The Project Gutenberg eBook of Memorias de José Garibaldi, volume 2 This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Memorias de José Garibaldi, volume 2 Author: Giuseppe Garibaldi Translator: Alexandre Dumas Release date: May 27, 2016 [eBook #52170] Most recently updated: October 23, 2024 Language: Portuguese Credits: Produced by Júlio Reis, Leonor Silva, readbueno and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS DE JOSÉ GARIBALDI, VOLUME 2 *** ------------------------------------------------------------------------ MEMORIAS DE GARIBALDI TRADUZIDAS DO MANUSCRIPTO ORIGINAL POR ALEXANDRE DUMAS TYPOGRAPHIA DE JOAQUIM GERMANO DE SOUSA NEVES—Rua do Caldeira, 17 [Ilustração: CAVOUR] MEMORIAS DE JOSÉ GARIBALDI TRADUZIDAS DO MANUSCRIPTO ORIGINAL POR ALEXANDRE DUMAS VOLUME II.—SEGUNDA EDIÇÃO LISBOA—1860 EDICTOR A. P. C. CHIADO, 83-85 I TUDO PERDIDO, SALVO A HONRA O verdadeiro motivo da expedição não era levar soccorros aos habitantes de Corrientes e rehabilital-os, mas sim de se desembaraçarem de mim. Como é que sendo tão insignificante tinha tantos inimigos? Eis um segredo que nunca pude profundar. Quando entrei o rio, o exercito oriental achava-se em S. José de Uruguay e o d'Oribe em Boyada, capital da provincia d'Entre-rios. Ambos se preparavam para a luta e o exercito de Corrientes pela sua parte dispunha-se a unir-se ao exercito oriental. Tinha a meu cuidado vigiar desde o Parana até Corrientes, isto é, uma distancia de seiscentas milhas entre as duas margens inimigas, e ainda mais, perseguido por uma esquadra, quatro vezes superior á minha. Durante esta passagem não podia causar medo senão ás ilhas ou costas desertas. Quando deixei Montevideo havia cem a apostar contra um que nunca mais lá voltaria. Logo á sahida de Montevideo sustentei um primeiro combate, contra a bateria de Martinho Garcia, ilha situada ao pé da confluencia dos dous grandes rios, Uruguay e Paraná, perto da qual é absolutamente necessario passar, visto que um só canal existe a alcance de tiro, para os navios de uma certa tonelagem. Tive alguns mortos e entre elles Pacarobba, valente official italiano; levou-lhe a cabeça uma balla de artilheria, e além disso tive oito ou dez feridos. A tres milhas da ilha de Martinho Garcia a _Constituição_, deu n'um baixo, e desgraçadamente isto aconteceu na baixa mar. Tivemos grande trabalho para a pôr a nado, mas pela coragem dos nossos marinheiros a pequena flotilha ainda se salvou n'esta occasião. Em quanto nos occupavamos a transportar para a goletta todos os objectos pesados, vimos que se aproximava de nós em bella ordem a esquadra inimiga. Estava em má situação. Para alliviar a _Constituição_, tinha mandado transportar toda a sua artilheria para a goletta _Procida_ aonde estava amontoada e por consequencia inutilisada para nós. Restava-nos o bergantim _Theresa_, de que o animoso commandante estava ao meu lado, com a maior parte da guarnição, ajudando-nos a trabalhar. No emtanto o inimigo crescia sobre nós, vistoso entre as acclamações da tropa da ilha, seguro da victoria e com sete navios de guerra. Apesar do eminente perigo que me ameaçava não desesperei. Não, pois Deus faz-me o favor de me conservar sempre grande sangue frio nas occasiões supremas; deixo pensar aos outros, sobretudo aos maritimos, qual seria a minha situação. Não se tratava só da vida, que eu renunciaria n'um tal momento, porém da honra. Quanto mais os homens que me tinham levado ali, pensavam que eu perderia a minha reputação, mais eu estava decidido a livral-a d'este perigo, ensanguentada, mas pura. Não se podia evitar o combate, porém era necessario recebel-o na melhor situação, por consequencia como os meus navios eram mais pequenos que os do inimigo, e por isso nadavam em menos agua, aproximei-os quanto pude da costa, que em perda total no rio me offerecia tambem um meio de salvação, desembarcando. Desembaracei o mais possivel o convez da goletta afim que algumas peças podessem servir, e dispostas as cousas d'esta maneira, esperei. A esquadra que me ia atacar, era commandada pelo almirante Brown. Sabia pois que tinha a tractar com um dos mais habeis marinheiros do mundo. O combate durou tres dias, sem que o inimigo se atrevesse a vir á abordagem. Na manhã do terceiro dia tinha ainda polvora, mas faltavam-me projectis. Mandei partir as correntes dos navios, reuni os pregos, os martellos e tudo quanto de cobre ou ferro podesse substituir as ballas e a metralha, e lancei-os ao inimigo, ajudando-nos isto a passar o dia. No fim do terceiro dia não possuindo um unico projectil, e tendo já perdido metade dos meus homens, lancei fogo aos tres navios em quanto que, debaixo do fogo inimigo, ganhavamos a terra, levando as nossas espingardas e alguma polvora. Os feridos que ainda davam alguma esperança foram tambem transportados. Em quanto aos outros já disse o que se fazia em eguaes circumstancias. Estavamos pois a cento e cincoenta ou duzentas milhas de Montevideo, e em terreno inimigo. A guarnição da ilha de Martim Garcia foi a primeira que nos tentou fazer mal, mas cheios de orgulho pelo nosso combate com o almirante Brown, foram recebidos de tal maneira que não nos tornaram a apparecer. Pozemo-nos a caminho atravez o deserto, vivendo de algumas provisões que tinhamos levado, e do que podiamos alcançar pelo caminho. Os orientaes acabavam de perder a batalha de Arroyo Grande. Reunimo-nos aos fugitivos, e depois de cinco ou seis dias de luctas, combates, e privações de que ninguem póde formar idéa, entrámos em Montevideo, levando intactos o que eu tinha julgado perderiamos. A honra!! Este combate e muitos outros que sustentei contra elle, deixaram de mim uma boa lembrança ao almirante Brown, que tendo abandonado o serviço de Rosas antes da guerra concluir, veiu a Montevideo e antes de procurar os seus parentes quiz abraçar-me primeiro. Correu á minha casa da Portona, e abraçou-me muitas vezes com tal extremo que parecia meu pae. Depois voltou-se para Annita e disse-lhe: —Senhora, combati muito tempo contra seu marido, sem obter victoria alguma. O meu maior prazer era derrotal-o e fazel-o meu prisioneiro, mas Garibaldi sempre conseguiu escapar-se. Se eu tivesse a felicidade de o aprisionar, ficaria conhecendo o apreço em que o tenho. Conto esta anedocta, porque faz mais honra ao almirante Brown do que a mim mesmo. II FORMAM-SE LEGIÕES Depois da victoria de Arroyo Grande, Oribe marchou sobre Montevideo, declarando que não fazia graça a pessoa alguma, nem mesmo aos estrangeiros. E para ir dando cumprimento á sua palavra tudo o que encontrava no caminho era fuzilado. Então como em Montevideo havia um grande numero de italianos, que ahi tinham vindo, uns por negocios e outros porque estavam proscriptos, fiz uma proclamação aos meus compatriotas convidando-os a tomar as armas, formando uma legião, para combatermos até á morte por aquelles que nos haviam dado a hospitalidade. Rivera durante este tempo reunia os restos do seu exercito. Do seu lado os francezes e hespanhoes formaram tambem duas legiões. Quatro mezes depois da sua formação a legião hespanhola composta na sua maioria de carlistas, passou-se para o inimigo, tornando-se o alvo dos nossos ataques. A legião italiana não recebia paga, tendo unicamente ração de pão, vinho, sal, azeite, etc., etc., devendo receber comtudo, finda a guerra, terrenos e bois os que escapassem e as viuvas e filhas dos fallecidos. A legião compunha-se primeiramente de quatrocentos a quinhentos homens elevando-se depois a oitocentos, por causa de muitos proscriptos que todos os navios conduziam. A legião foi primeiramente dividida em tres batalhões, um commandado por Danuzio, outro por Ramella, e o terceiro por Mancini. Oribe não ignorava todos estes preparativos de defeza, mas ligava-lhe pouca importancia. Marchou, como já disse sobre Montevideo, e acampou no Cerrito. Póde ser que no estado de desordem em que se achava a cidade, elle ahi podesse ter entrado immediatamente, mas julgando ter ali bastantes partidarios esperava uma demonstração da sua parte; mas esta demonstração nunca appareceu e Oribe deu tempo a que em Montevideo se organisasse a defeza. Ficou pois a uma hora de marcha de Montevideo com doze a quatorze mil homens. Montevideo podia apresentar nove mil homens, de que cinco mil eram negros, aos quaes se havia dado a liberdade, tornando-se excellentes soldados. Quando Oribe perdeu a esperança de entrar amigavelmente em Montevideo, fortificou-se no Cerrito e desde logo começaram as escaramuças. Do seu lado Montevideo fortificava-se o melhor que podia, sendo o nosso engenheiro o coronel Echevarrio. A organisação geral das tropas pertencia ao general Paz. Joaquim Soares era presidente, Pacheco y Obes ministro da guerra. Paz partiu de Montevideo para Corrientes e Entre-Rios a fim de revolucionar estas provincias. A primeira vez que sahiu das linhas, não sei se foi dos soldados ou dos officiaes, a legião italiana tomou tal medo que entrou para as fortificações sem haver