The Project Gutenberg eBook of Ensino intuitivo

This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: Ensino intuitivo

Author: João José de Sousa Telles

Release date: September 28, 2010 [eBook #33817]

Language: Portuguese

Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ENSINO INTUITIVO ***

Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Setembro 2010)






ENSINO INTUITIVO




LIVRO DESTINADO ÁS MÃES

E

PAES DE FAMILIA


E ÁS

PROFESSORAS E PROFESSORES DE INSTRUCÇÃO PRIMARIA

POR

JOÃO JOSÉ DE SOUSA TELLES


Socio honorario da Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, Socio honorario da Sociedade Pharmaceutica Lusitana

PROFESSOR DE PORTUGUEZ E INTRODUCÇÃO Á HISTORIA NATURAL


LISBOA

FERREIRA, LISBOA & C.a
132—Rua Aurea—134

1873






ENSINO INTUITIVO




ENSINO INTUITIVO




LIVRO DESTINADO ÁS MÃES

E

PAES DE FAMILIA


E ÁS

PROFESSORAS E PROFESSORES DE INSTRUCÇÃO PRIMARIA

POR

JOÃO JOSÉ DE SOUSA TELLES


Socio honorario da Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, Socio honorario da Sociedade Pharmaceutica Lusitana

PROFESSOR DE PORTUGUEZ E INTRODUCÇÃO Á HISTORIA NATURAL


LISBOA

FERREIRA, LISBOA & C.a
132—Rua Aurea—134

1873







LISBOA

TYPOGRAPHIA UNIVERSAL DE THOMAZ QUINTINO ANTUNES IMPRESSOR DA CASA REAL

110—Rua dos Calafates









Ill.mo e Ex.mo Sr. Conselheiro José Silvestre Ribeiro


Ha annos, ouvindo os louvores, que á intelligencia e probidade de V. Ex.a tecia um dos mais peregrinos talentos de Portugal, o grande poeta, hoje Visconde de Castilho, senti irresistivel desejo de ler os escriptos de V. Ex.a e de o conhecer em pessoa. Dessedentei-me agradavelmente e com muito proveito, nas numerosas paginas, que da penna de V. Ex.a haviam saido, umas reunidas em volumes, outras espalhadas pelos periodicos, todas porém rescendendo suave e, digamos assim, castissimo perfume de natural bondade e heroicas virtudes, qualidades que para mim valem muito mais que toda a erudição, e que realçam sobremodo a que v. ex.a possue vastissima, colhida no incessante estudo de quantos engenhos famosos tem opulentado as sciencias, as artes e a litteratura.

Já eu, havia muito, conversava com V. Ex.a em espirito e me reputava seu discipulo amicissimo, quando tive a boa fortuna de fallar a V. Ex.a e de ser por V. Ex.a acolhido com a benevolencia, que lhe conquista a sympathia de quantos o tratam.

Data d'esse dia a nossa amizade, confiado na qual ouso offerecer a V. Ex.a este livro modestissimo, que se alguma cousa vale é pela boa fé com que foi escripto.

É sympathico o assumpto; creio que é mais um brado pedindo a tão necessaria reforma do ensino infantil e primario na casa paterna e na escola, que tão pouco tem ainda de paternal. Será perdido, como os que o viajante extraviado soltaria no deserto, implorando o favor dos homens? Talvez.

Incessantemente ha clamado o nosso probo amigo o Sr. Visconde de Castilho, e nem aquella potentissima intelligencia, nem aquella phrase, que nos faz acreditar a fabula de Orphêo, nem a auctoridade d'aquella quasi intuição do bom e do bello ha conseguido, que amanheça para as criancinhas o dia da sua regeneração intellectual.

Não serei eu mais feliz; mas dar-me-hei por bem pago do trabalho, que puz em escrever estas paginas, se uma só mãe, que seja, ou um só mestre, aproveitar os conselhos, que lhes dou, e se, quando mais não obtenha, uma criancinha me dever algumas lagrimas de menos e algum bom ensinamento a mais.

Associando o nome illustre e venerando de V. Ex.a a esta obrinha, imito o bom do Aimé Martin e posso dizer a V.a Ex.a o que elle disse ao mavioso Lamartine.

En vous offrant ce livre, je n'ai qu'un but, c'est de rattacher mes paroles aux vôtres, c'est d'étayer leur faiblesse de votre force, ma raison de votre raison. Je veux qu'on dise un jour: Ceux-ci ont connu les veritables biens, ils se rencontrèrent dans la même foi, ils s'aimèrent devant le même Dieu.


De V. Ex.a

Admirador muito amigo

João José de Sousa Telles.


Lisboa 7 de julho de 1873.




ENSINO INTUITIVO





O livro, que hoje publicâmos, é uma tentativa modesta de acclimação de uma idéa excellente, que lá por fóra tem produzido optimos resultados.

Applaudem-na unanimes os mais insignes pedagogistas inglezes, allemães, americanos, francezes, e belgas; e ainda que tantos homens competentissimos em assumptos de ensino e educação nol-a não apregoassem famosa, bastaria a simples enunciação d'ella, para que enthusiasticamente a adoptassemos.

Antes, porém, de expôrmos minudenciosamente a idéa nova, e nova lhe chamâmos attendendo ao pouco que se tem vulgarisado em Portugal, de razão nos parece conversarmos amigavelmente com o leitor ácerca de alguns pontos da educação e instrucção elementar.

É a educação da puericia e da juventude a mais gloriosa e ao mesmo tempo a mais difficil obrigação, que Deus impoz ao homem e á mulher.

Á luz da philosophia e da moral, a paternidade [10] e a maternidade consistem menos em gerar o infante, do que em desenvolver-lhe e aperfeiçoar-lhe incessantemente as faculdades da alma e do corpo, até que possa cumprir os seus deveres e arrostar as contrariedades da vida na curta, mas trabalhosa peregrinação, que principia no berço e acaba no tumulo.

Incumbe, pois, aos paes empregar todos os meios ao seu alcance, para que os filhos, creaturinhas imbelles, que a Providencia confiou a seus cuidados, cheguem no mais curto espaço de tempo, e pelo emprego de processos razoaveis, amenos, e repassados de amor e ternura ao estado de perfeição physica, intellectual e moral, que constitue o homem, tal qual deve ser, tal qual Deus quer que elle seja, tal qual a sociedade bem organisada o requer, para obreiro prestadio da civilisação.

Infelizmente, nem todos os paes conhecem os seus deveres; e dos que os conhecem, muitissimos ha, que os não cumprem, ou por modo mui imperfeito se desempenham d'elles.

D'esta ignorancia e negligencia funestissimas provem os maiores males, que affligem a humanidade, males para os quaes a maior parte das vezes não ha remedio.

Tratando de assumpto differente, disse um douto, que muitas descobertas se poderiam fazer, se opportunamente perguntassemos: Por que? Appliquemos o engenhoso e facil processo de Arago ao exame das causas determinantes de alguns vicios [11] sociaes, e convencer-nos-hemos de quão exacta é a nossa asserção.

Estamos na via publica. De toda a parte se nos apresentam creanças esfarrapadas, semi-nuas, esqualidas, famintas, petulantes; revolvem-se umas na lama e no pó; dormem outras, tiritando, á chuva e ao vento; estas divagam estendendo a mão asquerosa e pedindo uma esmola aos que passam; aquellas soltam dos labios rosados palavras, que fazem enrubecer os que as ouvem.

Chamae-as, e perguntae-lhes quem alli as deixou, flôres no esterquilinio, passarinhos implumes entre abutres esfaimados, anjos manchando as azas na sujidade das calçadas.

Responder-vos-hão: Nossas mães e nossos paes.

Ides vosso caminho, alegre, tranquillo, olhando em redor, vendo prepassar trens sumptuosos, soberbos cavallos, mulheres elegantes, homens felizes e descuidósos. Chega-vos aos ouvidos um echo, um gemido, um choro infantil; olhaes...

Que vêdes?

Na soleira de um portal, vestida em uns andrajos, quasi morta de fome e de frio uma criancinha, cujas faces, em vez de serem orvalhadas pelas lagrimas da materna alegria, e aquecidas pelos beijos fervidos da que lhe deu a existencia, se humedecem com as lagrimas da amargura infantil.

Levantae o pobresinho, apertae-o contra o peito, osculae aquella carinha de jasmim e rosas, e perguntae-lhe:

[12] Anjo meu, que barbaros te deixaram aqui abandonado?

E a innocencia vos responderá, não com palavras, que as não sabe ainda articular, mas com ternissimos soluços:

Abandonou-me meu pae e minha mãe.

Além vae caminho do cemiterio, a tumba, que andou de porta em porta recolhendo os miseros, cujas familias não poderam coalhar o bastante para o modesto funeral dos seus parentes.

Fazei-a parar; mandae que a abram; olhae para dentro.

Horror! exclamareis vós ao ver por entre os adultos exanimes, em sacrilego desarranjo, um bando de creanças quasi esqueletos, rachiticas, chagadas, meio apodrecidas, com signaes evidentes de terem vindo ao mundo com o estigma da morte profundamente gravado nas frontes innocentes.

Martyres obscuros, podereis vós dizer-lhes, para quem o mundo não teve nem uma corôa, nem uma palma; estrellas cadentes, que brilhastes um momento e desapparecestes n'um eterno occaso; quem assim vos macerou os corpinhos, e vos deu a beber o fel da morte ao alvorecer da vida?

E a mudez sombria d'aquellas florinhas envenenadas na hastea, e emurchecidas antes de desabrocharem, responderá:

Nossos paes e nossas mães.

Vêdes aquelle peralvilho, aquelle afeminado, todo pomadas, todo essencias, gesto insolente, olhar altivo [13] e desdenhoso, que vae rindo e galhofando com outros da sua ralé.

Parou, fazem-lhe roda, applaudem-n'o outros taes. Que bocadinhos de oiro estará elle a dizer?

Escutae-o.

Mófa da religião, que desconhece; insulta os sacerdotes, que acertam de passar junto d'elle; escandalisa as donzellas; zomba dos anciãos; aos pobres, em vez de os esmolar, despede-os insolente.

Indagae como tão cedo se depravou aquelle moço, que deveria estar ainda sentado no banco da escola.

Dir-vos-hão que á incuria paterna deve elle toda a sua ruina.

Entrae no templo a presencear as augustas ceremonias, que rememoram a angustiosa paixão e morte do grande amigo da humanidade.

Que observaes?

A turba irreverente, descomposta, sacrilega, rindo, conversando, ostentando galas, trocando gracejos, costas para os altares, olhares distrahidos, attitudes grosseiras e vilans.

Quantas preces saem d'aquelles labios? Que pensamentos povoam aquellas mentes? Que piedosos affectos existem em tantos corações? Escandalisa-vos o desacato? Quereis saber porque na egreja estão, como não poderiam estar na casa da opera?

Chamae de banda um dos levianos e perguntae-lhe o que lhe hão dito seus paes da grandiosa tragedia do Calvario; do incruento sacrificio, que a [14] representa, da respeitabilidade do altar, do valor das preces humildes e sinceras?

Responder-vos-ha, sorrindo:

Não vos comprehendo; meus paes nunca me fallaram d'essas coisas.

Que vozearia é aquella? Porque tantos gritos, tamanho borborinho?

Ergue-se um homem mal trajado, e arenga á turba.

Poucas palavras tem dito, e já uns o applaudem phreneticos, já outros o vituperam enfurecidos.

É o povo soberano, que usa e abusa de seus direitos. A onda encapellada das ruins paixões sobe, sobe, invade a improvisada tribuna e derruba o Demosthenes improvisado.

Todos fallam, todos proclamam a idéa nova.

Ouçamol-os.

Abaixo os padres, não precisâmos d'elles; abaixo a religião, que para nada presta; acabemos com a propriedade, os ricos só querem beber-nos o sangue; viva o communismo, grita um; viva o socialismo, que é melhor, responde outro; nada, nada d'isso, venha a republica.

Acabemos com os tributos e seremos felizes; e o exercito para que serve? Elimine-se o exercito.

Pedi instrucção, pedi ensino facil, bom, universal, escolas primarias a cada canto, bibliothecas populares, livros optimos ao alcance de todos no preço e no estylo; pedi moralidade, diz com voz firme e [15] sonora um operario, fronte ampla, respeitaveis cans, rosto sereno, mão calejada pelo trabalho.

Fóra com o visionario brada a turba.

Que quer dizer instrucção? Para que servem os livros? Para que prestam as escolas? regouga um miseravel, em cujo rosto se retrata a ignorancia e occiosidade; e bradando á turba, após si a leva cançada, mas não saciada de disparatar.

Dirigi-vos ao operario honesto e prudente e informae-vos de quem sejam aquelles doidos.

Uns infelizes, dirá elle, bons corações, más cabeças. Pobresinhos todos; porém mais pobres de instrucção que de dinheiro, porque todos tem aptidão para o trabalho, mas a todos faltou a educação. Não tiveram paes, como eu felizmente tive, que os mandassem ensinar. A mór parte nem ler sabem, nem fazer o seu nome. Se lhes fordes perguntar o que seja republica, socialismo, communismo, salario, religião, exercito, á boa fé vos affirmo que não poderão responder coisa que geito tenha.

Mas deixemos estes homens, nem todos maus; muitos bonissimos, desvairados pela febre ardente de antigos e profundos padecimentos, que buscam a verdade e o bem, como os alchimistas da idade media, por meios absurdos e inconvenientes, mas que tem a coragem de affrontar os perigos, de sacrificar a propria vida, e de soffrer com a resignação dos martyres dos primeiros seculos do christianismo esses hediondos supplicios, a que ainda [16] hoje o mundo civilisado assiste com profunda magoa e indignação.

Volvamos os olhos para aquell'outros.

D'onde vem?

Das enxovias.

Para onde vão?

Para o degredo.

Homens, mulheres, crianças! Deixam a patria, os amigos, as familias, os formosos campos, onde nasceram, este céo tão puro, este sol tão esplendido, este clima tão amoravel, este abençoado e feracissimo torrão, para irem em paizes inhospitos luctar com a morte opprobriosa, ralados de saudades, roidos de remorsos, despreziveis aos olhos de todos, e condemnados pela voz implacavel da propria consciencia.

Vãm alli assassinos, sacrilegos, perjuros, fratercidas, patrecidas, ladrões, incendiarios; todos os crimes, todas as torpezas, todas as infamias, o lodo asqueroso de todas as humanas miserias, as trevas da ignorancia preversa, a lepra do grande corpo social.

Ponde os olhos n'aquelle quadro, mães e paes.

Não interrogueis os que o crime despenhou; não insulteis a desgraça; não amargureis mais aquelles corações devastados e corroidos pelo crime, onde poderá haver ainda alguma fibra incorrupta e sensivel; mas perguntae a vós mesmos que educação receberam aquelles miseros de seus progenitores? que sorrisos e carinhos lhes cercaram os berços? [17] que palavras ouviram aquelles entes ao entrar na vida? que exemplos tiveram para seguir? quaes as escolas, a que os mandaram? que affectos semeiaram n'aquelles corações? quantas vezes lhes apontaram para o céo e lhes fallaram de Deus? que noções lhes deram da verdade, da justiça, da honra, do dever? que meios empregaram para lapidarem aquelles diamantes? que processo adoptaram para desinvolver-lhes a intelligencia?

E se não acertardes com as respostas a estas e a muitas outras perguntas, que o caso suscita, ide-vos por essas cidades, e villas, e aldeias, e povoados e indagae a historia de cada um d'aquelles infelizes. Raro achareis que se prevertesse o que dos paes houvesse recebido desvelada educação.

Mas o que é educação desvelada?

Eis o ponto importantissimo, para o qual chamâmos a attenção de todos. Não o desenvolveremos aqui. Assumpto é para um livro, e já larga e proficientemente tratado por grandes mestres da sciencia de educar.

Diremos apenas, que muitos paes e mestres ha, por desgraça nossa e d'elles, que não comprehendem nem a extensão, nem a intensidade da palavra educar.

Para uns educar é crear, é nutrir o animal, é desenvolver-lhe o physico; e nem sempre conforme os dictames da medicina e da hygiene.

Para outros educar é iniciar a criança nas Para outros educar é iniciar a criança nas regras [18] mais elementares da leitura, da escripta, da contabilidade e de uma arte ou officio.

Não falta quem se vanglorie de ter educado bem, excellentemente, seus filhos, por que lhes deu mestres de linguas antigas e modernas, de geographia, de historia, de philosophia e de muitas outras cousas mais.

Tal se orgulha de ver o herdeiro de seu nome sair laureado de uma escola ou academia e entrar na sociedade precedido da fama de optimo estudante. Tal outro se julga em paz com a sua consciencia e se tem por excellente educador, porque o mancebo, cujos primeiros estudos dirigiu, das columnas de um jornal assombra o mundo com seus artigos, ou deleita as turbas com versos, que reputa mais correctos e melodiosos que os de Camões, Garrett ou Castilho.

E consistirá em tão pouco a sciencia difficilima de educar?

Não, mil vezes não.

Que vale ao homem, a quem Deus concedeu uma certa porção de intelligencia, susceptivel de indefinido desenvolvimento, crescer e medrar no physico, permanecendo-lhe embryonaria a melhor das faculdades? Que vale ao homem, que poderia elevar-se pelo estudo, pela leitura, pela applicação das potencias da alma e vir a ser um poderoso auxiliar do progresso da humanidade, qualquer que fosse a sua posição social, saber apenas os primeiros rudimentos das artes de aprender, e tanto pela [19] superficie, que nem d'elles se possa servir, a não ser nos mais simples usos da vida?

Quantos e quantos dos que cursaram as escolas e as academias, e n'ellas se distinguiram, tiveram mais trabalho em debellar os erros da educação elementar do que em arcar com as difficuldades, e segredos das sciencias superiores?

E quantos não vem dos institutos scientificos imperfeitamente instruidos, não por culpa dos mestres, nem d'elles mesmos, mas pela incuria e ignorancia dos paes e dos primeiros educadores?

Todos os homens intelligentes, que tem consagrado a vida ao magisterio superior, reconhecem e confessariam, se quizessem, que a falta de cultivo intellectual nas edades tenras difficulta extremamente aos estudantes a comprehensão das sciencias, e os inhabilita para tirarem dos cursos mais bem delineados as vantagens, que d'elles poderiam obter.

D'ahi a meia sciencia, as ideas falsas, a confusão dos principios, a impossibilidade das grandes concepções, a timidez na applicação pratica, o desamor do estudo, que fecunda o que nas aulas se ouviu, e a propensão para a preguiça, que se contenta com o pouco cabedal adquirido e não busca grangear mais.

Se das escolas superiores passarmos ás secundarias, encontraremos as mesmas causas produzindo os mesmos effeitos; e dir-nos-hão os professores intelligentes e zelosos, que das mãos dos paes [20] e dos primarios educadores, receberam a mór parte dos alumnos com os olhos do espirito tão cerrados ainda, que de todo desconheciam as verdades mais elementares e intuitivas, os phenomenos mais simples e intelligiveis, as relações mais claras.

Na escola primaria, o professor instruido, que comprehenda quanto tem de nobre e grandioso o seu ministerio, em apparencia tão humilde, na realidade tão augusto; que considere na criança o homem e no homem o futuro todo inteiro da humanidade; que abranja com a vista o largo horisonte das criaturinhas, que o rodeiam, e que deseje dissipar as trevas d'aquelles entendimentos com luz tenue e suave, como convem a edades infantis, tem ainda a luctar com os defeitos da educação domestica, que devendo ser a primeira, a mais engenhosa, a mais insistente, e mais efficaz, é muitas vezes nulla, muitas quasi nulla e quasi sempre deficiente.

E se o que vamos dizendo se applica em cheio á educação das faculdades intellectuaes da puericia, que são ainda assim, as que os paes de ordinario mais appetecem ver desenvolvidas nos filhos, outro tanto se póde asseverar da educação physica e moral.

Conhecida a doença, urge accudir-lhe com o remedio. Já o bom do Genuense, mestre de nossos paes, mestre de muitos de nós outros, que hoje ensinamos e que suppômos ter alguma valia, e tão injustamente esquecido e mettido para o canto, relembrava a regra de Ovidio:

[21] Principiis obsta, sero medecina paratur, cum mala per longas invaluére moras.

«Acode ao doente apenas a molestia dê o primeiro rebate; que de nada lhe prestará o remedio, tardio.»

E haverá remedios, que prestem para os males de que enferma a educação elementar?

Ha, e muitos; o caso está em applicar-lh'os a tempo e judiciosamente.

Não todos apontaremos aqui, porque não é este livrinho um tratado de pedagogia, mas tão sómente um, que valerá por muitos.

