The Project Gutenberg eBook of A agua profunda This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A agua profunda Author: Paul Bourget Release date: October 2, 2009 [eBook #30161] Language: Portuguese *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A AGUA PROFUNDA *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Notas de transcrição: Foram corrigidos diversos erros tipográficos, que por serem de pouca importância, e não afectarem o significado do texto, não merecem especial referencia. No livro impresso a utilização de aspas (« ») foi feita de forma muito irregular. Recorremos à versão original da obra em francês de forma a resolver todas as situações que nos pareceram duvidosas. Isto resulta numa ligeira diferença em relação ao livro impresso em português (Lisboa, 1904), mas mais fiel ao que o autor pretendia. COLLECÇÃO HORAS DE LEITURA PAULO BOURGET A AGUA PROFUNDA LIVRARIA EDITORA GUIMARÃES & C.ª 108--Rua de S. Roque--108 LISBOA 1904 I Ha certos proverbios que, passando d'um paiz para outro, tomam uma physionomia tão differente, que bastaria uma tal variação para provar que os caracteres nacionais se conservam na realidade radicalmente distinctos e irreductiveis. O francez, por exemplo, diz, a respeito d'um homem feliz «que nasceu impellicado», e o inglez «que nasceu com uma colher de prata na bocca». Dois rifões, duas raças, dois destinos: d'um lado um povo voluvel, espirituoso, elegante, amando a galanteria, apaixonado pelo prazer e naturalmente divertido;--do outro lado uma nação avida, dominada pelo positivo e que até no luxo quer o conforto. São aquelles dois traços caracteristicos que resaltam d'um primeiro proverbio; vejamos outro. D'alguem muito circumspecto diz o francez: «não ha peor agua do que a agua quieta», o italiano: «as aguas tranquillas destroem as pontes» e o inglez: «as aguas tranquillas correm profundas». E os trez teem razão. O francez é tão expansivo e sociavel, que uma alegria que não communique não é completa; um pesar que guarde no intimo do seu coração é um dobrado pesar. Julga os outros por si, e, na presença d'alguem menos expansivo, está desconfiado. O italiano, por natureza reflectido e previsto, possue a desconfiança no mais elevado grau. Vê na reserva uma ameaça, no silencio uma cilada, é que Machiavel era de Florença, do paiz aonde a astucia é sempre acompanhada da gravidade, e o machiavellismo fez carreira. Orgulhar-se-ha com a bella allegoria que pinte uma arca de Noé, resplandecente de luz, sobre o glauco Arno ou o Tibre flávo. Nos inglezes o espirito realista é acompanhado da mais tacita e meditativa melancolia. Observae uma carta do seu paiz e vereis como Manchester está nas proximidades dos lagos e do condado de Wordsworth. A cada momento empregam um aphorismo de voracidade rapace. Teem comtudo uma graça rude que não perdem ainda mesmo nos momentos mais criticos. E a verdade é que o Anglo-Saxão se nos apresenta na sua historia e na sua litteratura: duramente brutal, quando é brutal e excessivamente sonhador, quando é sonhador. Estas duas pequenas phrases encerram uma grande verdade. É, porém, justo que se diga que os casos de psychologia ethnica teem innumeras excepções. A prova está na recordação d'esse poetico proverbio inglez sobre as «aguas profundas» que o meu espirito me sugeriu--ó ironia--no proprio momento em que pretendo contar uma aventura parisiense, succedida no outomno passado, e cuja heroina não tem, com certeza, nas veias a minima gotta de sangue britanico. E, comtudo, nenhuma imagem me parece resumir melhor a impressão que em mim produziu esse pequeno drama sentimental, quando me foi referido, em intima confidencia, cujo mysterio respeitarei. Tendo-se desenrolado essa tragedia intima, sem escandalo, entre um pequeno numero de personagens, bastará uma simples troca de nomes para conservar um incognito cuja necessidade o leitor reconhecerá certamente, desde que admitta, apezar da singularidade de certos detalhes, que tudo n'ella é verdadeiro. Terminada a narração, comprehenderá a leitora, se se interessou pelos segredos da delicada mulher cuja historia se faz na _Agua Profunda_, que irresistivel coincidencia compelliu o historiador d'este episodio romanesco a inscrever na sua primeira pagina a synthese do velho proverbio? Encontrará tambem, casualmente, uma especie de symbolo no contraste frisante entre o cunho parisiense dos logares e do meio onde se desenrolaram os incidentes d'esta chronica de costumes, e a visão do que se passa além da Mancha, avocada ao espirito pelo aphorismo inglez: a corrente obscura e silenciosa d'um rio da Irlanda por entre os seus prados, a immobilidade vaporosa d'um lago da Escocia na solidão das suas montanhas vestidas de urze? Ainda mesmo que ella seja no fundo d'uma sensibilidade affectuosa pouco communicativa e a escrava d'esses deveres de severidade, d'esses deleterios prazeres a que obriga a infelicidade sempre cubiçada d'uma situação em evidencia, aquelle contraste não é o de toda a sua existencia? Preferia, talvez, em volta das suas emoções, das suas esperanças, dos seus pezares, um quadro que lhe recordasse a sua propria vida: a prova d'um vestido em casa d'uma modista celebre; visitas em Monceau, os Campos-Elysios, o arrabalde de S. Germano; a volta para casa; a mudança de vestuario; jantar fóra ou receber; e acabar o dia em qualquer reunião com pretensões a elegante, ou no camarote de algum theatro em que se exhibam peças para fazer rir. É forçoso, porém, que estas luctas quasi mortiferas do coração e do meio tenham uma especie de attractivo doentio, disfarçado, mas bem intenso, e que correspondam, nas sensibilidades mais apuradas, a uma inexplicavel necessidade de emoções violentas. Só assim se explica que Paris e a sua sociedade--ou melhor dizendo--a mescla, phantasticamente formada, que constitue o seu grande mundo--Paris, então, e as suas sociedades (é necessario o plural) continuem a attrahir, a prender um sem numero de pessoas que, pela sua fortuna, são inteiramente livres e se encontram em condições de se libertar d'um tal meio. Amaldiçoam, quotidianamente, o captiveiro e a sua atmosphera moral e não se vão embora, como se não se podesse viver n'outra parte. A anecdota aqui referida, provará effectivamente como esta cidade, que realisa a cada momento a celebre phrase do Imperador sobre o _impossivel_ encerra de tudo na sua decoração estravagante, até grandes almas... I Seguindo uma pista Disse já que este episodio datava do outomno passado; mas teria sido muito mais correcto, asseverando que foi n'essa epocha que se deu o seu epilogo. Porque a parte dramatica da aventura não foi, como acontece quasi sempre, mais do que a explosão d'uma mina ha muito tempo preparada pelos acontecimentos. É possivel tambem que, apezar de tudo, se não fosse um simples acaso, e bem inesperado, nunca ella tivesse rebentado, como acontece ainda maior numero de vezes. É assim a vida humana: o inevitavel e o imprevisto acham-se n'ella tão intimamente ligados e confundidos, que ao observarmos attentamente essa sequencia de causas e de effeitos, sente-se uma inexprimivel impressão de logica e de incoherencia, na qual só a crença n'uma suprema razão de todas as coisas nos permitte presentir uma acção providencial. Mas é este um ponto de vista generico e que a nossa philosophia concebe depois de demorada observação; tal philosophia porem é impotente, quando procura interpretar da mesma maneira acontecimentos d'uma radical insignificancia: o que, por exemplo, precipita a tragedia que vou contar, a simples visita d'uma senhora a um armazem de novidades. A formosa dama de que se trata e que chamarei, conservando-lhe o titulo--este detalhe é de pequena importancia--a baroneza de Node, estava muito burguezmente apreçando tapeçarias. Ouvira dizer que o grande armazem em questão havia recebido um variado sortimento de tapetes do Oriente. Tinha, por isso, ido ali, no principio d'uma tarde de novembro, com a esperança de que áquella hora, por ser a de menor concorrencia, melhor poderia realisar as suas compras. Effectuadas estas, dirigia-se para a sahida, com passo lento, deleitando o olhar, mesmo contra sua vontade, com a observação d'esses milhares de objectos de tão differentes proveniencias e para tão diversos usos, amontoados no balcão, pendurados nas paredes, empilhados nas estantes e dispostos nas vitrines. O quadro é sufficientemente conhecido para que mereça a pena reproduzil-o. A joven baroneza tinha entrado no armazem ás duas horas, não eram ainda tres e já essa multidão, que desejava evitar, começava a envolvel-a por todos os lados. O vasto compartimento regorgitava com esse formidavel affluxo feminino que parece dar razão aos prophetas da democracia. O sonho da igualdade universal não se acha realisado completamente no dedalo d'um semilhante imporio? Não se encontram ali confundidas todas as classes n'uma mistura estravagante? A modesta esposa do funccionario com mil e oitocentos francos de vencimento acotovela a consorte do judeu financeiro, cujos lucros no jogo de fundos se elevam, em 31 de dezembro, a meio milhão. A provinciana, para a qual a viagem a Paris constitue um acontecimento, passa rente á estrangeira que vae de São Petersburgo ao Cairo e de Cannes a New-York com a mesma facilidade com que ella veio do seu hotel da praça Vendôme. A mundana, cujo automovel de grandes dimensões a aguarda á porta, crusa-se com o estudante do bairro Latino que caminha a pé ao longo das ruas, para não desfalcar o modesto orçamento do seu viver de bohemio, com a quantia de sessenta centimos que pagaria n'um _tramway_. O colossal bazar não constitue, pois, uma tentação para todos os desejos, uma occasião propicia para occorrer a todas as faltas? Mesmo uma grande senhora, que nos ultimos cincoenta annos só tenha tido fornecedores especiaes, recorre por fim a esse banal e commodo mercado, e transige em ir passear até lá, como fez a baroneza de Node, a despeito de aquella promiscuidade forçada, com aquelle seu todo aristocratico, patricio, que se não imita e que se não define. Sabe-se apenas quem o possue. É uma maneira particular de olhar, de andar, um porte caracteristico, onde ha a timidez e a afouteza, a altivez e a naturalidade, um pouco de orgulho e de simplicidade, um não sei quê, emfim, em que entram todos esses predicados em proporções convenientes. Mas todas as mulheres os surprehendem, e todos os homens. Por certo que a baroneza de Node não denunciava, ao analysar a sua figura, nada de particularmente notavel, parecendo até, á primeira vista, que deveria passar desapercebida, por toda a parte; era uma mulher mais baixa do que alta, muito gentil, mas d'uma gentileza um tanto fransina, um pouco delicada, de olhos pretos, d'uma notavel ternura, cabellos castanhos, iguaes a todos os cabellos castanhos, e d'um talhe fino, esbelto, semilhante a todos os talhes finos. As suas toilettes não eram nem muito severas, nem demasiado vistosas. N'esse dia, usava um vestido de passeio, de veludo castanho com applicações côr de hervilha clara, um chapeu adequado, sem o menor caracter de excentricidade. E, comtudo, os cavalheiros e as senhoras que se cruzavam com ella seguiam-na com um olhar mais persistente e curioso e os empregados da casa caminhavam ao seu encontro com uma sollicitude mais caracterisada. Pormenores interessantes: as orelhas garridamente guarnecidas, os dentes muito brancos e muito iguaes, a finura das mãos e dos pés corrigiriam, sem duvida, o que o seu aspecto geral tivesse de indifferente, se não fosse o tal «não sei quê». Mas ella tinha-o, e não sei tambem porque, sabia que o tinha. Um muito leve, um imperceptivel traço de impertinencia, pairava, mais accentuado quando se não desejava tornar notada, nas suas narinas finas e nos seus labios sensuaes. Era o unico senão d'aquella physionomia. Quando nada despertava a sua attenção, como no caso presente, emanava de todo o seu ser um certo desprazimento que tanto poderia revelar a apathia d'uma mundana exhausta de frivolidades ou uma extrema preoccupação de si propria. Este ar de enfado estava de tal modo impresso no seu rosto delicado que modificava logo a impressão que o seu porte aristocratico havia suscitado. --«É uma mulher vulgar», diziam de si para si os visitantes que se sentiam attrahidos para outras clientes de aspecto mais jovial. «Como é formosa!» pensavam os rapazes, que se encontram sempre em abundancia n'estes pontos de concorrencia feminina, promptos a seguir indistinctamente uma mulher bonita sem se lhe approximarem, para depois pensarem n'ella não menos indistinctamente. E, portanto, se um d'elles seguisse attentamente a gentil baroneza, teria visto a sua physionomia d'uma friesa, que parecia dever conservar-se sempre impassivel, contrahir-se numa expressão de aguda curiosidade, n'um determinado momento da visita ao grande armazem; um brilho intenso illuminar o seu olhar quasi melancolico, e parar de repente. Era forçoso que no meio d'essa multidão agitada, que se movia e expunha n'uma atmosphera cada vez mais suffocante, tivesse observado alguma coisa ou alguem que despertasse n'ella emoções bem vivas e profundas, porque uma tão instantanea metamorphose, que para o observador estranho seria imperceptivel, a um simples golpe de vista. Um perfil observado e reconhecido, entre tantos outros, ao fundo d'uma escada que se preparava para descer, era a causa da sua emoção; por isso os seus pequeninos pés se movem com grande rapidez para a transpor o mais breve possivel, olhando sempre por sobre as cabeças dos transeuntes, para não deixar de ver aquella cuja presença a havia impressionado tão vivamente. Não tinha o facto em si apparentemente nada de anormal; aquella pessoa era nada mais e nada menos do que uma das suas primas mais intimas, quasi uma irmã, a jovem marqueza de Chalinhy. Mas a baroneza de Node tinha motivos muito especiaes (o decorrer da narração o demonstrará) para ligar uma extrema importancia aos mais insignificantes actos e gestos d'essa supposta amiga: --«Valentina aqui?» dizia ella, deslisando rapidamente por entre a multidão cada vez mais compacta dos compradores. Era guiada pelas duas grandes plumas pretas que guarneciam o chapeu da senhora de Chalinhy «depois de se ter recusado a sahir comigo a pretexto de ter que fazer visitas? Era então uma desculpa por não querer andar comigo... Reconheço bem que está mudada. Tem suspeitas. Já o disse a Norberto depois da estada em Deauville... Esta recusa em sahirmos juntas e depois que lá esteve... Quando se quer saber a verdade sobre as coisas importantes é necessario lançar mão dos mais insignificantes pretextos... Pelas suas maneiras, quando nos encontrarmos, verei o que ha em tudo isto...». Este monologo envolvia um d'esses terriveis segredos que a vida elegante muitas vezes occulta com as suas formulas banaes. Ao termina-lo, as suas faces, habitualmente descóradas, estavam rosadas; os seus movimentos tinham tomado uma tal celeridade, que, apesar dos obstaculos, já quasi se encontrava junto d'aquella que perseguia. Alcançal-a-hia em alguns segundos apenas, quando, repentinamente, começou a demorar o passo, como se uma nova idéa a determinasse a augmentar a distancia que a separava da senhora de Chalinhy. É que, envolvendo sua prima n'um olhar observador, estudando-a, sem que ella a visse, a baroneza de Node, acabava effectivamente de sentir uma nova sensação, a principio confusa e inconsciente, depois definida e precisa, a ponto de se tornar o inicio d'uma curiosidade tambem nova, mais extraordinaria e mais viva ainda: parecia-lhe que a outra atravessava a multidão como alguem que procure confundir-se n'ella, a fim de fazer perder a pista a quem pretenda seguil-a. A marqueza levava um vestido escuro, que não attrahia as attenções. O véo de málhas apertadas que escondia o seu rosto, parecia ter sido escolhido propositadamente para tal fim. Caminhava ligeira, como uma pessôa que tem pressa, e sem olhar para nenhum d'esses mil objectos differentes que se achavam expostos por toda a parte em torno de si. --«Aonde irá ella?...» Ainda esta pergunta não tinha penetrado no pensamento de Joanna, e já ella lhe respondia mentalmente da fórma porque o fariam noventa e nove por cento das parisienses. --«Aonde póde ir uma mulher bonita, de trinta annos, e que se occulta? «Será possivel que Valentina, a gráve e prudente Valentina, vá para uma entrevista amorósa ou regresse d'ella?» Tudo no seu caracter protestava contra semilhante hypothese. A baroneza de Node sabia-o melhor do que ninguem, tendo sido educada com ella, e encontrando-se, por circumstancias que lhe não eram muito lisongeiras, ao corrente dos segredos mais intimos da vida da sua prima. Mas quando uma mulher não é honesta--e Joanna não o era--não acredita nunca, sem reserva, na irreprehensivel virtude d'uma outra. Por isso é que o mais leve indicio a punha no rasto do que a humanidade em linguagem de giria, chama um «embrulho» e vel-a hemos, apezar de dizer respeito á sua melhor amiga, desenvolver um talento de investigação tão completo como o d'um velho magistrado. Eram uns nadas que tinham facil explicação: a recusa em sahirem juntas, com o pretexto de ter que fazer visitas, e depois esta entrada no grande armazem de novidades! Bastava que a marqueza de Chalinhy não tivesse encontrado as pessôas que ia visitar, e que depois, passando pela rua de Rivoli, deante da fachada principal do grande armazem se tivesse lembrado, á ultima hora, de fazer qualquer compra. Era ainda uma insignificancia o seu fato escuro, o seu veu expesso e a sua passagem quasi furtiva atravez da multidão. E portanto, esta tão vaga, tão gratuita hypothese d'um mysterio culpavel, contrabalançava já, no espirito de Joanna, a longa experiencia que tinha a respeito da natureza de sua prima, por isso que a seguia de longe e sem se approximar d'ella. Via-a caminhando sempre com aquelle passo rapido de quem vae direito a um fim, sem uma distracção, sem uma paragem, seguindo de galeria em galeria, e alcançar por fim uma porta affastada que dá para o angulo da rua Saint Honoré em frente da rua Croise des Petits Champs. No momento em que a senhora de Chalinhy empurrava a enorme meia porta envidraçada, foi detida por um grupo de pessoas que pretendiam entrar. Teve que esperar um minuto, e voltou-se. A espionadora, que se achava só a alguns metros de distancia, para não ser surprehendida em flagrante delicto da sua ignobil espionagem, não teve senão o tempo sufficiente para se voltar tambem e fingir que analysava uns objectos que se achavam ali proximo. Valentina de Chalinhy tel-a-hia reconhecido, ou tendo-a visto não se julgaria reconhecida por sua prima? Quando se voltou de novo, Joanna não viu mais as duas plumas pretas, que a orientavam n'esta caminhada atravez da multidão. A crescente suspeita continuava a aguilhoal-a tão fortemente, que correu para a porta afim de chegar o mais depressa possivel ao vestibulo, do qual se devisavam tres ruas ao mesmo tempo, e descobriu aquella que espionava. A senhora de Chalinhy estava fallando com o cocheiro d'uma carruagem, que evidentemente ali a aguardava, e que retinha o seu cavallo impaciente no meio da rua Saint Honoré, ouvindo attentamente a direcção que lhe dava a sua cliente, com a mão collocada no portinhola aberta. Fez um gesto que designava haver comprehendido. As plumas negras perderam-se na carruagem, a pequenina mão fechou a porta e o cavallo partiu em direcção ao Louvre, tão rapidamente que a baroneza de Node não teve tempo de procurar outra carruagem que lhe permittisse seguir a pista em que o mais inexperado dos acasos a tinha lançado. Chamou um cocheiro que passava, depois um segundo. Ao seu appello responderam o primeiro com um insolente silencio e o ultimo com um ligeiro movimento de hombros. Ambos tinham já freguezes. --«Como sou tola!...» disse comsigo a baronezazinha. «Não a tornarei a apanhar, com certeza... «O que é preciso saber é se ella sahiu de casa na sua equipagem...» E, obedecendo machinalmente ao instincto de policia secreto, despertado n'ella por este encontro, seguia já pelo passeio em direcção á praça do Palais-Royal. Preparava-se para passar em revista as equipagens que ali esperavam collocadas na rectaguarda umas das outras. Não teve necessidade d'uma demorada observação para reconhecer, entre os criados de libré que estacionavam deante da grande porta, João, o lacaio da marqueza. Um pouco mais distante o cocheiro José, assentando na almofada, a parelha de cavallos baios atrelados a um _coupé_ com as armas de Chalinhy. Valentina tinha executado a classica manobra: havia descido da carruagem official d'aquelle lado, a fim de justificar a demora em outra parte, confirmando assim o dictado. «Antes de chegar aonde não quer ser vista, a mulher que sae, vae sempre a um logar em que quer que a vejam». E aonde vae uma mulher que não quer ser vista? II Historia rapida d'um odio antigo Para comprehender os sentimentos que uma tal descoberta produziu em Joanna de Node, é necessario precisar uma situação de facto já indicada, e um estado d'alma mais essencial ainda. Certos actos são por si mesmo tão graves que parecem tocar os limites da nossa culpabilidade. Podem, comtudo, ser ainda aggravados com a maldade dos sentimentos que nos compelliram a pratical-os. Advinha-se logo ás primeiras phrases d'esta narrativa: que, á data em que a historia começa, existia entre a baroneza de Node e Norberto de Chalinhy, marido de Valentina, uma ligação muito intima. Esta intimidade durava já havia mais de um anno. Se attendermos a que não eram só os laços de parentesco que uniam as duas primas co-irmãs mas que, além d'isso, tinham sempre sido inseparaveis haviam crescido e brincado juntas, entrado na sociedade juntas, e que uma tal intimidade fôra sempre acompanhada, e continuava ainda a sel-o, d'aquella afabilidade de palavras e maneiras que constituem a graça acariciadora das amisades femininas--ver-se-ha como uma tal perfidia ultrapassa muito os limites d'esses coquetes delictos mundanos que quotidianamente se commettem, com o nome, n'outro tempo tão grave, e hoje tão insignificante, de adulterio. O verdadeiro crime d'esta aventura, não estava propriamente na falta em si, n'uma traição que a fraqueza d'um coração perturbado, um casamento infeliz--Joanna estava separada de seu marido havia tres annos,--um amor partilhado, podiam explicar. O verdadeiro motivo do delicto era, porém, peor que o proprio delicto. Consistia principalmente na mais mesquinha, na mais incomprehensivel, na mais violenta das paixões de que as naturezas seccas e desprendidas, como a sua, sejam capazes: A baroneza de Node não amava Chalinhy, odiava Valentina, e desde a sua longinqua infancia, por motivos tão impenetraveis, tão intimamente nascidos no recondito da sua alma que ella propria o ignorava a principio. E ainda hoje mesmo não estava muito consciente d'isso. Não se reconhece facilmente que se _inveja_ alguem--é aquelle o termo que melhor exprime este enigma moral--porque equivale a reconhecer tacitamente uma certa inferioridade em relação á pessoa que se inveja, e a existencia em nós proprios d'um sentimento aviltante. Mas, por mais que dissimulemos os nossos baixos instinctos, a sua vilania não é menos intensa sob as apparencias hypocritas de que os revistamos aos nossos proprios olhos; e era bem a intoleravel revolta de todo o seu ser deante da felicidade de outro ser, que Joanna tinha começado a sentir por Valentina, ha muito, quando eram apenas duas creanças que corriam pelas alleas do parque, de tranças cahidas, e que continuava a sentir havia trinta annos. No destino de sua prima, só Joanna via bom exito, e no seu, o infortunio. Pensando e sentindo assim, laborava n'um grande erro. É que a inveja engana-se sempre que aprecia a alegria dos outros, e é essa a sua primeira punição. Exaggera-a e soffre muito com isso. Engana-se tambem muitas vezes quando, em seguida, trata de preparar a infelicidade que deve constituir a sua vingança. Nove vezes em dez, os seus esforços, falseados pelo odio, produzem precisamente o effeito contrario. Como muitos dos nossos maus sentimentos, que nos permittem proceder mal achando sempre desculpa para isso, a inveja de Joanna por sua prima tinha-se insinuado no seu coração sob a apparencia de delicadas susceptibilidades. Os paes das duas primas eram irmãos; chamavam-se, conforme o costume francez que destruiu a nobreza multiplicando os titulos nobiliarchicos--quando pelo contrario toda a casa nobre deveria ser vinculada n'um só dos seus membros, seu representante--um o conde e o outro o visconde de Nerestaing. Valentina era filha do mais velho. Este é que tinha herdado o magnifico solar de familia que lhe dava o nome e que partilha, com os de Rambures e de La Tour Euguerrand, a honra de ser na Picardia a mais bem conservada das fortalezas construidas contra a invasão ingleza. Nerestaing data de 1338, da epocha do armsticio que o Papa Bento XII impoz ao rei Eduardo III. Pelo facto de nas partilhas ter pertencido esta maravilha de architectura ao representante da familia, tinha o mais novo sido desterrado para uma quinta proxima, denominada «Os Salgueiros» e que pertencia por acaso aos Nerestaing, devido á liberalidade de um parente. Joanna tinha lá nascido, e as suas mais longinquas recordações d'infancia mostravam-lhe o modesto palacete--um antigo pavilhão de caça--onde cresceu, e, por contraste, a senhorial vivenda em que habitava sua prima. Estas impressões retrospectivas accentuavam-se. Via-se ainda creança, indo procurar Valentina, á qual tinha fallecido a mãe, para a convidar a passar algumas semanas em sua companhia. Seu tio ia viajar, para se distrahir do desgosto que o torturava. Perdera inexperadamente a esposa, em pleno vigor da vida e cheia de saude. Foi então, durante a permanencia da orfã junto d'ella, que principiou o soffrimento de Joanna. Teve sempre aquelles pequenos defeitos que são como que reacções involuntarias do nosso systema nervoso. Era impulsiva e facilmente irritavel, desigual e caprichosa, guardando sempre para o dia seguinte o trabalho da vespera, desarranjada e estragada, emfim uma d'essas machinas cerebraes mal equilibradas e em que os medicos modernos veem logo um exemplar frisante de hysterismo. Sua mãe, que não conhecia a commodidade das desculpas physiologicas, censurava-a sempre pelas suas propensões maldosas, muito principalmente desde que Valentina vivia com ella, em virtude da comparação entre as duas. A que mais tarde se devia tornar a gentil castellã do glorioso Nerestaing, era, com effeito, uma creança muito equilibrada, muito prudente, muito circumspecta, uma pequena senhora, emfim, e a tia, seduzida pelos seus encantos, estimava-a mais do que á sua propria filha, ao mesmo tempo que, por uma piedade natural, mas não menos imprudente, prodigalisava á pequenita, que não tinha mãe, os mais indulgentes afagos. O secreto e irresistivel instincto de antipathia quasi animal que tinha tornado insupportaveis a Joanna taes elogios e taes ternuras, justifica-se talvez, para uma creança de treze annos, pelo ciume da affeição materna. Esta aversão tinha-se tornado tão intensa, que um dia que entrou só no quarto de Valentina, encheu de tinta os cadernos que estavam sobre a mesa, despedaçou os objectos que encontrou no armario, deitou ao chão e pisou aos pés o retrato de sua prima, loucamente, furiosamente. Passados dezesete annos, recordava-se ainda do temor, do susto que tinha tido quando a senhora de Nerestaing, que a procurára por toda a casa, a foi encontrar n'aquelle abominavel acto de vingança. E foi sua propria prima quem pediu e alcançou perdão para ella. Um tal delicto tinha, pelo menos, dado como resultado a partida de Valentina, quasi em seguida, para casa d'um outro parente. A mãe comprehendera tudo. Por uma anomalia apparentemente estranha, mas que se torna bem logica perante a reflexão, o ciume que tinha por Valentina, foi a causa de que, durante os annos da juventude, Joanna se ligasse a elle mais intimamente. Invejar alguma pessoa é pensar n'ella. É sentir por ella. É, por uma d'estas dualidades desharmonicas, tão familiares á nossa natureza emotiva, sentir ao mesmo tempo attracção e repulsão pela sua presença. A inveja não é, a principio, nem é nunca o odio puro. É mais e menos, por isso que com ella ha sempre de mistura uma admiração dolorosa, involuntaria, revoltada, mas uma admiração em todo o caso, por consequencia, uma especie de amor. Assim se explicam na existencia dos artistas, por exemplo, aonde esta paixão complicada tem como que o seu dominio proprio, as alternativas de exagerada admiração e de descredito entre dois rivaes, tão sinceras quanto são contradictorias. Dos treze aos dezoito annos, esteve Joanna persuadida de que não tinha melhor amiga do que Valentina, e era verdade, no sentido de que nenhuma das suas companheiras d'aquella epocha lhe causava impressões tão fortes. Ou fosse porque a fascinassem as bellas qualidades de sua prima, ou porque se revoltasse contra ellas, inteiramente, com uma amargura irritada, tinha-a sempre no pensamento. Quando entraram juntas na sociedade, modificou-se por algum tempo, a sua sensibilidade mal equilibrada, por isso que Joanna teve, então, pela primeira vez, um successo superior ao de Valentina. Esta, que se salientára sempre, emquanto as duas viveram n'um meio restricto, pela verdadeira seriedade, pela delicadeza simples, pela harmonia e suavidade de todo o seu ser, passou logo ao segundo plano, quando começaram a figurar n'um outro theatro. Havia em Valentina uma predilecção especial pela modestia e pelo retrahimento, e em Joanna um desejo de se divertir e de brilhar que faziam d'uma a mais desconhecida das comparsas, n'uma primeira visita, jantar ou baile, e attrahiam em volta da outra todas as attenções tão superficiaes, mas tão estonteantes, de que as «coquetes» ingenuas são muitas vezes victimas, n'essa edade da transição em que nas mulheres desponta o desejo de agradarem. O caso é que Joanna se matrimoniou logo no primeiro anno do seu commum debute--e primeiro do que sua prima! A ancia d'este triumpho--o mais lisongeiro para as mulheres--não foi extranha á facilidade com que deu o «sim» ao pedido do barão de Node. É preciso acrescentar que este casamento satisfazia ao completo edial que paes, desejosos d'um bom partido para suas filhas, poderiam esperar no anno da graça de 1890. O noivo era uma figura esbelta, possuia um bello nome, uma boa furtuna e o prestigio que exercem, apezar de tudo, mesmo sobre pessoas de linhagem distincta que viveram durante muito tempo na provincia, «os parisienses». Julio de Node era frequentador das corridas; pertencia a um dos melhores clubs e salientava-se entre essa «coterie» que faz a moda no verão, em Deauville; nas caçadas, nas margens do Sena e Oise, no outomno; em Pau e na Riviera, no inverno e na primavera em Paris, n'esse Paris que vae da praça Vandome a Longchamps. Joanna via-se, antecipadamente, gosando uma vida de continua agitação n'esse turbilhão que tanto seduz muitas mulheres. O seu orgulho por causa d'esse casamento era tão profundo, tão completo, que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes estão, porém, sempre tão proximas de reabrir! Nunca, antes, nem depois, estimou tão intensamente sua prima. Chegára ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida. Faz-se só justiça reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as amarguras das suas desillusões, que se este casamento tinha, a despeito das apparencias seductoras, motivos para não ser muito venturoso, tinha tambem outros para não ser completamente infeliz. Joanna teve um só filho que nasceu em condições bem tristes. Foi necessario sacrificál-o para salvar a mãe. A