sorvo chromatico do seu costume. [240]
Direitamente deve ser Affonso quem nos descreva o encontro:
«Entrei n'uma sala, a tempo que minha prima sahia d'uma camara contigua. Caminhamos um para o outro, lavados ambos em lagrimas. Ella fitou-me com um gesto de assombro, e disse:—Tens cabellos brancos, Affonso!... E és da minha idade!... Como a tua vida terá sido amarga!...
«—E tu, Mafalda, tens a formosura que te deixei; preservou-t'a a innocencia da tua santa vida!
«—Vida de muitas dôres, Affonso...—atalhou ella—Acabou-se-me tudo... Faltou-me o amparo de meu pae...—e encostou-se ao meu hombro, soluçando.
«Padre Joaquim acercou-se de nós, limpando os olhos, e disse:—É chorar de mais... eu cuidei que este encontro seria para allivio e não para maiores penas. Basta, por agora, menina... Faltou-lhe o amparo de seu pae; mas o de Deus é que a ninguem faltou... A snr.ª D. Mafalda está aqui para se entender com seu primo, sobre um passo muito do agrado do Altissimo; mas eu peço perdão a Deus em a contradizer, e continuarei sempre a oppor-me, por que...»
«Mafalda fez-lhe um signal de silencio com implorante suavidade, e voltando-se a mim com sereno aspecto, disse em termos balbuciantes que desmentiam a forçada compostura do rosto:—Meu primo, a vida para mim não promette contentamentos nenhuns. Faltou-me meu pae, e resolvi logo entrar n'um convento; mas a inactividade dos conventos póde ser que peorasse a minha[241] tristeza. Ouvi dizer que está derramada pelo mundo uma grande familia de mulheres devotadas ao remedio dos infelizes, por amor de Deus. São as irmãs da caridade. Resolvi entrar n'este instituto; meus paes abençoarão este modesto desejo de ser util a alguem, empregando os annos de vida, que eu não sei nem posso consumir no desabrigo da casa onde nasci. Agora, meu Affonso, venho pedir-te que dirijas em Paris os meus passos para o conseguimento da minha entrada no instituto, e ao mesmo tempo rogar-te encarecidamente, e em nome de tua santa mãe, que aceites as tres quintas que vendeste, e de que teu bom tio era possuidor quando morreu. Na intenção de t'as restituir foi que elle as comprou. Eu cumpro a sua vontade, esperando que tu obedeças á vontade de meu pae. Aceita o que teu era, meu querido Affonso, meu bom irmão; aceita, que é meu pae e tua mãe que t'o pedem, e eu tambem com as mãos erguidas.
«Mafalda cessou de fallar, cortada a voz de soluços. Eu ajoelhei diante d'ella, beijando-lhe as mãos, sem poder articular palavra. E ella, abraçando-me pelo pescoço, exclamou com a meiguice infantil dos nossos affectuosos abraços dos dez annos:—Tu fazes a vontade á tua Mafalda, não fazes, Affonso? Posso agradecer a Deus a esmola de consolação, que me dás?
«—Póde! exclamou padre Joaquim—póde, que o snr. Affonso não ha-de desobedecer á vontade de seu tio! Vamos! a fidalga ainda lhe não deu o abraço que [242] o snr. Fernão de Teive deixou ao filho de sua santa irmã.
«Abraçou-me Mafalda. E eu apertei-a ao seio com arrebatamento, e senti a sua face nos meus labios.
«—Agora, fallo eu—disse o clerigo—O instituto das irmãs da caridade é um santo instituto, nenhuma duvida lhe ponho, pelo que tenho ouvido contar dos heroismos de caridade, que as servas de S. Vicente de Paulo praticam. Assim é; mas a conquista do céo consegue-se com a virtude, e a virtude é uma em toda a parte, e em todas as situações. As irmãs da caridade são bemquistas do Senhor; mas muitas almas elege o Senhor, sem as submetter á prova dos sacrificios e abnegação do santo instituto do servo de Deus. A snr.ª D. Eulalia, que Deus tem, era uma virtuosa, e piamente creio que santa senhora. Pois a sua vida de esposa e mãe não lhe tolheu que alcançasse o paraiso com muitas obras boas que fez, sem as andar derramando pelo mundo. A mãe da snr.ª D. Mafalda foi outra senhora casada e muito amante de seu esposo; pois, se a virtude é a prophecia infallivel da bemaventurança, as duas virtuosas senhoras lá estão com Deus. E agora lhes direi eu o que as santas pedem ao Senhor, vendo assim os seus dous filhos a ouvirem o pobre padre pregar sem encommenda do sermão. Eu lhes digo que ellas estão pedindo a Deus que os case, que os encha de bençãos, e de filhos. Vamos! eu tambem levanto as minhas mãos fazendo os mesmos rogos ao Senhor! Meu Deus! permitti que a minha voz se ajunte á das santas que vos pedem[243] a felicidade d'estes dous filhos! Permitti que eu os veja ditosos, e que estas lagrimas de velho m'as enxuguem elles com a sua alegria!