É remedio barato, condicção esta que não é para desprezar; de facil manipulação; composto de simples, que por toda a parte e a toda a hora se acham; e por cima de tudo isto, tão agradavel, que em vez de lhe fazerem caretas, os que o devem tomar, o appetecem e pedem sequiosos e nunca fartos de saboreal-o.

É este remedio o Ensino intuitivo.

Para applical-o, diga-se já e bem alta e claramente, nem todos servem. Em mãos de ignorantes converte-se em veneno, e em vez de beneficios, só produz males.

É indispensavel, pois, que paes e mestres, que hajam de o empregar, possuam profundo e variado cabedal de conhecimentos.

Antes, porém, de entrarmos a dizer o que este ensino seja, convem que nos lembremos das condicções organicas, physiologicas e intellectuaes das crianças.

[22] É o infante um organismo em via de formação, incompleto, fransino, em que a vida animal consiste quasi exclusivamente no movimento tumultuoso, na expansão incessante, na assimilação continua.

Abriu os olhos ha pouco, e ainda não teve tempo de ver bem o grandioso espectaculo da natureza, cujos protentos o deslumbram; descerraram-se-lhe hontem os ouvidos, e por isso lhe echoam lá dentro, ainda confusas, as harmonias, os ruidos, as palavras, que mal percebe; aspira sofrego os aromas, que rescendem as flores, mas não os distingue; saborêa o nectar, mas quererá tambem provar o fél e degustar o absintho; apalpa enlevado a pelle assetinada e suavissima das faces maternas, mas queimar-se-ha incauto na chama da véla, que admira, sem a comprehender.

No intimo, na cabeça, cujos óssos ainda se não consolidaram completamente, no coração, que palpita violento, jorrando sangue para todo o corpo, começam de germinar as idéas e os affectos, cuja elaboração de hora para hora, de dia para dia, de mez para mez se complica, e transmitte com incrivel velocidade.

São dois mundos luctando atravez do fragil envolucro, que chamâmos corpo; o mundo externo, cujos variadissimos factos contempla attonito sem suspeitar que os determinam infinitas leis, que os encadeam reciprocamente innumeras relações, e que sobre elle actuam incessantemente: o mundo interior, o mundo dos sentimentos, das ideas, dos [23] affectos, cuja admiravel genese começa, e que ha de irromper atravez dos sentidos, e reagir violento sobre os modificadores de fóra.

A creança porque é um ente material, que tende a completar-se, carece de muita alimentação, de muito sol, de muito e bom ar, de muito movimento, de liberdade, e de sensações variadas, mas suaves, que a deleitem, e que attraiam a sua attenção.

Se todas ou algumas d'estas condicções lhe faltarem vel-a-heis extinguir-se subito, como a luz de uma véla á mingua de oxigenio; ou estiolar-se e pender para o tumulo, onde não tardará a sumir-se, como a planta, que germinou em solo arido e assombrado.

Como creatura intelligente e moral, necessita que lhe dirijam e robusteçam as faculdades, á proporção que se forem desenvolvendo, ministrando-lhes objectos apropriados ás forças das mesmas faculdades, e em quantidade tal, que nem as cancem, nem as desgostem.

No desprezo d'estes principios está, a nosso ver, o primeiro e mais funesto erro do actual systema da educação infantil.

Na maxima parte das escolas da puericia entram quotidianamente as criancinhas faltas do indispensavel alimento, e alli se conservam largas horas em casas estreitas sombrias e mal ventiladas, respirando ar infecto, inhibidas de fazer os movimentos, que a sua edade imperiosamente reclama, sem [24] horisontes extensos e ridentes, que as alegrem, sem nada que as encante e lhes deleite os sentidos.

O mestre, senão carrancudo e severo, é quasi sempre sufficientemente serio e concentrado, para não lhes incutir a confiança e amôr, que são os mais suaves e ao mesmo tempo os mais fortes laços, que prendem o discipulo ao perceptor.

Começa a lição. Não ha canticos, nem musicas, nem exercicios gymnasticos, nem historiasinhas, que alegrem aquelles corações e instruam aquellas mentes nas coisas, que com maior facilidade poderiam comprehender.

Para os mais pequeninos, para aquelles que mais se lembram ainda dos beijos maternaes e das doçuras da casa paterna, o triste e monotono a, b, c, as aridas columnas do syllabario, e a empyrica taboada. Para os mais crescidinhos, a grammatica, a historia patria, a chorographia, a doutrina christã.

Que percebem os pobres infantes de tudo aquillo, que involuntariamente decoram, e machinalmente repetem?

Nada, ou quasi nada.

Tomae d'entre os alumnos de uma escola o mais adiantado, o mais estudioso, o que mais talento revele, e interrogae-o. Ouvil-o-heis repetir o compendio, máo ou bom, com certa facilidade e elegancia; mas se lhe perguntardes o sentido de uma palavra, a razão de um facto, vel-o-heis córar e emudecer, porque a elle, o estudante eximio, deixaram [25] sempre em pousío as mais nobres faculdades da alma, excitando-lhe apenas, e ainda assim por um processo defeituoso, a faculdade auxiliar, a memoria.

Olhar com seriedade para a educação e instrucção da infancia, e reformal-a completamente, adequando-a ás edades dos estudantinhos, e tornando-lh'a facilima, deleitavel, e todo o ponto util, é não só necessidade urgente, senão dever impreterivel.

O primeiro passo para esta grande reformação, que o bom senso, a sciencia, a caridade, e o interesse de todos nós estão ha muito a pedir a grandes brados, dar-se-ha quando os governos, os municipios, as associações e os particulares se resolverem a edificar casas para escolas infantís, e primarias, espaçosas, alegres, agasalhadas, com o seu jardim, meio descoberto, meio assombrado com arvoredo, tendo no centro um pequeno lago ou tanque e aos lados alguns apparelhos e jogos gymnasticos; quando a frequencia da escola infantil, preparo para a primaria, fôr obrigatoria; quando o ensino da infancia fôr esclusivamente confiado a mulheres intelligentes, instruidas, honestas e amoraveis, que do coração se consagrem ao ministerio sacratissimo de educadoras, e que a todos os discipulos, amem e acarinhem, como se fossem todos elles seus filhos queridos; e quando finalmente o Ensino intuitivo se tornar obrigatorio e exclusivo nas escolas infantís; e obrigatorio, como auxiliar [26] de qualquer outro, nas escolas primarias e secundarias.

Muitos annos hão de decorrer, infelizmente, primeiro que se realizem estes nossos alvitres. Levantar-se-hão contra elles os ramerraneiros, os enthusiastas do passado, os indifferentes, os que não crêem no aperfeiçoamento humano começado a operar na escola infantil, os que só vêem a prosperidade publica, no exercito, nas estradas, nos caminhos de ferro, nos telegraphos electricos, nas escolas superiores, nas academias, e nos museos, como se tudo isto não estivesse a pedir, para ser verdadeiramente util, muita e sólida instrucção no povo, muita moralidade, e muito amor ao trabalho, e como se estas indispensaveis qualidades as podesse ter uma nação, onde não ha escolas infantís, onde as escolas primarias são pouquissimas e defeituosas, onde os methodos de ensino são ruins, e onde os professores, muitos d'elles dignissimos e habeis, são tão vergonhosamente retribuidos, que para pobrissimamente viverem, têm de se occupar em misteres totalmente alheios do ensino e educação.

Muitos annos, repetimos, hão de decorrer primeiro que os exemplos da America, generosissima com a instrucção primaria, sejam imitados na extrema Europa.

Não o quer o deficit, exclamarão os financeiros, e applaudil-os-hão todos os que mais ou menos manuseam o orçamento do estado.

[27] Se a indole d'este escripto o permittisse, facil nos seria impugnar esta nefasta e incessante invocação da pobreza publica, e mostrar que em Portugal o que falta, e muito, é verdadeiro patriotismo, é sincera vontade de progredir, é a iniciativa individual nos arrojados commettimentos, caracteristicos dos povos, que comprehendem os seus deveres de membros da grande familia social e que os não pospõe aos seus interesses particulares.

Colhâmos, porém, as vélas ás considerações, que todos estes assumptos nos suggeriram, e entremos já a dizer o que seja o Ensino intuitivo, e as vantagens que d'elle resultam.

Todos os que lidam com crianças terão percebido que nas primeiras idades é o homem dominado incessante e invencivelmente pela curiosidade, ou desejo de saber; que para saciar esta inclinação empregam os infantes não só os olhos, mas os outros sentidos; que ao verem um objecto, mórmente se lhes agrada, ficam diante d'elle como que absortos, com os olhos mui abertos, ás vezes quasi sem pestanejar; que se lh'o consentem, tomam nas mãosinhas o que primeiro estiveram vendo, e o apalpam, a principio com timidez, depois com afoiteza; que o levam ao nariz, e á bocca, e que por fim começam de separar as partes de que se compõe, se não é inteiriço.

Apoz tal exame, e ás vezes simultaneamente, chovem as perguntas:

O que é isto?

[28] Quem fez?

De que é?

Para que serve?

Quem trouxe?

Terão tambem observado os educadores, que n'estes exercicios instinctivos, as criancinhas, em geral, não comparam, nem por consequencia raciocinam. Fazem como as abelhas, que andam de planta em planta, de flôr em flôr, colligindo os materiaes com que mais tarde hão de fabricar o seu mel. Com a differença que as abelhas nasceram aptas para aquella industria e nunca em vez de mel nos dão outro produto; e as criancinhas, artistas novéis, mas livres e dotadas de intelligencia perfectivel, podem pela maneira imperfeita porque as suas faculdades intellectuaes e moraes se começarem a desenvolver, e continuarem a exercer-se, viciar de tal arte o espirito, que de futuro ou nada possam conhecer bem, ou só com extrema difficuldade e grande dispendio de tempo.

Em aproveitar as naturaes tendencias da infancia e juventude, em amenisar-lhe o começo da extensa e espinhosa senda, que tem de percorrer na vida, em desenvolver-lhes e aperfeiçoar-lhes gradual e insensivelmente as faculdades; em enriquecer-lhes de copiosos e variadissimos conhecimentos o espirito; em formar-lhes o coração, desenvolvendo n'elle astuciosamente o gosto do bom, do bello e do verdadeiro; em habilital-as o mais cedo possivel, sem a minima violencia, para a vida pratica, deixando [29] para tempo opportuno theorias e systemas, para comprehender os quaes é mister intelligencia robusta, é em que consiste o Ensino intuitivo.

É este ensino primeiro que tudo dos sentidos externos, os quaes á maneira que se vão exercendo sobre os objectos, para lançarem no espirito os germes de quantas sciencias e artes ha, se aperfeiçoam insensivelmente, adquirindo cada dia mais vigor e aptidão.

É pois indispensavel que os educadores procurem especialmente que as criancinhas empreguem os sentidos, ora simultanea, ora successivamente, nas cousas que tenham de estudar, que as vejam de perto, que as tomem nas mãos, que as cheirem, que as provem, quando não houver inconveniente, que as dividam e recomponham, sem que se lembrem de que estão a estudar.

Tudo servirá para estes exercicios intuitivos, se o educador tiver instrucção variada e profunda. Tudo servirá, por que, como disse Jacotot: Tudo está em tudo.

Um grão de areia, um alfinete, uma agulha, um botão, um palito, uma moeda de prata ou cobre, a folha de uma arvore, um bago de uva, serão compendios tão importantes como um cavallo, uma ave, um peixe, um relogio, uma caixa de musica, ou uma machina de cozer.

Milhares de cousas baratissimas se poderão apresentar aos estudantinhos para larguissimamente os instruir; muitissimas haverá em todas as casas, [30] taes como cadeiras, mezas, pennas, papeis de differentes qualidades, flôres, fructos, relogios, thesouras, campainhas, etc. De um sem numero de objectos se poderão obter modelos em ponto pequeno ou de madeira ou de papelão, ou de qualquer outra substancia apropriada. Na falta absoluta de exemplares naturaes, que são os melhores, ou de copias em vulto, que servem perfeitamente, sendo bem feitas, empregar-se-hão com muita vantagem estampas coloridas ou em negro. O que deve ser banido das escolas infantís é o syllabario, a taboada, o cathecismo, a grammatica, o compendio de chorographia e o de civilidade. Da exposição, exame e comparação das coisas ou das estampas, segundo o processo que já vamos indicar, é que as crianças hão de ir colhendo as idéas exactas e claras, que depois saberão associar ás mil maravilhas, formando espontaneamente optimos juizos e raciocinios.

Tratando das viagens de Homero e do estudo pratico das pessoas e cousas, que habilitou o immortal filho de Climene a compôr os protentos litterarios denominados Iliada e Odysséa, diz Bitaubé o seguinte, que é a expressão da verdade: «Os livros são uteis, mas favorecem certa indolencia, que obsta a que o leitor observe por si mesmo; lendo, vemos a maior parte das cousas pelos olhos dos outros, e representâmos ao nosso espirito imagens de outras imagens; se observassemos directamente os objectos graval-os-hiamos mais profunda e claramente [31] no espirito. Qual é o resultado da falta de observação directa? É perdermos a perspicacia e sagacidade indispensaveis para observar com perfeição á força de não as exercitarmos e de não contemplarmos a natureza, excellente mestra, que jámais se deve despresar. Adquirem-se é verdade, mais idéas, mas imperfeitas e superficiaes, de que resultam quadros frios e incompletos.»

Todos os pedagogistas, que se teem occupado d'este systema de ensino, encarecem o proveito que se tira da substituição dos livros de texto, que os meninos decoram sem os entender, pelas estampas, que muito os deleitam e que examinam attentos, colhendo das palavras do educador, a proposito de cada uma, infinitos conhecimentos, que jámais esquecerão.

É mister, porém, que as estampas sejam mui perfeitas, para que não viciem nas crianças o gosto do bello e da verdade, e que sejam graduaes, como tudo deve ser na educação. A regra fundamental do ensino intuitivo, a qual nunca deve esquecer é: Caminhar do conhecido para o desconhecido, do facil para o difficil, do commum e trivial para o menos commum ou mais raro.

Para realisar este preceito maximo, cujo despreso annularia o systema, convirá que os educadores não entretenham seus discipulos com objectos tomados ao acaso, mas que sigam um processo gradual, lento e invariavel, nunca lhes chamando a attenção para cousas, cujos componentes [32] elles ainda não conheçam, nem lhes fazendo perguntas para responder ás quaes não estejam habilitados. Dêmos alguns exemplos. Se praticarmos com mocinhos a respeito de uma caixa de pinho, que estejam vendo, poderemos convenientemente perguntar-lhes o feitio que tem, as partes de que se compõe, para que serve a tampa, para que estão ali as argolas e a fechadura; poderemos interrogal-os ácerca dos usos da caixa, fallar-lhes do perigo de entalar os dedos quando a fecharmos, ou de nos ferimos se a tampa cair sobre as nossas mãos ou cabeça; poderemos ainda indagar se sabem o nome que se dá aos artistas, que trabalham em madeira; mas não lhe fallaremos do pinho, sem que elles tenham visto um pinheiro natural ou pintado, e a respeito d'esta arvore tenham adquirido os convenientes conhecimentos.

Se conversarmos ácerca de uma moeda de prata, bom será perguntar-lhes como se chama aquelle dinheiro, de que é feito, que feitio tem, por que não é quadrado, nem triangular (aqui fará o professor com o giz no quadro preto a figura do triangulo e do quadrado), o que tem n'uma e outra face, que representa a effigie e as armas, para que serve o dinheiro, etc., etc.; mas abster-nos-hemos de lhes dizer que a prata da moeda é uma liga de prata e cobre, se por acaso ainda não souberem o que é uma liga metallica, nem conhecerem o cobre.

Convém estar prevenido para um caso, que muitas vezes se deve realisar na pratica d'este ensino. [33] A natural prespicacia de alguns meninos e os conhecimentos adquiridos na convivencia de seus paes e amigos ou na leitura, se forem já ledores, habilital-os-hão a fazerem perguntas, a que o educador não poderá ou não saberá responder. Quando isto aconteça, nem se enfade ou envergonhe o educador, nem illuda a curiosidade infantil, que de tanto serve n'este systema. Se a pergunta versar sobre assumpto, que o mestre ignore completamente ou conheça pouco, isso mesmo declare ao estudante com toda a franqueza; se fôr attinente a cousas, para conhecer as quaes o mocinho não esteja preparado, ou que toquem em pontos, que a decencia não permitta explanar, diga-lhe sem desabrimento, que não é tempo ainda de saber o que pergunta.

E para que nem o credito scientifico do educador soffra detrimento, nem os meninos se desgostem e abstenham de perguntar, bom será que o educador a miudo lhes mostre em phrase accommodada ás suas intelligencias, e por meio de exemplos, quão numerosos são os conhecimentos humanos, que é impossivel que todos saibam tudo, e que, para adquirir sciencia de bons quilates, é indispensavel ir a pouco e pouco, e não investigar certas cousas, antes de ter adquirido noções exactas de outras.

Para que o ensino intuitivo produsa todos os bons resultados que d'elle se podem esperar, não basta progredir do conhecido para o desconhecido, do simples para o composto; é indispensavel que [34] os alumnos não conheçam o plano adoptado pelo professor, e que não percebam que o que elle lhes vae ensinando tende a um determinado fim e se ajusta para os iniciar nas sciencias, cujas leis e applicações mais importantes só mais tarde terão de estudar. Para a realisação d'este importante segredo do ensino intuitivo, iremos nós offerecendo aos educadores em publicações successivas, se esta nossa tentativa merecer o favor publico, as lições graduaes, que deverão constituir um curso completo.

Recommendam os mestres d'esta especialidade, no intuito de não enfadar os estudantes e de os conservar attentos, que cada lição não exceda quinze ou vinte minutos. Diremos, porém, que a pratica nos tem mostrado poder ás vezes a lição prolongar-se até duas horas e mais, sem que os estudantes se enfastiem nem deixem de attender ao que se lhes mostra e explica. Consegue-se este resultado amenisando a pratica com historietas, de que os meninos muito gostam, com exemplos, que elles bem comprehendam, com a citação de proverbios, anexins, e anecdotas consoantes ao assumpto de que se trata, e mais que tudo com o dialogo mui cortado entre elles e o professor.

Haja sempre n'estas lições a maxima variedade apparente, tanto no objecto do estudo como na fórma, no dizer, nas conclusões e até na collocação dos objectos e dos estudantes. A monotonia, a ordem, além de certos limites, entristece a escola e cança os escolares. A par do ensino das cousas andará [35] sempre o ensino da moral, da hygiene, da economia domestica, da religião, da organisação social, da historia, da geographia, das bellas artes, de tudo; com preferencia do mais util; mas sem estudos de cór, sem declamações, nem theorias transcendentes, nem listas de nomes de pessoas, nem datas escusadas; tudo ao de leve, saboroso, convidativo, e nem assim em grandes dozes, nem todos os dias.

Permitta-se-nos que ponhamos aqui dois exemplos de como se deverá proceder n'estes pontos, e não os tenham na conta de ridiculos, que nada é ridiculo, quando se trata de espedregar a estrada, que ha de precorrer a puericia.

Estamos na escola, estudando um objecto qualquer. Ouve-se ganir um cão na rua. Logo o professor interrompe o estudo, e pergunta a um dos escolares, se algum vir distraido, a esse se dirigirá:

P.—Que é aquillo, alli, na rua?

E.—É um cão a ganir, responderá o estudante; e o dialogo proseguirá, pouco mais ou menos, do seguinte modo:

P.—O cão está ganindo ou ladrando?

E.—Está a ganir.

P.—Quantas qualidades de sons ou vozes produzem os cães com a bocca?

E.—Não percebo a pergunta.

P.—Eu me explico. Os cães não estão sempre calados...

[36] E.—Já percebo o que o senhor professor pergunta. Os cães ladram.

P.—E quando estão tristes, ou quando ouvem certos sons, que lhes não agradam, ladram?

E.—Não, senhor, uivam.

P.—E quando estão a roer um ôsso, e outro cão ou qualquer pessoa lh'o quer tirar, o que fazem?

E.—Rosnam.

P.—E se lhes batem, ou os apedrejam?

E.—Põem-se a ganir.

P.—Mui bem; os cães, pois, podem ladrar, ou latir, rosnar, uivar, e ganir.

Aqui, se os meninos tiverem já conhecimentos de grammatica, dirá o professor como de si para comsigo, mas em voz alta: aqui temos cinco verbos, e repetirá, contando pelos dedos ou batendo com o lapis na mesa: o verbo ladrar, o verbo latir, o verbo rosnar, o verbo uivar e o verbo ganir.