disparado um tiro. Obriguei um dos tres commandantes a pedir a sua demissão, dirigi uma proclamação aos italianos, escrevendo pela segunda vez a Anzani, que estava no Uruguay, empregado n'uma casa de commercio, convidando-o a vir para a minha companhia. Este excellente amigo chegou no mez de julho. Com elle tudo ganhou força e vida. A legião que se achava horrivelmente administrada mereceu todos os seus cuidados. Durante este tempo tinha-se organisado, sabe Deus como, uma pequena flotilha, de que me confiaram o commando. Mancini tomou o meu logar na legião. A flotilha communicava pelo rio com o Cerro, fortaleza que tinha ficado em nosso poder, ainda que estivesse a tres ou quatro leguas, na margem do Prata, mais distante que o Cerrito que tinha cahido no poder de Oribe. O Cerro era-nos mui necessario porque nos servia de ponto de apoio, para mandar gente para as planicies e receber os fugitivos. Antes de organisar a defeza, a esquadra do almirante Brown tinha feito uma tentativa sobre o Cerro e sobre a ilha dos Ratos. Durante tres dias defendi a ilha e a fortaleza. Na ilha havia peças de 18 e de 36, obrigando o almirante a retirar-se com grandes perdas. Já disse que á entrada de Anzani as concussões tinham acabado; porque este honrado homem em tudo tinha cuidado, e por isso se formou uma conspiração que tinha por fim assassinal-o e a mim, entregando a legião italiana ao inimigo. Anzani foi prevenido. Os conspiradores viram que não tinham nada a fazer por este lado, e uma manhã vinte officiaes e cincoenta soldados passaram para o inimigo. Os soldados, é necessario fazer-lhe esta justiça, voltaram a pouco e pouco. A legião livre dos traidores, ficou composta de homens valentes e honradissimos. Anzani reuniu-a e disse-lhe: —Se eu tivesse que fazer uma escolha entre os bons e os maus, não teria escolhido melhor, como o acaso vem de fazer. O general Pacheco e eu tambem fizemos os nossos discursos á tropa. Alguns dias depois do primeiro combate onde a legião italiana tinha dado de si tão má idéa, propoz uma expedição, com o fim de a rehabilitar, que foi acceita. Tratava-se de atacar as tropas de Oribe que estavam diante do Cerro. Embarquei a legião italiana na nossa pequena esquadra e desembarcámos no Cerro, e tomando com Pacheco o commando da legião atacámos o inimigo ás duas horas da tarde, tendo-o posto na mais completa derrota ás cinco. A legião composta de quatrocentos homens atacou um batalhão de seiscentos. Pacheco combatia a cavallo, e eu ora a pé, ora a cavallo, conforme era necessario. O inimigo teve cento e cincoenta mortos e duzentos prisioneiros, e nós apenas cinco ou seis mortos, e doze feridos, entre os quaes figurou um official chamado Ferrucci ao qual foi necessario cortar uma perna. No dia seguinte voltamos em triumpho a Montevideo. Pacheco mandou reunir a legião, elogiou-a muito, e deu uma espingarda de honra ao sargento Loreto. O combate tinha tido logar no dia 28 de março de 1843. Já me achava tranquillo, os meus soldados haviam recebido o baptismo do fogo. No mez de maio teve logar a benção da bandeira. Era de seda preta com o Vesuvio pintado. Era o emblema da Italia, e das revoluções que em si encerrava. Foi confiada a Sacchi mancebo de vinte annos que se tinha conduzido admiravelmente no combate do Cerro. É o mesmo que combateu mais tarde comigo em Roma, e que hoje é coronel. III O CORONEL NEGRA A 17 de novembro do mesmo anno, a legião italiana achava-se de serviço nas linhas e eu tambem ahi estava. Depois do almoço o coronel Negra, natural de Montevideo, montou a cavallo e percorreu a linha acompanhado por alguns homens. O inimigo dirigiu-lhe alguns tiros, e com tanta felicidade que o feriram mortalmente. Vendo-o cahir, o inimigo avançou e apoderou-se do corpo. Apenas soube este acontecimento e não querendo deixar o corpo de um tão bravo official exposto aos insultos do inimigo, reuni uns cem homens e ataquei com elles. Momentos depois o corpo do coronel estava em meu poder. Então os soldados de Oribe encheram-se de furor, e tendo recebido consideraveis reforços achei-me cercado por todos os lados. Os nossos soldados vendo isto voaram em meu soccorro, tomando parte no combate toda a legião. Exaltados pela minha voz, avançaram contra o inimigo e com tanta felicidade que n'um momento estava na mais completa derrota, tendo-lhe tomado uma bateria e occupado as suas posições. Mas bem depressa voltando em massa nos atacaram. Todas as forças da guarnição sahiram, e o combate tornou-se geral, durando oito horas. Fomos obrigados a abandonar as posições que haviamos tomado, mas Oribe suffreu grandes perdas, e entramos em Montevideo vencedores na realidade e convencidos da nossa superioridade sobre o inimigo. Tivemos sessenta homens feridos ou mortos. Tinha tomado parte no combate como um simples soldado, por isso não tinha observado o que se passou em volta de mim. Entretanto no meio da confusão havia visto Anzani combatendo com o seu socego habitual, e sabia que dominando a lucta nenhum detalhe lhe havia escapado. N'essa mesma tarde pedi-lhe uma nota de todos os que se haviam distinguido. No dia seguinte reuni a legião, louvando-a e agradecendo-lhe em nome da Italia, e promovi alguns d'estes bravos a officiaes e a sargentos. Depois d'estes dois combates a legião italiana tinha tomado tal influencia sobre o inimigo que quando elle a via marchar de bayoneta callada fugia, ou se acceitava o combate era sempre derrotado. Durante estes acontecimentos Rivera tinha conseguido reunir um pequeno exercito composto de cinco ou seis mil homens, com o qual fazia frente a Urquiza, hoje presidente da republica argentina. De tempos a tempos Rivera enviava pelo Cerro mantimentos a Montevideo. Oribe mandou uma parte do seu exercito a Urquiza, ordenando-lhe que tratasse de destruir Rivera. IV PASSAGEM DA BOYADA Soubemos em Montevideo da partida dos soldados de Oribe, resolvendo então o general Paz a aproveitar-se do enfraquecimento do exercito inimigo. Além do Cerrito, estavam quasi mil e oitocentos homens observando o Cerro. Partimos a 23 de abril de 1844 ás 10 horas da noite. Eis qual era o nosso plano: Atacar o corpo de observação do Cerro, porque sabendo d'este ataque, Oribe devia enviar-lhe soccorros enfraquecendo-se ainda mais, e então sahiria toda a nossa gente a atacal-o. Seguimos as margens do mar, passando o Arroyo Secco, que apesar do seu nome nos obrigou a encher d'agua até ao pescoço. Tendo passado o rio, dirigimo-nos pela planicie rodeando o acampamento. Marchavamos com taes precauções que chegamos á vista do corpo d'observação sem ter causado a mais pequena suspeita. A guarnição do Cerro devia sahir coadjuvando o nosso movimento. Uma discussão se elevou entre os dous officiaes que a commandavam porque ambos queriam tomar o commando. Estando em fuga os mil e outocentos homens deviamos voltar sobre Oribe, collocando-o entre o fogo da nossa gente e o da cidade. A discussão entre os dous officiaes fez falhar o nosso plano, porque a guarnição sahiu, mas senhor de todas as forças Oribe repelliu-a, e foi elle que por sua vez marchou sobre nós, executando o plano de batalha que haviamos formado contra elle. Fomos pois attacados ao mesmo tempo pelo exercito de Oribe e pelo corpo de observação, sendo obrigados a retirar-mo-nos para o Cerro, causando-lhe n'essa retirada os maiores prejuisos que podemos. Tomei o commando da tropa que hia na rectaguarda afim de sustentar esta retirada o mais vigorosamente que fosse possivel. Havia entre nós e o Cerro uma especie de riacho que se chamava a Boyada. Era necessario atravessal-o com lama até ao ventre. Afim de estabelecer desordem na passagem o inimigo havia estabelecido n'um monticulo uma bateria de quatro peças que abriram o fogo quando começamos a passagem. Mas a legião italiana cada vez mais aguerrida despresou essa chuva de metralha como se fosse chuva ordinaria. Foi então que tive occasião de observar que os nossos negros eram tambem valentes soldados. Faziam-se matar, esperando o inimigo com um joelho em terra. Estava no meio d'elles por isso podia ver como elles se conduziam. O combate durou seis horas. Ao serviço de Montevideo estava um inglez, que tinha carta branca de Pacheco para fazer tudo quanto julgasse util a favor da nossa causa. Havia reunido quarenta ou cincoenta homens. Chamavam-lhe Samuel; não sei se tinha outro nome. Nunca conheci homem tão bravo como elle. Depois da passagem da Boyada vi-o chegar só com a sua ordenança. —Samuel, lhe disse eu, onde está a teu regimento? —Regimento, gritou elle, sentido! Ninguem appareceu, ninguem respondeu. Todos haviam perecido no combate Em uma ordem do dia do general Paz, fizeram-se grandes elogios á legião italiana, setenta homens haviam ficado fóra do combate. Entramos em Montevideo pelo Cerro. Samuel commeçou immediatamente a reformar o seu regimento. V A LEGIÃO ITALIANA RECUSA AS TERRAS QUE LHE SÃO OFFERECIDAS A 30 de janeiro de 1845, o general Rivera maravilhado pela conducta da legião italiana