maternidade foi-lhe, desde esse momento, defeza. Seu marido, que procurava como tantos outros augmentar a furtuna, transaccionando constantemente com os cento e vinte mil francos que constituiam o liquido dos seus haveres, encontrou-se compromettido, pouco a pouco, por muitas especulações infelizes. Jogou para reparar as perdas e perdeu mais. Pediu a assignatura de sua mulher, que lh'a deu a principio, negando-lh'a depois, por conselho dos paes, para não prejudicar a sua independencia. As questões de dinheiro transformaram-se, para este casal sem filhos ao qual uma continua dissipação perturba a energia moral, em discussões a principio violentas e que depois degeneraram em disputas. De scena em scena, a separação tornou-se inevitavel. Deu-se antes de findar o setimo anno d'este bello enlace, tão «auspicioso» como diziam as noticias de certos jornaes, quando se celebrou. Durava já havia quatro annos, e Joanna esperava sem cessar que seu marido pedisse uma desligação mais completa dos laços conjugaes, para ficar inteiramente livre e reparar, por uma nova união, a sua fortuna reduzida a menos d'uma terça parte. Esperava isto, e, apezar das ideias religiosas que professava e das da sociedade em que vivia a constituissem na obrigação de resistir a um tal projecto, desejava-o ardentemente. O artigo 310 do Codigo Civil que permitte a um dos dois conjuges fazer transformar uma simples acção de separação de pessoas em divorcio, havia um certo tempo constituia o objecto unico das suas meditações, visto que um tal artigo lhe abria as portas d'um segundo casamento, muito embora se achasse em contradicção com a sua attitude, contrariando a familia, e a sociedade o levasse a mal. Tudo isto nada valia para ella em face da precaria existencia que levava, n'um segundo andar da rua Barbet-de-Jouy, aonde se tinha refugiado, apenas com alguns mil francos de renda,--tanto quanto gastava em toilettes no principio da sua vida de casada--e a dois passos do sumptuoso palacio em que habitava a prima, transformada em marqueza de Chalinhy! A cada desastre na vida de Joanna correspondia uma mudança feliz na de Valentina, o que para aquella era como que agudo punhal revolvido na ferida e cuja ponta resvalasse até o mais intimo da sua alma e rasgasse a sua propria carne. Na mesma occasião em que dava á luz, no meio de torturas, o filho para sempre perdido, casava Valentina com Chalinhy, vinha, em seguida habitar um sumptuoso palacio na rua Varenne, digno de se comparar com o historico Nerestaing que lhe pertencia. Um anno depois dava á luz uma filha, e passado outro anno nascia um menino, que viviam, cresciam, e cujos encantos faziam a felicidade do casal. E, depois, umas após outras, inexperadas heranças deram á feliz mãe uma opulencia que ultrapassava muito as mais exigentes ambições que havia sonhado para seus filhos. Da mesma maneira que o barão de Node, Chalinhy frequentava as altas regiões do _sport_ e da moda, com a differença, porém, de ser tão bom administrador da sua fortuna, como aquelle era dissipador. Possuia um geito e feitio especial para defender os seus interesses, não muito vulgar nas existencias de luxo e prodigalidade. Porque se nem todas as pessoas abastadas se arruinam, para conservar uma fortuna é quasi necessaria tanta habilidade como para a adquirir. Tinha, pois, um dom caracteristico de bem calcular, qualidade esta que é, em geral, independente da nossa intelligencia e dos nossos habitos. A prova está em que esse invejavel predicado, de conservar a riqueza adquirida, se encontra tanto na sociedade mais ignara como na mais illustrada, ou na mais correcta burguezia. Chalinhy não apostava a favor d'um cavallo que não ganhasse; não dava ao seu agente na bolsa ordem para realisar uma compra que os valores negociados não tivessem uma alta imediata, e comtudo era mediocre cavalleiro e não menos mediocre bolsista. E se percebia pouco de questões d'arte, raras vezes se enganava na compra de qualquer objecto artistico. E assim em tudo o mais. N'uma palavra, á medida que o viver dos Node se tornava desagradavel, o dos Chalinhy era cada vez mais intimo e affectivo, espandindo-se e revelando-se o seu bem estar pelo menos n'estas manifestações exteriores que fazem dizer ao publico: «que familia tão feliz.» Como não havia, pois, de reapparecer a antiga inveja cada vez mais forte, mais intensa, mais arreigada, no coração da prima, separada do marido, arruinada, vagamente desacreditada ja; como não havia ella de repetir sempre que passava, em carruagem alugada ao mez, defronte do perystilo do principesco palacio da rua Varenne o «porque ella e não eu?» murmurado, quando era ainda creança, á vista das quatro soberbas torres ameadas do Castello de Nerestaing. Perigosas palavras, mas que ficariam todavia ineficazes como tantas outras exclamações de ciume e inveja, soltadas a cada momento n'esse Paris de luxo e ostentação, por tantas vaidades humilhadas, ás quaes serve de atroz supplicio a visão da opulencia exhibida pelo proximo. Quiz a infelicidade que Valentina ou não advinhasse sequer a existencia de taes sentimentos, ou então que, se realmente os surprehendeu, pretendesse por uma excessiva generosidade dissipal-os á força de bondade. É a peor e mais perigosa falta que a invejada pode commetter para com a invejosa. Certos processos demasiadamente generosos, pela superioridade moral exasperam ainda mais a funesta paixão. No caso presente, havia ainda um outro perigo, que consistia, sobre tudo, em a parente mais rica associar em todas as suas diversões a menos afortunada. Almóços, jantares, excursões pela cidade, passeios ao campo, um camarote no theatro, tudo servia de pretexto a Valentina para poupar a Joanna a mais pequena despeza e para lhe proporcionor ainda os maiores prazeres. Não reflectia, porém, não pensava que tendo Joanna junto de si era tel-a tambem sempre proxima de seu marido. Não ha nada mais propicio ás seduções do que esta intimidade entre um homem novo e uma mulher galante, que um proximo parentesco torna naturalmente familiares, que se chamam pelo nome de batismo, sahem juntos sem que ninguem se admire d'isso, escrevem-se quando estão separados, habituam-se emfim, a todas as intimidades do amor, n'uma amizade bem depressa perturbada, se um d'elles se deixa invadir de pensamentos que não sejam d'uma lealdade e simplicidade absolutas. Depois de tantas humilhações, a tentação de tirar uma desforra, roubando a Valentina o coração de Chalinhy, tornou-se irresistivel para Joanna. Tal foi a primeira ambição d'um instincto de vingança feminina, já de si bem perfida. Estes desejos de exercer influencia nos sentimentos são sempre acompanhados d'uma garridice physica, que tem por fim excitar n'aquelle que vizam a emoção ingovernavel dos sentidos. Uma vez entrados n'este caminho a provocadora e o seu cumplice não podem mais responder por si. O obscuro e terrivel animalismo que impera, a despeito do nosso orgulho e das conveniencias sociaes, nas relações do homem e da mulher, exerce por fim o seu predominio fatal. Quer-se preocupar o marido d'uma rival, prendel-o, perturbal-o--e desperta-se, como aconteceu a Joanna de Node, a amante d'aquelle com quem sómente se pretendia brincar--e nada mais. Passava já d'um anno que esta ligação começara e em logar de encontrar n'este triumpho sobre sua prima escarnecida e enganada, uma pacificação para o seu odio, a culpada sentia cada vez maior exaspero. Por uma contradicção que mostrava absoluta confiança de Valentina, longe de amortecer o rancor de Joanna, ao contrario, apenas o irritava. O papel de tola, desempenhado pela marqueza de Chalinhy, era revestido de muita delicadeza e muita innocencia! Tão morigerada, tão completa, tinha uma tal maneira de não ver o mal, que não permittia motejos. Não dava pela sua existencia, pela simples razão de que nunca o havia praticado, nem mesmo pensado em o praticar. O mundo que começava a perceber a existencia da intimidade entre Chalinhy e Joanna, não acreditava, sem reservas, na ignorancia da marqueza. «Finge que não percebe, por causa dos filhos...» dizia-se. A baroneza de Node, porém, sabia perfeitamente como lhe tinha sido facil abusar d'uma creatura que se julgaria aviltada por suppôr a sua companheira d'infancia capaz d'uma infamia. Sabia tambem, ou antes advinhava, que esta situação ridicula, para qualquer outra, d'uma esposa enganada por uma das suas parentas mais proximas e quasi que á sua propria vista, não provocava no seu meio, nenhum epigramma contra Valentina. As más linguas misturavam, involuntariamente, á sua ironia sobre uma tal ingenuidade a expressão irresistivel d'uma estima forçada. As mais crueis diziam: «Chalinhy tem razão, a sua casta mulher é tão fastidiosa!...» ou então: «esta pobre Valentina é realmente muito bondosa.» O que lhe acontece é perfeitamente natural... ou ainda: «Esta Chalinhy é em verdade virtuosa, bonita, terna e perfeita; mas não sabe agradar ao marido! É o seu unico defeito; tanto peor para ella...» Estes ditos e outros iguaes, onde se aprecia a honra do mundo, em presença d'uma perfeição que desconcerta o seu pessimismo facil, marcam o extremo da malevolencia. Não impediam que a marqueza tivesse em volta de si uma atmosphera dum respeito cada vez mais deferente, e que a sua feliz rival não percebesse nos mais insignificantes indicios o começo de uma desconsideração. Uma mulher nova, que se sabe tem um amante, é logo tratada pelas outras mulheres com uma curiosidade, e pelos homens com uma attenção igualmente insultantes. Adivinha nos olhares d'ellas o interesse curioso e por vezes insolente, que as prende ás clandestinas aventuras amorosas; e no d'elles a secreta esperança d'um amor possivel. Contra esta condemnação da sua falta pela sociedade, a mulher que ama não tem senão um refugio, a felicidade que dá ao ente amado. Ai! Não foi necessario muito tempo para Joanna perceber que não fazia a felicidade de Chalinhy, e que o obstaculo a essa felicidade provinha da profunda affeição que este homem tinha, por quem? Pela propria esposa que trahia! Muitos maridos infieis são assim: a familia não consegue amortecer n'elles, de todo, os apetites de gôso e de variedade, que adquiriram em solteiros. A familiaridade quotidiana diminue e como que amortece o amor. Acontece mesmo, é até um caso muito frequente, que a existencia lado a lado, em logar de produzir a afinidade, a fuzão dos corações, a diminue, e que, apezar de se verem todos os dias, muitos esposos é como se não se vissem. Ainda mesmo que a mulher não seja tão pudica e reservada e o homem severo e susceptivel, como eram Valentina e Norberto de Chalinhy, estes retrahimentos intimos tomam por vezes uma tal intensidade, que dão a explicação facil de muitos erros. Mas se estas impressões de monotonia e de friesa collocam o que as experimenta, no lar conjugal, á mercê de todos os caprichos dos sentidos e até do coração, não deixam com tudo de se achar presos a esse lar, que abandonam, pelas suas affeições mais intimas. Engana sua mulher, e não deixa ella por isso de ser a que usa o seu nome, a mãe de seus filhos, a companheira que occupa no seu pensamento um logar unico. Mente-lhe mas respeita-a. Ultraja-a em segredo, e os seus devaneios não o impedem de pôr acima, muito acima das amantes d'um momento, a companheira das horas principaes e mais sérias da sua vida. Foram estes os sentimentos que Joanna de Node encontrou sempre no coração do amante, durante os doze mezes da sua ligação, os quaes, facilmente se adivinha, produziam a irritação constante, a tortura permanente da ferida que a inveja abrira na sua alma! Se acontecia fazer a menor observação critica que podesse attingir Valentina, ainda que muito de longe, uma visivel sombra de contrariedade passava logo pelo rosto de Chalinhy e o seu olhar tornava-se severo. Se fazia uma allusão á possibilidade de a intriga amorosa, em que se achavam envolvidos, ser descoberta pela esposa enganada, a angustia do olhar do seu cumplice mostrava bem evidentemente qual o grande apreço em que tinha a estima de sua mulher. Quando surprehendia um d'estes indicios da persistente affeição de Norberto por aquella que detestava, com um odio misturado de remorsos, redobrava de sedução junto d'elle. Tinha o maior interesse em dominar cada vez mais esse homem, e todavia via-se forçada a prendel-o apenas pelas mais obscuras fraquezas do seu ser e a seduzil-o pela sensualidade. N'este brutal dominio era ella a mais forte e esta evidencia rebaixando-a aos seus proprios olhos, mais excitava ainda a sua inveja. Calcule-se agora o resentimento que devia produzir n'esta alma perturbada, completamente minada por pensamentos d'esta ordem, a seguinte inexperada descoberta: A duqueza de Chalinhy não era o que parecia? Tinha um segredo na sua vida? Esta irreprehensivel esposa, cujo marido a si proprio não perdoava o trahil-a, corria Paris n'um trem, emquanto seu marido a julgava em casa muito resguardada? Tinha encontros clandestinos, deixando a carruagem á porta d'uma casa com varias entradas--exactamente como fazia a propria Joanna, quando ia encontrar-se com Chalinhy? Este modelo de virtudes, cujo elogio tanto a havia humilhado desde creança e ainda hoje a humilhava mais cruelmente, não passava d'uma hypocrita, d'uma comediante? Era possivel? III Primeiros esforços É possivel? Joanna tinha os maiores desejos de responder «sim» a esta pergunta, para que o seu pensamento se apressasse a colligir e amontoar os argumentos que podiam confirmar esta inexperada, esta fulminante descoberta. Quando viu Valentina fechar a porta da carruagem que a conduzia para um recanto occulto d'esse grande Paris--tão propicio a encontros mysteriosos,--invadiu-a uma violenta commoção. N'um só momento, o procedimento da sua orgulhosa prima tinha-a rehabilitado aos seus proprios olhos, rebaixando aquella ao seu nivel. E, posto que o facto de Valentina ter abandonado a carruagem á porta do grande armazem, lhe provasse que a sua primeira supposição era racional, a sua excitação tornára-se tão viva que se não sentia capaz de esperar--o que era natural--que a senhora de Chalinhy voltasse, a fim de verificar a attitude d'esta, interrogal-a mesmo e observar o seu natural embaraço. Bastar-lhe-hia metter-se no _coupé_ abandonado, de maneira que no momento da entrada, depois da visita clandestina, a marqueza a encontrasse na sua frente e fosse violentada a confessar tacitamente a falta, só pela natural confusão. Um tal procedimento exigia, porém, um sangue frio de que Joanna se não julgava capaz. Mostraria logo pela sua propria perturbação, que espionava a rival. E esta, advertida por aquella fórma, dominar-se-hia, depois de passada a primeira impressão. Posta de sobre aviso, procuraria, de futuro, desnortear qualquer curiosidade que pretendesse penetrar mais intimamente no segredo que, até ao presente, tão bem tinha sabido occultar. Não. Para chegar a saber se effectivamente Valentina tinha qualquer mácula na sua vida, a principal condição era que esta nem sequer suspeitasse da descoberta. A primeira idêa de Joanna de Node, em presença do sobresalto d'uma tal revelação, foi fugir, para não ser vista pela prima, e ir para casa. Lá meditaria sobre o meio mais seguro de não perder o fio que um phantastico acaso acabava de pôr nas suas mãos, e que não abandonaria mais. Parecia-lhe até imprudente que qualquer pessoa da sua intimidade a encontrasse na visinhança do grande armazem, e podesse denunciar a sua estada ali, n'esta tarde, á marqueza de Chalinhy. Só conseguiu tranquilisar-se, depois de ter subido para a carruagem, e dito ao cocheiro que a conduzisse á rua Barbet-de-Jouy. --«É possivel?...» repetia ainda emquanto o cavallo d'aluguer da sua carruagem seguia ao longo das Tulherias, e depois pelo caes e ponte de Solferino. Mesmo contra sua vontade, tantas provas de seriedade dadas por Valentina desde a mais tenra infancia, influenciavam no seu espirito, destruiam a suspeita, luctavam contra a injuriosa hypothese sugerida repentinamente pelo indicio implacavelmente revelador. Ha mulheres que praticam a caridade occultamente. E se Valentina fosse a casa d'alguns pobres, modestamente, sem ir na sua carruagem, porque esses pobres habitavam n'alguns bairros escusos, onde a sua equipagem causasse escandalo, ou o cocheiro e trintanario corressem risco de ser insultados?... Mas n'este caso teria entrado no armazem como uma criminosa, temendo evidentemente ser seguida? Sahiria com aquella precipitação e em taes condicções? Todos os bairros populares ficam, hoje, nas proximidades dos _boulevards_ ou de qualquer praça, onde uma mulher rica póde ir com os seus cavallos, sem necessitar servir-se de carruagem extranha... «Tel-a-hia Norberto prohibido de dar esmolas?... «Mas isso é facil de saber. Basta-me perguntar-lh'o...» Fez com a mão o gesto de apertar a pequena esphera de cautchú do aparelho que serve para chamar o cocheiro... Ia dar-lhe ordem para, de caminho, parar na rua Varenne. Eram as commodidades que a sua qualidade de prima proporcionava ao adulterio. Deixou, porem, cahir a esphera sem a ter comprimido: «Seria perdel-a se estava culpada, isso não faria ella.» Uma primeira tentação--nem sequer a sombra d'uma denuncia--passára rapidamente pelo seu pensamento, e o mesmo sentimento que, ha annos, a fazia invejar Valentina, apresentava esta agora aos seus proprios olhos, n'uma attitude generosa mas não sem uns laivos da sua habitual acrimonia. «Não o faria...» repetia ainda. «E o que aproveito eu com isso? Não sei, porventura, que Norberto não se preocupa mesmo nada com os seus actos? Que deposita n'ella a mais absoluta confiança. Tambem eu a tinha. E igual. Não se faz, porem, o que acabo de lhe ver fazer, sem haver para isso muito poderosos motivos...» --Porque, emfim, podia ser vista por qualquer outra pessoa que não fosse eu e que não seria certamente tão indulgente... Onde iria ella?... Ah! Eu o saberei! Mas como? Era já noite e a baroneza de Node entrara em casa, passado muito tempo, sem que, atravez d'essas multiplas occupações d'uma tarde toda:--escrever bilhetes, receber visitas intimas, fazer a sua _toilette_ para a noite--cessasse de dirigir a si mesma esta pergunta, para que não obtinha resposta: «Sim, como?» Se taes pesquizas são já difficeis e trabalhosas para um homem que tem o previlegio de poder andar por toda a parte, quasi sem ser notado, para uma mulher, nova, bonita e um tanto elegante, tornam-se impossiveis. Deve-se pensar. Não lhe é permitido sahir de casa senão vestida com fato proprio da sua classe. Basta isto para limitar muito o seu campo d'acção. Ha agencias particulares cujos prospectos, com promessas de segredo absoluto, pontualidade e rapidez, são enviados, de tempos a tempos, pelo correio, ás diversas pessoas que, por qualquer motivo, figuram em um dos numerosos annuarios do mundo parisiense, grande ou pequeno. Joanna tinha muitas vezes ouvido falar a alguns homens do meio em que vivia havia dez annos, do perigo de similhantes processos, para se expôr, de caso pensado, em emprezas certas de exploração e talvez de _chantage_. Revelar a policias incompetentes o vehemente desejo de saber o segredo de sua prima, não era pol-os ao corrente de outro segredo--o seu? Estes obstaculos, levantados deante da curiosidade do mundo, explicam como tantas historias adivinhadas e assacadas á bocca pequena, ficam sempre inverificadas, e, portanto, facilmente negaveis. Poucas pessoas teem geralmente um tão grande interesse em as conhecer nos seus mais intimos e insignificantes detalhes, que se aventurem a arrostar com tantas difficuldades. A mór parte permanece n'uma incerteza que lhes permitte misturar justos indicios com infames calumnias, alliviando a sua consciencia com estas phrases classicas: «Em todo o caso se não é verdade, podia muito bem sel-o!...--Se é possivel acreditar-se tudo quanto se diz!...--Eu cá nada vi, e isto são coisas tão graves!...»--indulgentes formulas tão deploraveis como os ditos maliciosos que pretendem attenuar. Attestam bem quanta leviandade ha nas conversas dos salões e dos clubs, e tambem que n'ellas caminham a par o indifferentismo e a ferocidade! Mas a baroneza de Node não se achava em presença de um «diz-se», tratava-se d'um facto, com consequencias funestas! O procurar conhecer toda a verdade, sem compromisso proprio, tendo a luctar com a finura d'uma mulher tão prudente, que havia sido necessario um inacreditavel concurso de circumstancias para pôr a sua parenta mais proxima, quasi sua irmã, sobre esta pista, muito vaga, quasi perdida já--é trabalho para esgotar todas as paciencias, mas não a d'uma invejosa! Quando, um pouco antes das oito horas, a baroneza sahiu de caza para ir jantar com os Guy de Sarliévre, das relações de ambas, e aonde sua prima devia tambem estar--a resolução de pôr inteiramente a claro o enygma, que subitamente se lhe deparou, era tão irrevogavel como um juramento corso, e a primitiva idéa estava posta de parte. O ardor d'uma lucta começada--a mais forte das sensações para os nervos d'uma parisiense de habitos tão monotonos--dava á sua belleza, um tanto apagada, uma animação singular. Os olhos pretos, a que faltava muitas vezes a expressão, tinham um brilho desusado; o rosto quasi sempre descórado, um vivo colorido; toda a sua pessoa, mixto de frieza e fadiga, muita vitalidade e movimento. A impaciencia de tornar a ver Valentina obrigara-a a partir muito cedo para a casa aonde ia jantar, chegando a sua nevrose ao mais elevado grau, quando a marqueza de Chalinhy que, por acaso, foi a ultima a apparecer, entrou, acompanhada pelo marido, na sala em que se achavam reunidos os convidados--quatorze, contando os recem-chegados. A marqueza tinha aquella expressão de doçura e candidez que tão bem sabia guardar, mesmo quando vestia uma _toilette de soirée_, que punha inteiramente a descoberto os seus hombros finos opulentos, os braços d'um contorno delicioso, a nuca graciosa e robusta--toda a graça dos seus trinta annos. Era o agrado da sua encantadora cabeça de cabellos louros, illuminada pelos olhos d'um azul tão curioso--era o pudor, e a pureza. N'este dia usava um vestido á moda do tempo de Luiz XIII, d'uma tonalidade rosea, com bordados antigos, laços de setim e fivelas de diamantes. O penteado, em dois espessos bandós, d'onde se escapavam sobre a testa pequenos anneis, harmonisava com a _toilette_ e lembrava os retratos d'essas mulheres do primeiro quartel do seculo XVII, que realisavam tão completamente o typo exquisito da franceza de outro tempo, por uma mistura unica de delicadeza e distincção, feminidade e sensatez, gentileza e honestidade. --«Não é deliciosa esta gentil Chalinhy?...» perguntou alguem atraz da baroneza de Node, «é preciso que Norberto seja muito tolo para não o comprehender, pois não é verdade?...» Era o duque de Arcole que assim falava, dirigindo-se ao visinho, um dos irmãos Mosé, o conde Abel, um dos parisienses mais circumspectos da sociedade elegante; tão circumspecto que Luciano d'Arcole ficou sem resposta. A justificação de bravo official, que tem um nome glorioso, estava em que, mesmo com licença, só pensava no seu esquadrão. Não tinha reparado que a amante de Chalinhy se achava na sua frente. A um rapido signal, uma leve inclinação de cabeça, feito por Mosé, percebeu a sua inconveniencia. Joanna, que os via perfeitamente no espelho que lhe ficava fronteiro, poude observar o gesto dissimulado de Mosé, e que o duque se ruborisou um pouco. Quando reconhecia por estes e outros pequenos indicios que se suspeitava da sua aventura com Norberto, sentia uma viva irritação. N'aquelle momento, foi-lhe quasi intoleravel que o elogio da prima fosse misturado com uma expressão mal contida da censura com que a sociedade a feria. Desejaria poder gritar a Mosé, ao duque de Arcole, a todos os presentes, os quaes estava bem certa d'isso, tinham já ouvido censurar ou elles mesmo censurado a sua falta: «Sim, Chalinhy é meu amante. «É verdade, atraiçoa a mulher comigo. Mas perguntai-lhe tambem a ella, para que entrevista ia hoje, de carruagem, ás 3 horas da tarde?...»Desejaria tambem poder fulminar com aquella phrase vingadora o proprio Chalinhy que se lhe dirigiu para a cumprimentar, com um certo ar de constrangimento, que já por mais vezes lhe tinha notado, quando estavam em publico. Nunca se tinha podido habituar a taes reservas, muito insultantes para esta ligação, e contra as quaes só as suas caricias eram soberanas--durante os momentos em que as proporcionava a esse amante, ao mesmo tempo tão invejavel como incomprehensivel. Quizera ainda dirigir a phrase insultuosa á propria Valentina, cuja doce serenidade contrastava, d'uma maneira imprudente, com o seu procedimento d'aquelle dia, se tal procedimento era culposo, e a verdadeira confirmação d'essa culpabilidade seria a resposta á pergunta insidiosa que sua prima ia fazer-lhe em seguida--primeiro passo andado no caminho d'uma devassa que, por perfidia, se devia transformar, bem depressa, em denuncia. --«Cheguei a imaginar que mudarias de tenção» começou Joanna, «e que me mandasses dizer esta manhã que podiamos sahir juntas. Esperei, porém, em vão, uma palavra tua...» --«Acompanhar-te-hei ámanhã se quizeres, respondeu Valentina. Hoje não tive um momento de meu. Tinha muitas coisas atrazadas que pôr em ordem. Para a semana vamos para Pont-Yonne...» --«Percebo, poseste as tuas visitas em dia. Onde foste então?» --«Oh! A dez casas differentes e só em duas deixei bilhetes.» --«A maior parte das familias das minhas relações são estrangeiras. É esta a sua estação em Paris; mas não se comprehende muito bem o que veem cá fazer, visto estarem sempre em casa.» Annunciava-se que ia ser servido o jantar, na occasião em que Valentina acabava de descrever a sua prima como tinha occupado toda a tarde d'esse dia, acompanhando a descripção com um sorriso tão infantil, tão fresco, que punha de parte qualquer idêa de mentira. As duas primas separaram-se. A senhora de Sarliévre, na qualidade de dona de casa, julgava faltar a um dever de delicadeza, se não proporcionasse a duas pessoas, suspeitas d'um amor clandestino, estando em sua casa, mais uma occasião de passarem algumas horas ao lado uma da outra. Reservou tambem, naturalmente, a Chalinhy o prazer de conduzir para a mesa a baronesa de Node. É o processo habitualmente empregado em Paris, pelas mulheres levianas, quando desejam que lhes façam o mesmo, e pelas mulheres honestas, quando querem recrutar frequentadores assiduos para os seus salões. Enganam-se muitas vezes, pensando que, procedendo por esta fórma, são agradaveis para com os seus convivas. Acontece frequentemente que estas complacencias obrigam amantes arrufados a uma visinhança deveras incommoda e impertinente. Acontece tambem que magoam certas susceptibilidades um pouco desconfiadas, como sendo uma indelicadesa. É mostrar muito claramente que se conhecem os segredos da sua vida. Chalinhy pertencia ao grupo dos amorosos susceptiveis. Vinte vezes Joanna de Node o tinha visto, em jantares como este, sentar-se junto d'ella com o mesmo aspecto melancolico, contrafeito, com os mesmos modos retrahidos d'um homem que se encontra n'uma situação falsa, e vinte vezes lhe disse, para o empolgar, para readquirir o imperio sobre elle, phrases de estimulante ternura como a que lhe murmurou, quasi em segredo, aproveitando o primeiro bulicio da instalação á mesa: --«É uma felicidade para mim passarmos juntos alguns momentos. Ha mais de uma semana que lá não vaes». --«Sabes perfeitamente que a culpa não é minha, tenho caçado quasi todos os dias...» --«Sei tambem que isso te não pode servir de desculpa,» disse galantemente. «Tinhas um ar tão contrafeito quando a Emiliana te pediu para me conduzires á mesa...» --«Respeito-te muito,» replicou, «por isso confesso-te que fiquei contrariado... Sempre que jantamos fóra, nos collocam propositadamente um junto do outro. Sei perfeitamente o que isto significa...» --«E eu tambem,» respondeu ella. «Sejamos francos, Norberto, não é a minha pessoa que te preoccupa...» --«Quem é então?...» Joanna lançou um olhar para o lado de Valentina, d'uma significação tão clara que Chalinhy respondeu vivamente: --«E se tiver por ella toda a consideração? Se desejar evitar-lhe um desgosto?» --«E imaginas que ella tem a teu respeito iguaes sentimentos?» replicou a amante. Depois, com uma expressão singular que ainda esse dia não tinha tido, deixou escapar dos seus labios um: «Estás bem certo d'isso?» que acompanhou com um sorriso ainda mais singular, e voltou-se para o visinho do lado, que lhe perguntou: --«O que está dizendo o Chalinhy que tanto a faz rir?...» --«Oh! nada», respondeu, «é a historia d'um marido. São sempre divertidas.» Poz-se a rir, mas mais alegremente, da enormidade da sua insolencia. Não pensou senão no effeito a produzir em Chalinhy, e, por acaso, o visinho a quem se dirigiu n'aquelles termos, era nem mais nem menos do que Paulo Moraines, o marido «mais marido» de toda aquella sociedade. Peor do que isso. Era publico e notorio que o luxo da sua esposa fôra pago primeiramente pelo velho Desforges e depois por um outro dos Mosé, o conde Abrahão. Mas Moraines não desconfiou nunca das galanterias venaes da sua Suzanna--da aventura com o elegante Casal, por exemplo, ou da ligação com o poeta René Vincy. A herança inesperada da senhora Bois-Daufraines--prima afastada de Suzanna Moraines--veio trazer ao casal dois milhões de francos, justamente no momento em que os Desforges e Mosé iam começar a fazer falta, agora que a idade chegava com o seu fatal cortejo: pontos dourados na alvura dos dentes, tranças postiças e espartilhos reparadores! Paulo Moraines tinha a mania de contar a toda a gente a historia d'essa herança, em todos os pormenores, e accrescentava invariavelmente: «Vejam o que é ter uma mulher inteligente. Quasi que nem chegámos a perceber que tinhamos alguns milhares de libras de renda a mais, tão boa dona de casa ella é!» Nem uma leve sombra passou pelo rosto aberto do excellente homem, quando a baroneza de Node deixou escapar, tão gravemente, deante d'elle, o classico proverbio: «não se falla em corda...» Ao contrario, insistiu até: --«Se é escandalo, digam-me que é para o contar á Suzanna. Não poude vir por estar com uma enxaqueca; mas, em indo para casa, conto-lhe tudo.» A um novo golpe de vista lançado a Chalinhy, Joanna comprehendeu que não necessitava empregar nova ironia--ella tinha ouvido a phrase de Moraines--e começou com este uma animada conversação, uma d'essas tagarelices dos grandes jantares parisienses, que são a justificação plena da anthipathia dos homens superiores por esse meio banal. É manifesta a antithese entre as deficiencias do espirito e os explendores da decoração. A sala de jantar do palacio de Sarliévre, com as suas altas paredes cobertas de magnificas tapeçarias de Arraz, com o esplendido mobiliario á Luiz XVI, com os elegantes centros de meza e jarras de Saxe, com o intenso brilho de flores, dos pratos e crystaes, realisava um sonho vivo da mais requintada opulencia. As seis mulheres assentadas á meza, entre oito homens, trajando com o maior rigor eram todas formosas, e a mais velha, Emmelina de Sarliévre, tinha apenas trinta e sete annos. Eram, além da elegante Joanna e da graciosa Valentina, a muito gentil senhora de Bonivet, a deliciosa Monniot e a sua amiga, a joven Croix Firmin. Se um phonographo recolhesse as phrases trocadas entre estas princezas da moda e os cavalheiros que as rodeavam, uma tal miseria de espirito e de idéas, era de fazer chorar!... Mas não. O que se diz n'aquelle meio, não é a imagem do que se pensa. A verdade da vida parisiense não está nas palavras. Está nas situações a que essas «palavras vãs» empregando o dito popular, servem de indifferente acompanhamento. Entre essas quatorze pessoas, muitas d'ellas estavam talvez na frente uma das outras, em situações similhantes á de Joanna para com os esposos Chalinhy. Quando interesses d'esta ordem occupam o espirito e o coração, as exterioridades não passam d'um méro alibi, em que a questão importante é não trahir o drama intimo. E era verdadeiramente um drama que a baroneza de Node observava na physionomia do amante, na qual se denunciavam as alternativas do seu pensamento, agitado pela sua perfida insinuação. Pela primeira vez ousava, não criticar Valentina na presença do marido--porque já o tinha feito muitas vezes--mas, atacal-a na sua qualidade de esposa legitima. Este: «Estás bem certo d'isso!...» escapou-lhe; sem lhe medir o alcance, como um echo das phrases que tinha pronunciado para si só, depois da descoberta pasmosa d'essa tarde. Com o seu instincto de amante tinha procurado ferir Chalinhy precisamente no ponto mais vulneravel. Conhecia-o perfeitamente! A physionomia attribulada d'este homem indicava claramente que a feição predominante do seu caracter era a incerteza. Um rapaz cheio de timidez, com attitudes imperiosas de voluntariedade. Esta paixão--porque uma verdadeira timidez é uma pura paixão, no sentido amplo da palavra--desconcerta todas as analyses. Meio physica, meio moral, affecta as mais intimas fibras do nosso ser, onde se effectua a reunião das duas naturezas, a animal e a espiritual. O seu effeito mais constante é a vacillação da intelligencia e da vontade ao mesmo tempo; uma não pensando com firmeza e segurança e a outra não executando com decisão. Caso estranho! Esta desconfiança em nós mesmo, constitue muitas vezes uma superioridade. Os bons resultados obtidos por Chalinhy nos seus negocios provinham d'isso precisamente. Habituara-se a seguir na esteira dos que vira ser bem succedidos, com um bom senso que, em presença dos resultados, era uma força, mas que na realidade constituia uma fraqueza. No casamento acontecia-lhe o mesmo, não se libertava d'uma vez das suas peias, não tinha força para o fazer, detido pela esposa, tão sensivel tambem. Não ha disposição mais propicia aos mal entendidos da existencia commum, do que os excessos de susceptibilidade. Quando a intimidade quotidiana não vence a timidez, exaspera-a. Esta especie de perturbação moral, ainda aggravada pela reserva de Valentina, que o marido inconsiderado e susceptivel tomava por indifferença, impedia-o de experimentar pela esposa essa sensação d'amor partilhado, sem a qual nenhuma união é completa. Era por causa dos apetites de sensualidade não satisfeitos no seio da familia que Joanna o tinha attrahido e que continuava a prendel-o. Sabia-o, e sabia tambem que Norberto tinha pela esposa uma estima nunca interrompida, a qual o obrigava a permanecer n'um constante estado de incerteza e irresolução. Não comprehendia bem Valentina, e, por momentos, receava-a. Teve Joanna a prova d'isso, ha pouco, durante o jantar, que passou quasi todo no mutismo d'um homem que está inteiramente preoccupado por uma idéa fixa--não conversando com ella nem com a sua outra visinha, a agradavel senhora de Bonnivet, senão o indispensavel para não passar por grosseiro; e quando se levantou da mesa e que finalmente, se achou só com a amante, n'um dos angulos da sala, foi por uma allusão á sua enigmatica pequena phrase de ha pouco, que recomeçou a conversa interrompida no principio do jantar. --«Foste bem pouco amavel comigo» disse-lhe n'um metal de voz como de quem deseja que nenhuma das palavras proferidas chegue a ouvidos estranhos, e que tantos amantes teem a ingenuidade de adoptar nos seus segredos!