E continuará, como quem se está recordando do que aprendeu: palavras que representam acções praticadas ou feitas pelo cão.

E logo, como quem se desviou do caminho direito e a elle volve, dirá ao alumno:

P.—Tenho ouvido dizer a algumas pessoas, que o uivo dos cães é de mau agouro, isto é, que um cão a uivar annuncia desgraça. Será verdade?

E.—A minha avó diz que sim, que é signal de estar alguem para morrer.

P.—Essa resposta esperava eu.

[37] Pois fiquem os meninos sabendo, que não ha agouros, e que uivar um cão, ou cantar um canario, ou relinchar um cavallo, ou piar um mocho, ou cacarejar uma gallinha, ou miar um gato não tem influencia nenhuma nos acontecimentos humanos.

E.—Á minha casa vae uma velhinha, que, em ouvindo uivar um cão, descalça o sapato e põe-n'o com a sola para cima, até o animal se calar.

P.—Se os cães uivarem muito em roda d'ella no inverno, andará sempre com os pés frios.

E.—Então a minha avó mente?

P.—Mente, sem querer. Metteram-lhe uma peta na cabeça, e ella acredita uma cousa, que não é verdadeira.

E.—Ora diga-me, senhor professor, se uma pessoa estiver para morrer e um cão se puzer a uivar na rua ou na escada?

P.—O doente morrerá, se Deus quizer que morra; e viverá, se fôr da vontade divina, que continue a viver.

E.—Mas como se explica o que aconteceu o anno passado a um visinho de meu papá?

P.—Conte-me lá essa historia tentim por tentim.

E.—Adoeceu um homem, que morava no primeiro andar do predio, em que eu habito; veiu o medico, esteve a examinal-o, receitou, disse que a doença não era de perigo, e saïu. Minutos depois metteu-se na escada um cão e principiou a uivar.

[38] A mulher do doente foi-se a elle, bateu-lhe com o cabo da vassoura e pol-o na rua. Quando entrou em casa, estava o marido morto em cima da cama.

P.—Sabe o menino o que isso foi?

E.—Eu não senhor.

P.—Pois tem pouco que saber. Foi o que se chama uma coincidencia. Se á saïda do medico, entrasse pela casa dentro um passarinho, dir-se-ia, que a avesinha viera annunciar aquella desgraça; se eu por acaso batesse á porta do doente n'aquelle instante, era eu o agoureiro.

E.—Mas o medico tinha dito, que a doença não era de perigo.

P.—E a morte repentina pressente-se horas, ou minutos antes? E não podem os proprios medicos morrer de repente, sem que suspeitassem o que lhes ia acontecer?

E.—Mas o cão uivou!

P.—Diga-me ca o menino uma cousa. Em casa d'esse homem, que falleceu, não tem estado mais ninguem doente?

E.—Estiveram doentes dois filhos.

P.—E a mãe mandou chamar medico para os tratar?

E.—Mandou, sim, senhor.

P.—E não mandou chamar um cão?

E.—Ora essa! Os cães não sabem curar doenças.

P.—Mas o cão, que uivou, quando o homem morreu, era mais entendido que o medico, porque [39] annunciou a morte, até sem vêr o doente.

E.—O senhor professor está brincando! Os cães são brutos, não sabem d'aquellas cousas.

P.—Então como é isso? Não sabem d'aquellas cousas, são brutos, e prophetisam?

E.—Tem razão, senhor professor. Agora vejo que a minha avósinha anda enganada.

P.—E muito, e faz mal em dizer taes patranhas. O uivo dos cães é desagradavel aos ouvidos, aborrecivel por isso, mas não tem a minima significação.

Aqui poderá o educador dar fim ao incidente, ou continuar o dialogo, fallando do mau costume de molestar os animaes, das qualidades do cão, da raiva e dos meios de a prevenir e curar, etc, etc.

Ao terminar a lição poderá o educador convidar ou os meninos a imitarem o relincho do cavallo, o carejo das gallinhas, o miar dos gatos, o latido dos cães, etc.

Este exercicio que a algum fatuo parecerá ridiculo, ou desnecessario, ou ambas as cousas, tem as seguintes vantagens: alegra e distrae as creanças, que jámais fugirão do estudo, quando elle fôr recreativo, desenvolve-lhes, e aperfeiçôa-lhes a natural tendencia para imitarem, exercita-lhes e robustece-lhes os orgãos vocaes, e por cima de tudo não faz mal nem á alma nem ao corpo.

Quem reparar bem no dialogo que deixâmos architectado, descobrirá quanto ensinamento ha n'elle, [40] e perceberá que se pretendeu principalmente combater uma crença erronea, mas vulgarissima.

Dêmos o segundo exemplo.

Está sobre a mesa ou em cima de outro movel um ramalhete de flores, que alli se puzéra mui calculadamente.

Chegada a occasião opportuna, o professor interrompe a lição e diz:

Meus meninos, descancemos um pouco. Aqui se faz uma pausa, e todos os rapazinhos exultam e saltam dos seus logares.

P.—Já viram bem aquelle ramalhete?

E.—Ainda não, senhor.

P.—Pois vão buscal-o, para o examinarmos por miúdo.

E.—Eil-o aqui.

P.—De que flores se compõe?

E.—De rosas, cravos, camelias, junquilhos, violetas e cedro.

Se os meninos errarem o nome das flores, ou os não souberem, irá o professor emendando e dizendo lhes como se chamam.

P.—Menino F... (ao que mais atrazado estiver em contar) conte pelos dedos quantas qualidades de flôres ha n'este ramalhete.

E.—Rosas, uma; cravos, duas; camelias, tres; junquilhos, quatro; violetas, cinco; cedro, seis... Ha seis qualidades de flôres.

P.—Parece-me que se enganou. Veja bem.

E.—São seis, não me enganei.

[41] P.—E se eu lhe disser que se enganou? E enganou-se, porque não attendeu bem. Diga-me, o cedro é flôr?

E.—Tem razão; são cinco. O cedro não é flôr.

P.—Está-me parecendo, que nenhum dos meninos me sabe dizer para que serve este cedro á roda das flôres.

E.—Eu não sei; eu tambem não; é, é....

P.—Eu lhes digo para que elle aqui está. É para realçar a belleza das flôres, para fazer um contraste agradavel á vista. Se duvidam desatem o junco, tirem o cedro, e verão que o ramalhete perde muito da sua formosura. (Acto continuo, o educador faz o que aconselhou e mostra o ramo desguarnecido de verdura).

P.—É ou não é verdade, o que lhes affirmei?

E.—É verdade.

P.—Ha entre estas flôres, umas que cheiram, e outras que não cheiram.

E.—As rosas, cheiram; os junquilhos, cheiram; as violetas, tambem; as camelias é que não tem cheiro.

P.—Não me lembro se já lhes disse como se denominam as substancias, que tem cheiro?

E.—Denominam-se odoriferas.

P.—E as que não teem cheiro?

E.—Inodoras.

P.—E todas as substancias, que tem cheiro, cheiram bem?

E.—Não, senhor.

[42] P.—E todas as flôres cheirosas, possuem cheiro agradavel?

E.—Nem todas.

P.—Digam-me agora outra cousa. O cheiro das flôres é bom ou mau, para a saude?

E.—Não sabemos.

P.—Pois vão saber uma verdade, que jámais devem esquecer. Attendam. Ha pessoas a quem o arôma das flôres incommoda e faz adoecer; causa-lhes dôres de cabeça, enjôos de estomago, tonturas, e outros padecimentos. Muitas flôres, e ás vezes poucas, mas de cheiro forte, n'uma casa mal ventilada, podem envenenar quem alli estiver. Dormir com flôres na alcôva é muito perigoso, e sabe Deus quantas molestias este mau costume terá originado. Por agora basta que saibam isto, para se acautelarem; em outra occasião lhes explicarei como é que as plantas e flôres alteram a pureza do ar e o tornam doentio.

É por este theor que nos animos infantis se podem inocular conhecimentos praticos de quantas sciencias ha, de modo que as crianças, ao sairem das escolas, levem copia immensa de noções utilissimas para todas as circumstancias da vida.





De grande proveito nos parece que os meninos mais desembaraçados na escripta tenham um caderno onde todos os dias vão escrevendo mui laconicamente o assumpto da lição, e o que da mesma lhes pareça mais digno de se conservar na memoria.

[43] Evite-se, porém, que n'estes summarios, ou indices menemonicos, se empreguem palavras escusadas e se commettam erros de grammatica.

De principio convirá que o educador, ao findar a lição, ensine aos meninos como o registro deve ser feito; depois ordenar-lhes-ha que o redijam em suas casas, e que lh'o apresentem no dia seguinte, para ser emendado.

E como a extrema concisão seja a melhor qualidade de taes escriptos, aqui pômos um paradigma, para governo de educadores e educandos.

Referimo-nos ao primeiro dialogo, que atraz fica exarado.


Registro


Assumpto.—Um cão a ganir.

Sons, que os cães produzem com a bocca: Latido, uivo, rosnadura, ganido. São substantivos. Ladrar, ou latir, uivar, rosnar, ganir.—São verbos.

Agouros.—Não os ha.

Vozes de differentes animaes.—Cão, ladra; canario, canta; cavallo, relincha; mocho, pia; gallinha, cacareja; gato, mia.

O uivo dos cães não indica, nem póde indicar a morte de ninguem, nem desgraça nenhuma. Se um cão uiva, pouco antes de morrer alguem, este facto é apenas uma coíncidencia, um accaso.





O professor exigirá que os meninos, nas respostas [44] que lhe derem, empreguem sempre phrases completas, conformes ás leis grammaticaes, simples e curtas quanto fôr possivel.





Reputa-se de grande utilidade n'este ensino a repetição individual e simultanea.

É um processo excellente, para conseguir que mais fundas se gravem certas especies no espirito dos alumnos, e para corrigir defeitos de expressão e pronuncia. No repetir em côro se deleitam as crianças muito, mormente se o tom das vozes não é tristonho, mas alegre, musical, variadissimo.





Ao minimo erro de regencia, de concordancia, ou de pronuncia, acudirá logo o professor com a indispensavel advertencia, e tanto mais clara e fervorosa, quanto mais grave fôr o erro. Suppunhâmos que um menino diga somentes em vez de somente, faz-le por faz-lhe, traz por traze, Madanela por Magdalena, ou qualquer outra das infinitas corruptelas, que deslustram a nossa lingua, e que a cada momento se nos deparam até na conversação e escriptos dos doutos, e em documentos officiaes.

Acto continuo advertil-o-ha o professor de que tal palavra não foi bem pronunciada, e o convidará a que a repita correctamente. Se o estudante não atinar a emendal-a, repita-lh'a o professor cuidadosamente partida em syllabas, acompanhando cada uma d'estas com uma pancada sobre a mesa [45] com o ponteiro ou com a mão. Ouvida que seja a palavra assim pronunciada, repetil-a-ha o estudante tantas vezes, quantas seja necessario, para que a não altere, e após este exercicio dil-a-ha tão rapidamente como é de uso dizer-se. Se ao professor parecer conveniente, ordenará que outros estudantes façam o mesmo exercicio individualmente, e por fim mandará que a palavra ou phrase seja cantada pela classe inteira, attendendo muito a que o erro, que se pretendeu emendar, se não repita. O que fica dito ácêrca das palavras em especial applica-se em cheio ás phrases compostas de muitas palavras.





A falta de ordem e clareza no dizer é defeito grave, mas communissimo, que tem raizes na escola primaria, e que por isso mesmo ou nunca se perde ou só com muito trabalho se consegue extirpar. A fim de prevenil-o e de combatel-o comece o educador dando exemplo de imperturbavel ordem na exposição, de esmerada escolha dos termos, de grande sobriedade nos incidentes, e de irreprehensivel rigor nas conclusões; tudo isto sem apparato, nem maneiras artificiosas, que revelem os intentos; e esmere-se em inspirar aos que o ouvirem o gosto de bem fallar, cortando todas as imperfeições mal apontem nos labios infantís. Cabe n'este logar uma recommendação, nunca assás repetida. Nas ruas, nas aulas, nos theatros, nas conversações familiares, e, quando Deus é servido, até no [46] parlamento, e na imprensa proferem-se a miudo palavras e phrases, que, com quanto não sejam deshonestas, são tão grosseiras e plebeas, que nenhuma pessoa delicada as deveria empregar. Quasi sempre se ignora a origem d'aquelles termos, muitos d'elles, diga-se a verdade, sobremodo expressivos e por vezes engraçados, mas que nem por isso deixam de ser baixos e vis. Em evital-os seja fervorosissimo todo o educador, sem comtudo levar o zelo até ao ponto de banir da conversação escolar as locuções pittorescas e folgazãs, que alegram a linguagem, sem mareal-a.





Assim como as leituras e recitações soturnas, pesadas, substanciosas, e extensas, aborrecem ás crianças e não lhes prendem a attenção, assim a poesia ligeira, as historias singelas, as fabulas e apologos, as anecdotas e proloquios lhes aprazem sobremodo e de tal arte se lhes apegam á memoria, que não mais as esquecem.

Verdade é que Voltaire arguïu os fabulistas de quererem ensinar as verdades moraes por um processo essencialmente mentiroso, pondo a fallar animaes e plantas; e condemnou a leitura e recitação de taes composições nas primeiras edades. Tem porem mostrado a experiencia que Esopo, Phedro, La Fontaine e Lessing, com os seus artificios poeticos moralisam mais, e muito mais que a Introducção á vida devota, que o Flos Sanctorum, e que o Thesouro de meninos, e quantos outros escriptos, [47] ainda que sejam verdadeiros na essencia e correctos na fórma, se hão publicado para edificação das almas, mormente em quanto n'estas se não ha robustecido a faculdade de raciocinar. Aproveitem-se pois d'este meio os educadores, lendo de vez em quando á escola uma fabula, que tenha relação com os objectos, que se estudam, e fazendo-a decorar; contando a proposito uma anecdota, ou repetindo algum dos muitos e verdadeirissimos rifões, de que tão rica é a lingua portugueza. Dos bons poetas nacionaes, tanto modernos como antigos, poderá o educador escolher infinita copia de versos em todos os generos, com os quaes irá perfumando as lições e desenvolvendo na puericia o gosto da poesia, que alarga a imaginação, modifica e reprime as ruins paixões, consola o espirito, e o dulcifica e embalsama. Fuja, porem, como de peste, de versos máos ou mediocres, não esquecendo jamais que a poesia é, no dizer de um dos mais elegantes e profundos escriptores de Portugal, o sr. Latino Coelho, a grandeza e o nada; o mundo e o atomo; a gloria e a humiliação; o triumpho e o martyrio; o genio e a loucura.

No ensino intuitivo, a faculdade que mais cuidadosamente se deve dirigir, desenvolver, e approximar da perfeição é a faculdade de comparar, cujos defeitos inutilisam os esforços das faculdades, que a antecedem, e obstam a que as superiores se exerçam como é mister. São innumeraveis e quasi sempre facillimos os processos de comparação de [48] que o educador poderá fazer uso, desde a confrontação de dois feijões, ou de dois alfinetes, etc., até ao estudo comparativo de duas poesias, de duas obras de arte, do caracter de dois homens notaveis, de duas epocas historicas. Não ha palavras para encarecer os resultados, que os estudos d'esta ordem produzem e a influencia que exercem no desenvolvimento intellectual e moral das crianças.





A par com o estudo das cousas, podem e devem marchar os exercicios attinentes ao aperfeiçoamento dos sentidos externos, e os preceitos consoantes á sua hygiene. Todos terão observado que o exercicio de certos orgãos concorre por muito para que os mesmos se apurem e tornem cada vez mais delicados. Os homens do mar, acostumados a olhar muito ao longe, e a buscarem a grandes distancias um objecto perceptivel, excedem sempre em perspicacia os que teem vivido encerrados em horisontes menos extensos.

Um musico, habituado a reger orchestras, percebe, ainda mesmo nos cheios, se qualquer dos executantes deu uma nota errada, ou commetteo outro erro. Cegos tem havido, que pelo apalpar distinguem nos corpos qualidades, que pertencem ao dominio da visão, e executam trabalhos manuaes difficeis e delicados, como aquelle cego de nascença, de que falla o sr. dr. Centazzi na sua Medicina e Hygiene Popular, que existia na cidade [49] de Faro, no Algarve, e que fazia peões, cubos, e outras obras tão perfeitas, como as dos mais habeis mestres. Dos provadores de vinho se sabe quão facilmente reconhecem pelo paladar o merito, idade, pureza, e proveniencia do precioso liquor.

Não se deve esperar que a gymnastica dos sentidos, por mais bem dirigida que seja na casa paterna e nas escolas infantís e primarias, venha a produzir tão miraculosos resultados; mas é indubitavel, que lhes corrigirá muitos defeitos, e que de dia para dia os hade ir tornando mais apropriados aos importantissimos fins, para que a natureza os destinou.

Os paes em suas casas, e os professores nas escolas poderão começar a gymnastica dos sentidos pelo exame e comparação das côres. Mostrarão primeiro aos educandos o vermelho, amarello, verde, azul, preto, branco; depois differentes gradações de cada uma d'estas côres; em seguida as côres de transição; apoz estas, todas as mais, que fôr possivel apresentar-lhes. A pouco e pouco lh'as irão nomeando, e fazendo notar tudo quanto convier que elles saibam a tal respeito. Ao conhecimento das côres poder-se-hão seguir exercicios tendentes a apurar a vista, taes como a inspecção de objectos collocados a distancia cada vez maior; a leitura ao longe, e a pesquiza de algumas estrellas, planetas e constellações, cuja posição no espaço previamente se lhes tenha mostrado no mappa.

Por meio de processos analogos se podem educar [50] os outros sentidos, ensinando-se ao mesmo tempo milhares de cousas.





Tambem os mestres do ensino intuitivo, recommendam, que se acostumem os meninos a lerem e a exporem elegante, exacta, e correctamente. Em algumas escolas temos notado quão pouco os professores attendem a esta parte do ensino, consentindo que os estudantes exponham as lições e respondam ás perguntas, que se lhes fazem, com extrema negligencia; negligencia na pronunciação das palavras, cujos sons elementares falseam; negligencia na declamação, que por muito precipitada, ou por extremamente preguiçosa, se torna monotona e insuportavel; negligencia na coordenação das idéas componentes dos raciocinios, e negligencia na disposição d'estes.

Acudir com remedio a tantos defeitos é empreza ardua e enfadonha, mas de que não ha de levantar mão o bom educador, sendo o seu primeiro e persistente cuidado desarreigar os vicios da pronunciação, que principalmente na côrte, trazem adulteradissimo o mais elegante e donairoso de quantos idiomas se fallam no mundo, se exceptuarmos o italiano, ao qual, não obstante a sua nativa belleza e abundancia, não é somenos.

Daria um livro a só enumeração das transgressões das regras orthoepicas, que a cada momento se ouvem até em boccas de ouro; tão irresistivel é a força dos maus exemplos! De entre as mais vulgares [51] citaremos, para amostra, o accrescentamento, ou paragoge de um e mudo ao infinito dos verbos, dizendo-se: amare, fazere, comere, partire, pore, etc., em vez de amar, fazer, comer, partir, pôr. O mesmo accrescentamento ao final das palavras, que terminam em consoante, proferindo-se: sole, flore, mulhere, metale, em logar de sol, flor, mulher, metal; o emprego do a grave, onde deveria soar e fechado, pronunciando-se espâlho, panha, tanha, etc., por espelho, penha, tenha. A substituição grosseirissima de le a lhe, dizendo se dei-le, mostrei-le, quizera-le, em vez de dei-lhe, mostrei-lhe, quizera-lhe; bem como o emprego de lhe, quando este pronome se refere a mais de uma pessoa ou cousa, e de lhes, quando a referencia é a uma só cousa ou pessoa. O emprego de i em logar de e em muitas palavras taes como dedal, dedeira, deante, empenho, emprestar, que a mór parte da gente pronuncia: didal, dideira, diante, ou diente, impenho, ou impanho, imprestar.

De tanto e tão damninho joio irá o educador arrancando diariamente muitas mãos cheias, desafogando a linguagem de todos quantos senões n'ella fôr descobrindo, afim de que mais tarde, quando os meninos entrarem a estudar os segredos da elocução, nem elles, nem os professores tenham de perder muito tempo e muita paciencia em os debellar. E não sómente aos erros da pronunciação se ha de ir applicando prompto e efficaz remedio, mas tambem aos gallicismos e plebeismos de que [52] está inçada a nossa lingua, mórmente aos que respeitarem á composição das phrases, havendo o maximo cuidado em não atordoar as cabeças dos estudantinhos com preceitos de grammatica e considerações philologicas.