no combate de Cerro e na passagem da Boyada escreveu-me a seguinte carta: «Senhor: «Quando, no anno passado, dei á legião franceza uma certa quantidade de terras, esperava que o acaso conduzisse ao meu quartel general algum official da legião italiana, dando-me assim occasião de satisfazer um ardente desejo do meu coração, mostrando á legião italiana a estima que lhe consagro pelos importantes serviços prestados á republica na guerra que sustentamos contra o exercito invasor de Buenos Ayres. «Para não demorar por mais tempo o que considero como o comprimento de um dever sagrado, incluo n'esta, um acto de doação que faço á illustre e valorosa legião italiana, como uma prova sincera do meu reconhecimento pessoal pelos eminentes serviços prestados ao meu paiz. «A offerta não é egual aos serviços, nem aos meus desejos, e comtudo ouso esperar que não recusareis offerecel-a em meu nome aos vossos camaradas, informando-os da minha boa vontade e do meu reconhecimento. «Aproveito esta occasião, coronel, para vos assegurar a minha perfeita consideração e profunda estima. «FRUCTUOSO RIVERA.» O que ha de mais importante n'esta carta é que este excellente patriota nos fazia este presente da sua propria fortuna, porque as terras que nos offerecia eram do seu patrimonio. A 23 de maio seguinte, epocha em que me foi entregue a sua carta, dirigi-lhe a seguinte resposta: «Excellentissimo senhor: «O coronel Parrodi, me entregou deante de todos os officiaes da legião italiana, segundo o vosso desejo, a carta que tiveste a bondade de me escrever com data de 30 de janeiro, e juntamente com ella um acto pelo qual fazieis espontanea doação á legião italiana d'uma porção de terreno, das vossas propriedades, existentes entre o Arroyo das Avenas e o Arroyo Grande, ao norte do Rio Negro, e d'uma manada de bois, e de todas as fazendas alli existentes. «Dizeis na vossa carta que este presente nos é feito como remuneração dos nossos serviços á republica. «Os officiaes italianos depois de terem tomado conhecimento da vossa carta declararam unanimemente, em nome da legião italiana que elles offerecendo os seus serviços á republica não queriam receber senão a honra de partilhar os perigos que correm os naturaes do paiz que lhe deram hospitalidade. Obrando d'este modo obedecem á sua consciencia. Tendo satisfeito ao que elles olham como o simples comprimento d'um dever, continuarão, tanto quanto as necessidades do cerco o exigirem, a partilhar os perigos dos nobres Montevidianos, não acceitando outra recompensa do seu trabalho. «Tenho pois a honra de lhe communicar a resposta da legião, com a qual os meus principios e sentimentos concordam completamente. Por isso vos envio o original da doação. «Deus vos dê muitos annos de vida. «GIUSEPPE GARIBALDI.» Os italianos continuaram a servir sem retribuição alguma, e o meio que tinham para alcançar algum dinheiro quando tinham necessidade de renovar alguma parte do vestuario, era o de ir servir algum negociante francez, que pagava aos substitutos quasi dous francos. Sempre será bom dizer que, se entretanto havia algum combate o substituto battia-se como um leão, fazendo-se muitas vezes matar pelo proprietario do logar. VI EXILIO DE RIVERA Já disse qual era o plano do general Paz quando sahimos de noite de Montevideo. Este plano se vingasse mudava a face dos negocios e fazia segundo todas as probabilidades levantar o cerco a Oribe, mas tendo falhado completamente este plano, voltamos a occupar o nosso posto ordinario, isto é aos postos avançados que de um e outro lado, se fortificavam cada vez mais, até que nós tivessemos do nosso lado uma linha de bateria que correspondesse ás baterias do inimigo. Foi por esta occasião que o general Paz partiu, para dirigir a insurreição da provincia de Corrientes, coadjuvando assim a causa nacional, e dividindo as forças do general Urquiza que então fazia frente ao general Rivera. Infelizmente todos estes projectos não tiveram o exito que se esperava por causa da impaciencia do general Rivera, que sem se importar com as ordens do governo, que lhe prohibiam o acceitar uma batalha decisiva, acceitou essa batalha, perdendo-a nos campos da India Morta. O nosso exercito foi batido. Dois mil prisioneiros, e talvez mais, foram estrangulados, contra todas as leis da humanidade e da guerra. Muitos ficaram no campo da batalha, outros foram dispersos pelas immensas planicies. O general Rivera com alguns dos seus alcançou a fronteira do Brazil e foi como causa d'este immenso desastre exilado pelo governo. Perdida a batalha da India Morta, Montevideo ficou entregue aos seus proprios recursos. O coronel Corrêa tomou o commando da guarnição. Comtudo o cuidado particular da defeza ficou incumbido a Pacheco e a mim. Alguns dos nossos chefes depois d'esta deploravel batalha conseguiram reunir diversos destacamentos dos soldados dispersos e fizeram com elles a guerra de guerrilhas onde o terreno a isso se prestava. O general Llanos reuniu duzentos homens e preferindo juntar-se aos defensores de Montevideo, lançou-se sobre o inimigo que vigiava o Cerro e abrindo caminho alcançou o forte. Pacheco recebendo este pequeno reforço teve a idéa de dar um golpe de mão. A 27 de maio de 1845 embarcámos em Montevideo, durante a noite, a legião italiana e algumas outras forças tiradas do Cerro, e com este pequeno corpo fomo-nos embuscar n'um velho paiol que se achava abandonado. Na manhã de 28 a cavallaria do general Llanos sahiu, protegida pela infanteria, e attrahiu o inimigo do lado do paiol e quando elle se achava a pequena distancia, os nossos soldados sahiram com a legião italiana á frente e carregando á bayoneta cobriram o terreno de cadaveres. Então toda a divisão em observação no Cerro se apresentou no campo, e travou-se um mortifero combate que se decidiu em nosso favor. O inimigo foi posto em completa derrota e perseguido á bayoneta, sendo necessario que viesse repentinamente uma horrivel tempestade para finalisar esta carnificina. As perdas do inimigo foram consideraveis. Teve grande numero de feridos e mortos e entre os ultimos figura o general Nunz, um dos melhores e mais bravos generaes inimigos, que foi morto por uma bala dos nossos legionarios. Tambem apanhámos grande numero de bois, de modo que entrámos em Montevideo com a alegria e esperança no coração. O feliz resultado d'esta tentativa fez com que propozesse outra ao governo. Tratava-se de embarcar na flotilha a legião italiana, subir o rio, occultando os meus homens o melhor possivel, até Buenos-Ayres, e chegados ahi desembarcarmos de noite, dirigindo-nos á casa de Rosas e fazendo-o prisioneiro, conduzil-o a Montevideo. Tendo bom exito esta expedição terminava a guerra de um só golpe, mas o governo recusou. Nos intervalos de repouso concedidos ao nosso exercito, dirigia-me á pequena flotilha e não obstante o bloqueio de que eu enganava a vigilancia, tomava o largo e ia apanhar algum navio mercante, que conduzia prisioneiro até ao porto com grande raiva do almirante Brown. Outras vezes por manobras bem combinadas, attrahindo sobre mim todas as forças do bloqueio franqueava o porto a navios mercantes que conduziam provisões á cidade sitiada. Muitas vezes tambem embarcava-me de noite com cem dos meus legionarios os mais resolutos e tentava atacar os navios inimigos, que não podia atacar de dia por causa da grossa artilheria, mas era sempre inutilmente porque o inimigo desconfiando das minhas surprezas não ficava de noite debaixo de ancora, transportando-se para algum sitio distante d'aquelle onde eu o julgava. Finalmente, um dia sahi com tres pequenos navios, os melhores da esquadra, e resolvi ir atacar o inimigo na bahia de Montevideo. A esquadra de Rosas compunha-se de tres navios: _O 25 de março_, _O general Echague_, e _O Maypu_. Estes tres navios tinham quarenta e quatro peças montadas. Eu tinha unicamente oito peças de pequeno calibre, mas conhecia os meus homens, e estava convencido de que se chegassemos á abordagem o inimigo estava perdido. Avancei para a esquadra em linha de batalha. Estavamos quasi a tiro de peça, julgando já todos o combate inevitavel. Os terraços de Montevideo estavam cheios de curiosos; os mastros dos navios de todas as nações estacionados no porto estavam tambem cheios de espectadores. Todos esperavam com anciedade o resultado do combate que se julgava inevitavel. Mas o commandante da esquadra argentina não quiz correr o risco d'este combate, e tomou o mar, entrando nós no porto no meio das acclamações geraes. VII INTERVENÇÃO ANGLO-FRANCEZA Os negocios de Montevideo n'esta conjunctura iam o peior possivel, quando a intervenção anglo-franceza veiu pôr um veto ao bloqueio; as duas potencias alliadas apoderaram-se da frota inimiga e dividiram-na. Resolveu-se então nova expedição sobre o Uruguay. O fim d'esta expedição era de se apoderar da ilha de Martim-Garcia, da cidade de Colonia e de alguns outros pontos, e principalmente do Salto, pelo qual se poderiam abrir communicações com o