--«Sim bem descaroavel para uma amiga que considera como uma felicidade passar o tempo na tua companhia. Quizeste unicamente incommodar-me?» --«Eu? incommodei-te? E como?» --«Sábel-o perfeitamente», respondeu. «Como» insistiu Joanna. «Sabes que me desgosta a nossa situação com Valentina e parece que estás propositadamente disposta a tornar-me tal situação mais difficil, magoando-me por sua causa. Que pretendias dizer, quando, a proposito do pesar que sentia por causa d'ella, receioso de que desconfiasse de nossa intimidade, me dirigiste a pergunta: «Estás bem certo d'isso?... E com o resto...» --«Não pretendia coisa alguma. O receio de perturbares a tranquilidade de Valentina apavora-te. Obrigas-me a repetir-te ainda mais uma vez que seria mais prudente teres pensado d'essa maneira n'outro tempo, e mais conveniente para mim. Quiz dizer simplesmente que ella não é tôla e que sabe perfeitamente o que se passa em relação aos nossos sentimentos. O que isso prova é que a sua amisade por ti não é o que a tua fatuidade imagina, e que se não preocupa tanto comtigo como julgas. «Eis tudo... Ha muito tempo que te repito que esse receio não passa d'uma simples chimera. Quando digo os nossos sentimentos, acrescentou Joanna, é os meus que deveria dizer. Não tens emoções senão por causa d'ella. Mas não supportarei esta situação por muito tempo...» Agitou nervosamente o leque, lançando esta ameaça de rompimento, com um sorriso de desafio. Os calculados vaes vens das brancas e flexiveis pennas de abestruz faziam chegar junto do amante um effluvio do perfume de que estavam impregnadas as mais reconditas peças do seu vestuario. Sentia-se bella, e movia a cabeça com um gesto que mostrava melhor a alvura do colo. Os seus olhos pretos, meio cerrados, com um olhar provocante, iam procurar no fundo das pupilas de Chalinhy o pensamento, longinquo. Este homem terno e complexo, que, durante todo o jantar se tinha só preoccupado com a esposa, e que muitas vezes desejava ver terminada uma ligação tão criminosa para a sua consciencia, sentia n'aquelle momento,--como muitas outras vezes--um d'estes impetos de desejo, que produz nas suas victimas a desordem de toda a sua racional energia. Respondeu n'uma voz quasi imperceptivel: --«Sabes muito bem que só a ti amo. Vemos-nos tão pouco actualmente, e isto entristece-me tanto... Esta semana tenho ainda que ir a Pont-Yonne passar trez dias. Queres que vamos á _nossa casa_, antes de partir? Queres, ámanhã...?» --«Sim,» disse Joanna, muito baixo, e mudando rapidamente de tom, como se a perturbação do amante se tivesse tambem apoderado d'ella «ás quatro horas. Vou libertar a Valentina», disse em voz alta, pronunciando o final da phrase com tanta força, que a senhora de Chalinhy, que estava assentada apenas a alguns passos de distancia, sem que o marido tivesse dado por isso, voltou a cabeça e, desejosa de terminar uma insipida conversa com o dono da casa, o aborrecido Sarliévre, perguntou á prima: --«Fallam de Valentina, que dizem a meu respeito?» Foi sentar-se ao lado d'aquella que trahia tão abominavelmente havia um anno, e que se preparava para perder sem remedio logo que estivesse inteiramente senhora do segredo de que conhecia apenas alguns indicios--mas que indicios! Inclinou-se, como para examinar um lindo bracelete da rival, de modo que as suas cabeças ficavam muito proximas, e n'essa posição observava Chalinhy. Tinha prazer em authenticar o seu dominio sobre o amante, forçando-o a assistir a scenas de intimidade que lhe desagradavam. Bem sabia que n'aquellas occasiões o fazia soffrer; mas acreditava, e não sem logica, que assim desarmaria a sua resistencia. Somos geralmente tanto mais fracos quanto menos felizes, e ella tinha necessidade de aproveitar toda a fraqueza de Chalinhy para a realisação das combinações que sempre julgára tão longinquas, tão indefinidas, quando o inexperado acontecimento d'essa tarde, corroborado pela indiscutivel mentira da marqueza, vinha tornal-as precisas, pela primeira vez. IV Realidades Taes combinações--ou, mais propriamente, tal combinação era o divorcio de Chalinhy. Com a natureza suggestionavel que Joanna lhe conhecia, como não seguira por este caminho desde o principio? O acaso pozera-lhe nas mãos uma tal arma! Não devia tentar utilisal-a? Vimos já que entre os sonhos que lhe attenuavam as amarguras de mulher aviltada, o mais phantastico, mas tambem o mais permanente, era o de um novo casamento. Mas para isso era necessario que fosse livre. Vimos tambem que esperava que essa liberdade viesse da iniciativa do marido, conforme o tal artigo do codigo, mais ou menos rigorosamente interpretado. Esta iniciativa, tinha dito muitas vezes comsigo mesma, tomal-a hia, em todo o caso, ella propria, se algum dia se lhe proporcionasse occasião propicia para um novo casamento, e essa occasião deparava-lh'a o destino. Era a amante de Chalinhy. Tinha o direito, na conformidade do codigo feminino, de provar que elle a tinha seduzido, por isso que fôra o seu primeiro e unico amante, e que portanto, a devia desposar, se um dia fossem livres... --Livres!... --Esta palavra, sempre a mesma, a perseguil-a, como um retornello d'esperança. Livres? Podia sel-o com um processo judiciario, e Chalinhy podia sel-o tambem se a mulher o enganasse e tivesse a prova d'isso. Mas quem lhe forneceria essa prova? Seria ella mesma? A tentação de denunciar o segredo surprehendido tinha ao principio tocado ao de leve o espirito da invejosa mas repeliu-a desde os primeiros momentos. Repelliu-a, e, comtudo, pouco a pouco, foi-se tornando mais persistente. A prova está na insinuação enygmatica, tão perfidamente feita no principio do jantar, em casa da Sarliévre. O sobresalto de pundonor que a levára a repetir depois as suas proprias palavras, dando-lhe uma interpretação anodina, duraria ainda? Tel-o-hia affirmado com a maior energia se a interrogassem quando regressava da _soirée_--debaixo da impressão da promessa d'uma entrevista com o marido da prima. Mas n'aquelle momento, deitada na cama, e passando em revista atravez do seu espirito tão insignificantes incidentes com tão importantes consequencias, teria apenas objectado que no fim de contas havia muitos meios para chegar a conhecer a verdade. Pois não era facilimo que o acaso, que lhe deu a conhecer a intriga de Valentina, se reproduzisse com qualquer outra pessoa! E porque é que essa outra pessoa não havia de ser o proprio marido? Uma mulher que tem na sua vida uma aventura occulta, commette geralmente imprudencias; tinha sido uma verdadeira imprudencia a mudança de trem n'aquella tarde; e então a maneira como Valentina explicava o que tinha feito n'essa mesma tarde, equivalia a uma completa confissão. «Se Chalinhy descobre tudo, não tenho nada de que me penitenciar, e Valentina não poderá lamentar-se se occupo um logar que não póde ser d'ella... Mas o que ha a descobrir? Que tem um amante? «Quem é? Passa esta semana fóra de Paris, não saberei nada. Tanto melhor, desconfiará menos de mim. «Ficará para quando voltar... Em todo o caso, ámanhã não deixarei Norberto pronunciar sequer o seu nome... A minha dignidade exige-o. Não saberá nada por mim!...» Se a perigosa e felina creatura podesse penetrar bem no intimo d'esta resolução,--debaixo de cuja impressão ia dormir--plenamente satisfeita!--reconheceria haver n'ella mais prudencia do que magnanimidade. Communicar ao marido indicios tão incompletos não era advertir a mulher? Não teve grande difficuldade, no dia seguinte, em cumprir, na entrevista em local occulto que o adultero Chalinhy designou por «nossa casa», a promessa que fez a si mesma. Não offerece duvida que o desejo de designar assim o magnifico palacio da rua Varenne, dependia muito da graça enebriante que a amante desenvolvesse para com elle n'esse dia. Anciava porque o estonteamento das suas caricias o acompanhasse até Pont-Yonne, junto de Valentina, e impedisse entre elles a renovação da intimidade conjugal, que é o receio permanente da amante d'um homem casado. Joanna, durante muito tempo, conservou-se alheia a taes receios, emquanto julgou Valentina inteiramente inaccessivel ao amor; a sua opinião, porém, modificou-se bruscamente. As consequencias da mudança na apreciação do caracter da prima avolumaram-se durante os dias da separação que seguiram a ultima entrevista, e, portanto, só poude ensaiar por todas as fórmas, interrogando subtilmente uns e outros, as mais infructiferas investigações sobre o mysterio cujo rasto havia surprehendido. Associando o nome d'um novo personagem da sociedade que frequentava, ao da senhora de Chalinhy, não se calariam todos deante d'ella, uns porque era sua parenta muito proxima e outros porque era a rival da gentil marqueza? Quiz sabel-o a todo o custo, e não conseguiu recolher mais do que os echos dos elogios que conhecia muito bem, por ter soffrido tanto com elles. Passando em revista os frequentadores habituaes dos salões da rua Varenne, não conseguiu tambem fixar as suspeitas n'um unico. Todos, sem excepção, desde os conquistadores que começavam a envelhecer, como Casal, Vardes, até aos moços «bellos» de nova geração, um Pedro de Eysséne, um Maximo de Portille, tinham para com a marqueza de Chalinhy, as attitudes do natural respeito que se não inventa, que se não finge. Emana de todo o seu ser, e traduz-se pela maneira especial de olhar uma mulher, de se approximar d'ella, de lhe falar, com a qual outra mulher se não pode enganar, por isso mesmo que teem para com ella modos bem differentes. Por mais imperceptivel que seja a mudança todos a sentem. Não, não havia entre os individuos que mais conviviam com Valentina, um unico homem de quem Joanna podesse dizer: «É este!» com uma sombra de verosimilhança. Quando se encontrou novamente com os Chalinhy, no regresso de Pont Yonne, não tinha conseguido colher um unico esclarecimento mais, sobre o mysterio da vida da sua rival, sabia tanto como no momento em que viu as plumas pretas do seu chapeu desapparecerem na carruagem, no meio da rua Saint Honoré; e as ternuras do amante ao tornar a vêr as duas, abraçando-se, tratando-se por tu, dizendo-se mutuamente palavras de amisade, não tinha diminuido tambem. Um unico ponto se modificou. A semana de isolamento e de meditação amorteceu definitivamente, ou antes, destruiu por completo os escrupulos que tornavam odiosa para Joanna a idéa da denuncia ao marido. Todos os rancores do seu amor proprio ulcerado durante tantos annos, por uma comparação constantemente renovada, sempre deprimente, tinham-se condensado num sentimento que ella formulava nas seguintes palavras. Se manifestava em todas ellas a coragem dos seus intimos desejos, não se pronunciava nitidamente senão na ultima phrase. --«Tanto peor para ella, se tomo a minha desforra. Assiste-me todo o direito de assim proceder desde que tem disfructado todas as venturas e eu nenhumas... No fim de contas ha n'isto um fundo de justiça!» As mais hediondas perversidades que possam commetter-se entre mulheres, estão já envoltas n'este appello á equidade. Quer se trate da ordem social ou da ordem sentimental, esta palavra justiça, tão solemne, serve geralmente para nos absolver, perante a nossa propria consciencia, da inveja da felicidade dos outros. É sempre opportuno repetil-a n'uma epocha em que se procura envolver em phrasiologia idealista as mais baixas e menos generosas paixões! Esta galante mulher, d'um tão perverso egoismo, não raciocinava por sua propria conta d'um modo differente dos promotores de revoluções. O seu sophisma era sómente menos perigoso, posto o desejo de prejudicar fosse ainda mais forte. Se as vontades muito firmes realizam muitas vezes, com felicidade, os seus emprehendimentos é porque applicam toda a attenção das suas faculdades aos menores acontecimentos, e não deixam escapar nenhuma occasião de operar. Depois de ter passado, mentalmente, em revista todos os processos de espionagem possiveis, Joanna acabou por optar pelo mais simples. Era tambem o que infallivelmente daria o resultado tão ardentemente desejado: redobrar de intimidade e de persistencia para surprehender Valentina, em sua casa, a todas as horas. A sua perspicacia de mulher saberia descobrir um signal qualquer que lhe permitisse exercer uma acção efficaz. Por experiencia propria tinha aprendido que uma ligação prolongada cria naturalmente habitos d'uma regularidade quasi burgueza. A maior parte dos amantes acabam por ter entrevistas quasi periodicas, em consequencia da necessidade de harmonisar os prazeres clandestinos com os actos do seu viver habitual. Quando, ao contrario, taes entrevistas são irregulares, é sempre do lado da amante que se deve procurar a causa. É que os momentos de liberdade nem sempre apparecem, e como esta depende em geral da presença ou ausencia do marido, é na vida d'este que deve procurar-se o desconhecido do viver da mulher. Aquella, porém, cujo marido e senhor caça muitas vezes por semana, escolherá antes uma d'essas tardes em que se julga segura de qualquer surpreza. Não acontecia assim no caso presente. Valentina observada? Era-o tão pouco. Podia commetter todas as imprudencias e com inteira segurança. Mas, sendo dissimulada a ponto de denunciar a existencia de uma intriga amorosa, em presença da attitude que tomava, deveria tambem, em tal caso, ser prudente e por principio. As verdadeiras hypocritas são assim. Um dos seus caracteristicos habituaes é uma absoluta discordancia entre o seu modo de pensar e de proceder. Nunca a marqueza de Chalinhy se retrahira, como uma pessoa que tem um segredo a occultar na sua existencia. Era com esta particularidade que Joanna contava. Fez este raciocinio simples mas evidente: entre os indicios que a tinham decidido a seguir sua prima de longe, quando a fosse esperar no grande armazem, o mais decisivo era o da sua maneira de vestir. Pareceu-lhe que havia n'ella a intenção de passar despercebida. Pensou que, no dia em que Valentina se preparasse de novo para a mysteriosa expedição, se vestiria da mesma fórma, senão com o mesmo vestido pelo menos com egual severidade. Ainda não tinha passado uma semana, depois do regresso dos primos, e reconhecia já que o seu feminino talento de inducção lhe havia suggerido o melhor systema. Só lhe seria necessaria alguma paciencia. Á inveja que é por natureza uma paixão silenciosa e alimentada de longas impressões, raras vezes lhe falta. Joanna nem mesmo teve tempo de empregar a sua. Foi á rua Varenne, n'aquelle dia, uma segunda feira, pelas onze horas da manhã, para abraçar a «cara prima» antes d'almoçar e combinar com ella o que deviam fazer n'essa tarde. Treze dias antes, precizamente á mesma hora, mas então por méro acaso, fez a Valentina a mesma pergunta: «Vamos sahir juntas?» e que ella lhe respondeu. «Não posso» dando como desculpa ter que fazer algumas visitas. Desde que entrára no gabinete reservado junto do quarto de Valentina, no qual esta costumava, antes do almoço, tratar da sua correspondencia, teve Joanna um grande presentimento. A prima tinha o mesmo vestido que levava no celebre dia. A sua emoção era tão viva que lhe tremia a voz ao formular uma tão simples e natural pergunta. Tão convencida estava antecipadamente de que a resposta seria: «Não posso» que ao ouvil-a pronunciou apenas estas ligeiras palavras de insistencia: «Porque? Que tens que fazer?» ás quaes a outra oppoz uma explicação ainda mais vaga. «--Não, effectivamente não posso; tenho umas duas ou tres visitas a fazer que não devo de fórma nenhuma adiar.» Joanna desistiu de a interrogar mais com receio de suscitar uma desconfiança, que poderia deitar por terra o plano concebido pelo seu espirito, para o pôr em execução opportunamente. Consistia em, no dia que surprehendesse os signaes reveladores, esperar, occulta dentro d'uma carruagem com os estóres corridos, á esquina do «boulevard» dos Invalidos para a rua Varenne, e seguir a equipagem da marqueza de Chalinhy quando esta sahisse de casa. A invejosa pensára primeiramente, n'um phrenesi de saber a verdade, em empregar este meio brutal sem esperar os taes signaes, e todos os dias, até obter o resultado desejado. O seu bom senso, porém advertiu-a de que uma operação d'esta natureza não tinha probabilidades de exito, se fosse repetida muitas vezes. Uma carruagem de aluguer que segue um «coupé» particular não se nota á primeira vez; mas á terceira ou quarta se não é apercebida pela pessoa que vae dentro do «coupé», sel-o-ha pelo cocheiro ou trintanario. N'aquelle dia, tendo surprehendido a rival com uma toilette tão significativa para ella, que constituia quasi a certeza da renovação da scena anterior, como poderia Joanna hesitar? Deixou a prima ás 11 horas e meia. Sabia que almoçava ao meio dia e um quarto, que habitualmente mandava preparar a carrruagem ás duas e meia. Desde a uma hora que estava no posto de observação anteriormente fixado, tendo tido a coragem, muito de admirar n'uma senhora da sua educação, de realizar com o cocheiro d'um trem de praça um d'estes pactos que estabelecem entre a pessoa que o propõe e a que o acceita, uma muito aviltante cumplicidade. --«O seu cavallo será capaz de seguir uma boa parelha que vá com toda a velocidade?...» perguntou-lhe Joanna, depois de concluido o ajuste. --«Junte mais dez francos á conta, minha senhora,» respondeu o homem, «e juro que, em toda a cidade de Paris, não nos escapará.» Esta familiaridade da parte d'uma creatura de tão infima condição, a cujo nivel o dialogo travado a rebaixára, fez ruborisar a baroneza de Node. Não renunciou, porém, por tão pouco, a um projecto de que esperava um resultado tão simples quão definitivo e completo. Foi baldado o receio de que o rocinante atrelado á carruagem de aluguer não podesse acompanhar a magnifica parelha de cavallos inglezes da prima, e a fanfarronada do cocheiro não teve occasião de ser posta em experiencia, pela simples razão de que ás duas horas a marqueza de Chalinhy sahia effectivamente do palacio, mas a pé. Do seu carro e atravez dos intersticios do pedaço de seda azul, uzado e sujo, que a mão nervosa apenas affastava, via a prima caminhar pela rua adiante, lenta e tranquillamente, com o passo d'uma mulher que aproveita o bom tempo para dar um passeio hygienico. Não pareceu mesmo ter reparado na anomalia que representava, n'um bairro tão pouco propicio ás aventuras parisienses, a permanencia d'uma carruagem com os estores corridos, immovel, no extremo da pacata rua Varenne! Atravessou o «boulevard», sem se voltar, e chegou ao pequeno jardim dos Invalidos, que transpoz, sempre com o mesmo passo indifferente. A baroneza de Node, que disse ao cocheiro que descesse a avenida do mesmo nome, a passo, não perdia um unico gesto da passeante. A certeza do bom exito começava já a abandonal-a. Uma tia das duas, a velha condessa de Nerestaing, morava no caes d'Orsay, junto da esplanada. Iria Valentina, simplesmente, visitar aquella velha fidalga? Mas não. Em logar de seguir n'esta direcção, dirigiu-se para o «boulevard» de Tour-Maubourg. Chegando ali, mandou tambem parar uma carruagem que passava. O coração de Joanna batia com extraordinaria violencia. Decorridos alguns momentos apenas, saberia se a prima ia fazer uma excursão sugerida durante o passeio, ou se ia á entrevista secreta, que era a unica explicação plausivel do abandono da sua equipagem no outro dia, e da sua mentira. A carruagem que alugou tinha a caixa pintada de amarello, o que permittia seguil-a com tanta mais facilidade, quanto era certo que avançava ao trote lento d'um cavallo muito cançado. Seguiu ao longo do «boulevard» Tour-Maubourg primeiro, depois pela avenida Duquesne, para contornar a egreja de S. Francisco Xavier, e ganhar um pouco adeante a comprida arteria popular da rua Vaugirard, que não abandonou mais até ao Luxemburgo. Joanna, cuja carruagem rodava a uns vinte metros á retaguarda, pouco mais ou menos, estava agora convencida que d'esta vez tinha encontrado a verdadeira pista. Viu a carruagem amarella entrar na rua de Medecis, e na de Soufflot, seguir ao longo do muro do vasto lyceu Henrique IV. Nomes que a baroneza de Node nunca tinha sequer visto desenrolavam-se nas placas das esquinas: «Rua Clovis, R. Etrapa de Thourin... Rua Mouffetard». Mais algumas voltas ainda, e atravessada a concorrida arteria da rua Monge, a carruagem attingia o extremo da rua Lacépède que desemboca em frente do jardim das Plantas. Ao chegar ali parou. A marqueza de Chalinhy desceu e pagou a corrida, com uma moeda de antemão preparada--um outro pequeno signal indicativo de que desejava desembaraçar-se do cocheiro o mais brevemente possivel. --«Não iria á Piedade, cuja fachada cinzenta se erguia mais á direita?» Joanna, cuja carruagem tinha continuado a andar, e agora estava parada junto da grade do jardim, teve por um momento a idéa que a prima ia entrar no hospital. A hypothese d'uma visita de caridade que lhe passara já pela mente com um certo receio, e fôra posta de parte pelo seu odio, era então verdadeira?... Ainda não. A senhora de Chalinhy esperou no meio da rua que a carruagem partisse e seguiu a pé pelo estreito passeio da rua Lacépède. Teria dado uns cincoenta passos, quando muito, e Joanna viu-a bater á porta d'uma pequena casa com dois andares. A porta abriu-se. A marqueza, que até ahi parecia completamente extranha a qualquer desejo de se occultar, lançou em torno um olhar investigador, como de quem quer ficar bem certa de que não foi reconhecida--e desappareceu por detraz do batente que se fechou logo. A baroneza de Node presenceou tudo, tão bem quanto lh'o permittia o afastamento forçado do seu posto de observação, com uma alegria cruel, a que se misturava, porém, muito espanto, para ser completa. Por experiencia propria e pelas confidencias que alguns homens lhe tinham feito, estava perfeitamente industriada nas condições habituaes das secretas felicidades prohibidas da alta sociedade parisiense. Como não havia, pois, de ficar desconcertada, até ao assombro, ao ver o bairro que a prima escolhera para as suas entrevistas d'amor. Joanna desceu da carruagem, e, caminhando ao longo do estreito passeio que a marqueza de Chalinhy percorrera alguns momentos antes, observava os modestos estabelecimentos d'este começo do arrabalde de S. Marçal: aqui uma lavanderia, com pouca roupa e pobre; mais adeante uma lojéca de revendedor; ao fundo uma serralharia de meio preço, e n'outra parte uma casa de venda de jornaes a dez réis. A accumulação e irregularidade das construcções, sem duvida contemporaneas da epoca em que Madame de Miramion construiu todo o bairro de S. Pelagio, hoje destruido, a humidade dos passeios, os resumbramentos dos descorados rebocos, tudo no aspecto da velha rua attestava a humildade dos moradores, para os quaes as visitas mais ou menos regulares d'uma mulher nova, bonita, superiormente elegante, como era a marqueza, devia constituir um acontecimento. O proprio aspecto da casa em que acabava de entrar era de natureza a provocar a curiosidade e, por consequencia, a investigação, com todas as consequencias dos artificios escandalosos para extorquir dinheiro que quasi sempre d'ella derivam. Era uma casa quadrada, isolada entre duas construcções mais elevadas, ás quaes se ligava por um muro de regular altura. Os ramos amarellados de meia duzia de tilias bastante desenvolvidas, ultrapassando o cimo do muro, denunciavam o luxo de um pequeno jardim. Estes estreitos e quasi microscopicos talhões de verdura abundavam ainda, ha vinte e cinco annos, n'esta vertente sudeste do Monte de Santa Genoveva. Eram os minusculos destroços, salvos por acaso, dos vastos parques pertencentes a recolhimentos que George Sand descreveu com tanta poesia na «Historia da minha vida». A communidade das Augustinhas Inglezas, onde ella foi educada, era muito proxima, como muito proximo era tambem o immenso quintal da Misericordia, de que elogia as uvas douradas e os cravos de differentes côres. Depois, estes pavilhões com jardins teem desapparecido uns apóz outros. Este da extremidade da rua Lacépède não devia ter sido mais notavel do que os da rua Rollin ou Boulangers. Hoje, a sua conservação é uma anomalia que necessariamente attrahe as attenções. A baroneza de Node passou e tornou a passar, muitas vezes, pelo passeio fronteiro, para examinar a extranha habitação com uma attenção que cada vez augmentava mais a sua surpreza. A casa tinha duas janellas no rez-do-chão, uma de cada lado da porta, e tres em cada um dos andares superiores. As do rez-do-chão eram guarnecidas de vidros despolidos e protegidas por estóres; e as sacadas do primeiro e segundo andares não tinham outra particularidade senão aquella ligeira differença de côr dos vidros que attestam a grande antiguidade de certos caixilhos. Eram guarnecidas por bambinellas brancas, com ramagens, cahidas, e com reposteiros de estôfo, apanhados por braçadeiras, e dos quaes se via sómente o fôrro de setineta crême e a franja, vermelha e azul, que os orlava. Os passeantes estranhos ao bairro, se os havia, que se detivessem a observar uma tal frontaria, imaginavam sem duvida, por detraz d'ella uma d'estas doutas habitações burguezas, d'um sabio ou dum professor, como ha muitas entre o Luxemburgo e o Jardim das Plantas, em consequencia da proximidade do Muzeu, dos dois grandes lyceus, da Sorbonne. Mas que um tal logar podesse servir de abrigo aos amores d'uma marqueza authentica, vinda ali d'um dos mais nobres palacios do arrabalde de São Germano, constituia uma hypothese tão perfeitamente inverosimil, que era preciso que Joanna de Node fizesse um exforço enorme para se convencer de que ella estava lá dentro, e que tinha visto perfeitamente Valentina de Chalinhy collocar a mão sobre o punho de ferro, que existia a um canto da porta, á moda antiga, para o fazer soar,--empurrar a porta ao meio da qual um friso de cobre marcava a abertura d'uma caixa para cartas, destinada a receber a correspondencia, sem que o carteiro entrasse--transpôr a soleira, elevada, por tres degraus, do pavimento da rua... N'aquelle momento lá estava ella, n'um d'aquelles compartimentos fechados. E com quem? Qual seria o homem do seu meio, que chegou a esta casa alguns momentos antes d'ella? Assim devia ser, visto que lhe abriram a porta. Ou então era ali o abrigo d'alguma aventura ainda mais romanesca? Teria Valentina, por uma serie de circumstancias que ninguem das suas relações podia suppôr, procurado uma ligação fóra da sua casta? Juntar-se-hia ali com ella um rapaz novo que nunca tivesse ido a sua casa? Que se tratava d'uma intriga amorosa, não havia a menor duvida. O que poderia oppor-se a que viesse a esta rua, pobre, mas perfeitamente decente, se fosse ali levada por um motivo justificado? E depois, o aspecto senão rico pelo menos muito confortavel da casa, não excluia tambem qualquer idéa d'uma visita de caridade? Valentina estava junto d'um amante. Mas que amante? A violencia da curiosidade de Joanna era de tal ordem, que, esquecendo completamente a prudencia, ficou immovel, no passeio, com a cabeça levantada, em risco de ser vista do interior, se alguem se lembrasse de olhar para a rua atravez das bambinellas. Teria talvez, na febre de tudo saber, batido á porta mysteriosa, offerecido dinheiro aos lojistas visinhos para os fazer fallar, se um novo acontecimento não viesse de repente responder á pergunta tantas vezes feita: a paragem d'uma carruagem em frente d'essa casa, cuja frontaria enygmatica e muda ella observava com o olhar. Era um _coupé_ d'aluguer, do qual sahiu um homem ainda novo e que parecia preocupado por ter chegado tarde, por isso que, depois de bater á porta, durante o tempo que demoravam a abrir-lh'a, consultou o relogio e fez um significativo movimento de cabeça. Aberta a porta, entrou precipitadamente, abandonando o batente que se fechou logo, mas não com tanta rapidez que Joanna de Node não tivesse tempo de ver quadros, columnas e uma escada atapetada--mas não distinguindo quem veio abrir a porta. Com difficuldade conseguiu observar os traços physionomicos do homem: uma physionomia intelligente, magro, cabellos ainda pretos, apparentando ter uns 45 annos, com uns olhos tão negros