Se um menino disser: Vi hoje na montra de um livreiro uma linda estampa; accudirá logo o educador: Não se diz montra; diz-se mostrador; e fará que o mocinho repita a phrase, substituindo o termo peregrino e escusado pela palavra portugueza. Diz outro: Houveram hontem muitas festas de egreja; emendará sem demora o educador: Houve hontem muitas festas de egreja; e convidal-o-ha a que emende o erro. Se algum menino lhe perguntar a razão por que tal palavra ou phrase se não deve dizer, a resposta será regulada pela idade, intelligencia e adiantamento do interrogante, de modo que, se elle fôr pequenino e muito noviço em materias grammaticaes, só lhe dirá: Essa palavra não se deve empregar porque é estranha á nossa lingua e desnecessaria; essa phrase não é admissivel, porque não é conforme ás leis da grammatica, que é a sciencia de bem fallar. E ahi fica o educando insensivelmente sabedor de que a phrase, que empregou, não é boa; de qual ou quaes a devem substituir; de que o discurso está subjeito a leis; e de que a sciencia de fallar correctamente se chama grammatica.

Quanto mais não valerá a advertencia despretenciosa, que valeria um discurso mui chorudo de [53] citações e palavras latinas e gregas! Se o pequenito, que os ha amigos de discutir e aferrados á propria opinião, não largar voluntario a palavra, que ouvira ou lêra, bom será convencel-o, não com argumentos scientificos, salvo se a sua intelligencia os poder comprehender sem custo, mas por meio de um simile. Poder-se-lhe-ha ponderar que assim como ninguem rasoavelmente vae pedir emprestadas aos visinhos cousas de que tenha abundancia de portas a dentro, nem vae ao mercado comprar fructa ruim, tendo-a famosa no quintal, a bater-lhe nas vidraças, assim os portuguezes de bom juizo e sufficiente instrucção, não devem andar tomando palavras e maneiras de dizer a estranhos, quando até para repartir com elles lhes sobram muitas.

Para conseguir que as crianças leiam e fallem com elegancia, e n'isto vae o segredo da perfeitissima declamação, a primeira cousa, que o educador tem a fazer, é acostumal-as ao rhythmo, tão bem aproveitado pelo sr. Visconde de Castilho no seu Methodo de leitura repentina.

Por pouco que se pense na organisação de todo o apparelho vocal (pulmões, larynge, bocca e narinas) nas relações d'aquelles orgãos e no mechanismo da voz, facilmente se perceberá, que a palavra, no que tem de physico, é verdadeira musica, com seus sons naturaes e accidentaes, com sua oitava, com escalas ora mais, ora menos extensas, com os seus tempos, já breves, já longos, e até [54] com a expressão e timbre variadissimo, que ás vibrações sonoras e musicaes, imprimem os instrumentos.

Ora, como não ha musica, que tal se possa chamar, sem rhythmo e expressão, claro está que a voz humana, para satisfazer ás condições da arte, e bem servir a intelligencia, de que é a melhor reveladora, e até parte integrante, no dizer de Condillac, deve ser rhytmica e expressiva.

Para que estas duas essenciaes qualidades lhe não faltem é indispensavel em primeiro logar, que o educador habitue os meninos a obdecerem escrupulosamente ao compasso, na pronunciação dos sons elementares (vozes e consonancias) na dos compostos (diphthongos e syllabas) e na recitação das palavras, que só poderá ser perfeita, quando tiverem sido previamente divididas em tantos tempos, quantos forem seus elementos syllabicos. Depois de bem amestrados por meio d'estes exercicios na leitura auricular das palavras, que o educador para tal fim lhes ditará em voz bem intelligivel, palmeando as primeiro mui vagarosamente, depois um poucochinho mais depressa e por ultimo com o natural andamento, passarão os meninos a ler por cima, como é uso dizer-se nas escolas.

Chegado a este ponto terá o educador de desvelar-se muito em supprir a extrema penuria da orthographia, não tanto no tocante á representação dos sons constituitivos das palavras, no que muito falta, como no que se refere á divisão logica [55] das orações, ás variadissimas pausas, que ha de fazer o bom ledor e recitador perfeito; ás infinitas intonações de que carecem as palavras, as proposições, os periodos e até um mesmo vocabulo conforme a idéa que revela[1].

Ler ou fallar sem intonações, sem pausas, sem as devidas quantidades, sem dar ao que se lê ou falla o natural colorido, e o relevo indispensavel, vale tanto como querer executar em um piano miseravelmente desafinado os primores de Rossini, Donizetti, Bellini, Meyerbeer ou Marcos Portugal.

E não obstante serem intuitivas todas estas verdades, muitissimas pessoas ha, que as desconhecem, e muitas que, não as desconhecendo, como que se aprazem de ler e fallar por modo tal, que provocam tedio e somno.

Daria optimo resultado, como tivemos opportunidade de mostrar praticamente a um educador, sempre avido de se aperfeiçoar, e em extremo benevolente para comnosco, a introducção nas escolas infantís e primarias, para o ensino e aperfeiçoamento [56] da leitura e recitação de um processo analogo ao adoptado pelos regentes de orchestras e bandas marciaes no estudo das peças concertantes. Consiste elle em se collocarem os meninos em pé ou assentados, mas conservando direitos os troncos e naturalmente levantadas as cabeças[2] em frente de estantes ou mesas, onde estejam abertos os livros. Em logar elevado, de modo que todos os escolares o vejam, está o educador em pé, batuta na mão, olhos no livro e olhos na turba. Primeiro lê elle pausadamente em voz alta, com todo o esmero, um periodo, marcando o compasso com a batuta, repetindo duas ou mais vezes as palavras, que lhe parecerem mais difficeis de pronunciar, e corrigindo sem o minimo acanhamento os proprios descuidos. Feito este ensaio, manda ler o mesmo trecho ao estudante mais adiantado, depois a outro e outro, reservando para o fim os menos habeis, para que tenham tido tempo de se amestrar.

Findo que seja este segundo exercicio, e tomado algum descanço, dará o signal de attenção e mandará ler em côro, indicando sempre com a batuta, [57] como se estivesse regendo uma orchestra, todas as modificações da voz, que a leitura exigir.

A estes estudos, que bem se podem chamar de leitura coral, podem-se accrescentar outros, excellentes para exercitar os meninos na declamação, e mui bem acceitos do bando infantil, que consistem primeiramente na leitura, e depois na recitação de cór, de pequenos dialogos, fabulas, e entremezes, em que haja um côro e dois, tres, ou mais interlocutores. Composições d'este genero facilmente se obtem, e quando se não achem, sem muito custo as póde architectar o professor.

A par dos exercicios de leitura e recitação se póde ir cultivando a intelligencia dos meninos, e acostumando-os a pensarem e a exprimirem-se com certo rigor logico. Nada ha mais facil.

Umas vezes elles mesmos subministrarão ao educador assumpto de molde para os seus conselhos e advertencias, outras vezes far-lhes-ha e educador uma pergunta ou lhes proporá um problema, e nas respostas irá notando as transgressões das leis da logica, que porventura commetterem, nunca saindo do campo da pratica para o das theorias, nem usando da terminologia scientifica, que nas idades tenras assusta, desgosta e não instrue.





Cerraremos estas considerações lembrando aos educadores a vantagem de excitar nos estudantes o amor do estudo pelo emprego de premios e distincções.

[58] Se no dizer de Christo «Todo o que trabalha é digno de recompensa» Dignus est enim operarius mercede sua, qual será a razão por que se não hade galardoar o bom comportamento, a assiduidade no estudo, o aceio, e o progresso dos meninos?

Se nas escolas superiores ha premios annuaes para os alumnos distinctos, se as academias os offerecem aos sabios, que cabalmente satisfazem aos seus programmas; se aos que triumpham nos certames das artes e da industria se concede a menção honrosa, o accessit, a medalha de prata ou a de ouro; se ha palmas e corôas, e ramalhetes, e brindes para o actor eximio, e até para o que na praça lucta com o touro embravecido, de melhormente se devem premiar as criancinhas, para as quaes o estudo, por mais que lh'o procuremos amenisar, hade ser sempre tarefa improba e tediosa.

Hade porém haver na concessão das distincções e premios escolares a maxima parcimonia e inteira justiça, para que nem a prodigalidade lhes diminua o valor, nem a parcialidade os torne, em vez de incentivo do bem, facho de discordias, e origem de malquerenças.

E assim como a advertencia e a reprehensão se não devem fazer esperar, commettida a falta, assim tambem se não deve demorar, nem regatear o galardão aos que o merecerem.

Finda a semana, a cada um se dará com certa solemnidade ou o diploma, ou a medalha, ou a estampa, ou o livro, ou o brinquedo, mas nunca [59] gulodices ou cousas, que os possam prejudicar.

Além d'estes estimulos, bom será que annualmente haja, como em muitos collegios se usa, uma sessão publica consagrada á glorificação dos que mais se houverem distinguido.

Ponhamos aqui ponto, não porque hajamos dito quanto se poderia recommendar aos educadores relativamente á difficilima empresa de iniciar as criancinhas nas sciencias e na virtude, mas porque exposto fica o que mais lhes convem saber para o bom emprego do ensino intuitivo, que nos proposemos vulgarisar, convencidos da sua muita utilidade. Os exemplos que seguem, não entram no plano de ensino intuitivo gradual, que, se Deus fôr servido, daremos á estampa; são tão sómente uma amostra, pela qual se possa fazer idéa do systema.

Preferimos para estes exemplos os assumptos e objectos, que nas suas primeiras lições trataram Braun e Mayo, insignes pedagogistas, que em materia de educação tem prestado relevantes serviços á humanidade, adquirindo incontestavel direito a esta humilde, porém sincera homenagem[3].

[60] E já que fallámos de pedagogistas de tamanha nomeada, honremos aqui tambem outro escriptor e pedagogo notavel, o sr. J. Rambosson, cuja ultima obra, publicada em fins do anno de 1872: «A educação maternal conforme as leis da natureza,» não inferior á tão justamente applaudida: «Educação das mães de familia,» de Aimé Martin, hade forçosamente contribuir muito para a reforma do actual viciosissimo systema de educar a infancia, do qual o sr. Rambosson diz estas tão tristes, quão verdadeiras palavras: Il n'existe rien sous ce rapport, ni chez nous ni ailleurs; on ne peut appeler éducation ce que se pratique pour cet âge.



PRIMEIRA LIÇÃO



Ao entrarem a primeira vez na escola a maior parte dos meninos receiam; muítos d'elles temem.

Que receiam e que temem?

Receiam e temem a ausencia e desamparo temporario de suas mães e paes; o affastamento de seus irmãos e criados; o professor, que desconhecem; os condiscipulos, que nunca viram; a casa da aula, que lhes é estranha; a sciencia que ignoram.

Quanto mais pequeninos, mais desconfiados se apartam do ninho seu paterno, mais desbotadas levam as faces, mais tremem e se angustiam ao aproximarem-se do templosinho modesto e sereno, que se lhes afigura medonho ergastulo.

[61] Na repugnancia, que os meninos tem á escola, são quasi sempre culpados os paes e as mães, porque, em vez de amoravelmente lhes fallarem d'ella, de lhes mostrarem que está alli o alvorecer de todas as artes e sciencias, de lhes dizerem que é aquella a unica porta por onde se entra á vida publica, na qual terão, quando homens, de tomar parte, de lhes explicarem a missão do professor e de lhes expenderem que n'elle accrescem aos deveres de mestre os de amigo e patrono; nada d'isto fazem, e só invocam o santo nome da escola, quando irritados pelas travessuras das crianças, que não querem ou não sabem remediar com brandura, bons conselhos, bons exemplos e moderadas correcções, pretendem aterrorisal-os, apontando-lhes para aquella... penitenciaria.

Como ha de amar a escola e appetecel-a, e correr para ella voluntario e risonho o menino, a quem se não fartaram de dizer: «Não te aquietas? Irás para a escola, onde te farão estar quedo, quer queiras, quer não queiras.» «Não aprendas agora, que o professor depois, com a palmatoria te metterá no bom caminho.» «Por mais que te ralhe, não te emendas, tudo rasgas, tudo quebras; deixa-te ir para a escola;... farei queixa ao professor, elle te porá as uvas em pisa»[4]. A fim de remediar estes deploraveis vicios da educação domestica, de tranquillisar o estudantinho, de familiarisal-o com o professor [62] e com os alumnos e de infiltrar-lhe n'alma o amor da escola e do estudo, adopte-se o seguinte modelo de recepção, ou outro melhor, mas pouco mais ou menos do mesmo padrão.

Professor.[5]—Venha cá, meu menino; como se chama?

Estudante.—Viriato.

P.—Viriato é o seu primeiro nome; desejo tambem saber o seu sobrenome e appellido.

E.—Chamo-me Viriato Henrique de Oliveira.

P.—Bonito nome. Para corresponder a elle terá o menino de ser valente, destemido, muito amante da sua patria e muito bom. Sabe porque?

E.—Não, senhor.

P.—Eu lh'o explico. Viriato foi um pastor da Serra da Estrella, tão amigo da patria e dos patricios, que para impedir que os romanos os escravisassem, largou o cajado, abandonou os rebanhos, que apascentava, tomou armas, aggregou a si outros valentes, e por muitos annos desbaratou [63] os exercitos estrangeiros, envergonhando generaes aguerridos, e grangeando fama eterna. D. Henrique foi outro militar de grandes dotes, e que tanto se distinguiu na guerra contra os mouros, que enchiam a Hespanha e a nossa terra, que, em premio de seu valor veiu a casar com D. Theresa, filha de um rei mui poderoso, da qual nasceu D. Affonso Henriques, primeiro monarcha portuguez.

E para que todo o nome do menino seja de bom agouro, até lhe pozeram o appellido de Oliveira, que é uma arvore muito util e agradavel, symbolo da paz, de cujos fructos, as azeitonas, se tira o azeite, que é o melhor e mais precioso oleo, que se conhece. Mas deixemos o azeite e a oliveira, que ainda lhe quero fazer mais perguntas.

Como se chama o seu papá?

E.—Antonio Joaquim de Oliveira.

P.—Que emprego tem elle?

E.—É militar.

P.—E o menino quer tambem ser militar?

E.—Não, senhor; quero ser medico.

P.—Bom é que não sigam todos a mesma carreira; haja militares, para defenderem a patria dos inimigos estranhos, e para manterem o socego e a ordem, que são a primeira necessidade dos povos; e haja medicos para curarem os doentes, e para nos ensinarem o que devemos fazer para não enfermar. Que edade tem o menino?

E.—Nove annos.

P.—O seu papá tem mais filhos?

[64] E.—Tem mais tres.

P.—Os filhos do seu papá e da sua mamã o que são ao menino?

E.—São meus irmãos.

P.—Como se chamam os seus manos?

E.—Thomaz, Clemente e Valeriano.

P.—Dos quatro qual é o mais velho?

E.—É o Thomaz.

P.—Porque é elle mais velho?

E.—Porque nasceu primeiro que os outros.

P.—Se Thomaz é o mais velho, porque nasceu primeiro que os outros, como designará o ultimo nascido?

E.—Direi que é o mais pequeno.

P.—Melhor é dizer que é o mais novo. Onde mora o menino?

E.—Na rua da Alegria.

P.—Caspite! Quem mora na rua da Alegria não deve ser triste.

Após esta pratica com os recem-entrados poderá o professor ou professora convidar os que souberem contar a contarem os estudantes, que estiverem na escola, e a designar pelos nomes os que forem seus conhecidos.

P.—Menino Viriato[6] quantos condiscipulos tem aqui?

[65] E.—Não sei.

P.—Não sabe, porque ainda os não contou; conte-os em voz alta.

E.—Um, dois, tres, etc.

P.—Agora, que sabemos quantos traquinas aqui estão, diga-me os nomes dos seus conhecidos.

E.—Aquelle é Francisco; aquelle é Antonio; aquelle, que está ao pé da janella, tambem se chama Francisco, etc.

P.—Ha n'esta aula tres Franciscos, como é que os havemos de distinguir de modo que, ao chamar um d'elles, não acudam todos tres?

E.—Não sei.

P.—Nada mais facil; bastará accrescentar ao primeiro nome de cada um o appellido da familia; teremos: Francisco de Mello; Francisco de Aguiar e Francisco Loureiro. Quando differentes pessoas ou cousas tem o mesmo nome, é indispensavel juntar ao nome que lhes é commum, outro, para que as possâmos designar sem confusão. Os meninos tem nas suas casas cópos de differentes tamanhos, para differentes usos; a uns chamam cópos d'agua, a outros cópos de vinho, a outros cópos de liquor. O mesmo fazemos com a fructa. Ha muitas qualidades de pêras; para distinguil-as denominamol-as pêra parda, pêra virgulosa, pêra bojarda, pêra flamenga, etc.





Finda que seja a segunda phase d'este colloquio, tenue, mas conveniente para desassombrar o espirito [66] dos estudantinhos, passará o professor a fazer-lhes outra ordem de perguntas.

P.—Como se chama, meus meninos, esta casa, onde estamos?

E.—Chama-se escola.

R.—Para que vem os meninos á escola?

E.—Para aprender.

R.—Que vem os meninos aprender?

E.—A ler, escrever e contar.

P.—Assim é; mas na escola além de ler, escrever e contar, ensinam-se muitas outras cousas agradaveis e uteis, as quaes todas concorrem para tornar os meninos instruidos e virtuosos. Querel-as-heis aprender tambem?

E.—Queremos, sim, senhor; queremos.

P.—Ha um adagio, que diz:—O que se ha de fazer, faça-se; sigamos o adagio e comecemos desde já o nosso estudo, examinando os objectos, que estão n'esta aula. (Aqui mostrará o professor aos estudantes o quadro preto[7] a que muitos impropriamente chamam pedra). Qual dos meninos tem um objecto como este em sua casa?

E.—Eu não; eu tambem não.

P.—Sabem como se chama?

[67] E.—Chama-se pedra.

P.—Assim o denominam alguns, mas impropriamente. Isto não é de pedra, é de pau, é de madeira. Ha n'esta casa alguma cousa de pedra?

E.—As hombreiras da porta e das janellas.

P.—E nada mais?

E.—As ardosias, que trouxemos para fazer contas.

P.—O menino F. respondeu muito bem; essas laminas pretas, a que chamâmos ardosias ou lousas, e as pennas com que escrevemos n'ellas, são pedaços de pedra. Querem ver a differença, que vae da pedra á madeira? Batam com os dedos nas ardosias; agora venham aqui, e batam n'isto, a que deram o nome de pedra. Todos percebem a differença do som.

E.—É verdade.

P.—Como chamaremos, pois, a este objecto? Eu lh'o digo. Chamar-lhe-hemos o quadro, ou a taboa; e como esta madeira está pintada, poderemos acrescentar ao nome quadro outro nome, indicativo da côr, que tem.

E.—Poderemos dizer: Quadro preto.

P.—Mui bem. Agora dir-me-hão para que serve o quadro preto.

E.—Serve para n'elle se escrever.

P.—(Mostrando um pedaço de giz). Sabeis o que é isto?

E.—É um bocado de giz.

[68] P.—Para que o tenho eu aqui?

E.—Para escrever no quadro preto.

P.—De que côr é o giz?

E.—É branco.

P.—(Mostrando a esponja). Como se chama est'outro objecto?

E.—Chama-se—esponja.

P.—Para que temos aqui esta esponja?

E.—Para apagar as lettras e as figuras, que se fizeram no quadro preto.

P.—Não poderiamos apagar a escripta com o lenço de assoar?

E.—Poderiamos, sim, senhor; mas ficaria sujo, e sujar-nos-hia o fato.

P.—Respondeu muito bem. E porque razão não apagâmos as lettras com as mãos?

E.—Porque ficariam sujas, e sujar-nos-hiam tambem o fato.

P.—Quando por qualquer motivo tivermos sujado as mãos, que deveremos fazer?

E.—Limpal-as.

P.—De quantas maneiras se limpam as mãos?

E.—Esfregando-as n'um panno, ou lavando-as.

P.—Como ficam ellas mais desenxovalhadas, esfregando as n'um panno, ou lavando-as?

E.—Lavando-as.

P.—Como se chamam as peças de roupa, de que nos servimos para enxugar as mãos depois de as termos lavado?

E.—Chamam-se—toalhas de mãos.

[69] P.—Trazer as mãos limpas é garridice, ou necessidade e dever?

E.—É necessidade e dever.

P.—Para que é necessario trazer as mãos aceiadas?

E.—Para não mancharmos aquillo em que mechermos, e para não enojar as pessoas, que nos virem ou a quem prestarmos algum serviço.