Brazil, ao mesmo tempo que se formaria um pé de exercito de terra destinado a substituir o que fôra destruido. Embarquei duzentos voluntarios na minha pequena frota, e dirigi-me sobre o forte Martim-Garcia. Encontramo-lo abandonado pelo inimigo e occupamo-lo. A cidade de Colonia da mesma fórma estava abandonada, quando ante ella se apresentaram a esquadra anglo-franceza, e a minha pequena frota. A legião italiana desceu, combateu e repelliu o general Montero, que com forças superiores se achava do outro lado da cidade. Durante este tempo as esquadras, não sei dizer com que fim, abriram um vivissimo fogo sobre a cidade abandonada; pozeram as tropas em terra, e estas tropas formaram a nossa reserva contra o general Montero. Pelas duas horas da tarde fizemos a nossa entrada na cidade. A legião italiana foi aquartellada n'uma egreja; dei as mais severas ordens para que se respeitassem as menores cousas pertencentes aos habitantes forçados a abandonar suas casas. Inutil é dizer que os legionarios obedeceram religiosamente ás minhas ordens. A cidade foi guardada e fortificada pelos nossos, que a guarneceram. As frotas ingleza e franceza entraram no Parana e destruiram, n'um combate que durou tres dias, as baterias que guardavam o curso do rio. A resistencia do inimigo foi heroica. Continuei então com a minha pequena frota, composta de um brigue, de uma escuna e outros muitos pequenos vasos, a subir o rio. Durante todo o tempo que haviamos marchado de conserva o almirante francez e o commodoro inglez me tinham testemunhado a mais viva sympathia, sympathia de que o almirante Lariné particularmente me conservou provas. Bastantes vezes um e outro vieram assentar-se em nosso _bivac_, provando da carne que fazia o nosso unico sustento. Anzani, que nos acompanhava em a nossa expedição, partilhou esta honrosa sympathia. Era um d'estes que bastava vel-os para os amar e estimar. Em quanto que a nossa frota subia o Uruguay, vimos reunir-se a nós alguns homens de cavallaria commandados pelo capitão da Cruz, verdadeiro heroe, quero dizer, homem do mais bello caracter e da maior coragem. Estes poucos homens seguiram a frota costeando o Uruguay, e serviram-nos de muito, a principio como exploradores, depois como fornecedores de viveres. Occuparam elles differentes paizes, as Vacas, Mercês, etc. Por toda a parte onde se encontrava o inimigo era batido. Paysanda, fortaleza da Praça do Uruguay, experimentou se nos esmagava debaixo da sua artilheria; mas, todavia, não nos fez grande mal. Acima de Paysanda, tomamos posição n'uma estancia chamada o Hervidero onde estivemos muitos dias. O general Lavalleja tentou sobre nós um ataque de noite com infanteria, cavallaria e artilheria; mas foi repellido com consideraveis perdas pelos nossos legionarios. De Hervedero escrevi ao governador por intervenção do capitão Montaldi, que voltava a Montevideo n'um navio mercante; mas o navio foi atacado ao passar diante do Paysarda, rodeado pelas embarcações inimigas e tomado depois de uma rigorosa resistencia do capitão Montaldi, que abandonado, só, sobre a ponte foi aprisionado. Uma multidão de barcos navegando com a bandeira inimiga cahia todos os dias em nosso poder. Deixei á maior parte d'aquelles que os tripulavam a liberdade de voltar para os seus. Gualeguaychu, cidade situada na margem direita do Uruguay e sobre o Gualeguay, no Entre-rios, cahiu por surpresa em nossas mãos. Foi ali que eu aprisionei D. Leonardo Millão o mesmo que tendo-me antigamente preso me tinha feito dar o supplicio das cordas. Soltei-o, sem lhe fazer mal algum, e deixando-lhe como unica punição o medo que havia tido ao reconhecer-me. Gualeguaychu foi abandonada; não era posição sustentavel; mas pagou uma boa contribuição em dinheiro, roupas e armas. Emfim depois de uma multidão de combates e aventuras chegámos com a esquadra ao logar chamado de Salto, porque o Uruguay fórma n'este logar uma cataracta, e acima d'esta não é navegavel senão por pequenos barcos. O general Lavalleja que occupava o paiz abandonou-o desde a nossa chegada, forçando todos os habitantes a seguil-o. De resto o paiz era perfeitamente apropriado á expedição, não se achando longe da fronteira. Resolvi que ahi nos estabelecessemos. Por consequencia a minha primeira operação foi marchar contra Lavalleja acampado sobre o Zapevi, affluente do Uruguay. Durante a noite puz a caminho a nossa infanteria e alguns homens de cavallaria commandados por de la Cruz. Ao raiar d'alva estavamos perto do campo que achámos defendido de um lado pelos carros, de outro pelo Uruguay, e voltado para o Zapevi. Formei os meus homens em duas pequenas columnas e com a cavallaria ao meu lado marchei ao encontro do inimigo. Depois de um combate de alguns minutos, estavamos senhores do campo, passando o inimigo o Zapevi na mais completa desordem. O resultado d'esta operação foi logo o regresso ao Salto de todas as familias que violentamente haviam sido arrancadas de suas casas. Fizemos quasi cem prisioneiros ao inimigo, tomando-lhe muitos cavallos, bois, munições, e uma peça de artilheria, a mesma que tinha attirado sobre nós no ataque de Hervidero; era de fundição italiana e tinha no bronze o nome do fundidor, Cosimo Cenni, anno de 1492. Esta expedição fez a maior honra á legião e teve grandes consequencias. Perto de tres mil habitantes reentraram em seus lares. Dirigidos por Anzani, os meus legionarios se occuparam logo em elevar uma bateria sobre a praça da cidade, posição que dominava os arredores. Enviei correios ao Brasil, para me pôr em communicação com os refugiados, e graças a elles, começou a reorganisação de um exercito de campanha. Em pouco tempo, a bateria foi construida e armada de dois canhões, tão bem, que na noite de 5 de dezembro de 1845, ella se achou prompta para responder aos ataques do general Urquiza, que se apresentou, na manhã de 6 com tres mil quinhentos homens de cavallaria, oitocentos de infanteria e uma bateria de campanha. As minhas disposições foram aquellas que se tomam quando se quer centuplicar as forças materiaes pela influencia moral. Ordenei á esquadra que se retirasse e não deixasse uma só barca ao nosso alcance. Espalhei os meus homens pelas ruas, fazendo-lh'as embarricar, e não deixando abertas senão as ruas principaes. Publiquei uma energica ordem do dia, e esperei Urquiza, que confiando na sua força, tinha declarado a seus soldados que os homens que estavam ante si tinham _corações de gallinha_. Pelas nove horas da manhã por todos os pontos nos atacou; respondemos-lhe por fogo de atirador sahindo de todas as ruas e pelo fogo das nossas duas pequenas peças. Chegado o momento, e quando o vi admirado da nossa resistencia, fil-o carregar por duas companhias de reserva, e retirou-se vergonhosamente deixando bom numero de mortos e feridos nas casas de que elle tinha começado a apoderar-se, não ganhando no seu ataque mais que levar-nos algumas alimarias, e isto ainda por falta do piquete de uma embarcação de guerra ingleza, que unida a um navio francez nos tinha seguido até ao Salto. Estas duas embarcações tinham-se offerecido para nos ajudar a defender o paiz; o piquete inglez mudou em forte uma casa que defendia o curral, onde estavam fechadas perto de seiscentas alimarias. O inimigo enviou um destacamento da sua infanteria sobre este ponto; os soldados inglezes foram tomados de um terror panico, de sorte que uns fugiram pelas janellas, outros pelas portas, e deixaram toda a facilidade aos soldados de Urquiza de levar os animaes. Durante vinte tres dias o inimigo renovou os seus ataques sem obter resultado algum. Vinda a noite, nós com elles; não lhe deixavamos um momento de descanço. Faltou-nos carne, mas comemos os nossos cavallos. Emfim convencido da inutilidade de seus esforços. Urquiza tomou o partido de se retirar, confessando que tinha nos seus diversos ataques contra nós, perdido mais gente que na batalha da India-Morta. O inimigo retirando-se tentou apoderar-se das minhas embarcações para passar ao Uruguay; mas graças á minha vigilancia o seu projecto foi frustrado, e foi obrigado a atravessar o rio doze leguas acima; depois do que voltou a acampar-se nos campos de Camardia em frente do Salto. Em quanto que Urquiza sustentava este acampamento fiz em pleno dia, passar o rio a alguns homens de cavallaria, protegidos pelas nossas embarcações e infanteria. Este pequeno troço atacou os homens que guardavam um immenso rebanho de cavallos que pastavam nos pampanos, e, repellindo uma centena de cavallos ante si para substítuir os que nós tinhamos comido, lhes fez passar o rio e m'os conduziu antes que o inimigo désse pela surpreza e tentasse impedil-a. VIII SUCCESSO DO SALTO SANTO ANTONIO Entretanto o coronel Baez, vindo do Brazil, tinha-se reunido a nós com perto de duzentos homens de cavallaria. O general Medina reunia as suas forças, e nós esperavamol-o de dia para dia. Com effeito, a 7 de fevereiro de 1846, recebi uma mensagem d'elle que, me avisava que no dia seguinte se acharia