que lhe pareceram d'um brilho singular. Os seus olhares cruzaram-se e, debaixo da impressão do d'elle, Joanna córou. Para não parecer que exercia a espionagem, deu alguns passos para a frente, como uma pessoa que não está bem certa no caminho. A que classe social pertenceria este homem que, sem duvida, vinha ter uma entrevista com Valentina de Chalinhy? Tinha-lhe parecido muito bem posto, e, comtudo não lhe havia dado a sensação d'uma pessoa pertencente ao meio em que vivia. Deu ainda alguns passos na direcção da rua Monge, com a idéia de que o desconhecido a tivesse notado e abrisse talvez a sacada para verificar se ainda ali se conservava. Voltou a cabeça e reconheceu que as janellas da pequena habitação continuavam fechadas e que a carruagem que conduziu o homem se não ia embora. Apoderou-se d'ella a tentação de não se retirar e esperar que Valentina ou o desconhecido reapparecessem, ou até mesmo os dois juntos. Mas que mais tinha a esperar? Para que expôr-se a avisa-los. Tinha já a tão desejada prova. Restava-lhe apenas saber o uso que devia fazer d'ella. Subiu para uma carruagem e voltou para o Paris aristocratico--o Paris de sua prima e d'ella--e a imagem do estranho sitio em que aquella occultava o romance da sua vida ter-lhe-hia parecido um sonho se a perfida voz interior á qual no primeiro sobresalto de consciencia respondeu: «não farei isso» não tivesse recomeçado a pronunciar palavras muito nitidas, muito precisas, misturadas ás realidades da sua vida presente e aos mais positivos interesses do futuro. Tinha meio de perder Valentina para com Norberto. Não o utilisaria? V A carta anonyma É forçoso reconhecer, para honra ou desprestigio da natureza humana--depende isso do ponto de vista--que muitas das más acções raras vezes são commettidas expontaneamente, e como taes. As nossas ruins paixões avantajam-se em nos encobrir a sua perversidade nativa debaixo dos mais plausiveis pretextos e algumas vezes das mais justas apparencias. É muito difficil que as reconheçamos em nós mesmo. Toda a psycologia do crime se encerra na seguinte phrase cynica d'um assassino, contando a lucta com uma velha mulher sua victima: «Defendia-se a miseravel!...» Quando uma creatura odeia outra por motivos tão vis como a inveja, por exemplo, acontece, quasi sempre ver o inimigo tal qual o seu odio necessita que seja. Praticam-se para com ella as maiores infamias, e consideram-se como merecidas represalias. Esta illusão, meio voluntariosa, explica por si só, que certas más acções, d'uma ordem abominavel, possam ser praticadas por determinados seres, os quaes no fim de contas, não são verdadeiros monstros. A baroneza de Node--pois que se trata d'ella--não se deve classificar como tal. A prova está em que ao entrar em casa, de regresso da excursão de policia improvisado, de novo respondeu á voz tentadora com um «não» mais energico ainda do que o primeiro. No tempo que demorou a transpôr a distancia que separa a rua Lacépède da rua Barbet-de-Jouy, as probabilidades de reconstruir a sua existencia sobre os destroços da familia de Chalinhy--criminosa chimera, á qual se abandonára, em pensamento, durante treze dias de espectação--voltavam de novo ao seu espirito. Por uma variação singular de sua sensibilidade, desde que sabia a verdade, encontrava mais fortes argumentos para repellir uma tal idéa, e, portanto, com ella o acto denunciador que demandava, do que quando duvidava ainda. É que uma intima, uma apaixonada satisfação d'amor proprio, a inundava completamente, e, durante uma hora, amorteceu o ardor da antiga ferida da inveja. A violencia do odio,--o principal motor da sua alma havia tantos annos--achava-se paralisado pelo orgulho de conhecer, d'esta vez de maneira que julgava decisiva, a falta da prima. A superioridade da virtude conjugal, que todas as mulheres reconhecem no fundo da sua consciencia, muito embora apparentemente desdenhem d'ella, já a não possuia mais Valentina de Chalinhy sobre Joanna, ao contrario poderia antes ter sobre ella uma superioridade, mostrando-se generosa. «Calar-me-hei e ficaremos quites...» Esta phrase que repetia em voz alta, «Ficaremos quites...» resumia perfeitamente o estranho trabalho do seu pensamento desmoralisado pela sua vida. Punha d'um lado a affronta que tinha feito á prima roubando-lhe o marido, e encontrava este prato da balança muito leve, comparando-o com o outro no qual pesava as vantagens que sacrificava--não se julgando culpavel d'uma infamia. Devia ir á «Opera» n'essa noite, para o camarote dos marquezes de Chalinhy, no qual tinha logar certo, uma segunda-feira em cada quinze dias. Este convite permanente constituia uma das muitas gentilezas de Valentina para com ella, e que a encantadora mulher empregava para auxiliar a prima, apezar do desfalque na sua fortuna, a manter-se á altura da grande vida parisiense. Ordinariamente subia a escadaria do theatro que conduzia aos camarotes de primeira ordem, com uns sentimentos de acrimonia constantemente renovados. Lembrava-se do tempo em que tinha tambem uma frisa de assignatura. Muitas vezes para lá convidou sua prima, então solteira--e agora era ella que recebia a esmola humilhadora duma galante hospitalidade!--N'aquella segunda-feira, depois do episodio da tarde, uma unica impressão a dominava, um desejo, quasi uma necessidade de tornar a ver a frequentadora da pequena casa clandestina, espiar, estudar a sua physionomia, gosar com o contraste entre a marqueza de Chalinhy, altiva e elegantemente vestida, adulada e virtuosa, que reinava no meio opulento da sua realeza mundana, e a adultera aviltada, vestida modestamente, preparando-se para seguir para essa rua perdida n'um arrabalde afastado. Propositadamente chegou um pouco mais tarde, para já encontrar Valentina no camarote. Teve uma verdadeira decepção, logo que entrou na antecamara que o precede, por não ver os cabellos louros, os doces olhos azues que esperava, mas sómente a pequena e caracteristica cabeça da senhora de Bonnivet, os largos hombros do duque de Arcole, a pallida e fina figura de Abel Mosé, e o rosto amargurado de Chalinhy, que se adiantou para lhe dizer: --«A Valentina pediu-me para a desculpar para comtigo, minha cara Joanna. Sentiu-se repentinamente um pouco incommodada e deitou-se». --«Não é nada de cuidado, não é assim?» perguntou Joanna. --«Não», respondeu Chalinhy, «uma simples enxaqueca.» Depois no entre acto, e quando estavam sós, sentados n'um mesmo sophá, na pequena ante-camara, na qual os frequentadores do camarote tiveram a discrição de os deixar em amavel coloquio, sem que o marido receioso se offendesse de esta vez, commentou baixo: «Não sei o que ha. Estava perfeitamente esta manhã. De tarde fez algumas visitas, e recebeu, como é costume, ás 5 horas. Ás 6 horas entrou tua tia, a senhora de Nerestaing, e estiveram sós uma meia hora, se tanto, segundo as informações que colhi. Quando eu cheguei terminaram a conversação. «Ao sairem as duas da sala em que estavam, pelo aspecto de Valentina, notei que a senhora de Nerestaing lhe acabava de fallar de qualquer coisa grave, que me dizia respeito, ou antes que nos diziam respeito...» --«Lá estás tu novamente com os teus receios» interrompeu Joanna, encolhendo os seus formosos hombros. «Porque imaginas que a tia de Nerestaing se occupa com as nossas pessoas? «Estou um pouco indifferente com ella ha uns dez annos. Não me vê nunca e nem mesmo pensa em mim. E emquanto Valentina, ninguem tem nada a revelar-lhe, tenho-me cansado a repetirt'o.» --«E eu repito-te que Valentina ainda esta manhã não suspeitava de coisa alguma. Não me teria fallado a teu respeito, sendo tão franca, pela maneira porque o fez ao almoço. Despedi-me d'ella á uma e meia, e nos termos mais affectuosos. Fui depois encontral-a completamente transtornada. Quando lhe perguntei o que tinha, vi perfeitamente que tremia ao som da minha voz. Quiz apertar-lhe a mão, com difficuldade conseguiu estender-me a sua. Ás minhas perguntas, respondeu pretextando uma violenta enxaqueca. Fallei em chamar o medico, recusou. Necessitava apenas um pouco de repouso. Deixei-a ir, porque eu estava tambem muito perturbado. Tinha receio de me trahir, se insistisse em querer saber a causa da sua mudança subita... Se isto não são provas evidentes de que ignorava tudo e tudo acabavam de lhe contar, o que é então?» --«E se assim foi?» diz a amante, «e depois»? --«Como, depois?» replicou Chalinhy. --«Sim, depois», insistiu ella, «se me amas não deves estar satisfeito por ter acabado esta situação tão falsa, tão humilhante para mim sem que tu tivesses concorrido para isso? Não podemos conversar mais agora; vem alguem.--Tens razão, é Saveuse que chega. Ámanhã ás 11 horas da manhã irei saber noticias de Valentina. Não é mais do que um pretexto, tranquiliza-te...» acrescentou ella, com um sorriso d'uma ironia caracteristica, arregaçando os labios finos ao canto da bocca n'uma ruga cruel. Pouco depois já os seus labios frementes estavam calmos, e os olhos, pelos quaes passou um lampejo de cholera, se adocicavam para o frequentador dos fauteuils d'orchestra que entrava, o barão Saveuse, uma das peores linguas de Paris. Este velho mal intencionado, pondo sómente em pratica expedientes equivocos, encontrou meio de se tornar tão temido pela verdade das suas maledicencias e pelo acerado das suas observações, que é tão poupado quanto despresado. A estima d'estas personalidades perigosas e que Joanna mais se esforçava por adquirir, depois da ligação com o marido da prima; por isso, foi particularmente amavel para este mau homem, insistindo com elle para que passasse o acto seguinte no camarote. Era d'estes propagadores da opinião que queria ter por seu lado, d'estes destruidores de reputações que desejava ver contra a prima, se em alguma occasião recomeçasse a vida em condições difficeis de ser bem recebida no seu meio. E depois, tinha ainda de renovar n'essa mesma noite uma conversação muito grave com o amante, para ser realisada debaixo do olhar inquisitorial da senhora de Bonnivet e sobre tudo d'um Abel Mosé. Calculava que Chalinhy quereria a todo o custo reatar uma tal conversa, e que não podendo fazel-o no camarote, aceitaria, no final do espectaculo, um logar que lhe offerecessem na sua carruagem. Esta imprudencia, que raras vezes commettia, era no caso presente um acto de sisudez. Se era inutil o saber-se que um drama intimo se desenrolava no viver dos Chalinhy, era muito util, em caso de escandalo, que se tornassem bem patentes as relações de Norberto com ella. Se o theatro lyrico tem um successo enorme para as senhoras e cavalheiros da _Sociedade_, não é sómente porque o ruido da musica, «mais caro do que os outros», como dizia Gautier, acompanha agradavelmente a conversação, é tambem porque a orchestra e o canto permittem, que o ouvinte se cale, fingindo que lhes presta a maior attenção, sendo certo que se entrega a longos soliloquios interiores, nos quaes uma pessoa negligentemente encostada ao veludo vermelho do camarote, não trata nem da _Salambô_, nem do _Lohengrin_, nem do _Romeo e Julietta_--era a opera que se cantava n'essa noite--mas de problemas tão pouco carthaginezes, germanicos ou italianos, como o que a baroneza analysava n'aquelle momento, parecendo inteiramente absorvida pela melodia:--«A Valentina fingiu-se doente. «Tem receio de se tornar a encontrar frente a frente comigo. Pois bem! Tanto melhor! Sómente era necessario que não tentasse inventar um subterfugio, e a sua attitude com Norberto, depois da visita da tia Chalinhy, dava mostras d'isso... Mas que fim teria em vista? Representar a comedia da indignação e abandonar a sua propria casa... Como me julga! «Imaginou que o primeiro acto seria denuncial-a. E eu que estava resolvida a nada dizer!... Sim, tremeu por se ver descoberta; e quer ser a primeira a romper--tomando para si o papel mais sympathico. Chamou a tia, que me detesta, para lhe contar que eu e Norberto a trahimos. É a verdade, e depois, se for accusada por sua vez, toda a familia estará do seu lado. Norberto e eu sómente a calumniamos para nos vingarmos... Se é este o seu plano, veremos. Ah! Não descançarei... Mas é necessario que Norberto esteja do meu lado,--inteiramente--_é necessario_...» Este pequeno monologo, começado e recomeçado atravez dos varios incidentes d'uma representação na opera--commentarios sobre a sala e os cantores, novas visitas, ver com o binoculo os frequentadores dos outros camarotes e a orchestra--era extremamente malevolo em determinados pontos. A baroneza de Node não estava ainda convencida disso. Sobre uma particularidade incidia toda a sua perspicacia: a necessidade de não deixar o enigmatico e complexo Chalinhy entregue ás suas proprias exhitações. A audaciosa baroneza ficou convencida desde essa tarde que não podia confiar n'elle. De balde envolvera o seu corpo esbelto n'um bello vestido de pellucia encarnada, graciosamente decotado, de maneira a deixar a descoberto os seus hombros deliciosos, o desejo de estreitar nos braços a amante, uma tão formosa creatura, com aquella _toilette_ tão provocante e propositadamente preparada para o estontear, actuou menos no espirito do marido de Valentina, do que o escrupulo de afrontar os olhares das pessoas das relações da esposa, que o vissem partir na carruagem com a outra. Acompanhou-a até ao _coupé_ e quando, depois de se ter chegado para um dos cantos para lhe dar logar, ella lhe perguntou: «Não queres que te leve a casa na minha carruagem?» respondeu: «Agradeço-te muito mas tenho de ir ao club...» Joanna ficou tão estupefacta com a resposta, que o deixou fechar a portinhola, sem nada fazer a não ser envolvel-o n'um olhar tal, que o fez córar. --«Magoei-a» pensava elle, seguindo a pé a rua Scribe, realmente em direcção ao club, com o fim unico de, no dia seguinte, poder dar a sua palavra, sem mentir, de que o ter de ir ali foi o unico motivo da sua recusa. «Pobre rapariga! Estava tão bonita, tão terna!... Não comprehende que a não posso defender contra a Valentina a não ser que esta não tenha provas do nosso delicto. «E esta entrada dos dois na mesma carruagem, depois da recita na Opera, estando já Valentina avisada, era realmente uma prova. «Foi com certeza avisada. A senhora de Nerestaing nunca gostou de mim e tambem não gosta de Joanna. Quer mostrar-nos a sua má vontade. No fim de contas podia ter referido só ditos vagos, não apontando factos positivos. «Eu saberei tranquilisar a Valentina, contanto que a Joanna me não impeça de o fazer. É um dever para com as duas.» Estes pensamentos reproduziam perfeitamente a falta de logica da situação, quasi sempre identica, a que chega qualquer homem, quando se deixa arrastar á perigosa tentação, tão natural em certas sensibilidades de ter duas mulheres ao mesmo tempo. Este dualismo de affecto--porque se Chalinhy trahia Valentina, estava esta bem longe de lhe ser indifferente--complicava-se, no caso presente, com os intimos laços de parentesco, muito propicios a estreitar uma tal ligação, mas que deviam produzir no futuro peripecias bastante embaraçosas e difficeis. Por mais inconcebivel que um igual erro de previsão possa parecer, nunca este marido infiel tinha acreditado na possibilidade de ser abandonado pela mãe de seus filhos, se um acaso a fizesse conhecedora da verdade. Tinha até então unicamente receado a sua dôr; pela primeira vez temia a sua separação. Não antevira tambem, nunca, a possibilidade real de um rompimento com Joanna, bem que a sua razão lhe demonstrasse que esta solução seria inevitavel, mais tarde ou mais cedo, e, no final, a sua salvação. Sempre--e ainda n'essa tarde, mesmo depois de ter tido a coragem de sacrificar á prudencia a entrada na sua carruagem e as voluptuosidades que promettiam os olhos da amante, tão tentadora, tão branca, em contraste com a côr do vestido--sim, sempre, que pensava n'um tal rompimento, a recordação dos beijos d'essa bocca inebriante empolgava-o. Esta recordação quebrava e fazia desfallecer a fibra da lealdade. A sua vontade enfraquecia antecipadamente, sem que esta fraqueza fosse até ao ponto de o submetter de todo á sujeição que lhe parecia ler, cada dia mais claramente, nas suas maneiras, por vezes tão imperativas: Onde pretendia conduzil-o a amante omnipotente! Poderia tel-o comprehendido melhor se tivesse podido ver, logo que se fechou a portinhola do _coupé_, crispar as lindas mãos, e, n'um accesso de cholera, quebrar o leque e repetir, gritando dentro da carruagem em que Norberto não tinha querido entrar: --«Ah! o cobarde! o cobarde! Isto é por causa d'ella, por causa d'ella, por causa d'ella...» E recordando-se do que sabia a respeito de Valentina, ria com um riso insultante, no qual se expandia o seu orgulho ferido... Não era este orgulho que tinha nos olhos e em toda a physionomia no dia seguinte, pela manhã, quando transpoz os humbraes do palacio dos Chalinhy, ás 11 horas, como na vespera. Ás nove, recebeu um bilhete de Norberto perguntando-lhe se podia ir á rua Barbet-de-Jouy, ao qual respondeu que não fosse, que ia ella á rua Varenne. A noite fôra-lhe boa conselheira. Arrependeu-se de lhe haver imposto uma prova, e deante de testemunhas, á sahida da Opera. Quando desejamos exercer um supremo esforço sobre alguem, é um erro tentar outros menores. E depois, desejava sobretudo ver Valentina, e temia que a visita de Norberto a sua casa tivesse por fim impedir um encontro entre as duas primas. Como não recebeu mais noticia alguma, depois do bilhete, concluiu que nenhum novo incidente se havia dado. Encontrou-o, á sua espera, só, na antecamara da esposa, com o semblante sempre cheio de inquietação e os olhos inchados por não ter dormido. --«Ainda hoje a não vi», respondeu á interrogação de Joanna. «Mandou-me dizer que estava melhor, mas que se sentia ainda muito incommodada para me receber.» --«Não é portanto a narração que a tia Nerestaing lhe poderá ter feito a respeito da sahida da Opera que lhe forneceu novos indicios», diz Joanna com uma graça na voz e no olhar que suavisava, com uma caricia, a ironia da reprehensão, e, tomando-lhe a mão, accrescentou: «Chorei muito hontem, na carruagem, mas, afinal, reconheço que tinhas razão!...» --«Minha amiga...» respondeu Chalinhy, attrahindo-a para si, e dando-lhe um beijo, no qual vibrou uma emoção muito differente d'aquelle delirio dos sentidos em que Joanna habitualmente fazia consistir o seu principal dominio. Era muito intelligente para o não perceber logo, e esta evidencia fez reviver de novo o germen da inveja depositado no intimo do seu coração: este enternecimento era motivado pela perturbação do marido por causa da mulher. Era tambem o reconhecimento para com a amante por se ter associado na vespera á tranquilidade do seu lar! Beijou-o tambem, e perguntou-lhe com meiguice: --«Dás-me licença que a vá ver? Se me receber, disse a amante, será a prova evidente de que os teus receios são imaginarios...» --«E se te não receber?...» --«Recebe-me com certeza», replicou com uma grande convicção que acompanhou d'um olhar de triumpho, quando a creada veio annunciar: «A senhora marqueza espera pela senhora baroneza.» A despeito da sua ousadia, natural e alegre, a amante estava muita nervosa por ter d'ir assim ao encontro da esposa legitima. Muito embora se achasse convencida, desde a vespera, de que possuia o meio seguro de responder ás accusações da rival, não era menos verdade que, sendo estas formuladas na sua propria casa, Joanna ia talvez assistir a uma scena extremamente desagradavel, e que se arriscava a ter uma decisiva influencia no seu futuro. Se, por exemplo, Valentina lhe dirigisse uma affronta muito violenta e Norberto não tomasse o partido d'ella?... O coração batia-lhe apressado ao entrar no quarto da prima, ao qual as bambinellas descidas davam a obscuridade tão preconisada para as enxaquecas, e suficiente para que a recemchegada não podesse ver a extrema palidez da doente. A marqueza de Chalinhy estava deitada, e os seus bellos cabellos louros formavam uma só trança, que dando volta vinha propositadamente cahir-lhe sobre o rosto, como que para lhe encobrir a bocca e as faces. Estas duas feições que ficavam visiveis, perdiam-se na penumbra, mas os olhos brilhavam intensamente com o brilho da febre. Por maior que fosse a sua força de vontade--porque recebia aquella de cujas relações com o marido sabia desde a vespera, com a resolução firme de continuar a fingir que as ignorava--a sua impressão, em presença da prima, foi tão violenta, que involuntariamente se lhe cerraram as palpebras e um tremor convulso lhe agitou todo o corpo sob a coberta de finos bordados. O seu soffrimento era deveras evidente, para que a calumniadora o podesse classificar de simples comedia. Mas se Valentina tinha realmente visto a baroneza, na vespera, em frente da porta da casa das suas entrevistas, e se imaginava o seu segredo surprehendido, não era muito natural a sua perturbação, e muito natural tambem que quizesse medir-se, frente a frente, com a inimiga para, por seu lado, saber com o que podia contar? Porque então este tremor, quando a perfida se inclinou para a abraçar. Porque esta retirada involuntaria do seu rosto afogueado, esta intuitiva contracção de todo o seu ser, que ella explicou, dizendo n'uma voz quasi apagada: --«Estou tão nervosa. Passei muito mal a noite. Não posso suportar nem a luz, nem o contacto de qualquer corpo estranho...» --«Que tens então?» perguntou Joanna. --«Um grande cançaço, e uma violenta dôr de cabeça. Quiz ver-te, para te pedir desculpa por não ter ido hontem á Opera. Mas não podia... Estiveste até ao fim?» --«Estive.» --«E acompanhaste o Norberto?» perguntou a senhora de Chalinhy. «Elle dispensou a carruagem...» --«Chegámos ao ponto melindroso,» pensou para si a amante. «Recebeu-me para me fazer esta pergunta. É o pretexto para uma scena? Uma scena! Não a terá...». E disse, em voz alta: --«Não. Offereci-lhe um logar na minha carruagem e elle recusou, dizendo que tinha d'ir ao club...» Pareceu-lhe--a penumbra é muito enganadora--que um vivo rubôr subira ás faces descoradas da marqueza de Chalinhy e que os seus olhos denunciaram uma muito extranha emoção; mas, no seguimento da sua idéa, não interpretou devidamente estes signaes, tão faceis comtudo de comprehender. Não via n'elles a prova de que Norberto adivinhou e muito bem que a sua traição fôra revelada, d'uma maneira fulminante, áquella de quem tão facilmente tinha abusado! Um conjuncto de circumstancias muito casuaes produziu esta revelação mais tarde ou mais cedo inevitavel; mas a sua coincidencia com a descoberta feita pela propria Joanna na vespera, dava ao acontecimento uma gravidade decisiva. Eis os factos em toda a sua simplicidade:--Julio de Node, como a mulher, pensava tambem em restabelecer a sua casa, cada vez mais compromettida, por meio d'um novo e rico casamento. Offerecia-se-lhe agora uma boa occasião. Precisava por isso, da mesma maneira que Joanna pensára, fazer transformar a acção de separação em divorcio. Esperava que a mulher lhe não levantasse difficuldades. Sabia pelo rumor publico, e por informações mais positivas, da ligação d'ella com o marido da prima. Cortou as relações com toda a familia da esposa, excepto com a tia de Nerestaing, que, melindrada pelo procedimento da sobrinha para com ella, tomou o partido do marido. Julio de Node calculou, pois, que a velha fidalga seria a melhor mensageira para uma negociação tão delicada. Tratava-se de ameaçar a baroneza com o escandalo, se não acceitasse o divorcio. A velha senhora de Nerestaing chegou á rua Varenne, inteiramente preoccupada com a incumbencia, e persuadida de que Valentina nada ignorava, e que supportava tudo por causa dos filhos.--Joanna estava, pois, já em presença dos effeitos produzidos por aquella empreza. Não a conhecia nos seus detalhes, e, ainda mesmo que a conhecesse, faltavam-lhe os dados precisos para medir bem o seu effeito na alma profunda da companheira d'infancia. Conhecia ainda menos a nobreza e a candura d'uma tão bella alma. Em compensação, julgando-se senhora do criminoso segredo, occulto por apparencias de encanto e severidade, interpretou erradamente o rubôr e os modos da prima. Não viu n'elles o pathético abalo d'um coração, no qual uma suspeita indigna produziu um grande mal, e que se debatia na agonia negra da duvida. «Não esperava esta resposta», pensou Joanna. «O que fará agora? E se eu propria lhe falasse da rua Lacépède?... Ver-me-hia deante da casa? Saberá que surprehendi a sua intriga amorosa, e quererá sómente tornar-se livre, dando como pretexto a nossa intimidade!...» E depois, alto, com todas as caricias da mais eterna amizade na dicção, dizia: Em que posso ser-te util, minha querida, que queres que faça? --«Nada», respondeu Valentina, e, com um sorriso de soffrimento, accrescentou: «A unica cousa que presentemente podes fazer é deixar-me, pois que já te vi... Algumas horas de repouso e a doença passará. Não é mais do que um resfriamento, verás.» Estendeu a mão a Joanna, e quando esta, para se despedir, pousou de novo os labios sobre a sua fronte ardente não sentiu o mais pequeno movimento reflexo, o instinctivo retrahimento animal de todo o momento. Era que atravez dos vae vens do seu espirito atormentado, n'essa noite, ora acceitando, ora repellindo as provas convincentes, que, infelizmente, sua tia lhe deu--as da devassa de Julio de Node--todo o pensamento da esposa trahida se fixou n'este ponto: «Passam a noite juntos. Se é verdade o que dizem, vae com ella na carruagem...», e pela primeira vez esta sensibilidade fina e casta, tão cruelmente calumniada--em face de apparencias bastante graves--por aquella que a atraiçoava, sentiu o supplicio do ciume. O facto de saber que os dois cumplices não tinham aproveitado a opportunidade para irem na mesma carruagem, deu tréguas, por alguns instantes, á crise de dor moral que experimentava desde a vespera. Ia realmente poder descançar e retemperar as forças, emquanto Joanna, entrando no pequeno salão onde o amante a esperava, ancioso, lhe dizia--Então Chalinhy? --«Então! Tinha ou não tinha razão? Tem unicamente uma forte nevralgia e nada mais... Podes estar tranquilo», continuou com ironia um pouco differente do insensato motejo que empregou á chegada. «Não serás ainda d'esta vez obrigado a escolher entre nós ambas, e a preferil-a a ella.» --«Porque me fallas assim?» disse Chalinhy, estremecendo como quem acaba de ser tocado n'um ponto muito doloroso. «Sabes muito bem que não ha para mim nada mais desagradavel...» --«Porque?»--interrompeu ella.--«É porque te amo e porque te quero só para mim, entendes, só para mim!...» E o beijo que acompanhou esta exclamação apaixonada nada tinha de commum com as caricias ternas que precederam a visita ao quarto de Valentina. Sem poder reconhecer a verdade completa, sentiu, comtudo, durante a curta entrevista que estava eminente uma catastrophe. Os poucos minutos passados n'esse quarto, ligeiramente illuminado, bastaram para lhe dar a impressão de mudança nos acontecimentos que denunciavam a approximação do desenlace nas tragedias latentes, como são as que apresentam certas ligações antecipadamente destinadas a produzirem complicações violentas. O que lhe importava de Valentina ou de si, se o conflicto entre as duas chegasse ao periodo agudo que via tão proximo, e em que estava já com effeito, por motivos muito differentes do que a sua descoberta da vespera lhe fazia prever? A evidencia de uma crise decisiva no longo duello que sustentava contra a prima, no seu proprio pensamento, e, havia um anno, no coração de Chalinhy, fez repentinamente reviver a energia, por um momento adormecida, do seu antigo odio. --«É a guerra, pois seja», ia dizendo consigo ao deixar o palacio, cuja imponente fachada, com as suas largas pilastras de capiteis jonicos, que acompanham os dois andares, observou durante algum tempo. E pareceu-lhe ter visto á direita, por detraz d'uma das janellas do quarto de Valentina, apparecer uma cabeça em atitude de observação. Era bem verdade que a pobre senhora, ficando só, desvairou de novo com a idéa d'uma conversa, sem testemunhas, entre o marido e a prima, e fez o esforço de se levantar para constatar ella mesmo o momento em que terminaria. Retirou-se logo que viu a outra voltar a cabeça rapidamente. Joanna surprehendeu-a na espionagem, bem innocente, comparada com a perseguição em carruagem desde o «boulevard» dos Invadídos até á rua Lacépède. Uma e outra espionagem egualaram-se no seu espirito, e a sensação d'uma batalha travada tornou-se ainda mais intensa. --«Esta tão doente como eu», pensou Joanna. «O meu instincto tinha razão. A enxaqueca é fingida... O que quererá ella? Não vejo claro nos seus designios. Em todo o caso é forçoso tomar-lhe a dianteira. Entre mim e Norberto ha apenas um obstaculo, acabei de o reconhecer ainda ha pouco: as illusões que tem a seu respeito. Ella sabe-o tambem como eu... Que eu seja inepta! Foi para adivinhar se tinhamos fallado a seu respeito que me chamou ao seu quarto. Comtudo se reconhece que me calei, vae proceder... Ah! tanto peor para ella; é a guerra». E repetiu com uma profunda accentuação: «É a guerra!» A inveja inconsciente, amontoada n'ella por innumeras impressões da infancia e da juventude, renovou-se com grande intensidade. Esqueceu, por isso, as regras mais elementares da probidade feminina e as observações que fizera para comsigo mesmo, em face da sua consciencia, depois do encontro no grande armazem, na outra semana, e na vespera, quando voltava da investigação policial. Eis ahi a rasão porque n'essa noite, ao regressar, proximo da meia noite, do club, o marido de Valentina encontrou entre a correspondencia da ultima distribuição uma carta, cujo endereço, escripto em lettra tombada e evidentemente disfarçada, o impressionou logo. Trazia a marca da estação da praça da Bolsa. Abriu-a com o presentimento justificado pela infame carta anonyma, que continha sómente as seguintes palavras, traçadas com a mesma lettra disfarçada: _«Um amigo do Conde de Chalinhy convida-o a vigiar o n.º 11 da rua Lacépède. A marquesa de Chalinhy esteve ali ainda hontem ás tres horas da tarde. Com quem? É o que sem duvida interessa ao marquez... A bom entendedor...»