P.—A sugidade das mãos prejudica a saude?

E.—Não sei.

P.—Prejudica, e muito; em primeiro logar porque obsta á transpiração, isto é, á saïda da agua e suor, que continuamente estão atravessando a pelle; em segundo logar porque, indo com as mão sujas aos olhos, poderemos inflamal-os e originar doenças, que ou nos enfraqueçam a vista ou nos acarretem a cegueira. Quantas vezes ao dia deveremos lavar as mãos?

E.—Quantas fôr necessario.

P.—Acertadamente responderam; mas não será escusado dizer-lhes que invariavelmente as devem lavar pela manhã, ao erguerem-se da cama; antes e depois do almoço, jantar e ceia, ou de qualquer outra refeição; ao sair e entrar em casa; afóra as outras vezes, que o aceio o exigir. Passemos a outro assumpto. (Apontando para o cavallete.) Qual dos meninos me saberá dizer o nome d'aquelle objecto?

Silencio.

P.—Menino Carlos, não sabe como se chama aquillo?

[70] E.—Não, senhor.

P.—Pedrinho, tambem não sabe como se chama aquella geringonça?[8]

E.—Chama-se cavallete.

P.—Acertou. Agora digam todos commigo: Ca-va-lle-te[9].

E.—Ca-va-lle-te.

P.—Agora hão de dizer esse nome, sem separarem as syllabas.

E.—Cavallete.

P.—Para que serve aquelle cavallete?

E.—Serve para sustentar o quadro preto.


Resumo


A casa, onde estamos, chama-se «escola». Na [71] escola aprende-se a ler, escrever, contar, a doutrina christã, desenho, canto, e mil outras cousas uteis e agradaveis, que o professor nos vae ensinando pouco e pouco, as quaes todas concorrem para que sejamos bons e instruidos, qualidades estas indispensaveis a qualquer homem. Ha na escola diversos objectos, e entre elles o quadro preto, a esponja, o giz e o cavallete. No quadro preto escreve-se com giz. Serve a esponja para se apagar o que se escreveu no quadro, e o cavallete para sustentar o mesmo quadro.


Reflexões


Meus meninos, attendei bem ao que vou dizer-vos, e não o esqueçaes. Pode a casa da escola ser convidativa, a mobilia e utensilios bons, os compendios famosos, o professor sabio, zeloso e habil, e o methodo de ensino excellente, e não obstante todas estas invejaveis condições, os estudantes não utilisarem nada, com detrimento proprio e de seus paes, por falta de assidua frequencia e de estudo.

São incalculaveis os prejuizos, que resultam das repetidas faltas á escola. Os meninos, que faltam, não só não se adiantam, mas perdem o que aprenderam, desgostam e entibiam o professor, introduzem a desordem na aula, e incitam os collegas com o exemplo, a que procedam do mesmo modo.

Evitae, pois, todos estes males, não faltando á [72] escola sem causa justificavel, e estudando aqui e em vossas casas, isto é, attendendo ao que o professor vos disser, meditando nas suas palavras, e lendo ou decorando o que vos mandarem que leiaes ou decoreis. Não se pode ser instruido, sem estudar. Os meninos estudiosos grangeiam a estima das pessoas de bem, e tornam-se dignos da protecção divina.



SEGUNDA LIÇÃO

A ESCOLA


P.—Meus meninos, fallámos outro dia do quadro preto, das ardozias, do giz, da esponja, da toalha de mãos, e do cavallete; desejo que me nomeeis agora mais alguns utensilios da escola... Como se chama isto? (Indicando a mesa).

E.—Chama-se mesa.

P.—De que é feita esta mesa?

E.—De madeira.

P.—Todas as mesas são de madeira?

E.—Não, senhor; algumas são de pedra.

P.—E não as ha feitas de outras materias?

E.—Não sei.

P.—Nunca viram mesas de metal?

E.—Lembro-me agora de tel-as visto de ferro.

P.—E não só de madeira, de pedra e de ferro se podem fazer; todas as materias solidas e duras se prestam á construcção d'este movel. Como se chama esta parte da mesa? (Indicando a parte superior).

[73] E.—Taboa da mesa.

P.—Como se chama est'outra? (Indicando a parte sobre que assenta a taboa).

E.—Chama-se aro.

P.—Vinde aqui e dizei-me, que nome tem estas especies de caixas (Mostrando as gavetas) que estão sobre a taboa da mesa, e que eu puxo para fóra e torno a esconder (abrindo e fechando as gavetas).

E.—Essas especies de caixas chamam-se gavetas.

P.—Para que servem as gavetas?

E.—Para guardar diversos objectos?

P.—Estas peças de metal, que as gavetas aqui tem embebidas na madeira, como se denominam?

E.—Fechaduras.

P.—Para que servem estas fechaduras?

E.—Para fechar as gavetas?

P.—Porque razão fecho eu as gavetas d'esta mesa, quando saio da aula?

E.—Não sei.

P.—Porque ha meninos, que commettem a indiscripção de as abrir e de mecher no que n'ellas está, praticando uma acção feia ...

E.—É máu abrir uma gaveta?

P.—Se a gaveta é de nosso uso, ou se nos é permittido abril-a e tocar no que lá está, não commettemos falta nenhuma em a abrir; mas se é de outrem, ou se nos prohibiram abril-a, é acção muito feia e má o descerral-a, sem licença, excepto em caso de necessidade. E já que estamos [74] a fallar de gavetas, dizei-me, que deve fazer um menino bem educado, quando na sua presença se abre uma gaveta?

E.—Não sei.

P.—Deve abster-se de olhar para lá e de estar a observar o que ella contem. Dizei-me, com que se abrem as fechaduras?

E.—Com as chaves.

P.—Olhae para aqui... Metto a chave n'esta fechadura dou-lhe volta e vejo sair uma peça de ferro, chata e larga.

E.—É verdade.

P.—Como se chama essa peça?

E.—Lingueta.

P.—Sabeis porque lhe pozeram o nome de lingueta?

E.—Não sabemos.

P.—Soletrae a palavra lingueta, e talvez deis no vinte.

E.—Lin-gue-ta.

P.—As duas primeiras syllabas d'essa palavra não vos trazem á memoria outra palavra muito conhecida?

E.—Trazem, sim, senhor; a palavra lingua.

P.—Reparae agora se ha alguma similhança entre a lingua do homem e dos outros animaes e a parte da fechadura, que estamos observando.

E.—Ha, sim, senhor.

P.—Em que?

E.—A lingua é chata e a lingueta tambem; a [75] lingua é comprida, como a lingueta; a lingua está preza na bocca d'onde sae ás vezes, e a lingueta está egualmente presa no interior de uma caixa da qual a chave a faz sair.

P.—Difficilmente se poderia responder melhor á minha pergunta. Tomem d'aqui exemplo os outros meninos. A explicação que o menino F. me deu prova-me que elle observa as cousas com attenção e compára umas com as outras, o que muito concorre para que se nos desenvolva a intelligencia; ou que, se alguem lhe tinha ensinado isto, se não esqueceu do que lhe haviam dito, o que tambem é muito para louvar[10].

E.—A mim ninguem me tinha ensinado a resposta.

P.—Tanto melhor, porque deu prova de que medita no que vê; que vêr as cousas superficialmente é quasi o mesmo que não as vêr: Continuemos a estudar a mesa. Reparem n'estas quatro columnas (mostrando os pés da meza) sobre as quaes assenta a taboa, o aro e as gavetas.

E.—São os pés da meza.

P.—Porque se lhes chama pés?

E.—Porque sustentam o resto da mesa, á maneira dos pés do homem e dos animaes, que sustentam o resto do corpo.

[76] P.—Todas as mesas tem quatro pés?

E.—Nem todas; umas tem um só pé, outras quatro, outras seis, e podem ter mais.

P.—Quaes são as mais firmes, isto é, menos subjeitas a cairem, as de um, ou as de quatro pés?

E.—As de quatro pés.

P.—Para que servem os bancos?

E.—Para nos assentarmos.

P.—De que são feitos esses bancos?

E.—De madeira.

P.—Não poderiam ser feitos de outra materia?

E.—Poderiam ser de ferro, ou de pedra.

P.—Porque não poriam aqui bancos de pedra?

E.—Porque são mais caros, que os de pau.

P.—E só por isso é que os não pozeram aqui?

E.—É porque são muito pezados; não poderiamos mudal-os de um logar para outro.

P.—Não haverá outro motivo para preferir os bancos de pau aos de pedra?

E.—Não sei.

P.—Menino F... queira responder á minha pergunta?

E.—Não sei.

P.—Aquelle estudantinho, que além está a gesticular, é que nos vae satisfazer a curiosidade; vamos, menino G... deite a barra adiante aos seus collegas, revelando-nos o motivo porque os bancos de pedra, á parte o serem pesados e caros, não são adoptados nas nossas casas e nas aulas?

E.—Parece-me que é por serem muito frios.

[77] P.—Por causa da frialdade da pedra são os bancos d'aquella materia não só incommodos, senão muito prejudiciaes á saude. Passemos a outro assumpto. Já vos ponderei que é muito mau faltar á aula, não estar attento ao que diz o professor, e não estudar. Desejo que me digaes agora o que acontece aos estudantes, que não vem ao principio da aula, e que entram aqui uma hora, ou hora e meia, depois de terem começado os nossos trabalhos?

E.—Não podem seguir bem as lições.

P.—Que deverá, pois, fazer, relativamente a este ponto, um estudante applicado, e que deseje adiantar-se?

E.—Deverá entrar na aula á hora marcada para o começo do estudo.

P.—Diga-me menino L... que cousas deve o estudante trazer sempre para a escola?

E.—Uma ardozia, uma penna de pedra, um lapiz, uma penna de aço, e os livros.

P.—E que lhe acontecerá, se lhe esquecer alguma ou algumas d'estas cousas?

E.—Não poderá tirar da lição o fructo, que deve tirar.

P.—Qual será a razão porque alguns meninos chegam muitas vezes á aula sem os objectos, que lhes são indispensaveis?

E.—A razão d'essa falta é ou por que se esquecem de os tomar ao sair de casa, ou por que, saindo com pressa, os não acham, e lhes falta o tempo para procural-os.

[78] P.—Ha meio de evitar aquelle esquecimento, e de fazer com que os objectos, que devem trazer para a aula, se lhes deparem facilmente?

E.—Ha, sim, senhor. Bastará que os meninos ponham a ardozia, o lapis, e os livros em um logar certo.

P.—Que nome daremos a um menino, que põe uma cousa aqui, outra alli, outra acolá, e que depois se não lembra dos logares onde as poz?

E.—Desarranjado.

P.—E ao que suja e rasga os livros, e deita borrões na escripta, e por cima das mesas, e se apresenta com a cara e os dedos enxovalhados?

E.—Porco ou enxovalhado.

P.—Deve o professor consentir que os meninos rasguem os livros, que salpiquem de tinta as paredes e as mesas, que tragam sujas as mãos e cara, e o fato cheios de nodoas?

E.—Não, senhor.

P.—Porque?

E.—Porque estragar os livros, ou as paredes, ou qualquer cousa, sem necessidade, é acção muito feia, assim como não andar limpo.

P.—E será apenas acção muito feia? Não será uma especie de roubo feito aos paes e aos mestres, aos quaes muitas vezes é em extremo penoso custear as despezas, a que os filhos e discipulos os obrigam?

E.—É de certo.

P.—Que devem, pois, fazer os meninos a quem [79] se recommenda, que sejam arranjados e aceiados?

E.—Devem obedecer.

P.—E que merecem os que não fazem caso das advertencias de seus paes e mestres?

E.—Merecem castigo.

P.—E de que são dignos os que estudam bem, e obedecem aos seus superiores, procurando em tudo conformar-se com os seus conselhos e preceitos?

E.—São dignos de estima e de premio.

P.—Respondeu com muito acerto. Por hoje basta de conversação. Antes, porém de nos separarmos quero repetir-lhes um conselho muito prudente de um grande mestre. Decorem-n'o e sigam-n'o, se querem ser methodicos e arranjados. Eil-o:

Logar certo para cada cousa, e cada cousa no seu logar.



TERCEIRA LIÇÃO

OS CONDISCIPULOS


P.—Recommendei-lhes outro dia, meus meninos, que não faltassem á aula, que viessem á hora marcada no regulamento, que se não esquecessem de trazer os livros, e mais objectos necessarios para as suas lições, que se acostumassem a ser arranjados, methodicos, e desenxovalhados, e que tivessem o maior cuidado em não estragar os objectos de seu uso. Não são tão poucos os deveres dos meninos; e como para bem os cumprirem é [80] indispensavel conhecel-os, vamos hoje conversar em outro assumpto, que muito lhes interessa. Começarei perguntando-lhes como se denominam, em geral, os meninos, que frequentam ao mesmo tempo uma aula?

E.—Denominam-se condiscipulos.

P.—O encontrarem-se quasi todos os dias, estarem muito tempo juntos, lerem pelos mesmos livros, aprenderem com o mesmo professor, terem com pequenas differenças, a mesma idade, e trabalharem para conseguir o mesmo resultado, concorrerá para que os condiscipulos formem uma especie de familia ou irmandade, cujo pae espiritual é o professor?

E.—Certamente.

P.—Se os condiscipulos, como affirmaes, são quasi irmãos, parece-me que devem tratar-se de maneira differente do que se tratam os meninos, que nem são parentes, nem condiscipulos.

E.—Sem duvida.

P.—Já que tão expeditamente confirmaes a minha opinião, fazei mercê de me dizer como se devem tratar os condiscipulos.

E.—Devem tratar-se com delicadeza, bondade e amisade.

P.—Optimamente, sr. estudantinho; mas como eu não quero deixar por mentiroso o rifão, que diz: «As palavras são como as cerejas», peço-lhe me indique quaes actos de delicadeza hão de praticar os condiscipulos; de certo não quereis que elles [81] deem excellencia uns aos outros, ou se saüdem com salamaleks, á maneira dos turcos.

E.—Hão de cumprimentar-se quando se encontrarem em qualquer parte, e á entrada e saïda da aula; não hão de bater uns nos outros, nem rasgar ou sujar os vestidos; não hão de usar nas suas conversas de palavras feias; se a qualquer tiver esquecido o livro, a lousa, a penna, ou qualquer outro objecto deve-se-lhe emprestar aquillo de que carecer.

P.—Muito bem. E será delicado o menino que despresar o collega, por elle ser feio, ou aleijado, ou tartamudo, ou vesgo, ou coixo?

E.—Não, senhor.

P.—Será delicado o menino, que pozer alcunhas a seus condiscipulos, ou que lhes lançar em rosto o serem filhos de pessoas pobres, ou não trajarem á moda, com elegancia, e esmero?

E.—Não, senhor.

P.—Se ao mesmo tempo chegarem ao pote, para beber, dois meninos grosseiros, que acontecerá?

E.—Por-se-hão a ralhar, querendo cada qual ser o primeiro que beba.

P.—Se um dos meninos fôr delicado e o outro grosseiro?

E.—O delicado ou se affastará, para que o outro mate a sede em primeiro logar, ou encherá o copo e lh'o offerecerá.

P.—E se ambos forem delicados?

[82] E.—Não sei o que devam fazer.

P.—Menino F., responda á minha pergunta.

E.—Se ambos forem bem criados, deverá o mais pequeno encher o copo e offerecel-o ao mais velho.

P.—Mas pode acontecer que ambos tenham a mesma idade, ou que um não saiba a do outro.

E.—Nesse caso o mais delicado antecipar-se-ha a obsequiar o outro.

P.—Respondeu com muito juizo. Que deverá fazer um menino delicado, se ao lanche, um condiscipulo lhe pedir um damasco, uma pêra, ou qualquer outra cousa, que lhe não faça falta?

E.—Deve dar-lh'a.

P.—E pedir-lhe outra cousa em paga?

E.—Não, senhor.

P.—Do que temos estado a dizer conclue-se, que a delicadeza consiste não só em evitar tudo quanto possa desgostar os outros, mas tambem na pratica de quanto honestamente lhes possa ser agradavel.—Desejo, porém, que me digaes se delicadeza e bondade são o mesmo.

E.—Não, senhor.

P.—Como assim?

E.—Pode uma pessoa ser delicada e não ser boa; pode tratar os outros muito bem, mas não proceder assim por virtude, e tão somente por genio, elegancia, ou astucia.

P.—Para que possâmos ter um menino em conta de bom o que é necessario?

[83] E.—É necessario que elle não faça nenhuma acção má.

P.—Quando é que as nossas acções são más?

E.—Quando offendem a Deus, ou ao proximo.

P.—Dizeis muito bem; mas para que este ponto se aclare bastante, fazei favor de me indicar algumas acções que reputeis más.

E.—São más acções não crer em Deus, não o amar, e não o temer; não cumprir as ordens dos nossos superiores; mentir, levantar falsos testemunhos; desprezar os pobres, e não os soccorrer; indagar das vidas alheias; furtar; comer e beber mais do que é preciso.

P.—E ser mandrião, não estudar bem as lições é acção bôa, ou má?

E.—É má.

P.—Porque?

E.—Porque, não estudando, desobedecemos a nossos paes e mestres.

P.—Como se chama a acção torpissima de tirar a alguem uma cousa ás escondidas.

E.—Chama-se furto.

P.—E como se denomina o desgraçado, que furta?

E.—Denomina-se ladrão.

P.—Que merecem os ladrões, estima ou desprezo?

E.—Desprezo e castigo.

P.—E não será quasi ladrão um menino, que, [84] mandriando, obriga seus paes a fazerem despeza excessiva para o educarem, e que prejudica a familia, em beneficio da qual deveriam reverter as quantias, que os paes consomem inutilmente com o preguiçoso?

E.—É, sim, senhor.

P.—Por consequencia merece desprezo e castigo o máu estudante.

E.—Certamente.

P.—Se na escola houver estudantes pobresinhos e estudantes abastados, que devem estes fazer relativamente áquelles?

E.—Tratal-os muito bem.

P.—O bom tratamento de que fallaes consistirá somente em os admittirem á sua companhia na aula e na rua, e em praticarem com elles delicadamente, ainda que não andem bem trajados; ou consistirá tambem em auxilial-os, obtida licença dos paes e mestres, para que lhes não faltem cousas indispensaveis, taes como o lapis, papel, compendios, etc., para comprar as quaes lhes não chegar o dinheiro.

E.—Parece-me que é dever dos estudantes endinheirados proteger em tudo os que o não são, e até repartir com elles o lunch, e a merenda, por isso que os collegas se devem amar como irmãos.

P.—Muito bem. E o amor fraternal dos collegas permittirá que andem a fazer queixas uns dos outros?

E.—Não, senhor.

[85] P.—Que deverá fazer um bom collega quando outro commetter uma pequena falta.

E.—Deve advertil-o de que não fez bem, e aconselhal-o a que se emende.

P.—E se um estudante quizer commetter um crime, ou praticar uma acção má, ou se tiver delinquido, e se mostrar obstinado em não se emendar, o que deverá fazer o collega?

E.—Se não poder evitar o mal, nem conseguir que o menino, que o praticou, trate de se corrigir, cumpre-lhe avisar o professor.

P.—Em voz alta, diante de todos, com acrimonia, e maneiras hostis, ou em particular, e por modo, que não aggrave o delinquente?

E.—Em particular e sem azedume.

P.—Se o professor perguntar a um estudante quem commetteu certa falta ou maldade, e o estudante interrogado souber quem foi, que deverá fazer?

E.—Dizer a verdade.

P.—Quando tal aconteça, ficará mal ao estudante implorar a clemencia do professor para o collega?

E.—Não, senhor; antes lhe ficará muito bem.

P.—Disse ainda agora um dos meninos que deviam os collegas ser amigos. A amisade é um sentimento mui delicado e nobre, e por isso mesmo mui raro. Umas vezes nasce do parentesco e convivencia intima, tal é a que aos filhos consagram os paes, e a estes os filhos, tal a dos avós e netos, [86] e a dos tios e sobrinhos; outras vezes provém da sympathia, augmenta com a camaradagem, principalmente entre pessoas de indoles similhantes, e fortifica-se pela troca reciproca de serviços desinteressados e honestos. Mas, assim como «nem tudo o que luz é ouro», assim nem toda a convivencia, posto que deleitavel, extremosa, e até util, se póde considerar amizade verdadeira.

E.—Em que consiste, pois, a verdadeira amizade?

P.—Em duas ou mais pessoas se estimarem reciproca e honestamente, como cada uma a si propria se estima.

E.—Em vista do que dizeis, devem ser mui poucos os verdadeiros amigos; porque eu, não obstante ser ainda muito creança, tenho notado que quasi todas as pessoas gostam mais de si, que dos outros.