sobre as alturas de Zapevi com quinhentos cavalleiros. Pedia noticias do inimigo, e um soccorro em caso de ataque. O seu mensageiro levou o aviso de que a 8 eu estaria com forças suficientes, para proteger sua entrada no paiz, nas alturas do Zapevi. Em virtude d'isto pelas nove horas parti com cento cincoenta homens da legião e duzentos cavalleiros, costeando o Uruguay. Dirigimo-nos ás Laperas, a tres leguas pouco mais ou menos do Salto, flanqueados por quatrocentos inimigos pertencentes ao corpo do general Servando Gomes, unicas forças, que n'aquelle momento se achavam em observação no Salto. A nossa infanteria tomou posição sob um _zapère_—um zapère é um tecto de palha suspenso por quatro paus—o qual não nos offerecia outra vantagem senão de nos livrar dos abrasadores raios do sol. A cavallaria, commandada pelo coronel Baez e o major Carvalho, estendia-se até ao Zapevi. Anzani tinha ficado em defeza do Salto, doente de uma perna, e com elle doentes tambem trinta ou quarenta soldados. Alem d'isto uma duzia de homens estavam de guarda á bateria. Eram perto das onze horas da manhã; vi avançar, das planicies do Zapevi para as alturas onde eu me achava um consideravel numero de inimigos a cavallo; quasi ao mesmo tempo apercebi-me de que cada cavalleiro trazia um soldado de infanteria na garupa. E com effeito a pouca distancia das alturas em que me achava, os cavalleiros se alargaram e pozeram em terra seus companheiros os quaes logo se prepararam a marchar sobre nós. A nossa cavallaria abriu fogo contra o inimigo; mas, como a sua superioridade de numero era muita foi posta promptamente em fuga. Fugindo a nossa cavallaria, se dirigiu para o _zapère_ ao qual já chegavam as ballas inimigas. Então, comprehendendo que a verdadeira resistencia era com os meus bravos legionarios, e que onde elles estivessem estaria a victoria, corri em sua direcção; mas, quando chegava ás primeiras fileiras no meio do fogo inimigo, senti repentinamente que o meu cavallo me faltava debaixo do corpo, e cahindo me arrastava comsigo. Minha primeira idea foi que vendo-me cahir, a minha gente ia julgar-me morto e que esta supposição poderia pôl-os em desordem. Quando cahi tive, pois, a presença de espirito de tirar uma pistolla dos coldres, e alevantando-me logo, desfechei-a para o ar, afim de que se visse que estava são e salvo. Defeito, haveria apenas tempo de me vêr em terra quando já estava levantado e cercado dos meus. Entretanto o inimigo avançava sempre, com mil e duzentos homens de cavallaria e trezentos de infanteria. Abandonados pela nossa cavallaria, tinhamos ficado ao todo cento e oitenta e dois. Eu não tinha tempo de fazer um longo discurso; além de que tambem não era esse o meu forte. Elevei a voz e não disse senão estas palavras: —Os inimigos são numerosos; nós somos poucos; tanto melhor! quanto menos somos tanto mais glorioso será o combate. Socego e não façamos fogo senão no fim e carreguemos á bayoneta. Estas palavras eram ditas a homens sobre os quaes cada uma d'ellas fazia o effeito de uma faisca electrica. Além disso, qualquer outra determinação teria sido funesta. A perto de uma milha sobre a direita tinhamos o Uruguay com alguns pequenos bosques; mas uma retirada em tal crise, teria sido o signal da perda de todos; tinha-o já comprehendido por isso não pensei em tal. Chegada quasi a sessenta passos de nós a columna inimiga fez uma descarga que nos causou grande damno; mas os nossos lhe responderam por uma fuzilaria muito mais mortifera, tanto mais que as nossas espingardas eram carregadas não só de ballas, mas ainda de outros projectis. O commandante da infanteria cahiu mortalmente ferido; as filas abriram-se, e, á frente dos meus bravos com uma espingarda na mão eu os metti n'uma carga pronunciada. Era tempo: a cavallaria estava já sobre os flancos, e na rectaguarda. A refrega foi terrivel. Alguns homens da infanteria inimiga deveram sua salvação a uma fuga rapida. Isto deu-me tempo de fazer frente á cavallaria. A nossa gente rodou como se cada um houvesse recebido ordem de executar esta manobra. Todos combateram, officiaes e soldados, como gigantes. Uma vintena de cavalleiros então, conduzidos por um bravo official chamado Vega, tendo vergonha da fuga de Baez e da sua gente, que nos deixavam sós, voltaram a toda brida, estimando mais partilhar a nossa sorte que continuar uma retirada vergonhosa. Vimol-os repentinamente atravessar pelo meio do inimigo e collocar-se a nosso lado. Havia, eu vol-o affirmo coragem n'esta resolução. Alem d'isto a carga que elles executaram juntando-se a nós, serviu-nos muito n'este critico momento porque separou e fez cahir o inimigo do qual uma parte se tinha posto em perseguição dos fugitivos. Tambem na nossa segunda descarga a cavallaria vendo a sua infanteria destruida e vinte cinco ou trinta homens dos seus cahir debaixo do nosso fogo, fez um passo de retirada e poz em terra perto de seiscentos homens que armando-se de caravinas nos rodearam de todos os lados. Tinhamos ao redor de nós um espaço de terreno coberto de cadaveres de cavallos e homens assim nossos como inimigos. Poderia contar innumeraveis actos de bravura individual. Todos combateram como os nossos antigos heroes do Tasso e de Ariosto; muitos estavam cobertos de feridas de toda a sorte, ballas, golpes de sabre, e pontadas de lança. Um joven clarim de quinze annos que nós chamavamos o vermelho, e que nos animava durante o combate com o seu clarim, foi ferido com uma lançada. Largar o clarim, tomar o sabre e lançar-se sobre o cavalleiro que o tinha ferido, foi obra de um instante. Só depois de o ferir, é que expirou. Depois do combate os dois cadaveres foram encontrados agarrados um ao outro. O mancebo estava coberto de feridas; o cavalleiro tinha na coxa da perna o signal de uma profunda mordedura que lhe havia dado o seu inimigo. Do lado dos nossos adversarios houve tambem actos de prodigiosa temeridade. Um d'elles vendo que a especie de curro ao redor do qual estavamos agrupados, se não era uma fortaleza contra as ballas, era pelo menos um abrigo contra o sol, tomou um tissão inflammado, correu a cavallo a toda a brida, e passando lançou como um relampago o tissão sobre o tecto de palha. O tissão cahiu por terra sem preencher o fim do cavalleiro; mas o que tinha ali deitado tinha executado uma acção temeraria. Os nossos iam atirar sobre elle; e eu impedi-os bradando: —É preciso conservar os bravos; são da nossa raça. Ninguem lhe fez fogo. Era para ver-se como todos estes bravos me escutavam. Uma palavra minha dava força aos feridos, coragem aos hesitantes, e redobrava o ardor dos fortes. Quando vi o inimigo dizimado pelo nosso fogo, cançado da nossa resistencia, então sómente fallei de retirada, dizendo apenas: _Retiremo-nos!_ mas: —Retirando-nos não deixaremos um só ferido no campo de batalha. —Não! não! gritaram todas as vozes. Feridos eramos nós quasi todos. Quando vi todos silenciosos e firmes, dei tranquillamente ordem de retirar combatendo. Por felicidade não tinha uma beliscadura, o que me permittia de estar em toda a parte, e quando um inimigo se aproximava de nós temerariamente fazia-o arrepender da sua temeridade. Os poucos homens sãos que havia entre nós cantavam hymnos patrioticos aos quaes os feridos respondiam em côro. O inimigo nada d'isto comprehendia. O que nós mais soffriamos era falta de agua. Uns arrancavam raizes e mastigavam-n'as; outros sugavam nas ballas; alguns beberam a propria ourina. Emfim veiu a noite e com ella algum frescor. Serrei os meus homens em columna, e colloquei os feridos no meio. Sómente dois que era impossivel transportar deixei no campo de batalha. Recommendei muito á minha gente de não se dispersar, e de retirar na direcção de um pequeno bosque. O inimigo tinha-se apoderado d'elle antes de nós, mas foi repellido d'ahi vigorosamente. Enviei então exploradores, que voltaram a dizer-me que o inimigo tinha quasi toda a sua gente em terra, e os cavallos andavam pastando. Sem duvida havia-se elle persuadido que a causa da nossa paragem era a fome e falta de munições; mas fome não a sentiamos; quanto a munições, tinhamos encontrado nos nossos adversarios mortos o que nos faltava. Todavia o mais difficil ainda não estava feito. O inimigo estava acampado entre nós e o Salto: depois de um descanço de uma hora, que lhe fez julgar que ficariamos toda a noite onde estavamos, ordenei á minha gente de se formar em columna, e a marche-marche lançámo-n'os impetuosos sobre elles. Os clarins inimigos soaram dando o signal de pôr a postos; mas antes que cada homem se fixasse na sella e tomasse as rédeas, nós tinhamos já passado. Dirigimo-nos de novo para uma especie de bosque. Uma vez abrigado entre as arvores dei ordem a todos os meus de se deitarem com o ventre para terra. O inimigo dirigia-se para nós, sem nos ver, tocando á carga. Deixei-o approximar a cincoenta passos do bosque e então sómente gritei «Fogo» dando eu o exemplo. Vinte e cinco ou trinta homens e outros tantos