_ Trazia como assignatura: «Alguem do Club...» VI Orgulho de homem O primeiro movimento de Chalinhy, depois de ler e reler a abominavel carta, foi amarrotal-a com a repugnancia desdenhosa que merecem taes missivas, e deitou-a no fogo quasi extincto do fogão do quarto. O seu segundo movimento, como ouvisse approximar o creado, que havia chamado, foi tornar a apanhar o papel denunciador que as brazas do fogão tinha apenas enegrecido nas extremidades e metel-o na gaveta da banca de cabeceira, d'onde a tirou de novo logo que ficou só. Sabe-se que o auctor d'uma carta anonyma, tornando-se culpavel d'uma tão despresivel acção, destruiu de golpe todo o credito do seu testemunho, e, por isso, a melhor maneira de o punir é annular a sua preversidade, desprezando-a. Mas, apesar d'isso, noventa por cento das vezes é essa preversidade que vence a nossa razão. Essas phrases escriptas propositadamente para nos ferirem n'um ponto bem vulneravel, e que, pelo facto de não terem assignatura não deviamos ler, lemol-as palavra por palavra. Deixamos cada syllaba injectar-nos o seu mortal veneno, sentimos rugir dentro em nós a impotente e dolorosa cholera do homem ultrajado, que não sabe d'onde vem a tempestade, e que, não tendo a faculdade de se vingar d'ella, não tem força para a esquecer. --«Mas o que é isto?... O que é isto?...» É naturalmente a primeira pergunta suggerida pela cholera. Foram tambem as palavras que o marido de Valentina repetiu, com uma energia de furor sempre crescente, á medida que as phrases, que insultavam mais vivamente a sua honra de esposo, se tornavam cada vez mais nitidas. Analysou, depois, demoradamente, todos os caracteres d'essas phrases e não chegou a descobrir um unico traço que correspondesse a uma lettra sua conhecida, tão grande foi a habilidade de Joanna ao confeccionar essas funestas linhas. Levou a sua precaução até empregar meia folha de papel do usado no club de Norberto, porque entre a correspondencia do marquez encontrou uma carta que d'ali lhe havia escripto, com a terceira e quarta paginas do papel completamente em branco. Chalinhy reconheceu logo o papel, e viu n'elle o indicio de que o insulto provinha d'um dos consocios com quem se encontrara todos os dias. Teria estado com elle n'essa mesma noite? Talvez que no momento em que atravessava os salões, á sahida, esse homem o seguisse com o olhar, sorrindo de antemão do papel deitado na caixa e que caminhava ao seu encontro, sem que, sequer, de tal suspeitasse. A realidade da existencia da mão que tocou esse papel, do cerebro que pensou essas phrases, do inimigo desconhecido que lhe vibrou o golpe, perturbava-o. É uma das duas imagens que a carta anonima naturalmente suscita: a do odio que a dictou. A outra imagem é a do facto denunciado por esse odio. Podemos duvidar de tal facto, o que não devemos é duvidar do odio. Olha-nos occulto pela sua mascara; e é assim que nos ameaça e nos fere. E porque? Um arrepio percorre a fibra mais intima da nossa alma ao contacto d'esse rancor encoberto, mas muito forte para ter descido a tão grande baixeza para se saciar. É então que da sensação d'uma pessoa que contra nós se dirige na sombra, passamos sem querer á segunda: uma suggestão emanada do papel que nos representa essa pessoa. Para que, odiando-nos tanto, tenha escolhido entre todas as injurias precizamente aquella, é porque lhe liga uma capital importancia. «É porque a julga fundada n'um facto real.» --«Rua Lacépède? Onde fica esta rua?...» perguntou Chalinhy depois de ter passado pela imaginação todos os seus consocios do club com os quaes estava n'uma situação mais equivoca, e não conseguindo fixar as suspeitas sobre um determinado. Como se vê, procurava uma pista: começava a meditar, não sobre a origem da carta, mas sobre o seu contheudo. Foi ao escriptorio buscar um annuario onde podia encontrar a nomenclatura de todas as ruas de Paris com a indicação do bairro em que ficam e quaes as arterias differentes que com ellas communicam. Confiou em que ali descubriria as informações que procurava: «Rua Lacépède, quinta circumscripção administrativa.--Rua Geoffroy--Saint-Hilaire». E a seguir como primeiro endereço: «1, Hospital da Piedade». Esta indicação permittiu-lhe pelo menos precizar a situação da casa que o denunciador anonymo ironicamente lhe indicava que vigiasse. Á ideia do hospital associou-se logo a do Jardim das Plantas, que conhecia por ter alli ido umas quatro vezes na sua vida, se tanto. A impressão que fizera hesitar Joanna, quando a sua carruagem seguiu a de Valentina, avivou-se no parisiense elegante, ao recordar-se do miseravel aspecto d'aquelle bairro. Só o imaginar a figura da esposa n'um tal meio, pareceu-lhe um absurdo tão grande, que encolheu os hombros n'um gesto de incredulidade. Amachucou de novo a carta anonyma, e, tomando-a entre os dois ramos da tenaz, pouzou-a sobre as achas quasi consumidas, esperando d'esta vez que o papel ardesse completamente. --«É uma mystificação imbecil», disse, acabando de desfazer com a tenaz os destroços enegrecidos; «devia tel-o pensado logo». Deitou-se impressionado por esta conclusão, que lhe parecia decisiva, e adormeceu, tão tranquillamente, quanto lho permittia o seu estado de agitação. Apezar da certeza de Joanna, e, posto o facto de esta ter sido recebida no quarto da esposa, o levasse a crer que a sua doença era effectivamente physica, um invencivel presentimento continuava a dar-lhe como suspeita a visita da velha senhora de Nerestaing e a attitude de Valentina depois d'ella. Foi este pensamento que o decidiu no dia seguinte, pela manhã, quando a encontrou já levantada e vestida, mas ainda visivelmente incommodada e muito palida, a referir-lhe, gracejando, o teor da carta anonyma recebida na vespera. Calculou que a ligeira allusão feita a esse documento nenhuma importancia teria, se nada houvessem anteriormente dito a Valentina, e que, pelo contrario, se lhe tivessem feito quaesquer revelações, talvez encontrasse no tormento que o gracejo lhe causaria motivo para a interrogar. --«É verdade», continuou elle, depois de ter começado por lhe declarar que ia contar-lhe uma historia que a devia fazer rir. «Imagina tu que tens inimigos que não recuam deante d'uma carta anonyma. Recebi hontem uma á noite, convidando-me a vigiar-te, quando sáes. «Parece,» continuou elle, «que tens entrevistas. Vejamos, procura bem... Não encontras?... 11, rua Lacépède...» Não tinha ainda acabado de pronunciar estas palavras e já o sorriso se lhe apagava nos labios, deante do aspecto de terror que vio na physionomia da esposa. Uma onda de sangue inundou repentinamente o seu rosto fatigado, que se tornou logo d'uma palidez mortal. Por um movimento de supplica, que não poude reprimir, poz as mãos. Depois passando-as por sobre a fronte, como quem soffre muito, disse: «Ah! vou-me embora» e retirou-se. Estes evidentes signaes d'uma tão estranha emoção fizeram naturalmente suppor ao marido que o nome da rua e o numero da casa indicados na carta anonyma correspondiam a um segredo na vida da esposa. Depois d'isso, os carinhos que lhe prodigalisava por humanidade, eram tão claramente misturados com o desejo evidente de a interrogar que ella com facilidade o adivinhou. Foi por isso que as primeiras palavras que lhe disse equivaliam a uma supplica, para lhe não infligir essa tortura no estado nervoso em que se encontrava: --«Perdoa-me, meu amigo», disse tratando-o por tu e com uma grande ternura, tratamento que poucas vezes empregava mesmo na intimidade «perdoa-me se não soube dominar-me quando me falaste d'essa infame carta que te dirigiram contra mim, senti profundamente a crueldade do mundo, e isso fez-me muito mal, um extraordinario mal, porque acabava tambem de a experimentar, e d'uma maneira muito cruel para mim, n'uma outra occasião.--Não procures saber quando». Pousou a mão sobre o braço do marido para lhe implorar que não a interrogasse mais. «Não to diria nunca... Então quando vi que a calumnia tambem procurava realisar a sua obra junto de ti, todos os desgostos porque tenho passado nos ultimos dias se me concentraram no coração, e as forças trahiram-me...» Estava tão tocante assim, de todo o seu ser emanava uma tal certeza de lealdade e de delicadeza, que Norberto, sentindo acordar em si tudo o que tinha de honesto e bom, apezar das suas criminosas fraquezas, não lhe resistiu. Elle que na vespera tinha vibrado de cholera ao ver que havia quem se tivesse permittido escrever o nome da marqueza de Chalinhy n'uma phrase de accusação tão clara, acabava agora de observar o effeito de espanto produzido por essa accusação e ficou physicamente incapaz de a interrogar, de a forçar á explicação d'uma transformação tão singular. Era que ao vel-a no proprio momento em que um enygma tão completamente inexperado lhe surgia deante, não podia mais duvidar d'ella como se não duvida da luz do dia. Era tambem que, ao ouvir as palavras: «Acabava tambem de experimentar a crueldade do mundo...» comprehendeu que tudo adivinhára, e que a sua ligação com Joanna de Node fôra denunciada a Valentina. Eis pois o motivo porque estava doente havia quarenta e oito horas. O seu soffrimento constitue a prova de que estava innocente, ao contrario do marido,--e que o amava. Chalinhy não percebeu distinctamente todas estas coisas, principalmente a ultima, que tocava o fundo mais obscuro do seu viver conjugal. Mas sentia-o e respondia a este lamento tratando tambem por tu a esposa, pela primeira vez, havia, talvez, muito tempo. --«É verdade. Estás ainda tão pallida. Talvez te seja necessario mais um dia de repouso... Se tens tido desgostos, contarmos-has quando estas miserias passarem. Encontrar-me-has sempre prompto a auxiliar-te e a proteger-te nos momentos mais difficeis.» Olhou-o com o olhar cheio d'um infinito reconhecimento pela prova de affeição que acabava de dar-lhe, respeitando a susceptibilidade do seu coração. Depois, como se esta conversa lhe fosse tambem muito incommoda, levantou-se, dizendo: «Creio que tens razão e que devo deitar-me... Até logo, e obrigada...» Imprimiu a esta ultima palavra, acompanhada d'um sorriso forçado, tanta graça enternecida que Chalinhy ficou commovido e admirado ao mesmo tempo. Ficando só, começou a pensar, no pequeno gabinete, absorvido em reflexões tão contradictorias que sómente a sua incoherencia era para elle um soffrimento. Muitas impressões oppostas, e hypotheses variadas, lhe passavam pelo espirito, e sobre tudo muitas coisas confusas para a sua propria sensibilidade, começavam a desvendar-se sem que podesse comtudo torna-las nitidas. Depois que se deixou enlevar pelas seduções que a coquette e intelligente Joanna lhe exercia no animo, as suas relações com Valentina tornaram-se cada vez mais automaticas, se assim se póde dizer, e convencionaes. É o grande perigo para os casaes que vivem constantemente no grande mundo. O marido e a mulher cumprem ali uns deveres de etiqueta que acabam por modelar o seu viver intimo e conjugal pelo mesmo typo da existencia exterior e social. Quando se veem, pela manhã, é para fallarem das mais insignificantes questões que se prendem com as sahidas constantes: quem se deve convidar para jantar, para ir ao theatro, que convite se deve acceitar. Alguns acontecimentos dos salões que frequentam e do club, e passou-se uma hora sem se trocar uma palavra verdadeira. Almoçaram e ainda mesmo que não esteja presente nenhuma pessoa das relações, os creados na constante permanencia junto d'elles para os servir, evitam aquella familiaridade que faz a bonhomia, um pouco vulgar, mas tão propicia á boa harmonia, á união, das modestas mezas burguezas. Mais tarde quando os filhos são já crescidos a professora e o preceptor constituem mais um elemento de retrahimento, durante a refeição. Logo que termina, o marido vae, sem demora, tratar dos seus negocios, fazer visitas, ao club; a esposa passa o tempo na rua, em cumprimentos e diversões compativeis com o circulo sempre crescente das suas relações parisienses. Jantam fóra, ou teem convidados para jantar. Vão ao theatro. Podiam contar-se as noites que passam em casa, só, na verdadeira intimidade conjugal, e teem até aposentos separados--como os marquezes de Chalinhy. Regressam silenciosos e concentrados, sem mesmo quererem saber um do outro. Esta ignorancia reciproca de dois conjuges que vivem debaixo do mesmo tecto, recebem juntos e representam juntos na figuração quotidiana d'uma existencia da moda, é um dos phenomenos mais incomprehensiveis para os observadores de fóra. Só assim se explica, principalmente da parte dos homens, determinadas cegueiras que seriam deshonrosas se não fossem produzidas pela mais poderosa das causas de illusão: a cohabitação sem sinceridade, sem franqueza. Assim se explicam, pelo contrario, certas mudanças cuja falta de logica desconcerta a maledicencia d'esses observadores estranhos: um marido que durante annos desprezou a mulher, volta para junto d'ella, tão apaixonado, como se acabasse de a conhecer, de a descobrir. Conheceu-a effectivamente, por um acento de voz, por um gesto. Feliz quando a que por tanto tempo desconheceu, se lhe não revelou por qualquer virtude despertada pela ternura d'um outro! Estas observações, d'uma ordem bem pouco elevada, bem horrivel, cuja triste verdade será reconhecida por muitos _menages_ invejados pelo brilho do seu luxo, deviam ser recordadas para completa intelligencia do seguinte monologo de Chalinhy. Era como se n'alguns simples momentos de conversação Valentina se lhe tivesse revelado uma mulher que não conhecia. Ó contradição dos falsos sentimentos! O marido perfido tremia pelo futuro da sua ligação com a amante e, ao mesmo tempo, esforçava-se por esquecer a suspeita a respeito da esposa, sugerida pela carta anonyma e confirmada pela sua agitação quando lhe falou de ella. --«Como estava commovida ainda agora; e como vale bem mais do que eu! Não pude resistir a fallar-lhe d'essa infame carta; a citar-lhe a rua e o numero da casa! «É uma calumnia ignobil, abjecta, e o que a tia lhe contou, uma verdade irrefutavel, pois apesar d'isso nada me disse. «Ter-se-hia calado semanas, annos, sempre, sem o golpe que lhe vibrei, repetindo semilhante vilania. Como ficou assombrada! Mas era naturalissimo, desde que tinha no coração o peso de esta outra denuncia! «Que havemos de fazer, eu e Joanna? Ainda que no momento actual Valentina se recuse a acreditar o que se passa entre nós, de futuro, mesmo contra sua vontade, observar-nos-ha, e depois Joanna é tão audaciosa! Se tivesse aceitado o convite para ir na sua carruagem á sahida da Opera, e que Valentina o soubesse, teria uma pequena prova em favor da accusação... Como as suspeitas nascem rapidamente! Quando lhe mencionei o numero 11 da rua Lacépède, que a vi empallidecer, e que me olhou um segundo, suspeitei que esta ignominia podia ser verdadeira. Estava louco! «Não se mente com aquelle olhar, com aquella voz! «Não se dão suspiros de dôr, quando se é culpado!... Como estava bella! «Como eu, ella é sempre tão fria, tão reservada. Se me tivesse, portanto, enganado a seu respeito? Julguei-a sempre uma mulher honesta, mas com preconceitos; muito seria, muito circumspecta mas sem affectos, sem os impetos apaixonados da outra!... «É quasi impossivel encontrar na mesma mulher tantos predicados: o ardor e a seriedade; o amor e a estima. N'esse caso as iniquidades do mundo deixariam de existir. E ellas são enormes! Que a tia me denunciasse, comprehende-se, ainda que seja bem custoso. «Mas accusarem-na a ella? Porque uma tal precisão? Para me obrigarem a ir á rua Lacépède, inspecionar a casa indicada? E com que fim?... Ah! Nem pensar n'isso! Pensarei mas é em impedir que a sua desconfiança se transforme em certeza. Não quero tornal-a a ver com aquella pallidez d'esta manhã, e aquelles modos... «Joanna deve tambem procurar, por seu lado, que as suspeitas se desvaneçam para que o nosso amor não redunde n'um medonho escandalo...» Taes eram os pensamentos, estremamente discordantes, que se agitavam no espirito d'este homem, ao qual o destino deu a felicidade, na pessoa da mais nobre e mais delicada das mulheres... E não sabiam, ella manifestar-se, e elle reconhecer-lhe o merecimento. As peripecias finaes d'esta aventura darão talvez aos partidarios da hereditariedade o motivo das incoherencias sentimentaes de que Chalinhy era victima. Se pode sustentar-se que os pensamentos dos paes teem influencia no caracter dos filhos, devia Chalinhy ter sido concebido em horas de bem intima inquietação para ser assim, indeciso e inaccessivel, susceptivel de se deixar arrastar e comtudo apaixonado pelas coisas elevadas, avido de paixão e amante da honestidade, tão fraco para com certas particularidades do seu caracter, e tão violento, tão implacavel, para com outras, ia proval-o mais uma vez. Depois d'esses raciocinios, estava ainda inteiramente preoccupado na maneira porque, de futuro regularia uma traição, da qual deveria ter horror, comparando a esposa, tal qual se lhe mostrava agora, á amante. Mas conheceria elle tambem a amante? Não tenho sabido descobrir no coração de Valentina a riqueza occulta da mais ardente sensibilidade como teria advinhado no de Joanna todas as miserias, toda a sequidão, e uma unica paixão ardente: a inveja? Reconheceria logo que caracter tão admiravel sacrificára uma alma tão dura. O ruido d'uma porta que se abria interrompeu-o de repente nas suas meditações, e viu entrar, como na vespera, á mesma hora, a auctora da carta anonyma que serviu de ponto de partida á scena entre os dois esposos, a propria baroneza de Node. Chegára ligeira e esbelta, com um vestido de passeio. Tendo andado a pé, o contacto do ar fresco rosara-lhe as faces, e os olhos negros brilhavam com intensidade. Vinha constatar pessoalmente o effeito da denuncia. Não necessitou olhar duas vezes o amante para advinhar que estava ainda mais perturbado que de costume. Percebeu tambem, distinctamente, que havia fallado a Valentina. As almofadas d'uma cadeira de braços, collocada junto do fogão, mostravam que alguem se tinha ali assentado ha pouco, e um lenço esquecido sobre uma pequena meza attestava que esse alguem fora a marqueza de Chalinhy. Não era preciso mais. Joanna concluiu logo que a scena da explicação devia ter sido violenta. --«Vim saber noticias de Valentina,» disse dissimulando as suas intenções. «Ella não se levantou ainda?... Não está melhor?...» --«Levantou-se», respondeu Chalinhy, «mas tivemos uma conversa que a incommodou muito. Sentiu-se peior e tornou-se a deitar.» --«Joanna» acrescentou com uma singular firmeza, «não me enganei, fallaram-lhe a nosso respeito...» --«E o que disse?» perguntou ella. --«Não entrou em detalhes. Não precisou factos nem pronunciou nenhum nome. Mas comprehendia-a perfeitamente. Contaram-lhe tudo, percebes, e nada acreditou...» --«Não comprehendo, então, porque motivo tomas um ar tão solemne para me annunciar que nada mudou na nossa situação», respondeu Joanna, «a não ser que...» --«A não ser que?...» perguntou Chalinhy, visto não ter ella concluido a phrase, «que queres dizer? Conclue o pensamento...». --«A não ser que tu proprio desejes que elle mude. Ah! A Valentina é muito mais forte do que imaginava», continuou com um máo sorriso. --«Se te tivesse dito que acreditava, protestarias e ter-nos-hias defendido. Em logar d'isto, fez de generosa, ella que não quiz admittir que a sua Joanna e o seu Norberto possam enganal-a, e tu preparas-te para me pedir que seja prudente, para a poupares. Confesso. Diviso este pedido nos teus labios. Dispenso-te de o fazeres». Fallou com uma irritação crescente, que provinha da sua profunda decepção. Esperava encontrar Chalinhy pesaroso, para o interrogar, para obter d'elle a declaração da carta anonyma, para conseguir que lh'a mostrasse, e para emfim, o aconselhar a que procedesse a um rigoroso inquerito, o qual, em sua opinião, devia ser a perda da rival. Todo o seu plano fora porém, destruido. Porque artificio? Suspeitava-o, sem comtudo comprehender como a discussão das suas relações com Chalinhy, tinha substituido a da carta anonyma. --«Joanna», replicou Chalinhy; com aquella accentuação de voz que se emprega para com as creanças que não desejamos molestar, «tu não és justa, nem comigo, nem com Valentina. «Porque a accusas d'um calculo que não está no seu pensamento, juro-to? Se a tivesses visto, como eu, aqui, ainda ha pouco, não duvidarias da sua sinceridade. Soffria e censuram-na ainda. Eis toda a verdade. Não acreditas?...» --«Não,» disse, com uma dureza na voz que denunciava o seu odio occulto, pela prima. Chalinhy cometteu a mais perigosa imprudencia,--estando collocado, como realmente estava, em consequencia das suas proprias faltas, entre duas mulheres, uma das quaes apenas o queria por aversão á outra--appelando para a ternura e para a piedade d'um coração em que sómente havia sede de vingança! Era exasperar ainda mais este cruel apetite, e Joanna, cedendo a elle, repetiu: «Não, não acredito. Queres saber porque? É porque a conheço melhor do que tu, meu caro, muito melhor, fica certo». Acompanhou esta phrase d'um mau sorriso. Sentou-se, conservando os olhos abertos, e, no rosto, evidentes signaes de obstinação. Movia entre os dedos crispados, uma faca de tartaruga para cortar papel, que se achava sobre a meza a que se encostou, e ouvia, n'um mutismo pertinaz, Chalinhy perguntar-lhe visivelmente irritado, por a ver assim increpar Valentina em termos tão insidiosos. --«O que significa tudo isto? Explica-te: Já uma vez, na semana passada, quando, jantamos em casa dos Sarliévre, proferiste as mesmas palavras enigmaticas e acompanhadas do mesmo sorriso... Queres dizer que ha na vida de Valentina coisas que não vejo, que não sei e que tu sabes? Não se falla a um homem da mulher que usa o seu nome, de maneira que possa tornal-a suspeita, quando nada de preciso se diz. O que ha? O que se passa? Respondes ou não». Continuava calada, e os seus dedos a brincar cada vez mais nervosamente com o objecto que servia para occultar a grande agitação interior. Ao chegar o momento de consumar, por um testemunho directo e pessoal, a obra da deleção começada pela carta sem assignatura, hesitava, tinha medo. Chalinhy calou-se tambem. Uma idea, que não lhe tinha ainda occorrido, atravessava n'aquelle momento o seu espirito, e logo lhe pareceu evidente. Levantando-se bruscamente agarrou a amante por um pulso e obrigou-a a olhar para elle. --«Joanna!» disse subitamente «tu é que escrevestes a carta.» E com a voz transtornada e como estrangulada pela indignação, repetiu. «Fostes tu que a escrevestes, fostes tu... Mas confessas então...» --«Magoas-me» respondeu Joanna levantando-se e debatendo-se contra uma tão brutal violencia. «É indigno. Deixa-me». Chalinhy deixou-a, e passando a mão pela fronte como um homem que volta a si, depois d'um minuto de delirio, disse, envergonhado, quasi supplicante «Tens razão, é indigno. Perdoa-me. Mas peço-te sem violencia, responde-me. Recebi hontem uma carta anonyma, rasguei-a e nem quero pensar no que continha. Se foste, porem, tu que a escreveste, tudo mudou. O que n'ella se diz é então verdade. Dize, é tua a carta?» --«Sim, é minha,» respondeu a amante, depois d'um novo silencio. --«N'esse caso» e a voz de Chalinhy estrangulou-se para articular a suprema pergunta, «então é verdade?...» «É verdade, é.» Depois, baixando novamente os olhos, rapidamente, como não desejando dar a si mesma tempo para se arrepender do que tinha feito e que era já irremediavel, começou a referir os acontecimentos que já conhecemos. Contou o seu encontro com a prima no grande armazem da rua de Rivoli, a sahida d'esta por uma porta differente d'aquella aonde tinha o _coupé_, a partida da carruagem, a mentira d'essa noite a respeito do que fizera de tarde; a tenção formal que tinha feito de nada revelar a Norberto, etc. Expoz depois o segundo encontro, tendo, é claro, o cuidado de dizer que fora casual--como tinha visto, na antevespora, sahir Valentina a pé, seguiu-a quasi machinalmente;--como a prima alugou novamente uma carruagem, não poude tambem deixar de alugar outra, e que, por isso, chegaram quasi ao mesmo tempo a esse bairro perdido, proximo do Jardim das Plantas,--e o resto: A marqueza de Chalinhy sahiu da carruagem em frente do hospital, seguiu a pé até ao pavilhão da rua Lacépède, entrou na tal casa, chegando alguns minutos depois, um individuo em carro de aluguer, o qual consultou o relogio, com a impaciencia de quem chega tarde para uma entrevista. --«Continuaria calada, juro-te; mas quando hontem e ante hontem a vi representar a comedia da suspeita contra nós, comprehendi que sabia ter eu surprehendido o seu segredo. «Não foi a tia de Nerestaing que nos denunciou a ella; ella é que nos denunciou á tia de Nerestaing. «Calculou que te fallaria no assumpto e quiz tomar a deanteira, acusando-nos... Então perdi a cabeça. Disse de mim para mim que eramos solidarios eu e tu, que não podia permittir que te fizesse tal, havendo-se trahido, e escrevi-te, uma primeira carta... Depois, no momento de t'a enviar, tive receio de que me despresasses... Comtudo era por ti, só por ti que te escrevia. «Sim tive esse receio, disfarcei a lettra e não assignei!... Agora que sabes tudo, diz-me que acreditas que apenas procedi assim por tua causa, para que possas defender-te antes que ella te fira. «Dize que me não desprezas por ter empregado este meio para te avisar. Oh! dize-me, meu amor, meu Norberto, dize-me.» Escutou-a, sem a interromper, com uma physionomia que a cada detalhe dado pela accusadora se foi carregando até se tornar terrivel. Se é verdade que nos pequenos como nos grandes acontecimentos, segundo a opinião dos Livros Eternos: «as iniquidades ferem quem as pratica, e que as más acções ficam com quem as faz» a invejosa estava sendo punida pela sua repugnante delação, por a propria attitude de Chalinhy. Podia ver bem no seu rosto, n'aquelle momento, que não existia mais para elle. O amante desappareceu para só existir o marido. Não respondeu á supplica que Joanna lhe dirigiu, atemorisada pela sua propria obra. Não lhe podia dizer se a despresava ou não. Só tinha no pensamento a mulher--_a sua mulher!_--indo a uma entrevista amorosa. --«A infame!...» exclamou Chalinhy, repetindo «A infame!...» E dirigia-se á porta que conduzia aos aposentos de Valentina, quando Joanna se lhe collocou deante, dizendo: --«Onde vaes?» --«Ao seu quarto,» respondeu elle. «Obriga-la a confessar». --«Não farás semelhante cousa. Se lhe fallas agora, comprehenderá que tudo soubeste por mim. Não farás isso, não tens mesmo o direito de o fazer...» --«É justo» disse, fitando-a. Via-a agora como realmente era, e lia até ao fundo do seu coração. Ficou algum tempo insensivel, sem que ousasse interroga-la, e, depois, com um gesto rapido e uma grande aspereza na voz, accrescentou: «Dou-te a minha palavra d'honra que lhe não digo quem me avisou. Além de que, necessito ainda de outras provas e hei de tel-as, dou-te a minha palavra tambem...» Sahiu da sala, debaixo da impressão d'esta ameaça, sem ter para aquella que o havia impellido para o caminho da vingança, nem uma palavra, nem um gesto. Ella viu sahir o agente do seu antigo odio, que ia emfim ver saciado, sem ter força para o deter. Que iria fazer? O intenso furor de que ia animado, não recuaria, via-se bem, deante de nenhum meio de investigar a verdade, nem deante de nenhum extremo e punição. Joanna anteviu logo uma espera feita á porta da casa mysteriosa; a chegada de Valentina no dia seguinte, no immediato, ou em qualquer dia da semana; e um assassinato... E seria ella a causadora. Um instinctivo movimento de terror a precipitou para a porta dos aposentos da companheira de infancia. Era ainda tempo de reparar uma parte do seu crime, prevenindo-a. No momento, porém, de pôr a mão no fecho da grande porta, occulta por um reposteiro de seda verde, graças ao qual o ruido d'essa tragica conversa não chegou ao ouvido da calumniada--a delatora deteve-se. Encolheu os hombros e seguiu para o lado opposto, em direcção á porta que conduzia á escada de sahida, que desceu, dizendo para si: --«Ella não nos pouparia em igualdade de circumstancias. O furor de Norberto abrandará emquanto procede ás investigações; e depois não fará escandalo por causa dos filhos. Abandonal-a-ha, restando-me em seguida fazer com que case comigo. Eu me encarregarei d'isso...» E os seus pequeninos pés pousavam nos degráus com uma energia, como se já se achasse de posse d'aquelle palacio, no qual estava convencida, dentro em pouco, viria substituir a outra. Crispavam-se dentro das suas pequeninas botas, como se quizessem esmagar debaixo dos saltos um remorso que não conseguia anniquilar. VII O retrato Sahindo, pela fórma porque o fez, do pequeno compartimento em que recebeu o terrivel golpe da espantosa revelação, Chalinhy não pensou no que fazia. Sentiu que não teria força em si e que necessitava deixar passar algum tempo antes de proceder. Era sobre tudo necessario que não visse Valentina. Se a visse, não poderia conter-se, fallar-lhe-hia com certeza no assumpto e não _devia_ fallar-lhe. Tinha dado a sua palavra a Joanna e, além d'isso era sua convicção que não surprehenderia a culpada se não procedesse com dissimulação. Sahiu do palacio, dizendo que não vinha jantar. Depois da scena d'essa manhã, a sahida de Chalinhy, sem se ter despedido da esposa, era de natureza a causar admiração a Valentina, mas elle calculou que se voltasse a casa não poderia ser superior aos seus nervos e provocaria uma explicação plausivel. Caminhava depressa, com receio de que Joanna de Node sahisse logo tambem, e não queria encontrar-se outra vez com ella. A presença da perigosa amante, n'aquelle momento, era-lhe physicamente intoleravel. Tinha-o ferido muito bruscamente, muito brutalmente, n'uma das mais intimas fibras do coração. Por mais intelligentes e perspicazes que as mulheres sejam não medem com exactidão certas reacções da alma masculina, quando principalmente procedem do orgulho molestado. Onde iria o marido repentinamente ferido na sua dignidade de homem? Nem elle mesmo o sabia. As palavras inolvidaveis resoavam-lhe ainda aos ouvidos. As imagens evocadas com intelligencia por a invejosa, fixaram-se no campo luminoso do seu pensamento em fórmas tão nitidas como se pessoalmente tivesse assistido á subida da mãe dos seus filhos para a carruagem furtiva, á descida na rua suspeita, e á entrada na casa equivoca. Esta serie de factos positivos, não deixaram a menor duvida no seu espirito suggestionado, sem que desse por isso, pela odiosa paixão que Joanna tinha desenvolvido. Por uma invencivel e espontanea associação de idéas, as continuas impressões mal definidas que experimentou durante a sua estranha vida conjugal e que tinham por base o silencio, reappareciam agora e coordenavam-se. Toda a timidez experimentada na frente de Valentina lhe refluia ao coração. Tinham agora para elle perfeita explicação na força da hypocrisia d'essa mulher, tão reservada, tão retrahida, que não teria mesmo ousado julgal-a capaz da mais simples leviandade, e via-a sempre, n'essas duas scenas que Joanna observou com os seus proprios olhos: sua mulher, a marqueza de Chalinhy, deslisando por entre os frequentadores do grande armazem, para transpor d'uma a outra porta--do seu _coupé_ á carruagem alugada--como uma adultera ignobil--sua mulher a pudica, a timida Valentina, aventurar-se a ir a essa rua do arrabalde. A visão tornava-se precisa, uma verdadeira allucinação, e a revolta contra esse angelico e puro rosto que por tanto tempo o havia enganado, sob a impressão do qual tanto se havia enternecido ainda n'essa manhã, produzia no sangue do marido ultrajado a febre do homicidio. Tendo caminhado a direito, sem mesmo saber para onde ia, chegou, sem dar por isso, á estação do caminho de ferro de Montparnasse. Parou por algum tempo defronte da _gare_ e depois, na incerteza de saber que direcção devia tomar, uma imperiosa tentação se apoderou d'elle, invencivel desde logo, a de ir até á rua Lacépède, cujo nome desde a vespera se associava ao seu d'uma maneira, que lhe pareceu tão ridicula quando leu a carta anonyma, e que, n'aquelle momento, depois da conversa com Joanna, lhe parecia tão espantosamente insultante. Para o inquerito a que ia proceder, até surprehender a esposa no flagrante delicto de adulterio, o grande, o unico dever da sua vida, não seria o primeiro ponto a illucidar a existencia da casa onde se realisavam as entrevistas amorosas? E depois, mesmo sem esta rasão, não devia Chalinhy experimentar uma imperiosa necessidade de ver o local onde era arrastada a sua honra conjugal? O ciume, uma vez despertado, tem sempre este apetite da realidade concreta e viva, que supplicia e satisfaz ao mesmo tempo. O irresistivel desejo do homem que se julga trahido é conhecer todos os detalhes da perfidia de que é victima; figurar com uma implacavel brutalidade cada episodio; experimentar o paroxismo da sua dôr ao contacto do immovel e indestructivel quadro que foi theatro do indelevel ultrage. Começou para Chalinhy este paroxismo, quando o seu olhar encontrou pela primeira vez, sobre a placa da esquina da rua que procurava, o nome já tão detestado. A memoria do sabio naturalista e do sagaz cortezão que ella perpetuava n'este bairro de miseraveis, parecia bem mal