P.—Rarissimos são, é verdade, e por isso mesmo quem teve a felicidade de encontrar um, deve cuidar muito de o não perder.

E.—E o que nos acontecerá, se nunca tivermos um amigo verdadeiro?

P.—Seremos menos felizes do que seriamos, se o tivessemos.

E.—Vós, sr. professor, sois muito feliz.

P.—Por que me consideraes muito feliz?

E.—Porque tendes muitos amigos.

P.—Quem vos disse que tenho muitos amigos?

[87] E.—Ninguem; mas tenho visto que pelas ruas uns vos cortejam, tirando-vos o chapéu, outros vos dizem adeus com a mão, outros vos tratam por tu, muitos vos abraçam e param a fallar comvosco.

P.—Como estaes enganado! Esses todos, com pouquissimas excepções, sabeis o nome que merecem? Eu vol-o digo—conhecidos.—Se eu caísse de cama, quantos viriam acompanhar-me? se eu estivesse preso, quantos iriam suavisar-me a solidão do carcere? se eu tivesse fome, quantos repartiriam commigo as suas sôpas? se eu tivesse a desgraça de commetter um crime, quantos no dia seguinte se desbarretariam ao passar por mim?... Conhecidos, indifferentes, amigos do theatro, do baile, do passeio, que desapparecem, quando o verdadeiro amigo mais se approxima de nós, nos dias sombrios e luctuosos da desgraça, e das tribulações.

E.—Como é então que fallaes e mostraes tão bonito modo a homens, que de nada vos prestam? Não seria melhor desprezal-os?

P.—Não se deve desprezar ninguem. Quem não póde beber por uma taça de ouro, ou de crystal, ha de quebrar o copo de vidro ou o pucaro humilde de barro? Para os conhecidos, caridade e delicadeza; para os amigos, os affectos todos do coração.

E.—Se vos não enfado, far-vos-hei ainda uma pergunta.

P.—Quantas quizerdes.

[88] E.—De que traça nos havemos de servir para grangear amigos verdadeiros?

P.—Um sabio, a quem fizeram igual pergunta, respondeu: Se quizeres ser amado, ama. A semente da amisade é a sympathia, ou reciproca inclinação, gerada, ou da analogia das indoles e estados, ou de certas qualidades, que mal se póde dizer quaes sejam, mas que parecem attrair umas para as outras as pessoas, que as tem.

E.—De maneira que, se eu entrar n'uma casa e me agradar de uma pessoa, que não conheça, ainda que não seja da minha idade, nem bonita, e sentir para ella inclinação, poderei dizer que sympathizei com ella.

P.—De certo.

E.—Mas ás vezes tambem succede o contrario; olha a gente para um homem ou para uma senhora, e posto que nem sejam feios, nem desastrados, experimenta certa repugnancia em tratal-os.

P.—A essa repugnancia se dá o nome de antipathia.

E.—Quando pois, sympathisarmos com alguem, poderemos contar com um verdadeiro amigo?

P.—Nem sempre. Á vossa pergunta respondeu ha muito tempo um escriptor portuguez dos mais eruditos, chamado Antonio de Sousa de Macedo, cujas obras vos recommendo desde já para quando fordes maiorzinhos. Ouvi o que elle a tal respeito escreveu. «D'entre os mesmos em que se acham sympathias, se deve fazer distincção, antes de trabalhar [89] pelos fazer amigos, por que nem todos serão convenientes.

Suetonio diz de Augusto, que os escolhia com vagar, e os conservava constantemente. Devem-se preferir os de melhor juizo, bons costumes, valor, sinceridade, e bôa fama. Nem com o nescio, diz o ecclesiastico, nem com o mau, diz santo Agostinho, nem com o pouco verdadeiro, diz Aristoteles, póde haver amizade.»

E.—São essas as qualidades que devem ter os amigos, e muito folgo de que tão claramente nol-as expozesse esse auctor portuguez, cujo nome citastes; mas quando se nos depare alguem com todos esses requisitos, que deveremos fazer para lhe captivarmos a amizade?

P.—Seja tambem Macedo quem vos responda. Diz elle: «Feita a eleição, a communicação e conversação faz os amigos, concordando nos ditos, e nas acções (suppondo que tudo ha de ser honesto e judicioso) e para a facil, sincera, e agradavel concordia, contribue especialmente a sympathia, a qual, accrescentou um sabio, se deve ajudar com algum beneficio, feito graciosamente, sem ser rogado, nem depois publicado.»

E.—Algum beneficio?

P.—Não fiqueis ahi pensando que os beneficios, que penhoram a amizade, sejam tão sómente mimos e presentes de cousas, que se merquem nas lojas, ou de fructas e manjares; boas são essas provas de amizade, mas não são as unicas, nem as mais [90] apreciaveis. Por beneficios deveis entender tambem, os conselhos prudentes, os exemplos dignos de imitação, a companhia na doença, e nas tribulações, o ensino fraternal e até a reprehensão suave das faltas e defeitos.


Resumo


Os condiscipulos são quasi irmãos, filhos espirituaes do professor. Devem ser delicados, bons, e amigos. Devem cumprimentar-se á entrada e saïda da aula e sempre que se encontrarem. Devem prestar uns aos outros todos os serviços, que puderem. Os estudantes pobres, defeituosos, mal vestidos merecem, sendo bons, tanta estima e consideração, como os abastados, sãos, e tafues. Nem sombra de alcunhas, principalmente allusivas a quaesquer deformidades, ou imperfeições do corpo ou do espirito. Se nos pedirem cousa, que possamos emprestar ou ceder, emprestemol-a, ou cedamol-a, sem exigir paga, nem agradecimento. Delicadeza não é bondade. Toda a acção contraria á lei de Deus, ou ás leis humanas, quando estas não offendem aquella, é má.

O mandrião merece castigo e desprezo. Desde a aula deve o rico ajudar o pobre.—Se algum estudante fizer maldades advirtam-n'o os que as presenciarem; mas não as divulguem. Quando um estudante praticar acções indignas, e admoestado pelos condiscipulos, se não emendar, recorra-se ao [91] professor, dizendo-lhe em particular, e sem aggravar o mal, quanto baste para que elle proceda como fôr de justiça. É prova de delicadeza e bondade de coração implorar misericordia para os que estiverem em risco de ser castigados. Nunca se deve mentir; a mentira é a torpeza das torpezas.

São amigas duas pessoas que reciproca e honestamente se estimam como cada uma d'ellas se estima a si propria. Ha amizade verdadeira, e falsa.—Nem todos os que parecem amigos, o são; não se deve confundir o amigo com o conhecido. Amar é o meio de grangear amigos. A amizade nasce da sympathia; mas nem todos com quem sympathisâmos podem ser nossos amigos. As qualidades que deverá ter um amigo, são: bom juizo, bons costumes, valor, sinceridade, bôa fama. Não deve ser nescio, nem mau, nem mentiroso. Para o grangear bastará a communicação e conversação, auxiliadas por obsequios desinteressados.


Reflexões


É finda a nossa palestra de hoje. Temos dito muitas cousas, mas não basta fallar; é indispensavel fugir do mal e praticar o bem. Muito falla o papagaio, mas que faz tamanho palrador? Come o que lhe deitam no comedouro, e nas horas vagas vae roendo a gaiola. Ninguem dirá com verdade, que seja muito para se imitar a tal ave palreira. Palavras, leva-as o vento, dil-o o rifão, e não mente. [92] Para vos não parecerdes com aquelle animalzinho inutil, amae-vos muito uns aos outros; auxiliae-vos fraternalmente, cumprí á risca todas as vossas obrigações, e lembrae-vos a cada momento de que os homens do futuro, os paes de familia, os mestres, os escriptores, os ministros, os deputados, os juizes, os sacerdotes, os militares, os medicos, os pharmaceuticos, os advogados, os artistas, os negociantes, os industriaes, os lavradores haveis de ser vós, e de que para profissões tão variadas, tão nobres, tão difficeis e de tantissima responsabilidade, vos deveis desde já preparar, estudando e praticando todas as virtudes, para que, chegada que seja a hora de entrardes na vida activa e de servirdes a civilisação, que exige obreiros intelligentes e honrados, possaes cabalmente desempenhar os vossos deveres.



QUARTA LIÇÃO

VIDRO[11]



Escolheu o professor Mayo o vidro para assumpto da primeira lição do ensino intuitivo, ou de objectos, por lhe parecerem as qualidades d'este corpo mais perceptiveis aos nossos sentidos, que as de qualquer outro. Aconselha o mesmo professor que fiquem os meninos defronte do quadro preto, onde se hão de ir escrevendo os resultados de suas observações; [93] e que o pedaço de vidro vá passando de mão para mão, para que cada um dos estudantes individualmente o examine. O tomar cada menino o fragmento de vidro em suas mãos e o il-o observando com attenção é, como atraz observámos, ponto de grande importancia para o bom resultado do ensino. Diz a este proposito o excellente pedagogista Mayo o seguinte: «D'este modo cada individuo, dos que compõem a aula, se vê obrigado a exercitar as suas faculdades sobre o objecto, que se lhe apresenta; servindo as perguntas, que depois lhes faz o professor, para que elles revelem suas idéas, e para a emenda d'estas, se forem erroneas.

P. (Mostrando um bocado de vidro)—Que é isto, que eu tenho na mão?

E.—É um bocado de vidro.

P.—Vamos soletrar a palavra vidro.

(Feita esta advertencia, escreve o professor no quadro preto a palavra vidro, dividida em duas syllabas; pronuncía alto e bom som, em primeiro logar as lettras v-i-d-r-o, acompanhando a pronunciação de cada uma d'ellas de uma pancada com o ponteiro no quadro, ou de uma palmada; e pronuncía depois as duas syllabas mui distinctamente. Em seguida repetem os estudantes primeiro individualmente, e depois em côro, aquella soletração, até que a saibam correctamente fazer.)

P.—Todos vós examinastes este vidro; e que notastes n'elle? Que podeis dizer que é?

[94] (Põe-se esta pergunta em logar de: Quaes são as suas propriedade? porque é muito provavel que a principio não entendam os meninos o sentido da palavra «propriedade»; mas applicando-a repetidas vezes o professor ás respostas que os estudantes derem, em pouco tempo se acostumarão a ella e lhe perceberão o sentido).

E.—É brilhante.

P. (Depois de ter escripto no quadro a palavra «propriedade», escreve por baixo: «É brilhante»).—Pegae-lhe; apalpae-o. (Deverá o professor dirigir aos estudantes perguntas conducentes a pôr-lhes successivamente em acção os differentes sentidos).

E.—É frio. (Escreve-se esta resposta no quadro por baixo da outra qualidade).

P.—Tornae a pegar no vidro, e comparae-o com este fragmento de esponja, com que limpâmos o quadro, e dizei-me o que notastes no vidro. (O intento do professor ao fazer esta pergunta, deve ser conseguir que os estudantes observem a «lisura», contrapondo esta propriedade á sua opposta, a «aspereza» de outra substancia; meio de demonstração que muitas vezes se poderá empregar).

E.—É lizo; é duro.

p.—Ha na aula outro objecto de vidro?

E.—Ha sim senhor; os vidros das vidraças.

P.—Olhae pelas vidraças, e dizei-me o que vêdes.

E.—Vemos o jardim.

P. (Fechando as portas da janella)—Olhae agora e dizei-me o que vêdes.

[95] E.—Agora não podemos vêr nada.

P.—Porque é que não vêdes nada?

E.—Porque atravez das portas não se póde vêr nada.

P.—Que differença notaes entre as portas e o vidro?

E.—Notâmos que atravez das portas nada podemos vêr, e que atravez do vidro vêmos o jardim.

P.—Podeis dizer-me alguma palavra, que indique essa qualidade, que tem o vidro?

E.—Não, senhor.

P.—Eu vol-a digo. Tomae sentido, para que vos não esqueça. É transparente. D'aqui por diante que idéa fareis d'um corpo, se vos disserem que é transparente?

E.—Que se pode vêr atravez d'elle.

P.—Respondestes muito bem. Lembraes-vos de alguma cousa que seja transparente?

E.—A agua.

P.—Que aconteceria se eu deixasse cair no chão este pedaço de vidro?

E.—Quebrar-se-ia.

P.—E se da rua atirassem pedras á janella?

E.—Quebrar-se-iam os vidros.

P.—Sabeis como se chamam os corpos, que tem esta qualidade, ou propriedade de se partirem, quando caem n'um corpo duro, ou quando se lhes bate?

E.—Não, senhor.

[96] P.—Chamam-se quebradiços, ou frageis,—Dizei-me, se deixassemos cair a porta da janella ou se contra ella atirassemos uma pedra, que succederia?

E.—Ficaria inteira.

P.—E se eu lhe batesse muito de rijo com outro corpo durissimo?

E.—Quebrar-se-ia.

P.—A madeira é quebradiça, ou fragil?

E.—Não, senhor.

P.—Deveremos chamar frageis a todas as substancias, que podermos quebrar?

E.—-Não, senhor; frageis diremos só aquellas, que se quebrarem com facilidade.

P.—Para que serve o vidro? que prestimo tem?

E.—Serve para as janellas.

P.—Que vantagem ha em pôr vidraça nas janellas?

E.—Ter as casas abrigadas do vento, da chuva, da poeira, e das moscas.

P.—Parece-me que, fechando-se as portas das janellas, não entrariam pelas casas dentro, nem moscas, nem poeira, nem chuva, nem vento.

E.—Mas cerradas as portas das janellas, ficariam as casas ás escuras, e não poderiamos vêr para fóra.

P.—Muito bem. Dizei-me porque razão não tira o vidro a claridade ás casas, nem obsta a que se vejam os objectos que estão fóra?

E.—Porque é transparente.

[97] P.—Não ha outros objectos de vidro?

E.—Ha cópos, garrafas, castiçaes, espelhos, tinteiros, etc.

É provavel, diz o professor Mayo, que na primeira lição não occorram aos meninos outras qualidades; mas estas sós, escriptas no quadro preto, constituirão um bom exercicio de soletração. Devem-se depois apagar; e se os estudantes já souberem escrever, poderão exercitar a memoria e repetir a lição, escrevendo-as de novo nas ardosias.



QUINTA LIÇÃO

CAOUTCHOUC—GOMMA ELASTICA—BORRACHA[12]



Escolheu o professor Mayo esta substancia para objecto da segunda lição, para que os meninos observem as qualidades, ou propriedades, que os physicos denominam opacidade, elasticidade, e inflammabilidade.

[98] P.[13]—Que é isto? (Mostrando um bocado de caoutchouc).

E.—É um bocado de borracha.

P.—Parece-se com o vidro?

E.—Em nada.

P.—Ponde esse pedacinho de borracha diante dos olhos e olhae para mim... Vêdes-me?

E.—Não, senhor.

P.—Se nas janellas, em vez de vidros, estivessem laminas de borracha, que aconteceria?

E.—Ficariam as casas ás escuras, e não poderiamos vêr para fóra.

P.—Sabeis como se chama a qualidade, que tem a borracha de não deixar vêr atravez de si, como o vidro?

E.—Não, senhor.

P.—Chama-se o-pa-ci-da-de. Repetí commigo esta palavra.

E.—O-pa-ci-da-de.

P.—Vou escrevel-a; olhae attentamente. (O professor escreve no quadro preto: Propriedades ou qualidades da borrachaO-pa-ci-da-de). Menino F., como chamareis aos corpos, que tem opacidade?

E.—Opacos.

P.—Ponde diante dos olhos a lousa, que ahi tendes, e olhae para mim. Vêdes-me?

E.—Não, senhor.

[99] P.—Porque me não vêdes, quando entre mim e vós está um bocado de lousa?

E.—Porque a lousa é opaca.

P.—Menino G., dizei-me se está alguem ali n'aquelle quarto.

E.—Eu vou vêr. (Levantando-se).

P.—Não vos levanteis; olhae d'ahi, do vosso logar.

E.—D'aqui não posso vêr.

P.—Porque não podeis vêr d'ahi o que se passa n'aquelle quarto?

E.—Porque se mette de permeio a parede.

P.—E se a parede fosse de vidro, poderieis ver para dentro d'aquella casa?

E.—Veria de certo, porque o vidro é transparente; mas a parede não é.

P.—Como diremos que é a parede, attendendo a que nos tira a vista das cousas, que estão para além d'ella?

E.—Diremos que é opaca.

P.—A borracha póde facilmente cortar-se com a thesoura. Vou cortar umas tiras, para os meninos fazerem uma brincadeira. Eil-as: Tomem estas tirinhas de borracha, segurem-n'as pelas extremidades e puxem-n'as, como quem quizesse esticar uma linha... Basta, basta; agora larguem-n'as de um lado... Que vistes?

E.—A borracha deu de si, estendeu, estendeu; e, logo que a largámos, voltou ao primitivo comprimento.

[100] P.—Tomem agora este bocado de vidro, e puxem-n'o bem.

E.—Não dá de si; não estende.

P.—Temos, pois, que a borracha, sendo puxada, estende, e logo que a soltam volta á primeira; e que o vidro, por mais que o puxem, não dá de si. Porque será isso?

E.—Provavelmente é por que a borracha tem alguma qualidade, que nós ignorâmos.

P.—Como é que a ignoram, se acabam de a observar?! O que os meninos ignoram é o nome que essa propriedade tem.

E.—Podeis-nos dizer como se chama?

P.—Chama-se e-las-ti-ci-da-de. Repeti commigo este nome:

E.—E-las-ti-ci-da-de.

P.—Reparae; vou escrevel-o no quadro preto, por baixo do nome da outra qualidade da borracha, por baixo da palavra... (Tapando com a mão a palavra no quadro).

E.—Opacidade.

P.—Muito bem; não se esqueceram.

(Escreve) Aqui está: Elasticidade. Tomae outra vez as tirinhas de borracha; e em vez de puxal-as, torcei-as entre os dedos, que se chamam pollegar (Mostra o dedo pollegar) e est'outro (Mostra o indicador), que se chama indicador... Agora largae-as. Que observaes?

E.—Destorcem-se por si.

P.—Menino A... por que é que se destorcem por si essas tirinhas de borracha?

[101] E.—Provavelmente, pela mesma qualidade, pela qual ainda agora estenderam e encolheram, ficando do comprimento, que tinham, antes de as estarmos a puxar.

P.—Assim é. Dizei-me agora o que é isto? (Mostrando uma péla)

E.—Isso é uma péla de brincar.

P.—Porque será que todos os meninos gostam de jogar a péla?

E.—É porque as pélas saltam muito, e nós temos de correr atraz d'ellas, caio aqui, acolá me levanto.

P.—Sabeis de que são feitas as pélas?

E.—São feitas de borracha[14].

P.—Porque não fazem as pélas de barro, ou de folha de Flandres, ou de pau, ou de cortiça?

E.—Porque se fossem feitas d'essas materias não saltariam.

P.—Que ha, pois, nas pélas de borracha, que as faz andar aos pulos?

E.—Não sabemos.

P.—E se eu lhes disser, que sabem? Pensem, [102] meditem. Atiro esta péla ao chão, ella bate no sobrado, achata-se, immediatamente toma a primitiva fórma, a fórma de bola, ou de esphera, como dizem os sabios, e eil-a a pular.

E.—Já sabemos porque as pélas de borracha saltam, e as outras não. É por causa da elasticidade.

P.—Acertastes. N'aquelle retomar a fórma de esphera ou bola immediatamente depois de se ter achatado ao bater no chão, é que está a elasticidade. Outra pergunta ácerca d'esta qualidade. Dizei-me, se vos occorre, o nome com que podemos designar os corpos, que tem elasticidade.

E.—Podem chamar-se elasticos.

P.—Assim é. Reparae agora no que vou mostrar-vos. (O professor acende uma véla). Temos aqui um rolosinho de ferro (Mostra-o), um rolosinho de barro (Mostra-o), este pedaço de pederneira (Mostra-o), e um fragmento de borracha. Pego no rolo de ferro pelo cabo de madeira, para me não queimar, chego-o à luz, como vedes, mas elle fica no mesmo estado. Pego no rolo de barro, que não tem cabo de madeira, por que não aquece tão depressa como o ferro, chego-o á luz e nada de novo; com a pederneira acontece o mesmo. Ide agora ver o que succede ao approximar da luz um fragmento de borracha. Tomae sentido, porque me haveis de dizer o que virdes. Por cautela, em vez de tomar a borracha com os dedos, pego-lhe com a thesoura. Attenção. (O professor chega a borracha [103] á luz, e apenas ella se inflammar, affasta-a da véla, e a colloca por cima de um vaso, que tenha agua, evitando que lhe caia derretida nas mãos). Que vistes?