cavallos cairam; o inimigo voltou á brida, e reentrou no seu acampamento. Então disse aos meus: —Vamos, meus filhos, julgo que chegou o momento de ir beber. E costeando sempre o nosso pequeno bosque, levando nossos feridos, tendo a distancia os nossos mais implacaveis inimigos, que não queriam abandonar-nos, ganhamos a margem do rio. Á entrada da aldeia esperava-nos uma grande emoção: Anzani estava ali chorando de alegria. Abraçou-me primeiramente e quiz abraçar todos os outros depois de mim. Anzani tambem tinha tido seu combate: tinha sido com alguns homens atacado pelo inimigo, que antes do combate lhe tinha intimado de se render, dizendo-lhe que eramos todos mortos ou prisioneiros. Mas Anzani havia respondido: —Os italianos não se rendem; descampae todos ou então esmago-vos com os meus esquadrões. Em quanto eu tiver comigo um dos meus companheiros, combateremos juntos, e quando estiver só, então porei fogo á polvora e me farei saltar comvosco pelos ares. O inimigo não quiz saber mais nada, e retirou-se. A minha gente que se achava no Salto encontrando tudo em abundancia dizia dirigindo-se a mim: —Tu nos salvaste a primeira vez; mas Anzani nos salvou segunda! No seguinte dia escrevi esta carta á commissão da legião em Montevideo: «Irmãos. «Antes de hontem tivemos nos campos de Santo Antonio, a legua e meia da cidade, o mais terrivel e mais glorioso de nossos combates. As quatro companhias da nossa legião e vinte homens de cavallaria, refugiados sob a nossa protecção, não sómente se defenderam contra mil e duzentos homens de Servando Gomes, mas destruiram inteiramente a infanteria inimiga que os tinha assaltado no numero de trezentos homens. O fogo começou ao meio dia e acabou á meia noite. «Nem o numero dos inimigos, nem suas cargas repetidas, nem sua massa de cavallaria, nem os ataques de espingardeiros a pé, poderam nada contra nós; ainda e que não tivessemos outro abrigo mais que um curro arruinado sustido por quatro pilares, os legionarios repelliram constantemente os assaltos dos inimigos furiosos; todos os officiaes se transformaram em soldados n'este dia; Anzani que tinha ficado no Salto e ao qual o inimigo intimou ordem de se render, respondeu com o morrão na mão e o pé na bateria, ainda que o inimigo lhe havia assegurado que nós eramos todos mortos ou prisioneiros. «Tivemos trinta mortos e cincoenta feridos; todos os officiaes foram feridos levemente, excepto Scarone, Saccarello mais velho e Traversi. «Hoje não dou o meu nome de legionario italiano por um mundo de ouro. «Á meia noite pozemo-nos em retirada sobre o Salto; ficámos pouco mais de cem legionarios sãos e salvos. Os que só haviam sido levemente feridos marchavam á frente para cortar o inimigo quando elle se adiantasse muito. «Ah! é um combate o qual merece ser gravado em bronze! «Adeus! D'outra vez serei mais extenso. Vosso, _José Garibaldi_. «P. S. Os officiaes feridos são Casana, Marochetti, Beruti, Remorini, Saccarello mais novo, Sacchi, Grafigna e Rodi.» Foi esta a nossa ultima refrega importante em Montevideo. IX ESCREVO AO PAPA Foi por este tempo que soube em Montevideo a exaltação ao pontificado de Pio IX. Sabe-se quaes foram os principios d'este reinado. Como muitos outros acreditei n'uma epocha de liberdade para a Italia. Resolvi logo para ajudar o santo padre nas generosas resoluções de que estava animado, de lhe offerecer o meu braço e os de meus companheiros d'armas. Aquelles que acreditavam n'uma opposição systematica da minha parte ao papado, verão, pela carta que se segue que nada d'isso havia; a minha dedicação era á causa da liberdade em geral, em qualquer ponto do globo que ella brotasse. Comprehender-se-ha entretanto que eu désse preferencia ao meu paiz, e que estivesse prompto a servir sob a direcção d'aquelle que parecia destinado a ser o Messias politico da Italia. Julgamos Anzani e eu que este papel sublime era reservado a Pio IX, e escrevemos ao nuncio do papa a carta seguinte, pedindo-lhe para transmittir a sua santidade os nossos votos e os de nossos illustres legionarios: «Muito illustre e respeitavel senhor. «Desde o momento em que nos chegaram as primeiras noticias da exaltação do soberano pontifice Pio IX e da amnistia que elle concedia aos pobres proscriptos, temos com uma attenção e interesse recrescentes contado os passos que o chefe supremo da egreja tem dado sobre a estrada da gloria e da liberdade. Os louvores, cujo echo nos chega aos ouvidos de além dos mares, o arruido com que a Italia acolhe a convocação dos deputados e a applaude, as sabias concessões feitas á imprensa, a instituição da guarda civica, o impulso dado á instrucção popular e á industria, sem contar tantos cuidados, todos dirigidos para o aperfeiçoamento e bem estar das classes pobres, e para a formação de uma administração nova, tudo, emfim, nos convenceu que acabava finalmente de sair do seio da nossa patria, o homem que comprehendendo as necessidades do seu seculo, tinha sabido, segundo os preceitos da nossa augusta religião, sempre novos, sempre immortaes, e sem derrogar sua auctoridade, cingir-se todavia ás exigencias dos tempos; e nós ainda que todos estes progressos não tivessem influencia sobre nós mesmos, temol-os entretanto seguido de largo, e acompanhado com nossos applausos e nossas vozes o concerto universal da Italia e de toda a christandade; mas quando ha alguns dias soubemos do attentado sacrilego, no meio do qual uma facção sustida pelo estrangeiro,—não estando ainda fatigada, depois de tão longo espaço de despedaçar a nossa pobre patria—se propunha a destruir a ordem das cousas existentes, pareceu-nos que a admiração e enthusiasmo pelo soberano pontifice era uma fraca cousa, e que nos estava imposto um grande dever. «Os que escrevemos, illustrissimo e respeitabilissimo senhor, somos os que, sempre animados d'este mesmo espirito que nos fez supportar o exilio, tomamos as armas em Montevideo por uma causa que nos parecia justa e que reunimos algumas centenas de homens nossos compatriotas que para aqui tinham vindo esperando encontrar dias menos tormentosos que os que soffriamos em a nossa patria. «Ora, ha cinco annos que durante o cerco que rodeava os muros d'esta cidade, cada um de nós se propõe a dar provas de resignação e de coragem; e graças á Providencia e a este antigo espirito que inflamma ainda nosso sangue italiano, a nossa legião teve occasião de se distinguir, e cada vez que esta occasião se ha apresentado ella não a tem deixado escapar; tão bem que—creio que é permittido dizel-o sem vaidade—ella tem no caminho da honra excedido todos os outros corpos que eram seus emulos. «Pois se hoje os braços que tem algum uso das armas, forem acceites por Sua Santidade, inutil é dizer que bem mais voluntariamente que nunca, nós os consagramos ao serviço d'aquelle que fez tanto pela patria e pela egreja. «Nós nos julgaremos pois felizes se podermos vir em ajuda da obra redemptora de Pio IX, nós e nossos companheiros em nome dos quaes fallamos, e não julgaremos pagal-a cara com todo o nosso sangue. «Se vossa illustre e respeitavel senhoria pensa que a nossa offerta possa ser agradavel ao soberano pontifice, deponha-a aos pés de seu throno. «Não é a pueril pretenção de que o nosso braço seja necessario que vol-o faz offerecer; sabemos muito bem que o throno do Santo Padre pousa sobre bases que nem podem abalal-as ou assegural-as soccorros humanos, e que além d'isso a nova ordem de cousas conta numerosos defensores que saberão vigorosamente repellir as injustas aggressões de seus inimigos; mas como a obra deve ser repartida entre os bons, e o duro trabalho dado aos fortes, fazer-nos a honra de nos contar entre esses. «Esperando, agradecemos á Providencia de ter preservado Sua Santidade das machinações _Dei tristi_, e fazemos ardentes votos para que ella lhe conceda numerosos annos para felicidade da christandade e da Italia. «Não nos resta agora senão pedir a vossa illustre e veneravel senhoria de nos perdoar o tempo que lhe roubamos e de acceitar os sentimentos da nossa perfeita estima e profundo respeito com o qual somos de sua illustre e respeitabilissima senhoria os mais dedicados servidores. _J. Garibaldi._ _F. Anzani._ «Montevideo, 12 de outubro de 1847.» Esperámos em vão; não nos veiu nenhuma resposta do nuncio nem de Sua Santidade. Foi então que tomámos a resolução de ir a Italia com uma parte da nossa legião. A nossa intenção era de ahi secundar a revolução onde ella já estava em armas, e suscital-a onde ella ainda dormisse, nos Abruzos, por exemplo. A unica difficuldade que se oppunha a isto era que nenhum de nós tinha um só soldo para a viagem. X VOLTO Á EUROPA—MORTE DE ANZANI Recorri a um meio que colhe sempre com os corações generosos: abri uma subscripção entre os meus compatriotas. Começava esta a desenvolver-se, quando alguns espiritos iniquos começaram a sublevar entre os meus legionarios um partido contra mim, intimidando os que estavam dispostos a seguir-me. Insinuava-se a esta pobre gente