«Quando o sacerdote, magestoso pela postura, se voltou para nós, latejava o meu coração na face de Mafalda; e eu inclinado sobre o rosto pallido da virgem, murmurava estas palavras: «Sim, sim, meu Deus, ouvi as preces de nossas mães!»
«Padre Joaquim de S. Miguel aproximou-se de nós, e disse com jovial aspeito:—Eu não quero estar em Paris muito tempo, meninos. Vamos embora, cuidar da dispensa, que leva algum tempo. Temos lá o outono do Minho á nossa espera. Diga a fidalga o que determina.
«Mafalda olhou para mim com o sorriso de santa, que um esculptor phantasiasse na contemplação e audição de anjos e harmonias do céo. O padre acudiu logo, exclamando alegremente: «O noivo é quem decide! Snr. Affonso, quando partimos d'esta barafunda de Paris, que me põe os miolos a arder?...
«—Ámanhã!—respondi eu.—Ámanhã—exclamou Mafalda—Pois sim; meu Affonso, ámanhã... Temos lá as nossas arvores... a nossa infancia...
«A nossa felicidade sem fim...—atalhei eu. [244][245]
Entreluzia a manhã pelos resquicios e fendas das janellas do nosso quarto na estalagem da snr.ª Joanninha de Guimarães.
Affonso de Teive disse:
«É dia: vou concluir...
—Não é necessario—atalhei—o restante sei eu.
«Mas não me prives por isso de ser eu o narrador da minha bemaventurança. Aquella mulher que eu te apresentei, negligentemente vestida, e amarrotada dos abraços dos seus oito filhos, é minha prima Mafalda, a esposa de minha alma, a salvadora do meu coração, os olhos que me vêem pelos de minha mãe, a consciencia da minha consciencia, a redemptora das minhas alegrias [246] infantis, a mãe dos meus oito anjos, que minha santa mãe me enviou do céo.
«Ha dez annos que eu vejo amanhecer os meus dias como as aves, cantando o Senhor, e adorando-o como os cenobitas.
«Minha mulher, ao abrir-me os thesouros de sua alma, revelou-me tambem os thesouros da fé, as delicias da religião, e a taça inexhaurivel dos sabores da caridade.
«Mafalda desapparece-me ás vezes com os filhos mais velhos: eu vou procural-a fóra de casa com os mais novos nos braços, e descubro a piedosa valedora no cardenho de algum jornaleiro, á cabeceira das palhas nuas do enfermo, ao qual ella foi levar a cobertura, e o alimento. Outras vezes, são os meus filhos, que levam o seu fatinho velho ás creanças, que estalejam de frio, sobre o lagedo d'uma cozinha sem lume.
«Se alguma hora fallei como marido austero a minha mulher, a dôce creatura respondeu-me com um sorriso; os meus queixumes são sempre causados pela pertinacia d'ella em entender no governo da casa com um zelo convisinho da mortificação. Mafalda é rica; mas tem uma maxima indestructivel: «poupar para os pobres.»
«Ha dez annos que vivo em Ruivães. N'este longo espaço, apenas tenho acompanhado minha mulher a observar a cultura das suas quintas, que ella teima em chamar minhas. Mafalda tem vagas idéas do que é um baile, e eu pude esquecer as idéas que tinha. Dizem que a convivencia de annos entre esposos, que muito se [247] amam, traz comsigo de seu natural uns silencios significativos do esfriamento das almas. Eu não sei o que seja esse arrefecer. O céo e a terra estão continuamente abertos ante meus olhos: de cada vez que os contemplo, a cada alvorecer, e fim da tarde, os maravilhosos poemas dão-me sempre a lêr uma pagina nova, e Mafalda traduz mais prompta que eu os gerogliphicos da Divindade. Fallamos de Deus e dos filhos; contemplamos o boi que nos encara soberbo, a avesinha gemente que pipila; a fonte que suspira, e a catadupa do ribeiro que ruge. A natureza é a terceira voz dos nossos colloquios, umas vezes amor, outras vezes sciencia, e sempre admiração e perfumes ao Eterno, que nos encheu de delicias, e inflorou o caminho da velhice.