E.—Vimos a borracha incendiar-se e arder com chamma mui intensa e clara.

P.—Só isso observastes?

E.—E derreter-se.

P.—Nada mais?

E.—Mais nada.

P.—Não prestastes bastante attenção. Vou repetir a experiencia. (Repete-a). Dizei-me se vistes mais alguma cousa?

E.—A borracha derretida cair em pingos sobre a agua, que está n'esse vaso.

P.—Exactamente. Esta qualidade da borracha é mui differente das outras duas: elasticidade e opacidade.

E.—Certamente.

P.—Sabeis como se chama?

E.—Não sabemos. Fazei mercê de nol-o dizer.

P.—Chama-se in-flam-ma-bi-li-da-de, ou propriedade de arder com chamma. Bom será que repitaes commigo o nome d'esta qualidade, ou propriedade da borracha, para que vos não esqueça.

E.—In-flam-ma-bi-li-da-de.

P.—Vou escrever este nome, que nada tem de pequeno, sob o das outras qualidades. Qual de vós é capaz de me dizer como chamaremos aos corpos, que chegados a uma luz, arderem com chamma?

[104] E.—Sou eu.

P.—Dizei pois.

E.—Os corpos, que ardem com chamma, denominam-se inflammaveis.

P.—O ferro, o barro, a pederneira, são inflammaveis?

E.—Não, senhor; mas a borracha é, e muito.

P.—Podeis dizer-me a côr da borracha?

E.—Negra.

P.—Vou escrever o nome d'essa qualidade no quadro preto (Escreve). Dizei-me, meus meninos, se vos lembra alguma cousa, bastante vulgar, á qual a borracha se assemelhe não só na côr, mas principalmente na grossura, na consistencia, na impressão que nos faz, quando a apertâmos e revolvemos entre os dedos.

E.—Assemelha-se ao couro.

P.—Muito bem. O que provavelmente não sabeis é como se nomeiam as substancias analogas ao couro.

E.—Não sabemos.

P.—Dizem se co-ri-a-ce-as. Repetí pausadamente esta palavra.

E.—Co-ri-a-ce-as.

P.—Menino B...; vejo que estaes passando as cabeças dos dedos por cima d'esse bocado de borracha, e esse acto tão simples accordou-me o desejo de vos fazer uma pergunta. Quando passâmos a mão, ou sómente as cabeças dos dedos por cima de diversos corpos, sentimos a mesma impressão?

[105] E.—Não, senhor; umas vezes é agradavel a impressão, que sentimos; outras vezes, desagradavel.

P.—Podereis dar-me exemplo de uma e outra?

E.—Correndo a mão por cima de um panno de lã grosseiro, ou por uma taboa, que não esteja aplanada, sinto impressão desagradavel; correndo-a por sobre uma folha de papel de peso, ou por um vidro bem polido, tenho uma impressão agradavel.

P.—Sabeis que nome se dá aos corpos, quando a sua superficie é como a do panno de lã grosseiro, e da taboa não aplanada?

E.—Diz-se que são asperos.

P.—E quando a superficie dos corpos é como a do papel fino, ou de peso, e a do vidro?

E.—Diz-se que são lisos, ou macios.

P.—A borracha é aspera, ou macia?

E.—É macia.

P.—Ficâmos pois, sabendo, que a borracha é opaca, elastica, inflammavel, negra, coriacea, e macia. Mais uma pergunta, e dâmos por terminada a nossa palestra.

Tem a borracha algum prestimo?

E.—Serve para apagar os traços, que o lapis deixou no papel, para fazer pélas e outros objectos.



[106]

SEXTA LIÇÃO

COURO


Nesta lição pretende o professor Mayo dar aos meninos idéa das seguintes propriedades, ainda por elles não estudadas: flexibilidade, cheiro, impermeabilidade á agua; e recordar-lhes algumas, já estudadas a proposito da borracha.

P.—Tomae, meus meninos, este corpo (Dando-lhes ás mãos um bocado de couro), examinae-o, e dizei-me se sabeis o que é?[15]

E.—É um pedaço de couro.

P.—Recordae-vos do que dissemos hontem a respeito da borracha, e dizei-me se o couro tem com ella alguma parecença.

E.—Tem, sim, senhor; e bastante.

P.—Muito prazer me darieis se fizesseis favor[16] de me dizer porque se parecem esses dois corpos, que em realidade são mui differentes.

[107] E.—Dissemos que se parecem, porque ambos são opacos, coriaceos e macios.

P.—E não vos enganastes; mas o couro tem outras qualidades, que podereis descobrir, se o observardes com attenção.

E.—(Hesitam, e ficam-se a olhar para o professor).

P.—Se os olhos me não illudem, todos vós tendes nariz; ora, pois, servi-vos d'elle, consultae-o.

E.—(Cheirando o couro). Tem cheiro.

P.—Assim é. Menino C..., dizei-me se todos os corpos tem cheiro?

E.—Não, senhor; o vidro, e a louça, não tem cheiro.

P.—Lembra-vos alguma substancia, que tenha cheiro?

E.—Lembram-nos muitas: o chá, o café, a manteiga, o vinagre.

P.—Quando uma substancia exhala cheiro proprio, como diremos que é?

E.—Cheirosa.

P.—Cheirosas dizemos as que tem cheiro proprio ou alheio. Por exemplo: se deitarmos no lenço de assoar algum arôma, tal como agua de Colonia, ou almiscar, ficará o lenço cheiroso; não obstante não ter cheiro seu, proprio. Se porém uma substancia é dotada de cheiro, bom ou mau, como o chá ou o petroleo, melhor lhe chamaremos: odorifera.

E.—Pelo que dizeis, o couro é odorifero.

[108] P.—De certo. Digam todos em côro esse nome.

E.—O-do-ri-fe-ro.

P.—Continuemos a examinar o couro. Além, está o menino F... a dobrar aquelle pedaço, provavelmente para vêr se o póde partir em dois. Vejamos o que elle nos diz da sua experiencia.

E.—Dobra-se, mas não se parte.

P.—E acontece o mesmo a todos os corpos?

E.—Não, senhor; ha bem pouco tempo parti eu uma regoa de madeira, por querer dobral-a.

P.—Qual será a palavra com que possâmos representar a qualidade, que tem o couro, de se dobrar sem se partir?

E.—(Silencio.)

P.—Pensae no caso, e lembrae-vos de que ha palavras parecidas umas com as outras, ou parentas. Por exemplo: bondade e bom; maldade e mau; aquentar e quente; rasgar e rasgado.

E.—Já sabemos, como deveremos chamar aos corpos, que se dobram facilmente, sem se quebrarem ou partirem.

P.—Que esperaes, para nos dar esse alegrão.

E.—Chamar-lhes-hemos dobradiços.

P.—-Deram no vinte; mas eu sei outro nome, que quer dizer o mesmo, mas que é mais afidalgado, e por isso menos vulgar. Vou escrevel-o no quadro, e soletral-o-hão os que sabem ler. (Escreve no quadro preto, na columna onde estão indicadas as outras qualidades).

[109] E.—(Em alta voz) Fle-xi-vel.

P.—Qual dos meninos é capaz de me dizer o nome da qualidade, ou propriedade em virtude da qual são flexiveis alguns corpos?

E.—Deve chamar-se flexibilidade.

P.—Muito bem respondeu o menino G... Não se esqueçam os outros do que lhe ouviram, e fiquem sabendo que, quando qualquer corpo se dobra, como o couro, e como elle se não quebra ou rasga, é porque tem flexibilidade. Se não temesse cançal-os, ainda lhes havia de fazer mais perguntas a respeito d'este corpo, que pelos serviços, que nos presta, bem merece, que nos entretenhâmos com elle.[17]

E.—Podeis continuar, senhor professor, que não estâmos cançados.

P.—Já que assim o quereis, façâmos uma experiencia. Tomem quatro meninos este lenço pelas quatro pontas e estendam-n'o, mas não muito. Outro menino deite-lhe em cima uma pouca d'agua. (Os meninos executam o que o professor lhes manda). Que observaes?

E.—O lenço molha-se.

P.—E que mais acontece?

E.—A agua atravessa o lenço e cae no sobrado.

P.—Ponde agora este bocado de papel mata-borrão [110] sobre o lenço, deitae-lhe por cima mais agua, e vêde o que succede.

E.—Molha-se tambem o papel e deixa passar a agua.

P.—Espremei o lenço, e dizei-me o que observaes.

E. (Espremendo o lenço)—Escorre a agua, que o lenço tinha em si, e este fica menos molhado.

P.—Fazei com este bocado de couro o que fizestes com o lenço; isto é, estendei-o horisontalmente, e deitae-lhe agua por cima.

E.—A agua não pode atravessar o couro; não cae no chão.

P.—Entornae a agua, e vêde se o couro ficou ensopado.

E.—Não ficou, não, senhor.

P.—Sabeis porque assim acontece?

E.—Não sabemos.

P.—Não se ensopa na agua, porque essa é uma das suas qualidades, ou propriedades. De um corpo, que a agua não atravessa, diremos que é impermeavel á agua.

E.—Fazeis mercê de repetir esse nome, que não percebemos bem.

P.—Vou escrevel-o no quadro preto, para que o leiam, e repetil-o-hemos depois com muito vagar. (Escreve).

E.—-Im-per-me-a-vel.

P.—Relanceae os olhos pelos objectos, que estão n'esta aula, e dizei-me se haverá entre elles algum, que seja impermeavel á agua.

[111] E.—O vidro.

P.—Porque dizeis que é impermeavel á agua o vidro?

E.—Porque a agua não o atravessa.

P.—Podereis convencer-me com algum exemplo de que a agua não atravessa o vidro?

E.—Bastará olhar para esse cópo, que está cheio de agua, e que não a deixa sair atravez das suas paredes.

P.—Gostei muito da vossa resposta, que revela muito siso, e me prova que vos ides acostumando a comparar. E porque sois espertos e amigos de saber, vos perguntarei mais, se o barro de que é feita aquella bilha, que alem tenho, para me arrefecer a agua, tambem é impermeavel?

E.—Não sabemos.

P.—Se a examinarem attentamente, sabel-o-hão logo. Ora ide buscal-a para aqui.

E.—Esta bilha não é, como o couro e vidro, impermeavel.

P.—Dizei antes, o barro d'esta bilha, ou o barro, de que esta bilha é feita, não é impermeavel. Reparae, que uma cousa é o objecto, o movel, o corpo, que vemos, e outra cousa a materia, de que o objecto, o movel, ou o corpo é formado. Que é isto? (O professor mostra uma bola de cêra).

E.—É uma bola.

P.—Bola ou esphera; mas de que?

E.—De cêra.

[112] P.—(Transformando a bola de cêra em um cilindro)—E isto, que é?

E.—Um rolo.

P.—Certamente; é um rolo ou cilindro; mas de que?

P.—De cêra.

P.—(Dando â cêra a forma cubica)—O rolo foi-se; isto, que é?

E.—Um dado de jogar.

P.—Vistes, que com a mesma materia, a cêra, formei tres corpos: uma bola ou sphera; um rolo ou cilindro; e um dado de jogar ou cubo, os quaes eu poderia ter feito de tres materias differentes, por exemplo: de cêra, de barro e de madeira. Acostumae-vos pois, desde agora, a distinguir nos corpos a materia de que são feitos, da maneira porque ella está limitada, ou, o que vem a ser o mesmo, da sua configuração. Mas, tornando à permeabilidade do barro d'esta bilha, desejo que me esclareçaes, dizendo-me o fundamento, que tendes, para asseverar, que é permeavel.

E.—Dissemos que não era impermeavel, porque, estando vazia, se conserva secca, e pouco depois de se lhe deitar agua humedece por fóra, provavelmente, porque a agua passa atravez de suas paredes.

P.—Assim é. Tende paciencia, meus meninos, de escutar mais uma pergunta com a qual porei termo á nossa palestra. Quizera me dissesseis se o couro serve para alguma cousa.

E.—Serve para capas de livros; para forrar [113] bahus e malas; para fazer botas, sapatos, corrêas, luvas, sellins, e arreios para cavallos.

P.—Bravo! Quem respondeu com tanto acerto, tem direito a ir brincar.



SETIMA LIÇÃO

UM LIVRO



Examinando miudamente um livro, ficarão os estudantes conhecendo as differentes partes de que elle se compõe, seus nomes e usos; e adquirirão as primeiras e elementarissimas noções ácerca do papel, da typographia, e dos algarismos romanos e arabes.





P.—Meninos, como se chama isto? (O professor mostra aos estudantes um livro encadernado.)

E.—Chama-se livro.

P.—Todos vós tendes um livro?

E.—Temos, sim, senhor.

P.—Pegae, pois, nos vossos livros, e preparae-vos para uma palestra, que vos ha de ser muito agradavel.

E.—Vamos ler?

P.—Não, senhores; vamos conversar a respeito do livro, como conversámos ácerca do vidro, da borracha e do couro.

[114] E.—Quereis que escrevâmos a palavra livro?

P.—Vá escrevel-a no quadro preto o menino H.

E.—(Escreve), Li-vro.

P.—Talvez não tenhaes notado, que assim como ha grupos de pessoas aparentadas, que constituem familias, e que mais ou menos se parecem umas com as outras; assim ha grupos de palavras tão similhantes, que se não póde desconhecer, que são muito chegadas entre si, e como que parentas.

E.—Ainda não tinhamos reparado em tal.

P.—Prestae attenção ao que eu vou escrever no quadro preto (O professor escreve umas por baixo das outras as palavras do exemplo, separando com o hyphen o radical de cada uma) Pomb-o, pomb-a, pomb-inho, pomb-inha, pomb-al, pomb-alinho.

Todas estas palavras formam uma familia[18].

Cas-a, cas-inha, cas-ão, cas-arão, cas-eiro, ca-sal, cas-alinho, cas-aleiro, cas-aría, cas-ebre (Todos estes nomes sejam escriptos uns por baixo dos outros, ao lado dos nomes do primeiro exemplo, e mui claramente pronunciados á proporção que se forem escrevendo). Aqui tendes outra familia.

Carr-o, carr-inho, carr-ete, carr-eta, carr-etilha, carr-ocim, carr-uagem, carr-oça, carr-oçada, carr-etão, carr-etada, carr-eteiro, carr-eto, carr-iagem, [115] carr-icoche, carr-oceiro, carr-oçar, carr-il, carr-omato. Outra familia e não pequena.

Se bem attenderdes, percebereis, que as palavras do primeiro grupo começam todas pelas lettras pomb; as do segundo pelas lettras cas; e as do terceiro pelas lettras carr.

As primeiras—pomb—representam a idéa—pombo; as segundas—cas—representam a idéa—casa; as terceiras—carr—a idéa—carro.

Agora que estaes iniciados n'este segredo, podereis dizer-me se a palavra—livro—tem algumas parentas?

E.—Tem uma parenta.

P.—Fazei favor de me dizer qual é.

E.—A palavra livrinho.

P.—Só essa?

E.—Tem outra parenta, que é livrete.

P.—Procurae bem, que achareis mais.

E.—Livraria.

P.—Não sabeis o nome, que se dá, por desprezo, a um livro pequeno e mau?

E.—Chama-se-lhe livreco.

P.—Como denominaes os homens, que negoceiam em livros?

E.—Livreiros.

P.—Fazei favor de me repetir os nomes de que se compõe a familia, cujo pae é a palavra livro.

E.—Livro, livrinho, livrete, livraria, livreco, livreiro.

P.—Muito bem. Agora se vos não custar muito, [116] dizei-me qual é a parte, que em todas essas seis palavras sôa, quando as pronunciâmos, e se vê, quando as escrevemos, constante e inalteravel.

E.—É o principio. É livr.

P.—Menino B, escrevei essas lettras no quadro preto.

E.—Livr.

P.—Olhando para aquellas lettras, que vos lembra?

E.—Lembra-me um livro.

P.—Fique-vos pois de memoria, que ha muitas palavras, que se podem dividir em duas partes; e que a primeira d'ellas, que figura em todos os membros da familia, lembra a idéa da cousa, claramente representada no termo, de que a familia toda procede.

Que figura tem este livro? (O professor mostra um livro.)

E.—É quadrado.

P.—Quadrado não é elle; é quadrilatero.

Repeti, partida em syllabas, esta palavra.

E.—Qua-dri-la-te-ro.

P.—Agora de uma só vez.

E.—Quadrilatero.

P.—Sabeis o que quer dizer a palavra quadrilatero?

E.—Não, senhor.

P—-Quer dizer: Figura de quatro lados, ou superficie fechada por quatro linhas.

Reparae para a figura que vou desenhar no quadro [117] preto. (O professor traça um parallelogrammo, retangulo, um quadrado e um losango) Todas estas figuras são quadrilateros; mas apenas esta (Aponta o quadrado) se póde chamar quadrado[19]. Tenho aqui sobre a mesa uns poucos de pedaços de papel, vinde cá, e escolhei um que seja quadrado.

E.—Eil-o.

P.—Muito bem. Agora desenhe o menino A. no quadro preto um quadrado.

E.—(Desenhando). Aqui está desenhado.

P.—Como chamareis a esses riscos, que formam o quadrado?

E.—Linhas.

P.—Sabeis que outro nome se dá ás linhas, quando são direitas como essas, que ahi desenhastes?

E.—Não, senhor.

P.—Dá-se-lhes o nome de linhas rectas. Todos esses quadrilateros são formados de linhas rectas.

Olhae agora para os vossos livros, e dizei-me como se chama a sua parte externa, a parte de fóra.

E.—Chama-se capa.

P.—Por que lhe dariam esse nome?

E.—Talvez pela analogia, que tem com a capa ou capote, que usam homens e mulheres.

[118] P.—Mas a capa dos livros não tem góla, nem cabeção, nem roda, como é uso terem os nossos capotes.

E.—Certo é que nada d'isso tem; mas reveste o livro, e o resguarda, como o capote resguarda o fato; que lhe fica por baixo.

P.—Respondestes optimamente. Dizei-me se as capas dos livros tem todas a mesma consistencia.

E.—Não, senhor; umas são duras e grossas; outras, delgadinhas e molles.

P.—Assim é. De que materia fazem as capas dos livros, quando duras e grossas?

E.—De papelão.

P.—É verdade; mas noto, que sendo o papelão aspero e feio, as capas dos livros são macias e bonitas. Sabereis explicar-me a razão d'isto?

E.—É porque revestem o papelão de papel de côres, de panno, ou de couro pintado.

P.—Bravo! muito bem. Como se denominam os artistas, que fazem as capas dos livros e lh'as põem?

E.—Encadernadores.

P.—Como se diz que está um livro, a que o encadernador poz uma capa consistente, como a d'estes, que temos nas mãos?

E.—Diz-se que está encadernado.

P—E quando um livro está apenas coberto com uma capa de papel, como este, que vos mostro?

E.—Diz-se que está brochado.

[119] P.—Se um artista se empregar exclusivamente em brochar livros, como lhe chamaremos?

E.—Não sei.

P.—Chamar-lhe-hemos brochador.

E.—Os encadernadores não são tambem livreiros?

P.—Livreiro é a pessoa, que negoceia em livros, que os compra e vende. Ha, porém, individuos, que exercem ambas as industrias, isto é, que compram e vendem lívros, e que os encadernam.

Continuemos a examinar o nosso livro, e em primeiro logar fazei obsequio de me indicar o nome d'esta parte (O professor indica a lombada).

E.—Não sei como se chama.

P.—Chama-se lombo, ou lombada.

E.—Porque dariam a esta parte tão estrambotica denominação?

P.—Provavelmente em consequencia de ter certa analogia de fórma e posição com as costas ou lombo do homem.

E.—Tenho notado, que é a lombada a parte, que os encadernadores mais esmeradamente aformoseam. Porque será?

P.—Admira-me não vos occorrer a razão d'isso! Porque será, menino B.?

E.—Eu não sei.

P.—Dizei antes: Não sei. É preciso não abusar do eu e do tu. Muito mais elegante, conciso e energico é dizer: Não sei, não quero, não posso, do que: Eu não sei, eu não quero, eu não posso.

[120] Menino C, porque motivo adornam os encadernadores as lombadas dos livros mais do que o resto da capa?

E.—Não sei.

P.—Respondei, menino M.

E.—Enfeitam mais as lombadas, se me não engano, por ser a parte, que mais se vê, quando os livros estão na estante.

P.—Assim é. Examinae o lombo do vosso livro e dizei-me o que notaes?

E.—Traços e adornos dourados.

P.—Mais nada?

E.—Lettras, tambem douradas.

P.—Que dizem essas lettras?