que eu os conduzia a um perigo certo, que a empresa que eu sonhava era impossivel, e que uma sorte egual á dos irmãos Bandiera lhes estava reservada. Resultou d'isto que os mais timidos se retiraram, e que fiquei com oitenta e cinco, abandonando-me ainda d'estes vinte e nove depois de embarcados. Por felicidade os que ficaram comigo eram os mais valentes, que haviam quasi todos sobrevivido ao ataque de Santo Antonio. Além d'isso eu tinha alguns orientaes confiados na minha fortuna e entre elles o meu pobre negro Aguyar que foi morto no cerco de Roma. Disse que havia sollicitado entre os italianos uma subscripção para ajudar a nossa partida. A maior parte d'esta subscripção fôra fornecida por Etienne Antonini, genovez estabelecido em Montevideo. O governo da sua parte offereceu de nos ajudar com todas as suas posses; mas eu conhecia tanto o seu critico estado financeiro que não quiz acceitar d'elle senão duas peças e oitocentas espingardas, que fiz transportar em o nosso brigue. No momento da partida aconteceu-nos com o commandante do _Biponte-Gazolo_ de Nervi, a mesma cousa que aconteceu aos francezes, quando foi a cruzada de Bandouin com os venezianos, que estes lhe tinham promettido de os transportar á terra santa; a sua exigencia foi tamanha que houvemos mister de vender tudo, até nossas camisas para a satisfazer, de tal fórma que durante a travessia alguns ficaram deitados por falta de fatos para se vestir. Estavamos já a trezentas leguas da costa, pouco mais ou menos nas alturas das bocas do Orenoque, e divertia-me com Orrigoni no gurupés a pescar marzopas, quando de repente ouvi o grito de «Fogo, fogo!» Saltar do gurupés á prôa, da prôa á ponte e deixar-me correr pelo bordo foi obra de um segundo. Fazendo a distribuição de viveres, o distribuidor tinha tido a imprudencia de tirar a agua-ardente de um barril com uma luz na mão; a agua-ardente havia-se incendiado, e o que a tirava atarantara-se, e em vez de tornar a fechar o barril, tinha deixado correr a golphadas o liquido; sendo o aposento dos viveres um lago de fogo scintillante. Foi ali que vi quanto os homens mais bravos são accessiveis ao terror, quando o perigo se lhes apresenta sob um aspecto differente d'aquelle a que são habituados. Todos estes homens que eram heroes no campo de batalha se compelliam, corriam, perdiam a cabeça, tremulos e transidos como creanças. No fim de dez minutos ajudado de Anzani, que havia deixado seu leito ao primeiro grito de alarma, tinhamos extinguido o fogo. O pobre Anzani, com effeito estava de cama, não por estar inteiramente nú, mas porque se achava já violentamente tomado da doença de que devia morrer chegando a Genova, quero dizer de uma phtisica pulmonar. Este homem admiravel ao qual o seu mais mortal inimigo, se acaso podia ter algum, não poderia achar um só defeito, depois de ter consagrado sua vida á causa da liberdade, queria que seus ultimos momentos fossem ainda uteis a seus companheiros de armas; todos os dias ajudavam-no a subir á ponte; quando não poude mais subir, fez-se para ahi transportar, e deitado sobre um colxão dava lições de estrategia aos legionarios, reunidos em redor d'elle. Era um verdadeiro diccionario de sciencias o pobre Anzani; ser-me-ia tão difficil enumerar as cousas que elle sabia, como encontrar uma que não soubesse. Em Palo, quasi a cinco milhas de Alicante, saltámos em terra para comprar uma cabra e laranjas para elle. Foi lá que soubemos pelo vice-consul sardo parte dos successos que se passavam na Italia. Soubemos que a constituição piemonteza tinha sido proclamada e que os cinco gloriosos de Milão se tinham passado, cousas que não podiamos saber á nossa sahida de Montevideo, isto é a 27 de março de 1848. Disse-nos o vice-consul que vira passar navios italianos com bandeira tricolor. Não era preciso mas para me decidir a arvorar o estandarte da independencia. Arriei o pavilhão de Montevideo sob o qual navegavamos, icei immediatamente na verga do navio a bandeira sarda, improvisada com metade de um lençol, um casaco vermelho e o resto dos ornatos verdes do nosso uniforme de bordo. Recordam-se que o nosso uniforme era a blouse vermelha adornada de verde com debruns brancos. A 24 de junho, dia de S. João, chegámos á vista de Nice. Muitos entendiam que não deviamos desembarcar sem mais amplas informações. Arriscava-me a muito, pois estava ainda condemnado á morte. Todavia não hesitei, ou antes não teria hesitado, porque reconhecido pelos tripulantes de um navio, o meu nome espalhar-se-hia bem depressa, e apenas meu nome estivesse espalhado, Nice em peso correria para o porto, e seria preciso no meio das acclamações, acceitar as festas que nos eram offerecidas de todos os lados. Mal se soubesse que eu estava em Nice, e que tinha atravessado o Occeano para vir em auxilio da liberdade italiana, os voluntarios correriam de todos os lados. Mas n'esse momento eu tinha melhores projectos. Da mesma fórma que acreditara no papa Pio IX, cria no rei Carlos Alberto; em vez de nos preoccupar de Medici que tinha expedido como disse a Via Reggio para ahi organisar a insurreição, encontrando a insurreição organisada e o rei do Piemonte á sua frente, julguei que o que tinha de melhor a fazer era offerecer-lhe os meus serviços. Disse adeus ao meu pobre Anzani, adeus tanto mais doloroso por ambos sabermos que não nos tornariamos a ver, e embarquei para Genova, aonde cheguei ao quartel general de Carlos Alberto. O resultado da minha entrevista com elle, provou-me que me havia enganado. Separamo-nos, pois, descontentes um com o outro, e volvi a Turim onde soube da morte de Anzani. Perdia metade do coração. A Italia perdia um dos seus mais distinctos filhos. Oh! Italia! Italia! mãe infortunada! que lucto para ti no dia em que este bravo entre os bravos, este leal entre os leaes cerrou os olhos para sempre á luz do teu bello sol! A morte de um homem como Anzani, eu t'o digo, ó Italia! deve arrancar do intimo seio da nação que lhe deu o nascimento um grito de dôr, e se ella não chora, se não se lamenta como Rachel na Roma, esta nação não é digna de sympathia ou piedade, porque não tem tido sympathia ou piedade pelos seus mais generosos martyres. Oh! martyr, cem vezes martyr foi o nosso charo Anzani, e a mais cruel tortura soffrida por este valente foi de tocar a terra natal, pobre moribundo, e não acabar como viveu combatendo por ella, por sua honra, por sua regeneração. Oh Anzani! se um genio egual ao teu tivesse presidido aos combates da Lombardia, á batalha de Novara, ao cerco de Roma, o estrangeiro não sulcaria a terra natal, e não pisaria os ossos de nossos avoengos! A legião italiana, viram-no, tinha feito pouco, antes da chegada de Anzani; vindo elle, sob seus auspicios, percorreu uma carreira de gloria que tornára ciosas as nações mais engrandecidas. Entre todos os militares, os soldados, os combatentes, entre todos os homens que trazem espada ou espingarda emfim que tenho conhecido, não vi um que podesse egualar Anzani nos dons naturaes, nas inspirações de coragem, nas applicações scientificas. Tinha o valor ardente de Massena, o sangue frio de Davesio, a severidade, bravura e temperamento de Manara![1] [1] O leitor não conhece ainda estes tres outros martyres da liberdade italiana, mas bem depressa tomará conhecimento com elles. Garibaldi que não escrevia as suas memorias para serem impressas, falla d'alguma sorte mais comigo do que com os leitores. A. D. Os conhecimentos militares de Anzani, sua sciencia generica, ninguem os igualava. Dotado de uma memoria rara, fallava com uma precisão admiravel das cousas passadas, embora estas remontassem á antiguidade. Nos ultimos annos da sua vida, o seu caracter estava sensivelmente alterado; tinha-se tornado acre, irascivel, intolerante, e, pobre Anzani, não era sem motivo esta mudança. Atormentado quasi incessantemente por dôres resultadas de numerosas feridas e da vida tempestuosa que tinha soffrido durante tantos annos, arrastava uma intoleravel existencia, uma existencia de martyr. Deixo a uma mão mais habil que a minha o cuidado de traçar a vida militar de Anzani, digna de occupar as vigilias de um escriptor eminente. Na Italia, Grecia, Portugal, Hespanha e America encontrar-se-hão, seguindo-lhe a traça, documentos da vida do nosso heroe. O jornal da legião italiana de Montevideo sustentado por Anzani, não é senão um episodio da sua vida. Elle foi a alma d'esta legião, dirigida, conduzida, administrada por elle, e com a qual se havia identificado. Oh! Italia! quando o Todo-Poderoso tiver marcado o termo a taes desgraças, elle te dará Anzanis para guiar teus filhos ao exterminio d'aquelles que te vilipendiaram e tyrannisaram! _G. G._ XI AINDA MONTEVIDEO Antes de começar a narração da campanha da Lombardia executada por Garibaldi em 1848, diremos a proposito de Montevideo, tudo o que elle na sua modestia, não quiz dizer. ⁂ Devem lembrar-se do combate de 24 d'abril, da perigosa passagem da Boyada, e da maneira porque ahi se conduziram