escolhido para se associar a emoções d'esta ordem! Chalinhy tinha continuado a andar, parando, de quando em quando, como um provinciano perdido n'este grande Paris, perguntando informações sobre o caminho a seguir, umas vezes á policia e outras aos tranzeuntes. A pequena actividade animal do movimento abrandou um pouco o seu furor. Augmentou quando os seus pés tocaram no pavimento da rua maldita. Entrou n'ella pelos quarteirões superiores, que a rua Monge separa dos inferiores, de maneira que, não vendo logo nas duas linhas de casaria nenhum predio que correspondesse aos signaes do pavilhão, teve um momento de duvida, e, portanto, de allivio. A inspecção dos numeros bem depressa lhe fez comprehender o seu erro. Deu mais alguns passos e do lado dos numeros impares apparecia a casa mysteriosa, tal como Joanna lha havia descripto: com as grades de ferro das janellas do rez-do-chão pintadas de preto, a porta escura elevada por trez degraus, as sacadas do primeiro e do segundo andar burguezmente guarnecidas de bambinellas de musselina, e o muro do jardimsinho com as suas tilias. Era mais de meio dia, e o sol d'esta bella tarde de novembro estava limpo do nevoeiro que o velára durante a manhã. O céo azul pallido, onde fluctuava uma humidade doce, banhava os ramos das arvores meio despidas. O vento destacava d'ellas, de quando em quando, uma folha côr d'ouro, que volteava lentamente e vinha algumas vezes cahir para fóra do muro. A alegria da hora do almoço enchia com a sua expansão a modesta rua. N'uma casa de pasto, de má apparencia, em cujo frontespicio estavam escriptas as seguintes palavras, cheias de promessas: «Refeições baratas», vinham instalar-se varios operarios. Duas aprendizas, raparigas ainda, da lavandaria proxima, sahiam em cabello para irem comer, á pressa, a casa da familia, no fundo d'algum pateo de qualquer das travessas visinhas. Algumas das janellas do pavilhão estavam abertas, e sahia fumo por dois tubos de chaminés. Se o honesto aspecto da casa havia surprehendido bastante o marquez de Chalinhy, estes indicios que mostravam ser ella habitada regularmente, mais o espantavam ainda. Não estava, então, deante da casa suspeita escolhida por dois amantes que querem ali encontrar-se, de vez em quando, durante algumas horas, occultamente. Mas, então, o desconhecido que Joanna viu chegar em carro de aluguer, era o habitante permanente d'aquelle casa? Era pouco provavel, em vista da sua attitude impaciente do homem que chega tarde a uma entrevista amorosa, e que manda esperar a carruagem para tornar a ir n'ella. Quanto mais o marido de Valentina estudava o aspecto mudo d'essa casa mais o seu frenesi dos primeiros momentos, misturado d'uma aguda curiosidade, acabava por o impellir aos actos mais oppostos ao seu caracter. Avistando um ferro velho que fumava no seu cachimbo á porta da locanda, que ficava a alguns passos de distancia, avançou bruscamente para elle e sem mais preambulos: --«Queres ganhar uma nota de cem francos?» perguntou Chalinhy. --«_Ixo_ não se pergunta» respondeu o interrogado. Era um dos muitos ferros velhos que tanto abundam n'aquelle bairro, um Auvernhez de cara redonda, que pronunciava o _xim_ classico dos naturaes de Saint Flour, por o «sim», apezar de viver ha trinta annos em Paris. O seu olhar vivo denunciava a esperteza campesina tão peculiar n'essa classe de vendedores ambulantes, que se fornecem das casas de bric-á-brac. Com a prudencia innata d'um filho do Cantal, acrescentou logo--sempre com a mesma pronuncia tão pitorescamente caracteristica--«_Ixo_ depende do trabalho que tiver de fazer.» --«Tens apenas que me responder a uma pergunta», e indicou o pavilhão: «Quem móra n'aquella casa?» --«N'aquella casa?» respondeu o futuro antiquario, com uma finura nescia, «é o seu dono, está claro!» --«E quem é o seu dono?» insistiu Chalinhy, imperativamente: «Dou-te duzentos francos de gratificação se m'o disseres immediatamente, senão vou perguntal-o a outra pessoa...» --«É o senhor Dumont», respondeu o auvernhez, depois de ter reflectido. Pensou, sem duvida, que um dos seus collegas da rua seria menos escrupuloso, e duzentos francos, em Paris como em Saint-Flour, era muito dinheiro! --«É novo ou velho?...» --«Velho,» repetiu o homem, «e muito doente. Está paralytico. O anno passado ainda sahia de carruagem; mas este anno vio-o só uma ou duas vezes...» --«Recebe muitas visitas?» perguntou Chalinhy. --«Muito poucas», respondeu o provinciano a quem os duzentos francos pareciam estar já bem ganhos, e, por isso, deu a conversa por terminada com a seguinte phrase: «não posso dar mais informações, é raro chegar á porta, por isso, pouco sei. Tenho que fazer ali...,» e mostrou com o cachimbo--que para esse fim tirou da bocca--o montão de fragmentos de metal enferrujado que na sua industria pareciam ainda susceptiveis de venda. O gentil homem conhecia não poder continuar o interrogatorio sem se deshonrar aos seus proprios olhos. Tirou da carteira as notas promettidas e passou-as para a mão do ferro velho, que, com um grande espanto, que o seu largo rosto não dissimulou, o vio atravessar a rua e ir bater á porta do pavilhão. O plano de Chalinhy era muito simples, concebera-o rapidamente, emquanto tirava as notas. Conheceu que tinha na carteira, misturados com os seus, bilhetes de visita da esposa, e que elle se havia encarregado de entregar, o que, por um contra tempo qualquer, não tinha podido fazer. Tomou um d'aquelles bilhetes e entregou-o á pessoa que veio á porta--um creado de quarto já velho, cuja physionomia e vestuario se harmonisavam mais com o aspecto da casa do que com o do bairro. A cara barbeada, o comprido avental branco de serviço e o fato proprio correspondiam perfeitamente á idéa d'um interior burguezmente confortavel, e ainda mais á escala e atrio que Chalinhy estava observando e que devorava com o olhar. Sua mulher subiu aquellas escadas na vespera! Guarnecia-as um espesso tapete. As paredes estavam adornadas com um estofo escarlate emoldurado por pedaços de tapeçaria expressiva e vulgarmente chamada «verduras». Quando o recem chegado disse: «Venho da parte da marqueza de Chalinhy», a physionomia do creado ficou tão absolutamente inexpressiva como se nunca um tal nome tivesse sido pronunciado deante d'elle. Valentina vinha então a essa casa sem que esse homem achasse a sua presença extraordinaria. Este novo indicio, d'um estranho mysterio, era de natureza a elevar ao auge a curiosidade do marido, que insistiu: --«Entregae um bilhete ao sr. Dumont, e dizei-lhe que a senhora marqueza de Chalinhy me encarregou d'uma importante e pessoal commissão para com elle...» O tempo que o creado demorou a ir e voltar--alguns minutos apenas--pareceu a Chalinhy tão longo que os mais desorientados projectos atravessaram o seu pensamento. Lembrou-lhe subir elle mesmo ao primeiro andar e forçar a porta do aposento d'esse tal Dumont que evidentemente o ia despedir, o que não era justo. Esta maneira de se apresentar pareceu-lhe impropria. Comprar o creado quando voltasse e obter sobre os frequentadores e frequentadoras da casa as informações que o ferro velho não tinha sabido dar; recusar-se a sahir quando lhe viessem dizer que o senhor Dumont não estava em casa, tudo lhe passou pela imaginação. Em breve o criado veio tiral-o de difficuldades, convidando-o a entrar n'um gabinete do primeiro andar, que servia de ante-camara. Depois retirou-se, dizendo: --«O senhor Dumont pede desculpa de o fazer esperar algum tempo. Esteve muito incommodado esta manhã mas virá o mais breve possivel...» Posto que a certeza d'uma explicação, que tinha para elle uma importancia tão tragica, concentrasse o espirito de Chalinhy n'uma unica e fixa idéa: «como forçar aquelle homem, quando entrasse, a confessar a verdade?» não poude furtar-se á tentação de olhar em volta de si. A sala em que se achava tinha uma janella para a rua. Na frente abria-se uma porta, que o criado com a precipitação, não fechou completamente. Chalinhy empurrou-a, com um gesto quasi machinal, e viu um segundo compartimento cujo aspecto causou a sua admiração: era uma especie de salão bibliotheca, illuminado por tres janellas que davam sobre o jardim, para o lado do qual o pavilhão tinha a fachada principal. Esta especie de galeria era vasta e estava mobilada com uma elegancia pessoal e sobria. Grandes cadeiras de espaldar, estofadas, ao estylo do seculo 17.º, mas que se via serem de construcção moderna. Os livros todos encadernados, estavam dispostos com ordem em estantes baixas, nas ultimas divisorias das quaes se viam fragmentos de marmore e de tijolo. Um buffete collocado proximo d'uma das janellas do jardim tinha ao pé uma poltrona com rodas o que justificava a informação dada pelo auvernhez com respeito á doença do dono da casa, o qual devia permanecer de preferencia n'este salão, a julgar pela alcatifa já bastante usada. As paredes estavam completamente cheias de varios objectos; quadros a oleo, aguarellas, quadros em cobre, armas cinzeladas etc., etc. Deante da secretaria, um cavalete guarnecido d'um estofo antigo de côr rosa palida, com grandes flores de prata, sustentava um quadro oval. Chalinhy approximou-se do quadro para o observar, e ao vel-o, teve que sentar-se, tal foi o seu espanto pelo inesperado, ao reconhecer a pessoa cujo retrato estava reproduzido na tela. Era sua mãe. Sua mãe?... Sim, era ella, e pintada por um artista de que bem depressa conheceu a obra e a assignatura: Miraut. Existia um retrato della, de corpo inteiro, pintado pelo mesmo artista, no salão do palacio Chalinhy. Esse grande retrato tinha sido feito no mesmo anno--indicado n'um dos cantos da tela: 1875. Foi na epocha em que aquelle pintor, hoje velho, estava em plena voga. Os filhos não tinham nunca visto esta reproducção, que continha sómente a cabeça e o busto. Sim, era sua mãe, não tal como a havia contemplado no leito da morte, quatro annos antes, envelhecida prematuramente, pela terrivel doença que a victimou, um cancro no figado, com o rosto emmagrecido, amarellecido, e torturado pela dôr--mas a «mamã» da sua infancia, com os seus bellos olhos avelludados d'então, tão negros e tão doces no seu olhar d'uma idealidade digna de Prudhon; com o seu sorriso feliz nos labios finos e flexiveis; com as madeixas escuras dos seus cabellos que apartava na frente em dois bandós ondulados, á moda d'então, com a linha correcta e cheia dos seus encantos, e com a dôr do seu rosto, que tinha a delicadeza da petala da rosa. Porque estranho acaso este retrato se encontrava ali, deante d'esse «bufete», n'uma sala d'esta casa onde vinha, elle, o filho d'essa mulher, procurar a explicação d'um segredo que affectava a sua honra de marido? Um acaso? Não. Sobre o mesmo «bufete» existia tambem uma moldura de couro, com tres divisorias, onde se viam tres photographias de sua mãe, em epochas differentes,--uma mais nova do que o retrato, outra da edade de quarenta annos, e a terceira da edade de cincoenta; e, ao lado, n'uma moldura oval, escura, a reproducção d'uma outra photographia que elle, Chalinhy, lhe mandou tirar depois de morta. Uma madeixa de cabellos se divisava através o vidro, e a data do anniversario para elle sagrado: «5 de setembro de 1897» lia-se a um canto do cartão. Estaria sonhando? Ainda mais, n'uma terceira moldura, que fazia «pendant» com a primeira, appareciam-lhe agora photographias suas: uma que o representava ainda creança, outra aos dezeseis annos, e ainda outra recente! ... Vendo, como em certos casos de allucinação, a reproducção da sua propria pessoa, não teria experimentado uma impressão mais violenta, tão violenta, que chegava ao terror... Onde estava?... Em casa de quem? Que occulta ligação, e de que nunca sequer suspeitára, o unia á pessoa que ali vivia entre esses objectos, e que o conhecia desde a infancia, que conhecia sua mãe desde muitos annos, que conhecia sua esposa--sem elle o saber? Um novo indicio, que mais fez desvairar a sua razão, confirmava a denuncia que o conduzira áquella casa: n'um biombo de seda, collocado defronte da janella, e no qual se achavam suspensas varias miniaturas de familia, viu tambem pequenas photographias de Valentina e dos filhos. A estranheza d'uma descoberta, tão completamente imprevista, que chegava a ser phantastica, o silencio d'esta sala tão reservada, que o ruido da rua já de si silencioso difficilmente ali chegava, o contraste entre o que procurava e o que vinha encontrar--tudo contribuiu para mergulhar Chalinhy n'uma especie de hypnose, de que o despertou de repente, a approximação d'um homem, ao qual dez minutos antes se preparava para exigir uma explicação, ainda mesmo pela ameaça. Uma porta de dois batentes, que um reposteiro disfarçava entre duas estantes, se abriu repentinamente. O ruido d'uma pesada cadeira de rodas annunciou a chegada do doente. O senhor Dumont--porque era elle--estava immovel na sua cadeira mechanica, que um enfermeiro empurrava. O paralytico era um homem de sessenta annos, pouco mais ou menos, todo branco, e que devia ter sido muito bello, porque o seu rosto, emaciado pelos longos soffrimentos, conservava as largas e nobres linhas que revelam a raça. Ligeiras deformações: a bocca um pouco torta e o olho direito algum tanto elevado, marcavam na sua cara, de uma infinita melancholia, o stygma da inexoravel nevrose. O braço direito, que não podia mover, repousava, inerte, sobre a perna, emquanto que com a mão esquerda movia um punho de cobre ligado á cadeira e com o qual lhe dava a direcção desejada. O fato, muito apurado, revelava as minucias dos seus cuidados pessoaes, tão raros n'estes condemnados á morte, e que são como que um ultimo e pathetico protesto contra a sua inevitavel perda. O brilho dos olhos, tão notavel n'estas longas agonias, denunciava a lucta desesperada da energia animal contra a morte proxima. Não exprimiam esses olhos, brilhantes e muito negros, emquanto as rodas da cadeira giravam deante da porta, nenhum presentimento da impressão que n'elles ia apparecer em breve. É necessario dizer--e é a explicação da facilidade com que o visitante foi recebido--que, na sua ultima visita á rua Lacépède, n'essa funesta segunda-feira a marqueza de Chalinhy falou ao doente d'um negociante que tinha lindas estatuetas do seculo XVIII. A acquisição d'algum d'esses objectos raros, capazes de figurar n'uma das suas estantes ou na grande vitrine ao fundo da galeria, era a unica alegria do paralitico. Por um mal entendido, quiz a fatalidade que o negociante que Valentina mandou a casa do sr. Dumont, se esqueceu de lá ir. Quando a sua cadeira rolante transpoz o limiar da porta e que viu, em logar do bric-a-braquista, a figura de Norberto de Chalinhy, a sua mão esquerda crispou-se no braço do movel, n'um movimento quasi convulsivo. Endireitou o busto e uma emoção d'uma intensidade extraordinaria lhe descompoz as feições. Da sua bocca offegante escapou-se um intenso grito e bradou aos creados que o acompanhavam, n'uma ancia angustiada: «parem, parem...». Pararam com effeito, a tempo de Chalinhy, immovel de surpresa deante d'esta tragica apparição, ver duas grossas lagrimas a saltarem dos seus olhos fixos e deslisarem pelas faces macilentas e cavadas. Em seguida o velho disse, como n'um gemido: «entre, mas entre, entre...». A angustia que se traduziu nas suas palavras causou, sem duvida, admiração aos creados, habituados aos signaes da approximação da crise. Fizeram recuar rapidamente a cadeira e fecharam a porta. Ainda Chalinhy estava sob a impressão do grande abalo que lhe produzira esta scena, tão terrivel como rapida, quando um dos creados, precisamente o que o recebeu, tornando a apparecer, a tremer todo e n'uma grande afflicção, lhe disse: --«O patrão está com um ataque, e não ha ninguem em casa senão eu e o enfermeiro...» --«Onde mora o seu medico?», perguntou Chalinhy. «Eu me encarrego de o ir chamar». --«Oh! senhor», respondeu o creado, «não ousava fazer-vos esse pedido!... Mas depressa, depressa. Ao meio dia e meia hora ainda o encontra em casa. É o doutor Salvan, e mora no _boulevard_ de Saint-Germain, n.º 30.» VIII O enygma Da rua Lacépède á casa do extremo sul do interminavel _boulevard_ de Saint-Germain, onde vivia o celebre especialista de doenças nervosas, para ficar mais proximo da Salpêtriére, seu hospital, a distancia não era grande. Durante os dez minutos que demorou em a percorrer, Chalinhy não tentou mesmo raciocinar a respeito da série de factos, para elle absolutamente incompreensiveis, que acabavam de dar-se. Na confusão de todo o seu pensamento em face do enygma a cuja decifração se entregou apaixonadamente, um ponto luminoso apparecia muito ao longe: recordava-se de ter visto já o rosto do paralytico surgido deante d'elle, no fundo d'essa bibliotheca estranha, onde com espanto encontrou o retrato de sua mãe, o seu, o da esposa e dos filhos... Mas quando? Aonde? Procurava, no mais recondito da sua memoria, a physionomia d'um homem ainda novo, no qual a mascara do velho e moribundo, se justapunha. Era uma d'estas recordações longiquas, tão cheia de incertezas, em que a realidade se confundia com o sonho... «Dumont... Dumont...?» Chalinhy, repetia este nome mentalmente. Não conseguia associal-o ás imagens tão vagas e portanto indistinctas já, que se agitavam na sua reminiscencia. Em scenas mal definidas, cujos detalhes inconscientes e incompletos se esfumavam na sua intelligencia, figuravam conjunctamente sua mãe e o marido de sua mãe--aquelle que sempre acreditára e que ainda hoje acreditava, ser seu pae. Mas como se chamava então esse homem que tinha os mesmos traços de nobresa e o mesmo olhar profundo do doente? E eis que, de repente, acudiam a essa reminiscencia syllabas indistinctas: «_Magneville_?... _Raneville_?... _Layneville_?...» Ao mesmo tempo--porque mysterioso trabalho do seu espirito angustiado?--via a figura de seu pae, do defunto marquez de Chalinhy, fallecido ha tanto tempo já. A que proposito se recordava, e por que sentia de novo, depois de muitos annos o indefinivel incommodo que sempre sentira na presença d'esse homem do qual nunca tivera a minima razão de queixa, a não ser talvez a preferencia que manifestava pelo seu irmão mais velho? Mas, apesar d'isso, elle e o irmão não tinham tido a mesma educação, e vivido, na casa paterna nas mesmissimas condições? Sem duvida, se seu irmão não tivesse morrido pouco tempo antes do pae, teria sido bem mais contemplado do que elle na herança paterna. Um documento encontrado entre os papeis do marquez, provava bem que havia querido legar ao filho primogenito toda a parte dos seus haveres de que, em face da lei, podia livremente dispor. Mas Norberto conhecia muito bem as idéas do fallecido gentil-homem para se admirar d'esta tentativa de reconstituição do direito de primogenitura. Que ligação estabelecia então, de repente, entre as manifestações de friesa por parte de seu pae e os acontecimentos em que a denuncia da esposa, feita pela amante, o tinha envolvido? Não saberia dizel-o, nem tambem que hypothese se esboçava dolorosamente, obscuramente, na sua imaginação, hypothese logo posta de parte, por ser tão sacrilega como insensata?... Absurdo pesadelo, que a paragem do trem em frente da casa do professor Salvan, fez dissipar! --«Saberei alguma coisa por elle», disse comsigo. «Contanto que lá esteja!...» O medico estava effectivamente em casa. Logo que Chalinhy lhe fez apresentar o seu cartão, no qual escreveu: _Da parte do sr. Dumont, que está muito mal_, foi immediatamente recebido. Ao primeiro golpe de vista, o marido de Valentina viu logo que o homem de 45 annos que a baroneza de Node vira chegar n'uma carruagem de aluguer ao pavilhão da rua Lacépède era o medico. O professor Salvan tinha na realidade mais dez annos; mas, perfeitamente conservado por uma existencia continuamente activa e quasi ascetica, não indicava tanta edade. Era magro e robusto, com uma cabeça pequena, e cujo rosto attrahente e imberbe recordava a physionomia napoleonica do seu mestre Charcôt. No mundo das grandes celebridades medicas e parisienses, onde os ultimos annos tantas notabilidades se tem manifestado, Salvan figurou sempre em separado, associando, como o seu amigo e condiscipulo Eugenio Corbiére, que voltou já ás antigas normas, o catholicismo mais accentuado ao mais solido talento de clinico e de anatomista. Mais celebre do que conhecido, os seus immensos trabalhos conservaram-no sempre affastado dos salões e o gosto pelas investigações puramente scientificas, da clientela. A morte do seu unico filho, em 1898, em circumstancias bem crueis--envenenara-se, longe dos seus, n'um hotel de Napoles, por desespero d'amor--tornou-o ainda mais concentrado. Foi desde então que deixou a sua instalação no boulevard Malheserbes, para se refugiar ali, n'uma casa mais modesta, mas que não lhe recordasse constantemente a creança tão tragicamente perdida. Este detalhe prova bem quanto um tal homem tanto em contacto com os soffrimentos da humanidade, era sensivel, apezar da sua apparente severidade e indifferença e da dureza do seu penetrante olhar. Eis tambem a justiça do motivo porque o brilho dos seus olhos feriu Joanna de Node, quando o observou ao descer da carruagem. O mesmo brilho agudo, como a lamina d'um bisturi feriu tambem Chalinhy, emquanto lhe descrevia o ataque que acommettera o sr. Dumont. O medico estava assentado ao fogão, n'uma pequena sala que servia de gabinete de trabalho a sua mulher, vestia uma sobrecasaca preta, de luto, que não abandonou mais desde a morte do filho, e á medida que o marquez proseguia na descripção, o seu rosto, d'uma expressão tão energica, assombrou-se visivelmente: --«Está muito doente, não é verdade?» perguntou Chalinhy. --«Muito», respondeu Salvan. «Está á mercê do mais pequeno abalo. É mesmo espantoso como tem resistido a tanto, é espantoso!... Teve o primeiro ataque ha seis annos. Vinte vezes o tenho considerado perdido; mas tem uma tal vontade de viver!... E quando verdadeiramente se quer viver, vive-se... No entanto, devo dizer-lhe que sem os cuidados das senhoras de Chalinhy, não teria resistido. Teem sido admiraveis de dedicação as duas. As suas visitas é que o prendem á vida... Tambem se resolveu a ir vêl-o, fez bem. As dissensões de familia devem desapparecer deante da morte... Espero que não será ainda hoje, comtudo não ha tempo a perder, estarei lá dentro de vinte minutos. Póde annunciar-me.» Deus! como Chalinhy, escutando estas palavras que mais escureciam ainda o enygma, desejaria interrogar o professor, convidando-o a explicar-se. O que aproveitaria com isso? Mesmo que a sua honra o não prohibisse de entrar n'um assumpto que envolvia uma mentira por parte de sua mãe e de Valentina, não era evidente que Salvan acreditava no pretexto de dissensões familiares, imaginado pelas duas mulheres para justificarem a sua presença á cabeceira do leito d'este moribundo, em que outro homem da familia ali fosse? O que lhe era então esse senhor Dumont? Que sagrado dever vinha cumprir junto d'este infeliz, n'um bairro escuso, primeiro sua mãe e depois sua esposa--occultando-se d'elle, como se tinham occultado, com a prudencia de criminosas? Tinha sido necessario para que conhecesse o segredo d'estas visitas, um tal concurso de circumstancias! E eram innocentes estas visitas, demonstrava-o o testemunho do medico declarando-as nobres e da mais benefica caridade. De que tinham então receio as duas mulheres? Que elle, filho e marido, lh'as prohibisse? Não. Qual seria então a imperiosa razão que as dominou, a ponto de nem ao medico terem dito a verdade, visto que inventaram a fabula d'um parente malquisto. E o doutor Salvan acreditou na existencia d'este parente, occulto, dos Chalinhy? Porque? Não entraria ahi o segredo profissional. Por outro lado, não acontece muitas vezes que um membro deshonrado d'uma familia se esconde em Paris, mudando de nome? Com certeza que sua mãe e Valentina tinham contado esta historia ao doutor, mas a verdade é que tal historia era falsa. Se fosse verdadeira, elle Norberto, o actual chefe da familia, conhecel-a-hia... Estes retratos, porém, no salão do doente, representando-o a elle, á mãe, á mulher e aos filhos, em differentes idades, o que significavam? A perspectiva agora aberta deante do seu espirito infligia-lhe um tormento tão forte, que o impedia de sentir a consolação de ser livre d'uma outra suspeita, da que, duas horas antes, tinha a respeito da esposa. A sua espectativa actual, por ser d'uma outra natureza, não era menos terrivel. Reconheceu-o no momento em que voltando á rua Lacépède, o creado lhe annunciou, com grande consternação, que o doente não recuperára ainda os sentidos. Quando ha pouco o medico o felicitou por ter tambem ido visitar o enfermo, um intenso rubor lhe subiu ás faces pela immerecida saudação. Que atroz ironia, desde que, realmente, a sua apparição na sala, aonde nunca havia figurado, senão em effigie, é que produziu no dono da casa aquelle abalo terrivel, talvez mortal. Comtudo emquanto se affastava da pequena casa, sempre silenciosa, olhando as velhas tilias cujo ramos ultrapassavam o muro do jardim, um violento e inolvidavel remorso começava a perseguil-o. Disse ao cocheiro que o conduziu da rua Lacépède, ao _boulevard_ Saint-Germain, e d'ali novamente á rua Lacépède, para o levar á rua Varenne, ao seu proprio palacio. Uma unica pessoa podia auxilial-o na decifração do enigma que, de minuto a minuto, se lhe affigurava mais tremendo, e no qual figurava d'um lado o desconhecido, e do outro sua mãe, sua mulher, os filhos e elle proprio. --«Não se recusará a fallar-me», dizia elle, «não deve fazel-o. Não pode deixar-me n'esta horrivel incerteza... Tenho o direito de tudo saber, pois que se trata d'ella e de minha mãe... Por maiores que fossem os seus esforços para mostrar a si mesmo a immutavel soberania do seu titulo de filho e de marido, não podia esquecer-se da scena com a esposa, duas horas antes, e da mudança operada na sua situação ao voltar de novo á presença de Valentina. Deixára-a, completamente desconcertada pelas suspeitas que o zelo perigoso d'uma parenta imprudente tinha insinuado no seu coração. Luctava contra essas suspeitas não acreditando na sua veracidade. Ella que não contava na sua vida um unico facto que merecesse censura, não tinha zelos, e, a par d'isso, elle que a atraiçoava, recorria, impellido pela mais calumniosa, pela mais gratuita denuncia, á mais insultante das investigações. Para iniciar com ella a conversa que lhe daria, emfim, a luz de que tanto necessitava, era preciso referir-se primeiro a essa investigação. O que entrevia no fundo d'aquella alma tão terna e tão reservada, produzia-lhe, n'esse momento, uma vergonha de si mesmo e do seu procedimento, muito superior ás outras perturbações do seu ser. Estas emoções de caracter bem diverso, tornaram-lhe horrivelmente dolorosa a entrada do gabinete aonde Valentina se encontrava depois de almoçar. Estava junto dos filhos, Francisco e Armanda--o filho tinha o nome do irmão mais velho de Norberto, morto tão novo ainda, e a filha o de sua avó. Quando o marido abriu a porta, a marqueza de Chalinhy acariciava os cabellos annelados das duas formosas creanças, n'uma attitude muito semelhante á da photographia que estava no salão do doente, em que nunca as tinha visto. Uma tal analogia, augmentando de novo em Chalinhy a sensação do mysterio, deu-lhe força para provocar uma tão dolorosa conversação. Além d'isso, se todos os signaes, o tremor das suas mãos brancas de mulher em volta dos cabellos das creanças, o rubor das faces, a expressão dos olhos, lhe denunciavam bem que ella, por seu lado estava agitada, vibrante, não sabendo ainda da sua acção recente, de que podia ella tremer senão do desgosto que lhe confiára pela manhã em termos tão claros, muito embora disfarçados? A «crueldade do mundo», como tinha dito, feriu-a, e, por isso, tentava esquecel-a ao contacto das duas almas candidas descendentes da sua, e cuja innocencia lhe sorria atravez dos lindos olhos azues e das boccas rosadas. A mãe sorria-lhes tambem, com um sorriso que nos seus labios nervosos se transformou em tremor, quando viu entrar Norberto; deixando ir as duas creanças ao encontro do pae, com a ligeireza e maneiras graciosas d'essas delicadas creaturas quando estão contentes. Em crises como a que atravessavam marido e mulher, estas festas tão expontaneas, tão innocentes do filho e da filha deviam incommodal-os. A antithese entre o pesar que os paes teem no coração e a alegria communicativa cheia dos encantos da vida, d'essas sensibilidades tão juvenis, constituem a parte tragica e pungente de certos dramas de familia. São tambem muitas vezes a sua unica consolação. É o rejuvenescimento, é o porvir que annunciam esta alegria descuidada dos filhos ao homem e á mulher que soffrem. Norberto e Valentina experimentavam por vezes uma e outra impressão, e as suas primeiras phrases quando, de commum accordo mandaram as creanças embora, exprimiram essa tristeza e esse prazer. --«Como estavam satisfeitos na tua companhia» disse Chalinhy, «deixaval-os gosar um pouco, e tinhas razão! Quando se não é feliz em creança, arrisca-se a gente a morrer sem nunca o ter sido...» --«Não os distrahia», respondeu a mãe, «distrahia-me com elles. Quando tenho momentos de desanimo como aquelle que tive a fraqueza de te deixar perceber esta manhã, elles fazem-me readquirir a esperança. Mas, como vês, estou melhor, tive força sobre mim. Não me deitei. Almocei com elles, visto que me mandaste dizer que não almoçarias em casa, e acabámos ha pouco...» Conservaram-se silenciosos durante algum tempo. Deante d'esta nova prova da benevolencia e energia d'esta alma, que não queria mostrar-lhe quanto fôra violentamente magoada com a denuncia da carta anonyma, o marido, perfido e desconfiado, sentiu um remorso mais vivo ainda, a par d'uma recordação agudissima do mysterio contra que se debatia. Era forçoso que a esposa lhe ligasse uma importancia capital para que continuasse a manter a maior reserva sobre um tal mysterio, pela sua attitude, como uma mulher culpada, quando é certo não tinha a occultar senão a mais pura dedicação! Mas porque... E encontrando na sua crescente affeição, força para confessar o seu degradante accesso de ciume, disse: --«Valentina venho da rua Lacépède.» Emquanto pronunciava estas palavras de que só ella no mundo, visto que a mãe de Norberto tinha morrido, podia medir o tragico alcance, ditas pela sua bocca, olhou-o com espanto e assombro. Repetiu, como se não podesse acreditar nas palavras que tinha ouvido: --«Vens da rua Lacépède... Foste lá depois de me deixares, tendo-te fallado da maneira porque te fallei! Foste lá...» --«Sim,» respondeu em voz baixa e com a firmeza oppressa mas decidida d'alguem que, querendo reclamar um direito, se força a cumprir primeiro o mais doloroso dever. «Fui num momento de desvario... A carta anonyma, a indicação tão precisa do numero da porta, a tua perturbação quanto te fallei... Perdi a cabeça: apoderou-se de mim o ciume; quiz saber e fui...» --«Ah!» disse ella com um modo que Norberto lhe não conhecia ainda. «Podeste fazer-me uma cousa semelhante!... Não, não foi a carta anonyma que te fez ir lá, não foi a denuncia, nem a minha perturbação, foi... Meu Deus!» e levantou as mãos n'um movimento desesperado. «E eu que estava tão enternecida com a tua delicadeza, esta manhã, e que dizia commigo: calumniaram-no!... O que te obrigou a ir lá,» continuou Valentina, approximando-se do marido, com o seu bello e nobre rosto congestionado pela indignação: «foi a entrevista que tiveste com Joanna. Veio aqui, fallou-te; o que te disse não sei... Ouvi as vossas vozes atravez da porta, não quiz porém, escutar o que diziam... Mas depois que partiu, sem procurar ver-me, comprehendi logo