E.—«Motta»—«Quadros de historia».

P.—Aos dizeres, que os livros tem na parte superior do lombo, que nome se dá?

E.—Titulo.

P.—A palavra «Motta», que está ahi a dizer?

E.—O nome do auctor.

P.—E as outras?

E.—O assumpto.

P.—Vede a lombada d'est'outro livro. Tem tão poucos dizeres, como a d'esse, por onde habitualmente ledes?

E.—Não, senhor; tem mais.

P.—Que mais tem?

E.—Uma lettra de conta.

P.—De que palavra nos deveremos servir, para designar o que chamaes lettra de conta?

[121] E.—Não sei.

P.—O menino, que souber responder á minha pergunta, responda.

E.—Não se deve dizer lettras de conta, mas algarismos.

P.—Muito bem. Se temos palavra apropriada para indicar os signaes representativos dos numeros, evitemos um rodeio.

Que algarismo tem esse livro na lombada?

E.—O algarismo 2.

P.—Para que pozeram ahi o algarismo 2?

E.—Para indicar que este livro é o segundo volume da obra.

P.—Exactamente.

E.—Todas as obras constam de dois volumes?[20]

P.—Não se riam da pergunta do menino S.; ninguem nasce ensinado, e quem não pergunta fica ignorando muitas cousas. Agora conversemos nós, menino S. Ha obras completas em um volume, e d'essas tendes exemplo nos «Quadros de historia portugueza»; tambem as ha em dois, tres, quatro e até em dez, vinte e mais volumes. Quando uma obra principia e acaba no mesmo volume não é necessario pôr-lhe nem externa nem internamente nenhum algarismo; se principia n'um volume e continúa e acaba n'outro, marca-se externamente o primeiro com o algarismo 1 e o segundo com [122] o algarismo 2; se a obra se estende por tres ou quatro volumes, põe-se na lombada do primeiro o algarismo 1, na do segundo o algarismo 2, na do terceiro 3, na do quarto 4, etc.

Menino H., para que serve o titulo do livro escripto na lombada?

E.—Para facilmente darmos com elle sem ser necessario abril-o.

P.—Como se nomeiam estas partes da capa dos livros? (Pondo o dedo nos cantos.)

E.—Cantos da capa.

P.—Abri os vossos livros e dizei-me como se chamam essas laminas de papel, que a capa envolve e resguarda?

E.—Chamam-se folhas.

P.—Esse nome applica-se a muitas cousas: folhas de arvores, folhas de espadas, folhas de papel, folhas de serra, folhas de madeira, folhas das mangas do jaleco, etc.

Explicae-vos, pois, de modo, que todos fiquem sabendo a quaes folhas alludis.

E.—A nenhuma das que citastes. As folhas, que estamos vendo, são folhas do livro.

P.—Cada uma folha de livro tem duas faces; sabeis que nome se lhes costuma dar?

E.—É costume chamar-lhes paginas.

P.—A primeira e ultima folha dos livros, nas quaes nada ha escripto, e que ás vezes são de papel pintado, como se chamam?

E.—Não sei.

[123] P.—Qual de vós outros me póde responder?

(Silencio).

P.—Chamam-se guardas, porque estão ali, como que para defenderem as folhas impressas da acção da poeira, dos insectos e das impurezas dos ledores menos aceiados.

Ha tambem nos livros ante-rôsto e rôsto. Fazei mercê de m'os indicar.

E.—O ante-rosto deve de ser esta folha escripta só de um lado, e que diz apenas: «Quadros de historia portugueza» o rosto deve de ser a folha, que se segue immediatamente ao ante-rosto, tambem só de um lado escripta.

P.—Que significam essas duas palavras: ante-rôsto?

E.—Parece-me que querem dizer: folha, que antecede a do rôsto.

P.—Exactamente. Sabeis que outro nome se dá á folha do rôsto?

E.—Frontispicio.

P.—Desejava saber por que ao frontispicio chamam tambem, rôsto. Se algum de vós me poder esclarecer, far-me-ha muito obsequio, satisfazendo o meu desejo.

E.—Eu não sei; não sei; eu tambem não.

P.—Parece-me que não ha de ser necessario irmos a Coimbra, para explicar similhante bagatella.

E.—Bagatella!?

P.—Ides ver se o é, ou não. Como se chama esta parte do nosso corpo? (Apontando o rôsto).

[124] E.—Cara.

P.—Não tem outro nome?

E.—Semblante.

P.—Não tem outro nome?

E.—Face.

P.—Não tem ainda outro nome?

E.—Ah! Chama-se rosto.

P.—Que quiz dizer esse ah!?

E.—Já sabemos porque ao frontispicio dos livros se chama tambem rôsto.

P.—Se sabeis, dizei-m'o.

E.—Chamam-lhe rôsto, por que em a gente olhando para aquella folha, logo conhece o livro, como conhece uma pessoa, em lhe vendo a cara.

P.—Para conhecer um livro, isto é, para saber de que trata, parece-me que não é indispensavel examinar-lhe o rôsto; bastará ler o titulo, ou ante-rôsto.

E.—Não é exactamente o mesmo, para tomar conhecimento de um livro, ler o titulo ou o ante-rôsto, ou o rôsto, porque este indica muitas mais cousas, que aquelles.

P.—Dizei quaes são.

E.—O titulo da obra por extenso, o nome todo do auctor, a typographia, a terra onde foi impresso e até o anno.

P.—Bravo! bravo! sr. estudante, muito bem. As vossas respostas animam-me. Dizei-me se o papel, de que são feitos os livros, é uma substancia natural, isto é, que se encontre feita, como se encontra [125] a pedra, a agua, a madeira, o barro, a areia, ou se é um producto da arte, quero dizer, feito pelo homem.

E.—É producto da arte.

P.—Já alguem vos disse de que é fabricado o papel.

E.—Não, senhor.

P.—Quereis saber?

E.—Se queremos....

P.—Fabrica-se de trapos de linho, canamo, e algodão.

E.—De trapos?!

P.—Sim, de trapos.

E.—Eu pensava que os trapos não prestavam para nada!

P.—Qual é a cousa, que não tem algum prestimo? Os trapos, que vós despresaveis, e tinheis em conta de nada, são uma riqueza, e prestam grandissimo serviço á industria, ás artes, ás sciencias e á moral. São um instrumento indirecto do progresso da humanidade.

E.—Como se faz o papel?

P.—Não posso agora satisfazer a vossa louvavel curiosidade. É muito complexo o seu fabríco para que vol-o possa expor de modo, que d'elle fiqueis fazendo perfeita ideia; em vós tendo mais alguns conhecimentos eu vol-o indicarei por miudo.

E.—O papel é todo da mesma qualidade?

P.—Não é; e aqui tendes a prova (O professor mostra á escola papel de imprimir, papel de [126] escrever, de filtrar, de embrulho, de seda, pintado, etc. e vae indicando os nomes de cada um). São de differentes tamanhos estas folhas. A grandeza de cada uma indica-se pela palavra formato, a qual tambem se emprega para representar a grandeza dos livros e jornaes.

E.—Para que tem este livro na parte inferior da pagina do rôsto a palavra «Lisboa»?

P.—Já se disse que é para mostrar a terra em que foi impresso.

E.—Os livros são impressos?

P.—Não se riam os meninos, que sabem uma cousa, quando outro, que a ignora, se quer illustrar, e pede que lh'a ensinem.

Ha livros escriptos de mão, como este (Mostra um livro, ou caderno manuscripto) e muitos existem nas bibliothecas; dizem-se manuscriptos. Actualmente, porém, a maioria, a quasi totalidade dos livros são impressos isto é, são feitos com estas lettras de metal, a que chamâmos typos. Eil-os. (O professor toma um componedor, poderá ser dos que usam os compositores de bilhetes de visita e compôe algumas palavras). Vou compor uma linha, para que vejaes, como se compoem os livros.

E.—E isto (Apontando o componedor) como se chama?

P.—Com-po-ne-dor.

E.—Ha de ser necessario molhar essas lettrinhas em tinta; quereis que vamos buscar o tinteiro?

[127] P.—A tinta, de que se servem para imprimir, não é a de que usâmos para escrever. É feita com outras materias muito differentes, e chama-se tinta de impressão. Aqui tenho um bocadinho n'esta caixa. Com esta bala mólho os typos; ides vêr como as palavras ficam impressas no papel (O professor executa o que vae dizendo). Estou fazendo de typographo.

E.—Typographo? O que quer isso dizer?

P.—Typographo é o artista, que se occupa em juntar os typos uns aos outros, para formar as palavras, e estas entre si, para fazer as linhas, e as linhas para completar as paginas, e as paginas para concluir uma folha de impressão.

E.—Folha de impressão não é o mesmo que a folha de um livro?

P.—Folha de impressão é isto. (Mostra uma folha de impressão).

E.—Os livros são impressos como vós agora imprimistes essa linha?

P.—Não, meu menino; nas typographias ha apparelhos para imprimir, aos quaes chamamos prélos.

E.—Fallastes em typographias; o que é typographia?

P.—É a officina onde se compõem e imprimem livros, jornaes, e outros papeis. Tambem se chama imprensa?

E.—Estou vendo sr. professor, que não é só na lombada que os livros tem algarismos, tambem os tem no alto das paginas.

[128] P.—Resta saber para que elles ahi foram postos.

E.—Foram aqui postos para com facilidade se poder achar e indicar qualquer passagem do livro.

P.—Para concluirmos este intertenimento, far-lhes-hei mais uma pergunta. Como todas as cousas tem nome é provavel que tambem o tenham essas porções em branco, que cercam, em cada pagina, a parte central impressa; qual será elle?

E.—Estas porções das paginas chamam-se margens.

P.—Optimamente.





Dos poucos exemplos, que ahi ficam expostos, poderão inferir a utilidade e attractivos do ensino intuitivo as pessoas, que d'elle não tenham ainda conhecimento. Cerrando este livro, que escrevemos com sincero desejo de servir a educação e instrucção, devemos declarar, porque é de justiça que assim o façâmos, que na Escola normal do sexo masculino, em Marvilla, de que foi director e professor o intelligente e laborioso sr. Luiz Filippe Leite, com cuja amizade nos honrâmos, se ensinou muito e bem pelo methodo intuitivo, que em mãos tão habeis como as do sr. Leite e seu irmão o sr. Pedro Leite, de certo produziu optimos resultados, de que sentimos não poder dar aqui minuciosa noticia.



INDICE


Pag.
Carta do auctor ao Ex.mo Sr. Conselheiro José Silvestre Ribeiro 5
O Ensino intuitivo 9
Primeira lição 60
Segunda lição 72
Terceira lição 79
Quarta lição 92
Quinta lição 97
Sexta lição 106
Setima lição 113




Obras á venda na loja de livros de Ferreira, Lisboa & C.a, 132, rua do Ouro, 134, Lisboa


O PAE NOVO, commentario ou interpretação das dez Eclogas ou Bucolicas de Publio Virgilio Maro, 1 vol. br. 1$000
NATIVIDADE (J. A. C. da)—Fundamento de analyse grammatical e de estylo, e de composição de themas, 1 vol. br. 650
SYNOPSES e apontamentos grammaticaes para facilitar a analyse das orações aos alumnos de instrucção primaria e aos do 1.º anno de portuguez, 1 vol. cart. 200
TAVARES (H.)—Principios geraes de arithmetica, e systema metrico, 1 vol. br. 60
DIAS (J. A.) —Synopse das religiões e seitas etc., 1 vol. br. 500
» —Nova Grammatica franceza, 2.ª edição br. 300
» —Novissima Grammatica ingleza, 1 vol. br. 480
BALMES (D. Jayme)—Elementos de Logica, 1 vol. br. 300
METHODO ZABA para o estudo da Historia Universal, com mappa chronologico, chave e taboa de exercicio, 1 vol. br. 200
MARÇAL A. DE CARVALHO—Problemas de Algebra, 1 vol. br. 500
CHAGAS (M. P.)—Portuguezes illustres, 2.ª edição, 1 vol. br. 200
FRADESSO DA SILVEIRA (J. H.)—Estudos, 1 vol. br. 500
Neste volume agrupou o auctor, oito interessantes artigos em que se expõem as questões mais momentosas da estadistica; como instrucção primaria e professional, associações de soccorros, exposições, fazenda, etc. etc.
M. M.—Exercicios de cacographia portugueza, br. 100
MACEDO (J. Tavares de)—Elementos de Orthographia portugueza, br. 80
BAPTISTA (A. M.)—Algumas considerações sobre as diversas fórmas comparativas e superlativas da lingua portugueza, br. 80



Á VENDA
NA MESMA LIVRARIA

132—RUA AUREA—134



Telles (J. J. de Sousa)—Annuario portuguez scientifico, litterario e artistico—-1863, broch. 1$000
Simões (Dr. Augusto Filippe)—Erros e preconceitos da educação physica, 1 vol. charp.broch. 400
Noirlieu (Abbade Martinho)—Biblia da mocidade, historia do antigo e novo testamento. Approvada pelo conselho geral de instrucção publica, para uso das escolas, 1 vol. cart. 240
Barata (Antonio Francisco)—Estudos da lingua portugueza, 2.ª edição accrescentada e conforme ao programma official de portuguez, br. 350
Fradesso da Silveira—(J. H.) Compendio do novo systema legal de pesos e medidas, 4.ª edição, broch. 240
Guedes (J. R.)—Curso de physica elementar. Nova edição, 3 vol., com gravuras, broch. 2$400
Guedes (J. R.)—Curso de historia natural elementar, 1 vol., com gravuras, broch. 1$500
Lopes (J. J.)—Taboada methodica dos rudimentos de arithmetica, broch. 200
Rodrigues (J. Julio)—Mineralogia, 1. vol. broch. 200
Vidal (A. A. de Pina)—Curso de meteorologia, 1 vol. broch. 600
Viale (A. J.)—Novo epitome de historia de portugal, adoptado pelo conselho geral de instrucção publica, 1 vol. broch. 200




Lisboa—Typ. Universal—1873



Notas:

[1] Ácerca d'este assumpto, bem como de muitos outros pontos da linguagem portugueza consulte-se a Orthographia portugueza e missão dos livros elementares, correspondencia official relativa ao «Iris Classico» pelo sr. Conselheiro José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha. Edição do Rio de Janeiro. N'este livro, que é um verdadeiro thesouro de bôa doutrina, esplende a intelligencia e erudição de um dos escriptores nacionaes, que mais honram as nossas lettras. Pena é que poucos em Portugal conheçam obra de tanto merito.

[2] Temos visto muitas vezes nas escolas estarem as crianças a ler com os livros nos joelhos, o tronco recurvado e a bocca quasi perpendicular ao horisonte. Aquella postura prejudica a saude, difficulta a emissão da voz, cança em pouco tempo o ledor, e não o deixa vêr os acenos do mestre, tendentes a dirigil-o no andamento, pausas, intonações, etc.

[3] Braun Exercices par intuition, ou Questionaire a l'usage des ecoles gardiennas, etc. Bruxelles—1865.

C. Mayo—Lecciones sobre objetos destinados para niños de cinco a ocho años, traducidas del orijinal inglés. Madrid—1849.

Foi nosso primeiro intento trasladar para este livro ipsis verbis as primeiras lições dos dois afamados professores; por motivos, porém, que escusado é expor, resolvemos tomar d'ellas apenas os liniamentos, redigindo-as a nosso modo.

[4] Expressão popular e grosseira, que vale tanto como: Elle te castigará severamente.

[5] N'estes primeiros exercicios vão as respostas, que provavelmente os estudantinhos darão aos professores; nos outros, as respostas poder-se-hão deduzir das Exposições, que anteporemos a cada exercicio. Como estes livrinhos não são exclusivamente para os professores, os quaes de certo possuem sufficiente cabedal de conhecimentos, mas para mães, paes, e outros educadores menos preparados para o ensino, pareceu-nos de muita conveniencia subministrar-lhes os indispensaveis subsidios nas Exposições, as quaes dispensarão, até certo ponto o estudo nos livros dos assumptos dos exercicios.

[6] O dialogo aqui traçado para um, deverá ser ampliado e sustentado com todos os estudantes, que tiverem entrado ao mesmo tempo, havendo o maior disvelo em tornal-o quanto possivel deleitavel e variado.

[7] Parece á primeira vista mui pequeno o prestimo do quadro preto n'uma aula, e na realidade é muito util. Convem que todas as aulas de meninos e meninas o tenham; e que d'elle se sirvam amiudadas vezes professores e discipulos para os exercicios de soletração, orthographia, analyse, arithmetica, desenho, etc.

[8] Não se estranhe o emprego da palavra geringonça. As creancinhas são faceis de contentar; alegram-se e riem com o simples emprego de palavras menos triviaes, e proseguem mais contentes no estudo. Se ao explicar-lhes as regras elementares da syntaxe o professor lhes der o seguinte exemplo: O sol é brilhante, escrevem-n'o e analysam-n'o sem enthusiasmo; se o professor lhes disser: O gato é manhoso, riem, alegram-se e atiram-se á analyse da oração de muito boa vontade. Ainda que estas e outras particularidades do ensino infantil pareçam aos sabios puras insignificancias, não as desprese o mestre, que tiver a peito o progresso dos pequeninos.

[9] Dividimos a palavra «cavallete» sem attender á regra orthographica, que manda repartir as consoantes dobradas pelas duas syllabas, para não falsearmos a pronunciação; se assim não fizessemos, teriamos: Ca-val-le-te, que se não diz, nem poderia razoavelmente dizer-se.

[10] Desculpe-se-nos que insistamos em aconselhar aos mestres, que não sejam avaros de louvores, quando os estudantes os merecerem. É um grande incitamento o applauso para o que o recebe e para os que o presenceiam.

[11] Novamente declarâmos que estas lições não são traduzidas, mas quasi exclusivamente nossas.

[12] Todos estes nomes se dão á substancia, de que nas aulas se servem para apagar os traços, que o lapis deixa no papel. Aos meninos será conveniente indical-a pelo nome de borracha, porque é o mais commummente usado. Mais tarde se lhes dirá que nem este, nem o de gomma elastica se deveriam empregar. Como hoje se usa muito do caoutchouc vulcanisado, tenham os professores a cautela de apresentarem para a lição, o escuro, isto é, o que não está combinado com enxofre.

[13] Esta lição vem apenas apontada no livro do professor Mayo.

[14] Quasi todos os objectos, que eram feitos de caoutchouc simples, são agora fabricados com a mesma substancia vulcanisada, isto é combinada com certa quantidade de enxofre, e por tanto differente na côr, no cheiro, e em outras propriedades do caoutchouc extreme. Se algum menino reparar na differença e fizer pergunta a tal respeito, dir-lhe-ha o professor o bastante para esclarecel-o, attendendo ao que atraz recommendámos, que não se trate a fundo de cousas para entender as quaes as crianças não estejam preparadas.

[15] Esta lição vem apenas indicada no livro do professor Mayo.

[16] Recommendam Madame Marie Pape Carpentier e outros pedagogistas, que se tratem as criancinhas com toda a delicadeza, que em vez de se lhes ordenar que façam uma cousa, se lhes peça por favor que a executem, e que, se lhes agradeça com urbanidade o terem satisfeito os nossos pedidos. Este modo de proceder com os pequeninos tem tres grandes vantagens: desenvolve nos meninos o sentimento da propria dignidade, captiva a sua benevolencia, e acostuma-os a serem delicados.

[17] Não é para desprezar, no ensino das crianças, este innocente meio de lhes excitar a curiosidade, tenteando ao mesmo tempo o prazer, ou enfado, de que estejam tomadas.

[18] O fim d'este exemplo não é ensinar philologia ás criancinhas, mas il-as habituando a distinguir nas palavras as «radicaes», cujo valor mais tarde perceberão. O termo «familia» tome-se como synonimo de aggregado de palavras em que a idéa representada pela radical é a mesma.

[19] Não se define o quadrado, porque os estudantes não sabem ainda o que seja angulo, e menos o que seja angulo recto.

[20] A lettra E, inicial de estudante, não está n'estas lições indicando um só e sempre o mesmo estudante; mas o estudante, a que o professor julga conveniente dirigir-se.




Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 20 Jenuense ... Genuense*
#pág. 20 dizia ... relembrava a regra de Ovidio*
#pág. 31 cujos componente ... cujos componentes
#pág. 45 lahios ... labios
#pág. 51 impanho imprestar ... impanho, imprestar
#pág. 52 o que emende ... a que emende
#pág. 58 comportamente ... comportamento
#pág. 85 praticular ... particular
#pág. 112 cubica ... cubica)
#nota 14 ontras ... outras

* corrigido de acordo com notas/erratas fornecidas no livro.