«Eccos do mundo nenhum chega ao nosso ermo. A mim, os homens que me viram, consideram-me morto uns, outros por ventura me lastimam embrutecido entre os meus fraguedos. Tive cartas a que não respondi; fui procurado por ociosos, a quem recebi na minha sala de visitas, com uma ceremonia que os afugentou. Affligiam-me as testemunhas do meu vilipendio, e temia que ellas proferissem um nome, que soaria como blasphemia no santuario da minha familia.
«Aspei todos os vestigios que podessem recordar Theodora. Entre os papeis do meu tio Fernão, n'uma gaveta secreta, encontrei o copiador das cartas d'ella. Minha mulher surprehendeu-me n'este descobrimento, viu e comprehendeu, sorriu-se, e disse: «Meu pae nunca me deixou vêr isto, bem que eu soubesse da existencia[248] d'este livro. Triste sorte a d'esta senhora! Mal diria a mãe que tão virtuosamente a educou!» Unicas palavras que Mafalda proferiu com referencia a Palmyra!
«Aqui tens a minha vida, a vida dos dous homens, que na curta passagem de quarenta annos, tocaram as duas extremas do infortunio pela deshonra, e da felicidade pela virtude. Uma mulher me perdeu; outra mulher me salvou. A salvadora está alli n'aquelle ermo, glorificando a herança, que minha mãe lhe legou: o anjo desceu a tomar o lugar da santa: a um tempo se abriu o céo á padecente que subiu, e á redemptora que baixou no raio da gloria d'ella. A mulher de perdição não sei que destino teve...»
—Pois ignoras o destino de Palmyra?—interrompi eu, desconsolado como todo o romancista, que desadora invenções.
—Como queres tu que eu saiba o destino de Palmyra?!—Replicou Affonso de Teive.—Quem ha-de vir contar-me a Ruivães os desastres que lá vão no seio apodrentado da sociedade!... Mas, se te rala a curiosidade de saber em que lamaçaes a deves encontrar, lança a tua espionagem, diz, alto e bom som, que a fama te confiou a tuba pregoeira dos escandalos, e não faltará quem te illumine e esclareça. Do viver da mulher virtuosa é que baldamente procurarás noticias: dá-se a virtude n'uma obscuridade, que chega a incommodar a attenção dos que observam como cousa curiosa de vêr-se.
—Pois não me despeço—redargui—de me ir por [249] ahi fóra no encalço de Palmyra, e mal d'ella, se a não topo, que morrerá sem lêr a sua biographia, desastre commum, mas immerecido, das mulheres da sua especie. Quantos romances, e dramas, e cantatas ahi pejam as livrarias sobre Ninon, e Marion, e Manon Lescaut? As Aspasias e Phrineas tiveram por si os historiadores e os poetas gregos. Os Catullos e Ovidios eternisaram Lesbias e Corinnas. Menos affrontadores da moral, os romancistas e poetas coevos nossos deificam as Gautiers, e fazem que as familias honestas chorem por ellas nas paginas dos livros e nas tabuas dos palcos. Palmyra ha-de ter um livro, ou eu não escrevo mais nenhum depois do teu... Dá-me agora noticias do Tranqueira. Que é feito do Tranqueira?
—Está lá em casa a esta hora com um pequeno a cavallo em cada hombro, e outro enganchado na barriga. Tranqueira não é meu criado. Lá em casa os meus filhos conhecem-no pelo amigo velho. Tem o seu quarto no interior dos melhores aposentos. Chama-se elle a si feitor; mas o que elle feitorisa é o seu rheumatismo, e vive a picar rolo de tabaco para cachimbar ao sol. Comprou um pinhal, e negoceia em lenha e madeiras. Quando recebe algumas libras, vai até Braga visitar uns parentes pobres, dá-lhe metade, e vem para casa carregado de frigideiras, que me estragam o estomago dos rapazes. Se algum dos meus caseiros o faz zangar nas contas, em que elle quer ser sempre ouvido, ou no grangeio das terras, de que elle não percebe nada, mas quer ser consultado sempre, costuma elle estirar os braços [250] tremulos, e dizer: «O que tu precisas é um banho de cisterna.» Imagina o Tranqueira que a sua especial vocação é dar banhos de cisterna.