que algum facto extraordinario se passou entre vós... Adivinhei tudo immediatamente. Tudo vi... Foi ella que escreveu a carta anonyma, que me seguiu, que me denunciou, que te indicou a pista que devias seguir tambem para me surprehenderes!... Ah! a infame! A infame!... Tinham n'esse caso razão. Ha entre ti e ella uma intriga. Porque lhe consentiste que falasse assim de tua esposa--da mãe de teus filhos--é que ella é tua...» Deteve-se deante da palavra amante, que lhe abrazava o coração, e, n'um grito de legitima revolta da esposa muito ultrajada, protestou dolorosamente: «Não, não foste lá por teres ciumes de mim, mas sim porque me atraiçoas... «Querias apenas ter uma prova para te tornares livre, para só te dedicares a ella. «Mas que mulher julgas então que eu sou? Dei-te, por ventura, o direito d'assim me julgares? E ella!... Oh! É triste, profundamente triste! E eu não merecia tanta ingratidão!...» --«É naturalissimo que assim penses», respondeu Chalinhy, em voz ainda mais baixa. Sentia-se incapaz, n'este momento, de discutir factos evidentes que não eram nada moraes, incapaz de protestar a sua innocencia com respeito á ligação com Joanna de Node. Necessitava muito saber a verdade para poder mentir. E depois, como negar a conversa com a amante, junto da porta do quarto da esposa, e de que esta ouviu algumas palavras? Como justificar a mudança subita do seu procedimento, depois da visita de Joanna, precipitando-se na investigação, que se via obrigado a confessar, visto que entrára em casa sómente com o fim de a concluir? Accrescentou, solemnemente: «As apparencias são contra mim; e comtudo...» Hesitou um momento, e depois, em voz mais elevada como para confirmar a solemnidade do juramento, accrescentou: «Juro-o sobre a cabeça dos nossos filhos! Não, o meu procedimento não foi dictado pelo desejo de me tornar livre, não teve uma tão abominavel intensão. Não obedeceu a um plano anteriormente concebido. Fui um louco, assevero-te... As tuas visitas a essa rua escusa, as precauções de que te rodeavas, este segredo da tua vida... Quando cheguei em frente d'essa casa não consegui dominar a duvida cruel que me torturava... Interroguei os lojistas da visinhança, e soube quem vivia ali... Não me interrompas. Era a espionagem, a infame espionagem, sinto-me aviltado pela ter exercido! Emfim, bati á porta: dei o teu nome para entrar, recebeu-me e vi o sr. Dumont. Quem é. Valentina dize quem é?...» Á medida que o marido fallava, contando tudo, com as faces ruborisadas e com os olhos incendidos pela febre de saber a verdade, o rosto da joven marqueza mudava de expressão. Á colera indignada dos primeiros momentos, seguiu-se uma anciedade que se approximava do terror, quando ouviu a phrase irreparavel. «Recebeu-me...» Soffreu uma emoção tão violenta que todo o seu corpo tremia convulsivamente. Depois, condensando a vontade n'um supremo esforço, teve a coragem de defender ainda o segredo, que não era seu, contra o apaixonado inquerito de Chalinhy. --«Desde que viste o sr. Dumont, sabes já quem é... Um doente a quem fiz a esmola d'algumas visitas, em cumprimento d'uma promessa solicitada por pessoa que já morreu... Deixa-me cumprir este dever de caridade até ao fim. Não o cumprirei durante muito tempo; por isso tem tu tambem a caridade de mais nada me perguntares...» --«Obedecer-te-hei», respondeu Chalinhy, «se me jurares tambem sobre a cabeça de nossos filhos, como eu fiz, que essa pessoa de quem fallas, essa morta que te exigiu o cumprimento de um tal voto não era...» Hesitou um segundo, depois, muito baixo, murmurante:« não era minha mãe? Mas não jures, não pódes jurar... Sei que era ella... Não foi só o sr. Dumont que vi na casa da rua Lacépède. Vi tambem minha mãe... Está lá o seu retrato, um retrato que não conhecia, em casa d'esse homem que ainda conhecia menos! Não é só o seu retrato que lá se encontra, mas tambem o teu e o meu...» E, de repente, illuminando-lhe a memoria um d'esses clarões de reminiscencia que nos fazem recordar n'um instante promenores d'um facto esquecido ha annos. «Mas eu conheço muito bem esse homem: Recordo-me perfeitamente d'elle. É Raynevilhe.» E repetiu. «Raynevilhe. Raynevilhe vinha a nossa casa n'outro tempo e depois desapareceu... Sim, espera. Recordo-me agora... Um processo... uma condemnação... Desde que sei o nome reconstituirei tudo... Não era porem nosso parente» continuou elle seguindo o seu pensamento, «e minha mãe continuou a vel-o secretamente até fallecer?... Pediu-te depois que o visitasses tu, quando não podesse lá ir já?... A questão Raynevilhe?... Sim, foi condemnado... Mas qual o motivo? Qual o motivo? Não me recordo. Sabel-o-hei, vou já a casa do meu advogado. Elle consultará a collecção da _Gazeta dos Tribunaes_. Quero saber...» --«Supplico-te, meu amigo» disse a marqueza de Chalinhy, detendo-o. «Tranquilisa-te.» E com uma expressão de terror, sempre crescente, accrescentou ainda: «Não vás a casa do advogado. Não pronuncies o nome de Raynevilhe a ninguem. Reconheceste-o sim, pois é verdade ser esse o seu appellido. Emquanto ao processo de que fallaste, existiu tambem e elle foi condemnado... Mas, que vaes fazer? Queres obrigar os mortos a fallar? «Sim. É um amigo d'infancia de tua mãe. Teve piedade d'elle depois que praticou uma enorme falta pela qual foi horrivelmente punido. «Quando se viu proxima da morte, teve ainda pena do desgraçado. Era um doente e vivia inteiramente só, por isso pediu-me para a substituir... Ah! meu amigo, não ultrages a memoria de tua mãe, depois de me teres ultrajado a mim! Respeita a sua ultima vontade, como eu fiz...»A marquesa esquecera por completo as recriminações do principio da conversa, esquecera Joanna de Node, não se lembrava mais de ciumes; n'aquelle momento sómente via que era forçoso obstar, por todos os meios, a que o marido proseguisse no inquerito, por isso concluiu por dizer: «Promette-me que tudo acabou, que ficarás por ahi! Que queres tu descobrir mais?» --«O que quero descobrir mais? Quero saber porque motivo minha mãe me occultou esse acto de caridade, e porque motivo te pediu que m'o occultasses tambem.» --«Valentina,» continuou Chalinhy, supplicante, «começaste a dizer-me a verdade; vae até ao fim... Como queres tu que acredite? Como queres que simples visitas de caridade para com um homem condemnado, expliquem a offerta d'um retrato como o que lá vi, feito tambem a occultas. Nunca ouvi fallar d'esse retrato, nem eu nem ninguem. Foi feito propositadamente para esse homem, percebes, _para esse homem_!... E a minha photographia! Porque a tem tambem sobre o buffete? Não me digas que é signal de reconhecimento para com a sua bemfeitora. Não, não e não. Ha outro motivo, forçosamente... Falaste de caridade e não a tens para commigo ajudando-me a expulsar do espirito uma ideia que se começou a apoderar de mim, que me tortura, que não quer abandonar-me,--a repellil-a,» accrescentou com um modo sombrio, «ou a acceital-a.» --«Qual ideia?» balbuciou Valentina. --«Teria esse homem, a quem minha mãe proporcionou tantos cuidados até ao fim da vida, e ao qual tu os proporcionas tambem, depois d'ella, na sua mão meio de a perder, de nos perder a todos... Não queres que vá a casa do meu advogado, porque? Porque receias que o seu nome e o nosso sejam pronunciados juntamente. Figuram, por acaso, juntos ao processo, e occultavam-m'o sempre?... Não me impedirás de o saber...» --«Fica sabendo que esse triste acontecimento nada tem de commum comnosco, respondeu a marqueza de Chalinhy. É sinistro, mas bem simples: O senhor de Raynevilhe tinha um tio, muito rico, e, achando-se um pouco embaraçado por falta de dinheiro, arrastado por esse meio parisiense, como tantos rapazes de boas familias, sendo os restantes herdeiros d'esse tio todos muito abastados tambem, concebeu a ideia de assegurar só para elle a herança, que tantos intrigantes invejavam, imitou a letra do tio e fez um testamento falso. Eis o seu crime. É grande, mas expiou-o com tantos annos de martyrio... Foi condemnado, e depois que cumpriu a pena, não viveu, n'esse bairro humilde, senão para os pobres e para Deus... Podes, em querendo, verificar se o que te digo é ou não verdade...» --«Esse homem é, pois, um falsificador, um ladrão,» respondeu Chalinhy, duramente, asperamente. «E pedes-me que não procure conhecer os motivos porque minha mãe o tornou a ver, quando sahiu da prisão--para que tu os conheças tambem? Pode-se ter consideração por um assassino, por não merecer o desprezo, mas por um falsario, um ignobil falsario!...» --«Cala-te, meu amigo, cala-te, supplicou Valentina. Não quero ouvir-te pronunciar taes palavras a respeito d'elle!...» Deteve-se como que petreficada pela phrase que ousára proferir. Olharam-se mutuamente, sem que nenhum d'elles tivesse força para continuar uma tão tragica conversação, que a entrada d'um creado que vinha trazer uma carta tornou mais tragica ainda. Entregando-a, o creado disse: --«É do doutor Salvan, para o sr. marquez. A sua carruagem espera lá em baixo pela resposta.» --«Diz que fica entregue e que não tem resposta. A carruagem do doutor Salvan pode partir» accrescentou Chalinhy, depois de ter deitado um rapido olhar para o bilhete que entregou á esposa, logo que ficaram sós. Continha apenas dez linhas traçadas, rapidamente, a lapis, pelo medico, mas que linhas para ella que as lia, debaixo do olhar do infeliz a quem em vão tentara dissuadir: «_Encontrei o sr. Dumont muito mal. Não pode fallar. Julgo, comtudo comprehender que deseja vel-o. A sua agitação é tal que tomo sobre mim a responsabilidade de lhe pedir que conclua a sua boa acção d'esta manhã, voltando á rua Lacépède, tambem. A minha carruagem o condusirá. Não abandonarei o doente. Venha, se pode. Á noite talvez já seja tarde_.» --«Ah! Norberto,» implorou Valentina, como n'um gemido, «não é possivel que o deixes morrer assim, que lhe recuses o que pede... Ainda é tempo. Vem. A carruagem de Salvan ainda não partiu. Vamos n'ella, mas vem! vem! Corramos!...» --«Não,» respondeu Chalinhy deixando-se cahir n'uma cadeira, e apertando a cabeça com as mãos, «não vou. Nada comprehendo, nada sei senão que esse homem e tudo quanto lhe diz respeito me causa horror.» --«Cala-te» gritou ella de novo, n'um accesso selvagem; e estreitando-o nos braços com uma especie de ardôr desesperado, arrastava-o dizendo: «Mas vem; vem de pressa. Vem. Ah! Queira Deus que não seja já tarde. Elle é teu pae. É teu pae!...» IX A morte Valentina não accrescentou uma unica palavra á confissão que lhe escapou, contra sua vontade, e que não fez mais do que antecipar a inevitavel conclusão a que a convergencia de tantos indicios reveladores, arrastariam Chalinhy, mais tarde ou mais cedo. Elle, por sua parte, não fez nenhuma pergunta mais. Seguiu, quasi automaticamente, a mulher desvairada, descendo com ella a grande escadaria e atravessando tambem com ella o perystilo. Quando chegaram á porta do palacio o «coupé» do medico tinha partido já. --«Meu Deus!» exclamou Valentina. «Deu-se o que eu temia. É muito tarde! Ah! E pensar que talvez morra n'este instante!...» Foram-lhe necessarios alguns minutos para arranjar uma carruagem de praça que levou proximamente meia hora, apezar das reiteradas instancias, em fazer esse longo trajecto, quasi metade de Paris, que a encantadora mulher tinha andado tantas vezes, occultando-se. E, comtudo, agora fazia o mesmo trajecto apertando nas suas as mãos d'aquelle a quem tanto tinha querido encobrir estas visitas. Norberto continuava calado; mas, de tempos a tempos, correspondia á pressão d'esses dedos fieis, e, na dor intima em que se debatia sob o imperio da mais dolorosa das revelações, a presença da mulher que por tanto tempo desconheceu e que via tão carinhosa, tão dedicada, enternecia-lhe o coração. Não ignorava actualmente, nada com respeito ás suas traições. Tinha-o ouvido gemer de dor ao comprehender que suspeitava d'ella, de maneira tão injuriosa, sugestionado por uma amante--e que amante!... Traições, injurias, humilhações, nada tinha a perdoar-lhe porque tudo havia esquecido na sua piedade pelo marido que soffria, e que ella via soffrer. Porque se não teria evidenciado mais cedo esta alma tão retrahida e tão nobre? Porque não revelou tambem Valentina, para com o homem que amava dedicamente, mais vehemencia n'esse amor, mais expansões, porque lhe não patenteou toda a intensidade do seu affecto? Ai de mim! A prophetica formula, do poeta antigo será sempre verdadeiro tanto no dominio dos modestos destinos particulares como nos das evoluções sociaes: «A sciencia em relação á dôr...» a que ás vezes se deve accrescentar e em relação á falta de cumprimento dos deveres! Sem que a generosa Valentina desse per isso, a chamma que brilhava nos seus olhos, n'aquelle momento, provinha da febre que o ciume lhe despertára desde que sabia da infidelidade do marido. Perante o vivo pesar que a traição lhe produzia sentia bem quanto o amava, de maneira que a tenebrosa intriga da invejosa Joanna produziu um resultado diametralmente opposto ao que ella desejava! E o marido desleal não estabeleceria tambem n'aquella mesma occasião uma comparação esmagadora para os seus indignos amores? Valentina e Chalinhy viviam ha muito tempo já uma vida recondita a par da vida apparente. Havia porém uma differença é que a reserva do marido servia para atraiçoar a mulher e a d'ella para cumprir uma missão de piedade filial da qual quiz, a todo o custo, evitar-lhe a amargura... Experimentariam elles todos estes sentimentos dentro da carruagem que os conduzia áquella scena suprema de tristeza e agonia? Liga-se aos nomes, pae e mãe, um respeito augusto que torna muito penoso termos de associar a elles idéas como as que deviam de futuro e para sempre, levar ao espirito de Norberto a recordação dos dois entes que lhe haviam dado o ser. O adulterio de sua mãe--a condemnação infamante do verdadeiro pae--o seu nome que não era verdadeiramente o que lhe pertencia. Que vergonhas! Que miserias! Como se lesse no pensamento do desventurado, Valentina disse-lhe, rompendo pela primeira vez um tão cruel silencio em frente da pequena casa aonde o antigo amante da mãe de Norberto acabava de morrer: --«Fiz a tua mãe a promessa de não te dizer a verdade a não ser que _elle_ te chamasse para junto de si nos ultimos momentos da vida. Ameniza-lh'os. É ella que t'o pede, pois é o unico caso em que desejava que tudo te fosse revelado... Tem a certeza que te está vendo n'este momento... É talvez a sua ultima expiação...» --«Não me peças nada em seu nome,» replicou Chalinhy em voz quasi imperceptivel! «Incutir-me-has menos coragem. Conheço a minha vergonha e que uso um nome roubado.» --«Soffreram muito,» respondeu ella. «Expiaram bem as suas faltas! Tu o saberás!... Tu o saberás!...» repetiu estas palavras por tres vezes com uma convicção que mesmo n'aquelle momento de angustia fez aflorar aos labios do filho uma pergunta irritada: --«Que mais devo ainda saber?» --«Tudo,» replicou ella em tom grave. «Não são os actos que devemos julgar na vida são os corações. Ah! Cede aos impulsos do teu n'este momento solemne, meu Norberto, arrepender-te-hias mais tarde de não teres perdoado.» Chegaram á porta da casa defronte da qual se achava o coupé do doutor Salvan. O cocheiro, que tinha descido da almofada achava-se junto da porta e ao reconhecer a marqueza de Chalinhy dirigiu-se para ella assim que desceu da carruagem. --«O que ha?» perguntou-lhe Valentina percebendo na sua physionomia que se passava alguma cousa muito grave. --«Morreu», respondeu o homem, muito baixo, indicando com a mão as janellas do primeiro andar da pequena casa, com a voz tão indifferente na sua gravidade fingida que toma a gente do povo para annunciar um acontecimento tragico e de cuja importancia parece participarem tambem, só pelo desempenho d'uma tal missão. --«Morreu!...» repetiu Valentina e apertou a mão do marido para lhe dizer: «Não teve tempo de saber a tua resposta e a tua primeira recusa, juro-te....» «Não é verdade» accrescentou em seguida, dirigindo-se ao cocheiro: «foi emquanto se dirigiu á rua Barbet-de-Jouy que falleceu?» --«Justamente, na occasião em que parti. Não sei como isso foi, comprehendeis, como cheguei n'este instante, o creado que entrava de chamar o padre é que me contou o accidente». A marqueza de Chalinhy sentiu que o marido ao receber a triste nova, se apoiava ao seu braço para não cahir. Conheceu que a commoção produzida pela noticia da morte, recebida d'aquella fórma, lhe augmentaria os remorsos, por ter perdido a occasião suprema e unica de mostrar alguma piedade por aquelle que sabia era seu pae. Por esse motivo, e ainda para lhe evitar logo uma tal dôr, é que forçou o cocheiro a precisar um detalhe que devia, era sua convicção, attenuar, pelo menos n'um ponto, a impressão experimentada por Norberto. Viu, porem, que a segunda resposta o deixára mais perturbado ainda. Impallideceu tão horrorosamente que julgou que ia desfallecer. Valentina ignorava ainda que o ataque que victimou o doente se tinha declarado na occasião em que deparou inesperadamente com Norberto, julgando receber a visita do negociante enviado pela marqueza, por isso ella, muito afflicta, impelliu-o para dentro do carro, dizendo: --«Estás muito commovido. É conveniente não entrarmos... Se queres dizer-lhe adeus, voltaremos cá ámanhã...» --«Não,» respondeu elle. «Quero vel-o, immediatamente.» --«Ah! meu amigo, perdoaste-lhe. Ah! Ainda bem!» --«Perdoar-lhe!...» repetia Chalinhy, concentrando n'esta especie de suspiro todos os sentimentos tão contradictorios que o agitavam: o horror de ter sido a causa, muito involuntaria, mas a causa, em todo o caso, d'esta crise ultima a que o moribundo tinha succumbido,--a revolta sempre fremente da sua honra contra a revelação que lhe fizeram a respeito da mãe;--uma emoção violenta, á idéa de que, ali, dentro d'aquelle pavilhão solitario acabava de morrer aquelle que sua mãe amou e que lhe deu o ser,--um reconhecimento augmentado constantemente pela esposa mal apreciada e trahida, sim, que elle trahiu como sua mãe tinha trahido o velho Chalinhy. Tinha, porventura, o direito de se indignar, de «perdoar», como dissera Valentina? Para perdoar não era necessario ter auctoridade para condemnar? Sentia tambem uma imperiosa necessidade de tornar a vêr, antes da completa desapparição que ia seguir essa morte, o scenario onde se desenrolou essa longa tragedia ultima na qual foi iniciado tão funestamente;--de tornar a vêr as feições do que n'ella foi o heroe, do homem que tão apaixonadamente se apoderou do coração de sua mãe para que ella o não tivesse renegado depois do crime:--de procurar sobre esse rosto immovel o traço d'uma similhança com o seu proprio rosto, a prova da filiação que lhe tornava de futuro tão cruel o ouvir pronunciar o nome que continuaria a usar. Batera a essa pequena porta, algumas horas antes, com uma pungente commoção quando julgava possuir a prova do adulterio da esposa. O que era isso comparado com o confrangimento da alma que sentia agora e que quasi o suffocava? A porta abriu-se como da outra vez. Como da outra vez subiu a estreita escadaria com o seu tapete, os quadros e a graciosa ornamentação á qual certamente presidira sua mãe. Como d'aquella vez entrou na ante-camara e depois na bibliotheca aonde se achava o doutor Salvan, ao qual na perturbação produzida pela catastrophe, não transmittiram a primeira resposta, por isso que acolheu os recemchegados, dizendo-lhes: --«Esperava-os... Deixou já de soffrer e exhalou o ultimo suspiro, n'uma commoção suave e por sua causa,» accrescentou, dirigindo-se a Norberto. «Recuperou os sentidos, e pude comprehender que desejava tornal-o a vêr. Nas paralysias medullares progressivas está-se sempre á mercê d'uma syncope, e esta deu-se precisamente na occasião em que a minha carruagem partia. Ouvi o ruido produzido pelas rodas e elle tambem e lançou-me um manifesto olhar de reconhecimento!... Cinco minutos depois deixou de existir.... Havia muito já que morrera para o mundo e que entregára a alma a Deus. Não tendo mais nada a fazer aqui, vou presencear outras miserias. Ha-as bem peores e que não teem uma santa para as consolar....» O medico retirou-se e o rodar da sua carruagem--o ultimo ruido da vida percebido uma hora antes pelo morto--annunciava que esse grande homem de bem ia, como tinha dito, presencear outras miserias; e aquella a cuja dedicação rendeu merecido preito em termos d'uma veneração tão enternecida continuaria na sua missão de caridade cumprida, ha annos, na velha casa do modesto quarteirão, asylo, n'outro tempo, de tantas vocações religiosas. As tilias do jardim, na epocha em que guarneciam a cerca d'um convento, viram passar por sob a sua sombra no verão e as folhas douradas no outomno, muitas mensageiras da consolação, mas nenhuma d'ellas tinha o coração inundado d'uma piedade mais profunda e mais ardente do que essa mulher quando se ajoelhou na camara mortuaria. Tomou de novo entre a sua a mão do marido que, em pé, olhava seu pae, immovel na cadeira. A celeridade dos ataques repetidos não permittiu que transportassem Raynevilhe--demos-lhe o seu verdadeiro nome--para a cama. Apenas, para prevenir qualquer choque nas convulsões do ataque, foi introduzido um travesseiro por detraz da cabeça, sobre o qual se destacava o seu rosto hirto e cuja extrema magreza attestava o marasmo d'uma physiologia gasta por muitos annos de doença. Os labios não cobriam completamente os dentes, que brilhavam na bocca livida. As palpebras, mal cerradas, deixavam ver o globo vitreo dos olhos. Mas o doutor Salvan dissera a verdade: apesar dos signaes do soffrimento que deviam tornar o seu aspecto sinistro, denunciava o socego, a tranquilidade de redempção emfim alcançada. O padre, chamado á ultima hora, e que resava a um canto do quarto, tinha já collocado no peito do morto um crucifixo sobre o qual se cruzavam as suas mãos que pareciam de cera, e cujos dedos os espasmos do ultimo ataque tinham como que torcido. Os cabellos raros e a barba toda branca foram penteados. O jaquetão de cachemira preta estava abotoado até ao pescoço, e tinham-lho deitado sobre as pernas, sem duvida para encobrir a deformação dos pés que as contracções deviam ter produzido. Valentina percebeu, pela violenta pressão dos dedos do marido sobre a sua mão, que os pensamentos que o triste espectaculo lhe suggeria eram muito dolorosos. Levantou-se e conduziu-o á bibliotheca, onde a senhora de Chalinhy, de 1875, sorria na sua moldura oval, e, chegados ali, disse-lhe grave, acariciadora e persuasiva. --«Volta já para a rua Barbet-de-Jouy, Norberto, peço-t'o. Ficarei aqui mais algum tempo para cumprir um dever; o teu cifra-se apenas em o coração lhes fazer presentemente inteira justiça...» E com a mão indicou-lhe primeiro o retrato da mãe e em seguida a porta do quarto onde repousava o morto. «Entra no meu gabinete e procura na gaveta da secretaria um cofre de couro; abre-o» e desligou d'um bracelete aonde estavam presos alguns berloques, uma pequenina chave d'ouro, que lhe entregou. «Ali encontrarás um sobrescripto que tem por fóra as palavras: «Para meu marido, depois d'eu morrer», escriptas pela minha mão. Toma conhecimento do que contem e se desejares voltar aqui, iremos depois juntos... _É ella que assim o quer_...» Achava-se tão esgotado por uma série de acontecimentos qual d'elles mais violento, que obedeceu á esposa, como teria obedecido vinte e cinco annos antes a uma supplica d'aquella cuja effigie inesperadamente apparecida n'aquelle mesmo logar se lhe tinha afigurado como mais compromettidor indicio. Recebeu a chave e deixou-se conduzir por Valentina até á porta, e meia hora depois, tendo encontrado o cofre de couro negro de que lhe falou, e dentro do cofre o sobrescripto com a epigraphe indicada, eis as paginas que começou a ler. Eram todas escriptas por Valentina e datadas de 3 de setembro de 1897, dois dias precisamente antes da mãe fallecer. As palavras traçadas no sobrescripto estavam reproduzidas no principio d'aquellas paginas, cuja primeira linha, por uma recordação do terno appello feito pela senhora de Chalinhy a Valentina, o fez logo chorar. Tinha por ventura culpa de não ter conhecido, então o que era esta mulher! Porque lh'o não teria sua mãe revelado? Ai! As mesmas reservas da sua vida de casado, conheceu n'outro tempo, no seio da familia, como filho. Tinha a pesarem sobre elle as consequencias sombrias e crueis do seu sêr concebido na mentira e temor. Trazendo tambem o mesmo peso sobre o coração, como teria sua mãe podido viver com elle n'essa communhão que suppõe a inteira sinceridade? É a inevitavel expiação das felicidades prohibidas que pela necessidade do mysterio, não permittem a uma mulher dizer ao seu proprio filho qual o sangue que lhe corre nas veias e o nome d'aquelle que deveria chamar seu pae! «_Para meu marido, depois de eu morrer.»_ «3 de setembro de 1867 «A mamã esteve hontem tão mal, que o medico julgou que não vivesse 24 horas. Pediu-me que não a abandonasse, ella que de ordinario deseja sempre que me vá deitar. A enfermeira devia substituir-me depois da meia noute. Comprehendi logo, pela sua terna insistencia que tinha uma ultima recomendação a fazer-me, á qual ligava uma extraordinaria importancia. Não podia suspeitar quanto essa entrevista teria de solemne e que confidencia me ia ser feita, a qual quero transcrever aqui, n'este momento em que todas as suas palavras estão ainda tão precisas na minha memoria. Quer ella, se eu morrer antes de uma certa pessoa, que meu marido seja o depositario d'este segredo, que não teve força para lhe revelar. Assim o quer para que um certo dever seja cumprido, dever que me confiou. Satisfarei os seus desejos deixando depois de mim, se for necessario, este testemunho. É precizo que eu reproduza as suas proprias palavras e que não misture com ellas as minhas emoções. Não poderia expôr d'outra fórma o seu pensamento. Depois d'essa conversa estou exhausta, estonteada. Só a vejo a ella e só a ella ouço. «Reinava em volta do palacio um profundo silencio. «Nesta epocha do anno poucas carruagens transitam pelas ruas Varenne e Barbet-de-Jouy. A palha que se fez espalhar pelas duas ruas amorteciam-lhes o ruido. «Instalei-me á cabeceira da cama, com a minha costura, mas não consegui fazer nada. «Pousava-a constantemente para olhar o pobre rosto d'essa mulher, que era ainda tão bella quando casei, e onde vejo já pronuncios da morte proxima. «Fechou os olhos e parecia dormir. «Rezava mentalmente, pedindo a Deus coragem para me fallar, e quando levantou as palpebras, vi-lhe no olhar um tão intenso ardôr que advinhei logo o seu desejo e antecipando-me, para attenuar um pouco o grande esforço que faria em articular as palavras, disse-lhe: --«Está muito afflicta, mamã?... Quer alguma coisa de mim? Estou prompta para lhe fazer o que desejar.» --«Quero,» respondeu ella. A sua voz tão fraca n'estes ultimos dias tornou-se forte. Senti que ia gastar os ultimos lampejos da vida. «Como isto é penoso», acrescentou ainda. «A sua enorme perturbação assustou-me tanto que lhe disse:--«querida mamã está muito incommodada. Se tem qualquer pedido a fazer-me sabe que estou sempre prompta. Espere para amanhã, para depois ou para d'aqui a oito dias... Terá então já recuperado as forças...» --«Não,» respondeu, mostrando-me o rosto terrozo, amarellado, «terei ja morrido. É precizo que te falle agora, Valentina,» continuou, com a sua voz d'outro tempo, readquirida por um milagre de energia, «repito-te, vou morrer. Sei-o perfeitamente. Disse-mo o medico quando lhe declarei que tinha um assumpto extremamente importante a regular. Esse assumpto consiste em confiar á tua honra um segredo que não deve ser conhecido de ninguem, excepto de Norberto, em duas circumstancias que precisarei. Consiste ainda em te encarregar d'uma missão muito delicada, muito penosa. Se vires que não podes cumpril-a, peço-te que m'o digas francamente.» --«Guardarei o segredo, mamã, e se a missão não é impossivel, cumpri-la-hei. Prometto-lho.» --«Obrigada,» disse ella, «mas para ter coragem de te fallar, preciso orar primeiro.» «Fechou os olhos. Na sua triste figura, tão doente, vi uma expressão de intensa dôr. «Os labios descórados recitavam muito baixo uma oração que eu não ouvia. Tinha medo... «Quando a oração mental terminou, disse-me: «Apaga a luz. Não poderei fallar se me vires e eu te vir a ti.» Obedeci-lhe: «Vem para o pé de mim», repetiu ella, «muito proxima, e dá-me a tua mão.» Obedeci-lhe ainda. «Os seus dedos ardiam em febre e na obscuridade em que nos achavamos, o som d'essa voz que parecia vir da outra vida,--e não era a confissão d'uma alma que não pertencia já a este mundo?...--nunca me esquecerá. --«Minha filha», começou ella, «o que tenho a referir-te deve ser dito sem interrupção. «Amei um homem que não era meu marido, que vive ainda e é o pae de Norberto. Chama-se, direi antes, _chamava-se_ Filippe de Raynevilhe... «Estando prestes a entregar a alma ao creador e a ser julgada por uma falta que bastante expiei já e que expio ainda n'este momento, não tentarei desculpar-me. «Conheci Filippe antes do meu casamento; era filho d'um dos visinhos do solar de meus paes, na provincia. Amámo-nos, sem reserva, com a esperança, com a certeza de um futuro enlace, que um inesperado acontecimento, uma mortal inimisade entre seu pae e o meu, a proposito d'uma questão d'interesse, tornára impossivel. «As duas familias sabiam dos nossos sentimentos. «A sua obrigou-o a fazer uma viagem, e a minha occultou-me que havia sido violentado a partir. «Consenti em casar com o marquez de Chalinhy. «Repito-te que não procuro justificar-me. «Precedi mal desposando alguem que não amava, tendo a imagem d'outro no coração. Mal fiz ainda em não occultar de meu marido a minha indifferença para com elle. Peor fiz, porém, affastando-o pela minha frieza, em tomar como pretexto a sua infidelidade para justificar a minha. «Teve uma amante. Soube-o. Disse comigo que a sua falta de fé conjugal me tornava livre. «Encontrei Filippe no mundo, a nossa antiga paixão reviveu; lancei-me nos seus braços e fui mãe.» «Ficou como morta. Apertei-lhe a mão com toda a piedade que, perante a confissão d'uma tragedia tão simples mas tão pungente na sua expressão muito humana, me enchia o coração. Com a outra mão, a que conservava livre, acariciava-lhe as faces, como faço algumas vezes, quando soffre mais e não supporta sequer que lhe toquem. Os meus dedos molharam-se com as suas lagrimas que lhe corriam dos olhos, silenciosamente, promovidas pelas caricias, que n'essa noite lhe prodigalizei. «Para me provar quanto taes caricias, depois do que acabava de me confiar, lhe eram agradaveis e doces, agarrou-me na mão livre e levou-a aos labios. Nunca chorei tanto como n'esse momento. --«O peor está ainda para dizer», repetiu depois: «quando Norberto nasceu juro-te que não receberia o nome de Chalinhy se não tivesse tido outro filho. Não tinha tido força para me conservar uma mulher honesta, por causa d'esse filho, e não tive tambem coragem para o abandonar. Illudi a minha consciencia justificando-me com tantos exemplos de eguaes compromissos que via em torno de mim, e tambem porque a grande fortuna era minha. Estes miseraveis sophismas foram bem castigados. Se tivesse fugido com Filippe nada do que aconteceu, e que é medonho, teria acontecido. Era muito rica, bem o sabes. Vivia no mesmo meio em que tu vives hoje, sem ter nunca que me preoccupar com as questões de ordem material. Reynevilhe herdára dos seus uma fortuna muito abalada. Para viver na sociedade e fazer figura n'ella gastava mais do que os rendimentos. A infelicidade, soube-o depois, perseguia-o tambem. A fallencia d'um banco, em que imprudentemente collocára uma parte dos fundos, acabou de o arruinar. Se ao menos me tivesse dito alguma coisa!... Mas eu ignorava tudo! Vendo-se na necessidade de mudar de vida--o que segundo elle imaginava, o desgraçado, equivalia a perder-me--commetteu um crime. Tinha um tio muito velho e muito rico, sem filhos. Nenhum dos primos necessitava verdadeiramente da herança. «O tio falleceu de um ataque, na epocha em que Filippe se achava mais atormentado, e, tendo sido chamado para junto d'elle, não resistiu á tentação, destruiu o testamento e fabricou um em que era declarado seu unico herdeiro... Uma manhã, ao despertar, Chalinhy entrou no meu quarto e mostrou-me um jornal onde se relatava a descoberta da falsificação e a prisão de Reynevilhe... Se não enlouqueci repentinamente, foi porque o olhar de meu marido me fez comprehender que suspeitava da nossa ligação. Pensei em Norberto, e tive força para me calar...» --«Ah! pobre mãe!» exclamei, «tem razão em dizer que tudo expiou. Pagou tudo com a dedicação por seu filho n'esse momento. Tem porventura a culpa de se ter enganado a respeito do senhor de Reynevilhe e d'elle ser um miseravel?» --«Não lhe chames miseravel, porque o não é», interrompeu logo. Quando classifiquei d'uma maneira tão dura o amante falsario, a minha imaginação ia alem da sua confidencia. Reportava-se á historia sinistra d'uma _chantage_. Pela energia com que a sua mão se crispou sobre o meu braço, reconheci que os seus sentimentos pelo pae de Norberto não eram de odio e de desprezo. Continuei a escutal-a: --«Tudo o que Filippe havia feito, fel-o simplesmente porque me amava. Posso fazer a mim mesma a justiça de que tive a intuição d'isso, desde o primeiro momento. A certeza d'um horrivel equivoco é que evitou que succumbisse logo, ali mesmo. «O meu instincto de mulher não me enganou... Mas», e o tom da sua voz denunciou um intimo desespero, «como posso provar o que sei tão bem! Julgam-se os homens pelos seus actos, e este é dos que se não perdoam. Uns matam porque amam, encontram ainda quem os proteja, quem os lamente, quem os estime. Para um falsario é a deshonra, a vergonha eterna, inexplicavel!... E portanto!... Escuta, Valentina, conheces-me. Tão verdade como eu vou comparecer deante de Deus, nunca mais na minha vida commetti uma segunda falta, nunca mais. Observaste a minha vida. Vaes presencear a minha morte. O juramento d'uma mulher no estado em que me encontro, poderia ser duvidoso?... Pois bem! Juro-te que Filippe não foi mais culpado do que o que mata porque ama. Não teve senão o amor a compellil-o ao crime, repito-te, sob juramento, só o amor. A sociedade tinha o direito de o julgar pela maneira porque o fez castigar. Os seus tinham o direito de o desprezar e os amigos de não mais o conhecer. Elle mesmo tinha o direito de se condemnar, como fez tambem... Mas eu, por causa de quem commetteu o crime, para me não deixar, para viver a minha vida, porque me amava, emfim, era a unica que tinha o dever de o não despresar e não o despresei...» --«Vive ainda?» perguntei-lhe quando terminou. «Sabe que vive e aonde vive?» «Posto que não comprehendesse ainda muito bem o fim a que tendia esta suprema confidencia, percebia comtudo que queria associar-me d'alguma maneira á sua obra de piedade. Sem duvida tinha continuado a manter uma correspondencia activa com esse infeliz, retirado longe de Paris, e tendo-lhe occultado o seu estado, temia que uma carta d'elle, recebida depois da sua morte, fosse parar ás mãos de Norberto. Ia pedir-me que fosse eu a mensageira de tão triste situação? Estava já resolvida a prometter-lhe que contasse comigo. Não presenti senão uma parte da sua vontade. Podia lá adivinhar a que excesso de dedicação a conduzira a sua piedade por esse criminoso por amor, do qual era a unica consolação, no seu tristissimo estado physico! «Tinha-a muitas vezes ouvido dizer que o mundo está cheio de romances occultos, mais phantasticos na sua realidade palpitante do que todas as invenções dos livros. «Mas que uma aventura como essa fosse possivel--que uma mulher da nossa sociedade tivesse levado a exaltação do seu sentimento até consagrar a melhor parte da sua vida a um amante cahido--(e em que desastrosa queda!)--que encontrasse meio de lhe transmittir a esmola da sua ternura, por cartas, que o impediram de se matar,--que tivesse continuado a escrever-lhe durante o tempo do cumprimento da pena--que tornasse a ver esse amante depois de cumprida a mesma pena; que tivesse podido não uma vez, mas cem, mil vezes, escapar a todas as exigencias do seu meio para ir a uma casa perdida ao fundo de um arrabalde, passar uma hora com elle, reconfortal-o na sua angustia, auxilial-o com os seus conselhos na sua tortura moral--que esse homem culpavel d'um tão grande crime, não tivesse mais sob esta influencia, nutrido senão um unico pensamento, mostrar-se digno d'uma tal amiga, resgatar um instante de aberração por uma vida inteira consagrada a boas obras--e que as relações d'esses dois seres se prolongaram assim, de mez para mez, durante annos, sob a ameaça d'um perigo continuo, n'este Paris do fim de seculo 19, tão positivo, tão brutal--não, não teria nunca imaginado um similhante romance e menos ainda que a sua heroina fosse a mãe de meu marido, esta marqueza de Chalinhy, que tanto me seduzio quando lhe fui apresentada, por a sua doçura, e comtudo ouço bramir na sua voz de moribunda todo este martyrio intimo dos seus tragicos amores. --«... Quando se descobriu tudo», disse ainda, «uma unica idéa o preocupou: fazer-me saber o motivo porque tinha cedido a essa allucinação, obter o meu perdão e morrer. Tenho as suas cartas. Lelal-as-has e saberás então quanto soffri. Ah! o que eu soffri?... Indicava-me um meio de lhe responder. Obtive d'elle que vivesse. Obtive que se deixasse julgar e condemnar quando se podia eximir a tudo suicidando-se. Mas eu não o queria. Amava e tinha fé. Tenho sempre tido fé, ainda mesmo quando me abandonava a esta felicidade prohibida... Tive logo a evidencia de que esta horrivel prova era o castigo dos dois, que Deus não nos puniria depois, se acceitassemos o castigo d'esta cruz. E que pesada que ella tem sido, para elle até agora, e para mim que devia escutar os commentarios do mundo a seu respeito, sem ter a liberdade de o defender, nem mesmo de o chorar! Abafou-se o mais possivel o crime, por causa da familia, mas não tanto que a noticia do julgamento não chegasse ao dominio publico... E nos annos seguintes, emquanto cumpria a pena eu vivia no luxo, na honestidade e não abraçava nunca o seu filho sem me lembrar: «o pae está na prisão...»; sem o ver, a elle, na sua cella, que muito bem conhecia pela descripção feita nas suas cartas. Teve sempre meio de m'as enviar... E mais tarde, quando foi solto, e que nos tornámos a encontrar em face um do outro, pela primeira vez depois do funesto acontecimento!... Não padecerei mais ámanhã quando morrer... Emquanto estava na prisão, uma ironia da sorte quiz que herdasse, em consequencia da morte subita de um primo que falleceu _sem testamento_, uma nova fortuna. Foi então que me foi permittido julgal-o completamente, vendo-o, livre, retirar-se n'um bairro pobre de Paris, com um nome falso, e começar ahi uma existencia de caridade, que não teve durante annos outro cambiante, senão procurar miserias a soccorrer, e as minhas visitas... Até que fiquei detida n'este quarto pela doença não se passou uma unica semana, quando estava em Paris, que não fosse vêl-o duas e tres vezes. Viuva, estas visitas tornavam-se-me faceis; mas n'outros tempos eram em extremo perigosas. Tinha receio principalmente por causa de Norberto. O que então senti pouco importa. O que importa é que vou morrer e desespera-me o que elle soffrerá depois da minha morte... «Eis o que te desejava pedir, Valentina, que o vás ver quando eu deixar de existir, para lhe entregares as cartas, que não tive coragem de destruir, e que te esforces para lhe tornar o golpe o menos doloroso possivel. É actualmente um velho e um doente. Teve um ataque de paralisia ha mais d'um anno. Conhece-te. Sabe por mim o que és, e o que valem os primores do teu coração, pelo qual tenho tanta estima. É esta a maior prova que te posso dar d'isso!... A tua presença será o unico lenitivo que poderá receber. E depois, se tenho sido boa para ti, se conservares de mim alguma recordação, voltarás lá algumas vezes para o ajudares a esperar o momento de nos juntarmos...» --«Prometto que farei o que me pedes mamã,» respondi com os olhos inundados de lagrimas. Só com esta recordação as lagrimas caem ainda sobre este papel, mas não é de mim que se trata. É preciso que refira ainda estas outras phrases, que me disse tambem: --«Norberto deve ignorar tudo, sempre. Mas se a fatalidade quizer que te achasses muito doente e em perigo de desappareceres do mundo antes de seu pae fallecer, peço-te que falles. Falla tambem se Filippe reclamar o filho á hora da morte... Se não absoluto silencio!». --«Transcrevi esta conversa sem nada omittir, immediatamente, para que possa, caso qualquer das duas circumstancias se produza, obedecer inteiramente a essa pobre senhora. Depois será á sua supplica e não á minha que deve obedecer. Que a ouça como eu a ouvi! E que me acredite piamente dizendo-lhe que tenho por ella, n'este momento em que os nossos corações acabaram de bater tão proximos um do outro, durante essa hora de agonia moral, tanta veneração como piedade! «Disse-me ainda que o sr. Reynevilhe mora actualmente na rua Lacépède n.º 11, com o nome de _Dumont_. _Valentina._» X Epilogo Eram quatro horas da tarde quando o filho dos dois heroes d'este doloroso e mysterioso drama d'amor começou a ler as paginas em que a confissão da morta se achava reproduzida com uma emoção que a escripta e a redacção denunciavam. Ha muito que era já noite e ainda tinha nas mãos aquellas folhas, cujas phrases não podia deixar de repetir, uma por uma. Era como se as palavras pronunciadas nas trevas do leito da agonia, viessem, com effeito, do tumulo, d'ali, do Père Lachaise, onde tinha acompanhado sua mãe poucos dias depois que ella confiou os amargos segredos da sua vida, n'esta confissão suprema. A marqueza de Chalinhy não quiz que a depositassem no jazigo de familia. Fez construir no ultimo anno da sua vida um tumulo especial, pedindo que na frontaria da pequena capella fosse gravado um unico nome: _Armanda_. O filho conformou-se com esta disposição testamentaria da mãe e viu n'ella um d'esses caprichos de hypocondria que as pessoas que padecem de doenças do figado, que tão profundamente alteram o caracter, teem muitas vezes. Comprehendia agora o motivo occulto d'um tal desejo. E recordava-se tambem de que ao lado do mausoléo da sua mãe, e quasi igual a elle, existia um outro completamente novo e que não tinha ainda nenhum nome gravado na frontaria. Admirára effectivamente uma tal similhança; mas disseram-lhe que o comprador d'aquelle terreno fizera copiar o monumento visinho por lhe ter admirado a simplicidade elegante. Esse comprador, adivinhava-o: era Reynevilhe. O amigo e a amiga quizeram repousar em mausoléos parecidos já que não podiam reunir-se no mesmo tumulo. Quem reconheceria o antigo homem escravo da elegante moda parisiense, o condemnado por falsificador, debaixo d'este appellido anonymo, este nome quasi impessoal de Dumont? Quando o filho fosse, de futuro, lançar flôres no tumulo da mãe, como fizera ainda no principio do mez de novembro, o tumulo do seu verdadeiro pae elevar-se-hia ali proximo implorando um olhar, um pensamento, um perdão. Recusar-lh'o-ia?... Não. A transformação que Valentina lhe tinha annunciado estava-se já operando n'elle. Era-lhe impossivel condemnar estes dois seres, dos quaes descendia. A sua falta foi tão tragicamente perseguida pela justiça vingadora, inherente á felicidade criminosa, que, mesmo no coração d'um extranho, a piedade teria sobrelevado a mais severa austeridade. Como não havia, pois, um filho de sentir superabundar nelle essa piedade, jorrando em lagrimas sobre o papel onde se descobriam ainda os vestigios d'outras lagrimas? E esses vestigios recordavam ao marido de Valentina a ternura feminina que acabara de purificar uma aventura culposa no principio, ainda que com muitas attenuantes,--criminosa depois pela allucinação d'um dos seus auctores,--ennobrecida mais tarde, mesmo na propria falta, pela fidelidade e pela dôr. Chegou a mesma aventura ao seu conhecimento absolutamente purificada por sua mulher. Era para junto d'ella, pois, que n'aquelle momento voava a sua alma dolorida, porque só por intermedio d'ella podera reconciliar-se inteiramente com a morta e com o morto, de cujo adulterio o nascimento o havia tornado cumplice, mau grado seu, unicamente pelo nome. Fizeram ainda peor! Transmittiram-lhe no intimo do ser as violentas contradições dos seus actos e das suas sensibilidades. O que possuia de nobre e altivo, a instinctiva nobreza que o fizera soffrer sempre tanto com a mentira da sua traição a Valentina, devia-o a elles. O extranho romanesco da sua ligação mostrava evidentemente que tinham sido d'aquelles amantes que respeitam pelo menos os seus corações e que procediam movidos pela paixão e não pela intriga e pela galanteria. A fraqueza lamentavel da sua vontade em presença de certas tentações, provinha ainda d'elles. O peccado do seu amor transmittiu-se-lhe no sangue e tambem nas commoções do perigo que tinham corrido para se darem um ao outro. O que tinha de ferozmente timido derivava d'elles, assim como a desconfiança da doentia susceptibilidade, o obstaculo levantado ha alguns annos entre si e a esposa, exactamente como entre elle e sua mãe. Para que a moribunda o não tomasse por confidente, n'aquella hora suprema, era preciso que tivesse deixado augmentar muito entre os dois a profundeza do silencio que só catastrophes como aquella que o feria conseguem despedaçar. Eis as ideias suggeridas por essas folhas de papel, já um pouco amarellecidas, a esse homem, subitamente collocado em presença da mais inesperada, da mais estonteante das revelações--idéas ainda emmaranhadas e indeterminadas, confusas e incertas. Não se desenhavam na sua reflexão em tão vivos contornos. Mas no emtanto apossavam-se já d'elle, condensavam-se levando-o ao reconhecimento apaixonado por Valentina, a uma necessidade de lhe pagar em ternura, em culto, em veneração, tudo o que ella tinha feito primeiro pela moribunda, em seguida pelo solitario da rua Lacépède, e por ultimo por elle proprio! Os acontecimentos succediam-se depressa, fornecendo-lhe occasião de provar esta gratidão, e, como acontece sempre quando se está collocado em certas situações d'uma ambiguidade insoluvel, a volta ao respeito do seu lar não podia fazer-se senão á custa de quem lh'o tinha feito profanar. Atravez d'estes pensamentos e absorvido como estava pela evocação de sua mãe, vivendo de novo pelas palavras da sua agonia, esquecia onde estava e que antes do jantar, sua mulher recebia habitualmente no pequeno salão em que se encontrava. Os creados entravam para executar o seu serviço habitual, accender as luzes, correr os reposteiros e preparar o chá. Norberto não reparava, deveria prever que Joanna de Node, depois da fórma porque o tinha deixado essa manhã, viria certamente saber noticias á tarde. As recepções intimas das 6 horas da tarde, dadas por Valentina, eram um magnifico pretexto. Mas Norberto esqueceu completamente a existencia da amante. Certos accidentes do destino assemelham-se verdadeiramente aos grandes cataclysmos, ao sahir dos quaes--um incendio como o do Bazar de Caridade, um tremor de terra como o da Martinica--o homem que conseguiu escapar se transformou n'algumas horas n'um outro individuo. O abalo ao mesmo tempo nervoso e sentimental foi demasiado forte. Uma testemunha d'um desastre quasi perturbador da razão, não poderá readquirir mais nem as alegrias, nem as dores d'outro tempo, nem esquecer nunca a commoção soffrida. Se tinha apenas 25 annos esta manhã, no momento actual tem sessenta, tem cem. Mofava de si mesmo e da vida, e ella lacerou-o na fibra mais intima. A sua indifferença acabou da mesma fórma que a sua jovialidade. Uma outra não se conhecia, nem ao seu proprio coração. Ia em procura de emoções obscuras atravez de experiencias nas quaes não chegava a conhecer o verdadeiro gozo. Todas essas recordações se apagaram d'um golpe. Aniquilaram-se simplesmente ao contacto d'uma impressão tão forte, tão mordente que não ha mais prazer em torno d'ella. Este ultimo caso era o que se dava com Norberto de Chalinhy. A sua intriga com Joanna, na qual os sentidos tiveram a parte principal, não podia interessal-o mais, senão como um remorso, depois das horas que acabava de passar. Não se havia mesmo recordado de tal intriga durante essa tarde, senão para se censurar amargamente de ter desconhecido por tanto tempo Valentina. Foi por isso que com uma estranha surpresa misturada de tortura e de irritação, viu entrar a amante no pequeno gabinete da esposa, pela fórma porque entrou, sem se fazer annunciar e quando tinha ainda na mão as folhas de papel depositarias do terrivel segredo. Joanna de Node ia em demanda de novidades, depois de ter passado toda a tarde em passeio e em visitas, sempre com a mesma idéa fixa: Chalinhy está na casa da rua Lacépède... O que terá acontecido?... As mais variadas hypotheses tinham umas após outras surgido ao seu espirito desde o homicidio que de novo reapparecia para logo ser repellido, como insupportavel para a sua consciencia, até á, muito mais provavel e em parte conforme com os factos, d'um inquerito junto dos lojistas visinhos. Conhecia sufficientemente Norberto, para não duvidar de que, tendo-lhe promettido nada dizer a Valentina, deixasse de cumprir a sua palavra. O que arriscava então em ir ao palacio Chalinhy? Dirigiu-se pois, lá. Disseram-lhe os creados que a senhora marqueza ainda não havia regressado, mas que o senhor marquez estava em casa e ella subiu como tantas outras vezes, com o pretexto de esperar pela prima, mas na realidade para ter com Norberto alguns momentos de conversa, a fim de o interrogar. Viu logo ao primeiro golpe de vista, que continuava a estar muito perturbado. Por outro lado, aquella secretaria com a gaveta meia aberta, o cofre de couro, que sabia muito bem pertencer a sua prima, aberto tambem, a carta cuja lettra não conhecia, porque Norberto a tapou logo com as mãos; o seu proprio gesto e sobresalto de surpresa que nem mesmo dissimulou--estes diversos signaes condiziam perfeitamente com o estado de violencia e de desconfiança em que ella tinha deixado o marido cioso. Acreditou que, tendo abortado a investigação da rua Lacépède, em volta da casa suspeita, tomou o partido de forçar o esconderijo onde Valentina encerrava a correspondencia intima e que estava em via de encontrar ali a prova em presença da qual a duvida cessaria completamente. O seu apaixonado desejo de que a rival feliz ha tantos annos, ficasse emfim perdida para sempre, brilhou na ancia com que a invejosa, apenas entrou no gabinete, interrogou o amante: --«Não podeste saber nada lá em baixo?... De quem é essa carta?... de Valentina...» --«Não prosigas, Joanna», interrompeu levantando-se e a sua mão continuava pousada sobre a carta, como para a defender. «Não posso consentir que me falles de Valentina... Enganaste-te... continuou com uma firmeza imperativa e que não admittia replicas. «Sim» insistiu ainda «enganaste-te no que me disseste e escreveste a seu respeito... Procedeste de boa fé e não te censuro por isso; mas peço-te que nunca mais entre nós seja feita a mais leve allusão a factos de que nem sequer me devo recordar, para continuar a prezar-me...» Joanna de Node ouviu esta declaração, para ella tão completamente inexperada, com uma estupefacção que a paralisou durante um minuto. Lia na physionomia d'este homem, que sempre conhecera tão hesitante, tão complexo, uma resolução inabalavel e viva! Porque processo a visitante do pavilhão da rua Lacépède, havia transformado esta vontade habitualmente tão vacillante e agora tão firme? Joanna não possuia o menor dado que a habilitasse a responder a esta pergunta. Estava, por outro lado firmemente convencida da culpabilidade de sua prima para poder suppôr que estes processos tivessem sido leaes e sinceros. A uma amiga que lhe pedisse conselho em igual circumstancia, teria sem duvida, indicado como unico caminho a seguir, uma apparente condescendencia á illusão d'um marido, tão complascentemente enganado contra toda a evidencia, mas o odio á esposa triumphante foi n'este momento mais forte no espirito da amante do que o genio da astucia, e, com um tom de maldosa ironia, retrucou: --«Felicito-me por não duvidares da minha boa fé. Muito obrigada... O que escrevi e o que disse, para fallar como tu, escrevi-o e disse-o para quem? Para ti... Não tens em consideração que depois d'isso ficaste n'um tal estado que me fazias medo. Não vim aqui, esta tarde, senão por esse motivo, pois estava muitissimo inquieta, temendo qualquer violencia da tua parte. Se Valentina foi assás habil para conseguir o que eu não consegui, isto é, para te acalmar, tanto melhor para ella... Mas, lembra-te, bem que no dia em que me quizeres tornar a fallar a seu respeito e das pretendidas revelações que a tia ou alguma amiga lhe tivesse feito, não te deixarei proseguir. Continuarei a ser sempre sacrificada...» Norberto fitou-a sem lhe responder. Acabava de communicar com uma alma magnifica n'uma dessas crises em que uma dôr violenta como que nos transforma os sentidos, para os quaes toda a sinceridade e toda a mentira são facilmente perceptiveis. Reconhecia agora, com uma espantosa evidencia, o fundo do coração de Joanna:--a paixão d'essa mulher por elle foi sempre alimentada só pelo seu odio por Valentina! A sua longa fraqueza inhibiam-no de fazer exprobrações que, partindo d'elle, tinham tanto de ridiculas como de odiosas. Sabendo, além d'isso, o que agora sabia, nada constituia para elle uma tão grande profanação, contra a qual toda a sua honra protestava, como ouvir a amante proferir o nome d'essa mulher admiravel. Resignou-se a ficar calado, e para mostrar melhor o seu firme proposito de terminar radicalmente uma explicação insustentavel, começou a pôr tudo em ordem na secretaria, mettendo as folhas da «Declaração», no sobrescripto, o sobrescripto no cofre, e como fechasse o cofre com a pequena chave d'ouro, Joanna que vira durante muitos annos esse pequeno broloque no bracelete de Valentina, começou, a rir com aquelle sorriso insolente que já duas vezes empregára, tendo-se d'ambas ellas Norberto revoltado com o ultrage. D'esta vez ainda estremeceu e as mãos tremeram-lhe. Mas nem uma unica palavra escapou dos seus labios á qual Joanna poderia retorquir com alguma nova insinuação. Teria ella, se esta entrevista se prolongasse, tido a audacia de afrontar a colera reprimida que devorava o amante? A existencia d'essa chave nas mãos do marido que deixára loucamente desconfiado, e que encontrava tão estranhamente conformado depois dos indicios altamente compromettedores, era a prova, para ella, de que uma scena qualquer se déra entre os esposos, e que, apertada por Norberto, Valentina empregou o derradeiro artificio das mulheres levadas ao ultimo extremo: exigir uma inquirição, reclamar que os seus papeis intimos sejam vistos na sua ausencia. Teem antecipadamente tudo preparado para que a busca dê em resultado a completa cegueira do accusador. Era assim que, julgando a prima por si, Joanna de Node interpretava um reviramento, tão extraordinario no qual não acreditou nos primeiros momentos, e em que, agora mesmo, só com difficuldade acreditava. Iria formular esta nova accusação e provocar da parte d'este homem que, resolvido a romper com ella, se constrangia para a não maltratar, uma explosão de revolta e de desprezo? A subita chegada da rival, da propria Valentina evitou-lhe essa má acção. Inquieta por causa do marido que sabia achar-se em disposição de ler a confissão da morta, e fatigada por ter cumprido, na rua Lacépède, o funebre dever, a nobre mulher sentiu uma intensa dôr, quando soube que Joanna a esperava.--Recordou-se de que, durante horas, depois das revelações da tia Nerestaing, se havia debatido contra provas indiscutiveis. (O barão de Node tinha communicado á velha fidalga as informações colhidas por uma agencia, precisando o nome de um hotel de provincia onde os dois amantes passaram tres dias e a data. Essa data coincidia exactamente com uma ausencia simultanea feita por Norberto e Joanna.) Depois o ruido das suas vozes, vindo do pequeno salão e a transformação subita do avisado, dissiparam as ultimas duvidas da confiante Valentina. Recordava-se tambem ainda de que na sua alma toda generosidade, toda dedicação, a visão do filho tão terrivelmente, tão subitamente esclarecido a respeito da mãe, a havia arrastado á piedade. A mordedura do ciume fôra tão aguda que hesitou em entrar na casa aonde se achavam os dois cumplices. A sua emoção foi tal que teve de se apoiar durante um momento contra a parede da casa que precedia o pequeno salão. Foi então que, recordando-se da violencia com que a mão do marido apertou a sua, primeiro ao descer da carruagem quando lhe foi annunciada tão bruscamente a morte de Raynevilhe, depois junto da cadeira em que o velho amigo da senhora de Chalinhy jazia immovel para sempre, sentiu de novo quanto esse homem, fraco e apaixonado, necessitava d'ella. Ao mesmo tempo, porque era mulher, sentiu um certo orgulho em lhe provar a nobreza d'um coração, que elle desconhecia até ahi, mesmo em presença d'aquella por causa da qual a havia esquecido. Disse, para comsigo mesma: «Não devo saber d'essas vilanias; é a minha unica vingança...» E teve energia bastante para transpôr a porta do pequeno salão e cumprimentar Joanna da mesma maneira porque o teria feito oito dias antes, quando de cousa alguma desconfiava ainda. --«Vim mais tarde, é uma falta imperdoavel, da qual espero me desculparás, Joanna... Devias ter preparado o chá. Fazes o obsequio de o servir emquanto vou tirar o chapeu?» --«Estou um pouco incommodada», respondeu a outra. «Vim unicamente saber noticias tuas. Vou-me já embora. Esperam por mim na rua Barbet e é já tarde.» E, fitando Norberto com um olhar d'um impudôr e d'uma dureza singulares, accrescentou «Teu marido esperava por ti. Encontrei-o tão impaciente para te ver, que evidentemente estou aqui demais...» Fixou a prima d'uma maneira que deixava transparecer todo o seu antigo odio, exasperado pelo choque inesperado e para ella inexplicavel, que soffreu n'uma lucta em que tanto desejava triumphar. Tinha ainda no olhar uma peor e mais insultante ironia, a d'uma mulher que, mentalmente, diz para outra: «Podes ludibriar á vontade esse imbecil, mas a mim não me enganas tu, minha menina...» Depois disse alto: «Supponho que terão muitas cousas que dizer um ao outro. Deixo-os, pois, na paz domestica!...» E sahiu, depois de proferir estas palavras, que tinham, na sua bocca, uma bem insolente significação. Norberto e Valentina sentiram egualmente a crueldade d'uma tal ironia, n'aquella occasião. Ficaram alguns instantes sem proferirem uma unica palavra, depois, ajoelhando-se em frente da esposa e tomando-lhe as mãos entre as suas, o marido infiel disse quasi em segredo: --«Será bastante a minha vida inteira para tudo te pagar?...» --«Pagar-me, o quê?» respondeu Valentina. «O ter-te amado sem t'o saber mostrar? Conhecel-o agora. Não estou a lamentar-me.» Proseguiu depois, obrigando Norberto a levantar-se, e appoiando a cabeça fatigada sobre o hombro d'esse homem que sentia, emfim, pertencer-lhe: --«Quem devemos lamentar são os que são amados sinceramente e que não teem direito a sêl-o, os que não podem ser verdadeiros para comsigo mesmo sem mentir aos outros, aquelles cujas felicidades podiam ter evitado muitos soffrimentos a si e aos outros... Lastimal-os, tu?» perguntou ella. --«Lastimo-os, sim», respondeu Norberto, e na inexpremivel emoção de tantas maguas e de tantos erros, esses dois entes trocaram o primeiro beijo de amor que um e outro deram e receberam. ........................................................................ ........................................................................ Esta historia d'um episodio romanesco, desenrolado no meio menos romanesco que existe, a alta sociedade parisiense, não ficaria completa se o chronista não transcrevesse aqui--sem commentarios, como vulgarmente se diz em estylo de gazeta--o final d'um dialogo que surprehendeu uma noite, no theatro, do fundo d'uma frisa, que habitualmente frequentava, menos para gosar o entrecho das peças que se representavam no palco (levava-se n'aquella noite um drama no qual se fazia a apologia em regra da união livre!) do que para admirar aquella ou aquellas que lhe era licito adivinhar no vasto salão. Uma das interlocutoras era a senhora de Bonnivet, de que já fallámos e Saveuse, tambem nosso conhecido, ignorando um e outro que fallavam deante d'uma testemunha que conhecia o facto bem melhor do que elles proprios; commentavam: --«Sabe V. Ex.ª qual é a novidade mais palpitante?» dizia Saveuse, «a ex-baroneza de Node desposou um americano extremamente rico, chamado Harris, de New-York, o irmão do primeiro marido da princeza d'Ardêa.» --«Era uma amiga» respondeu a senhora de Bonnivet. «Se fôr para os Estados Unidos teremos uma mulher divorciada menos a receber e a sermos recebidos por ella, conforme os dias. E que qualidade de pessoa é esse tal Harris?» --«Um homem encantador, um bonito rapaz e muito apaixonado por ella», respondeu Saveuse. --«Ainda bem!» repetiu a senhora de Bonivet, «tinha todo o direito a alguma felicidade desde que Chalinhy a deixou tão indignamente. Vamos tornar a ver este triste personagem. Visto que Joanna vae deixar Paris, Valentina com certeza lhe permitte que volte por cá. Depois de doze mezes passados no campo e d'um filho! Acho tudo isto d'um ridiculo espantoso, repugnante mesmo. Não haveria melhor maneira de fazer saber ao mundo que se era enganada e que tudo se perdoou?» --«Não sabe então ainda o melhor», insistiu Saveuse, «que não usam já ou vão deixar de usar o appellido Chalinhy. Trabalham para restabelecer o nome de Nerestaing...» --«É por causa do Castello. Isso é muito _ridiculo_,» replicou ella rindo. Ha ainda cousas tão profundas como as aguas tranquillas e como as bellas almas silenciosas. É a ignorancia e a maledicencia das _amigas_ e sobre tudo dos _amigos_. FIM LIVRARIA EDITORA GUIMARÃES & C.ª 108, Rua de S. Roque,--LISBOA COLLECÇÃO HORAS DE LEITURA PUBLICAÇÃO MENSAL DE VOLUMES DE 200 PAG. POUCO MAIS OU MENOS, A 200 RÉIS Obras publicadas IVANHOÉ, romance de Walter Scott, 4 volumes illustrados 800 réis O FRADE NEGRO, romance de Clemence Robert, 1 volume 200 réis AS SEMI-VIRGENS, romance de Marcel Prévost, 2 volumes illustrados 400 réis WERTHER, romance de Goethe, 1 volume illustrado 200 réis MADAME FLIRT, romance extrahido da peça com o mesmo titulo, representada no theatro D. Amelia, 1 volume 200 réis A TABERNA, (L'Assomoir) de Emilio Zola, 3 vol. 600 réis O VIGARIO DE WAKEFIELD, 1 volume 200 réis A VIDA AOS VINTE ANNOS, de Alexandre Dumas (filho) 1 vol. 200 réis A AGUA PROFUNDA, de Bourget, 1 vol. 200 réis A publicar O ROSQUEDO, de Delfim Guimarães, 1 vol. illustrado. OS VAGABUNDOS, de M. Gorki, 1 vol. O DOMINÓ AMARELLO, de Prévost, 1 vol. EL REI D. MIGUEL Sensacional romance historico de Faustino da Fonseca. Edição impressa em magnifico papel com muitas illustrações. Tomo de 80 paginas 200 réis. Em publicação. OUTONAES, Versos de Delfim Guimarães, um vol. brochado 500 réis ARTE DE DIZER, por José Antonio Moniz, 1 vol. brochado 1$000 réis *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A AGUA PROFUNDA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.