—E o padre Joaquim de S. Miguel morreu?
—Tenho a satisfação de te dizer que o meu padre Joaquim está vivo e vividouro. Não o vistes lá em casa por que foi para o Alto-Minho consoar com a familia, tributo que elle pagou sempre; mas nunca vai que não se despeça a chorar, e nunca vem que nós o não recebamos com grande alvoroço de alegria. É o mestre dos meus pequenos; mas os travessos escondem-lhe a tabaqueira e os oculos de modo que as lições cahem em pedra árida, e o padre já diz que considera perdidos dez annos de vida n'aquelle ensino. Que mais queres saber?
—Se poderei dormir duas horas em tua casa, respondi eu.
—Vamos partir.
—E os teus meninos costumam deixar dormir a gente de dia? Vingarão elles em mim a falta do padre? Previne-me.
Partimos.
A distancia de um oitavo de legua do paraiso restaurado do meu amigo, enxergamos D. Mafalda e os filhos, e o Tranqueira com dous ao collo, e outros dous pendurados das algibeiras da japona. Ao avistarem-nos, os rapazes irromperam n'uma grilharia barbara, que repercutia nas quebradas dos outeiros:
—Cá vou preparando a cabeça de progenitor e ouvidos paternaes, disse eu—Seriam excellentes anjos [251] aquelles pequerruchos, se tivessem larynges mais accommodadas ao apparelho auditivo do genero humano!
—São os meus filhos—exclamou Affonso—É minha mulher! Alli tenho tudo, o capital, o juro, e a usura da felicidade que desbaratei. Alli me esperou minha mãe dous annos, e eu não voltei. Ainda assim, a virtuosa orou sempre. O jazigo estava fechado, o leito da santa vazio; mas o céo fôra o mais alto ponto onde ella voára para vêr de lá a minha perdição. Alli voltei salvo pelo amor. Achei ainda as flôres que eram d'ella; das primeiras adornei os cabellos de minha mulher; das que me deu a primavera seguinte engrinaldei o berço do meu primeiro filho. Parece que em cada reflorecencia, vem minha mãe coroar o novo anjo, que minha mulher lhe offerece como a intercessora com o Altissimo. Oh meu amigo! de envolta com a felicidade, a religião! Sabes tu o que é ter um Deus, que nos escuta, que nos reprova, que nos louva, que nos povôa o espaço onde a alma insaciavel do homem encontra um vazio horrendo, uma respiração afflictiva!...............
Aproximamo-nos do formoso grupo. Apeei; fui cortejar a mulher do amor de salvação, e disse-lhe commovido, e creio mesmo que lagrimoso:
—Ao cabo de dez annos de felicidade não interrompida, minha senhora, chegou um homem a casa de v. exc.ª com o funesto contagio da sua má estrella! Fui eu quem primeiro ousou usurpar-lhe a convivencia do seu esposo por uma noite. Deus sabe se a saudosa prima de [252] Affonso de Teive cerrou olhos n'esta infinda noite de Dezembro!...
—Tambem eu não!—atalhou Affonso sorrindo—tambem eu não!
—Não importa, minha senhora—tornei eu—Seu marido velava; mas que saborosa vigilia! Contou-me suas desgraças para que eu podesse cabalmente ajuizar da felicidade perenne, que v. exc.ª, depositária dos infinitos bens do Senhor, lhe preparou com santas lagrimas, e lhe está dando com santas alegrias. Eu cuidava que o contentamento de uma hora, n'este mundo, era uma usurpação feita ao céo!... Agora sei que ha sobre a terra um homem feliz, feliz ha dez annos, feliz para uma longa existencia. Este gozo, que nem contado pelos evangelistas eu acreditaria, sei agora que existe, abaixo do reino dos justos, entre os homens, no mundo de 1863, no AMOR DE SALVAÇÃO!
Mafalda abaixou levemente a cabeça com gracioso acanhamento, e disse:
—Não sou eu sosinha a felicitar meu primo: são as orações de nossas mães, e o amor angelico dos nossos filhinhos.
FIM