os legionarios italianos. O official que contava estes acontecimentos ao general Paz disse unicamente referindo-se aos italianos: —Bateram-se como tigres. —Não admira, respondeu Paz, pois são commandados por um leão. ⁂ Depois da batalha de Santo Antonio, o almirante Lainé que então commandava a estação da Plata, admirado d'esta façanha, escreveu a Garibaldi a carta seguinte, cujo autografo existe em poder de G. B. Cuneo, amigo de Garibaldi. O almirante Lainé apparelhava então a fragata Africana. «Felicito-vos, meu caro general, por terdes tão poderosamente contribuido, pelo vosso intelligente e intrepido proceder, para o alcance de uma victoria de que se ufanariam os soldados do grande exercito, que por momentos dominou a Europa. «Felicito-vos egualmente pela simplicidade e modestia, que tornam mais preciosa a leitura, da relação dos numerosos detalhes que déstes, de uma victoria, de que sem receio, se vos póde attribuir toda a honra. «De resto, esta modestia, trouxe-vos as sympathias de pessoas aptas para apreciar convenientemente o que tendes feito e alcançado em seis mezes, pessoas entre as quaes devo enumerar em primeiro logar, o nosso ministro plenipotenciario, o honrado barão Deffaudis, que honra o vosso caracter e n'elle tendes um caloroso defensor, sobretudo, quando se trata de escrever para Paris, no intento de destruir impressões desfavoraveis que podem nascer de certos artigos dos jornaes, redigidos por homens pouco habituados a fallar verdade, mesmo quando contam factos acontecidos á propria vista. «Recebei pois o testemunho da minha estima etc. «_Lainé._» Não se contentou só o almirante Lainé com o escrever a Garibaldi, quiz-lhe fazer os seus cumprimentos pessoalmente. Desembarcou em Montevideo, dirigiu-se á rua _Portona_, onde morava Garibaldi. Esta habitação, tão pobre como a do ultimo legionario, nunca se fechava, e dia e noite estava aberta para todos, e _particularmente para o vento e chuva_, como dizia Garibaldi, contando esta anedocta. Era noite: o almirante Lainé empurrou a porta, e como a casa estivesse ás escuras tropeçou n'uma cadeira. —Eia, disse elle, é necessario quebrar a cabeça para vêr Garibaldi? —Oh mulher, exclamou Garibaldi, não reconhecendo a voz do almirante, tu não ouves, que vem ahi alguem? Allumia. —Com que queres tu que eu allumie! respondeu Annita, não sabes que não ha com que se compre uma vella? —É verdade, respondeu philosophicamente Garibaldi. E levantando-se, abrio a porta do quarto em que estava. —Por aqui, por aqui, disse elle, para que a voz á falta da luz guiasse a visita. O almirante Lainé entrou, a escuridão era tal que viu-se obrigado a dizer quem era, para que Garibaldi soubesse com quem tinha que tratar. —Almirante, lhe disse elle, desculpae, porém quando fiz o meu tratado com a republica de Montevideo, esqueceu-me entre as rações que me são devidas, especificar uma de vellas, ora como vos disse Annita, não possuindo o necessario para comprar uma vella, permanecemos na obscuridade; por felicidade supponho que vindes aqui para conversar comigo, e não para me verdes. O almirante com effeito conversou com Garibaldi, porém não o viu. Sahindo de casa d'elle, foi á do general Pacheco y Obes, ministro da guerra, e contou-lhe o que lhe tinha acontecido. O ministro da guerra que acabava de fazer o decreto que se vae lêr, pegou em cem patacões e mandou-os a Garibaldi. Garibaldi não quiz offender o seu amigo Pacheco, recusando-lhes, porém no dia seguinte, de manhã, pegou nos cem patacões, e distribui-os pelas viuvas e filhos dos soldados mortos no Salto de Santo Antonio, não guardando para si, senão o que lhe bastou para comprar um arratel de vellas, recommendando a sua mulher as poupasse, para servirem no caso do almirante Lainé o ir visitar outra vez. Eis o decreto que redigia Pacheco y Obes, quando o almirante Lainé lhe foi fazer um appello á sua munificencia. ORDEM GERAL «Para dar aos nossos companheiros d'armas, que se immortalisaram nos campos de Santo Antonio, uma alta prova da estima em que os tem o exercito que illustraram neste memoravel combate: «O ministro da guerra ordena: «1.° No dia 15 do corrente, designado para a entrega á legião italiana de uma copia d'este decreto, formará em grande parada a guarnição, na rua do Mercado, até á praça do mesmo nome, na ordem que indicará o estado maior. «2.° A legião italiana, formará na Praça da Constituição, com a retaguarda para a Cathedral, e ahi receberá a sobredita copia, que lhe será entregue, por uma deputação presidida pelo coronel Francisco Tages, e composta d'um commandante, d'um official, d'um sargento e soldado de cada corpo. «3.° A deputação regressando aos seus respectivos corpos, se dirigirá com elles á praça indicada, e passando em continencia pela frente da legião italiana, os commandantes dos corpos, darão vivas—_á Patria, ao general Garibaldi e aos seus valentes companheiros!_ «4.° Os regimentos deverão estar formados ás dez horas da manhã. «5.° Será dada copia authentica desta ordem do dia á legião italiana e ao general Garibaldi. PACHECO Y OBES. O decreto ordenava: 1.° Que as palavras seguintes seriam inscriptas em letras d'ouro na bandeira da legião italiana: _Acção de 8 de Fevereiro de 1846 da legião italiana commandada por Garibaldi._ 2.° Que a legião italiana teria a vanguarda em todasas paradas. 3.° Que os nomes dos mortos n'esta acção serão inscriptos em um quadro, collocado na sala do governo. 4.° Que todos os legionarios trarão para signal distincto, no braço esquerdo um escudo sobre o qual uma corôa guarneceria a seguinte inscripção: _Invincibili combaterono, 8 febraio 1846._ Além d'isso Garibaldi querendo dar uma prova da sua sympathia e reconhecimento aos legionarios que haviam perecido a seu lado no dia 8 de fevereiro, fez elevar no campo de batalha uma grande cruz que tinha d'um lado: _Aos 36 Italianos mortos em 8 de Fevereiro de 1846._ E do outro lado: _154 Italianos no Campo de Santo Antonio._ ⁂ Apesar da pobreza a que Garibaldi se achava reduzido, achou um dia um legionario mais pobre do que elle. Este legionario não tinha camiza. Garibaldi levou-o a um canto, tirou a sua camiza e deu-lh'a. Indo para casa pediu outra a Annita, porém ella sacudindo a cabeça disse-lhe: —Sabias muito bem que não tinhas senão uma, deste-a, agora peor para ti! E foi Garibaldi que ficou sem camiza, até que Anzani lhe deu uma. Porém Garibaldi era incorregivel, um dia tendo aprisionado um navio inimigo, repartiu a preza com os companheiros, e tendo dividido os quinhões, chamou os seus homens um a um, e interrogou-os sobre o estado das suas familias, dando aos mais desgraçados, do seu proprio quinhão, dizendo-lhe: —Tomae isto para vossos filhos. Havia além do mais uma quantia grande de dinheiro a bordo, que Garibaldi mandou para o thesouro de Montevideo, não tirando um unico centimo. Algum tempo depois d'esta preza, não tinha senão tres sous em caza, tal tinha sido a repartição. Isto deu motivo a uma anedocta que me contou o proprio Garibaldi. Um dia, ouviu chorar a sua filha Therezita, adorava esta filha, e correu a ver o que lhe tinha acontecido. A creança havia cahido pela escada, e tinha a cara ensaguentada. Garibaldi não sabendo como a havia de consolar, pegou nos tres sous que era toda a sua fortuna, e que reservava para uma grande occasião, e sahiu para ir comprar um brinquedo para consolar a creança. Á sahida encontrou-se com um emissario do Presidente, Joaquim Soares, que o procurava da parte do seu amo para uma communicação importante. Garibaldi dirigiu-se immediatamente a casa do Presidente, esquecido já do motivo que o tinha feito sahir, tendo machinalmente na mão o dinheiro. A conferencia durou duas horas, tratava-se com effeito de cousas importantes. Garibaldi quando acabou a conferencia voltou para casa; a creança já estava socegada, porém Annita estava muito inquieta. —Roubaram-nos, lhe disse ella assim que o viu. Garibaldi lembrou-se então do dinheiro que tinha ainda na mão. Era elle o ladrão. XII CAMPANHA DA LOMBARDIA Agora vamos, com o auxilio de um amigo de Garibaldi, o valente coronel Medici, ligar a nossa narração onde Garibaldi a interrompeu. A sua partida para a Secilia forçar-nos-hia a finalisar aqui as suas memorias, se Medici não se encarregasse de as continuar. E confessamos, este modo de fallar de Garibaldi, agrada-me mais do que fazendo-o pelas suas proprias palavras; porque com effeito quando Garibaldi conta, esquece-se sempre da parte que tomou nas acções, para exaltar o que fizeram os seus companheiros; ora como é especialmente d'elle que nos queremos occupar, melhor é que seja collocado por outro no logar que merece. Vamos pois deixar contar ao coronel Medicis a campanha da Lombardia de 1848. ⁂ Parti de Londres para Montevideo no meado do anno de 1846. Nenhum motivo politico nem commercial me chamava á America do Sul, ia por motivo de saude. Os medicos julgavam-me atacado de tysica pulmonar, as minhas opiniões liberaes me tinham desterrado da Italia, decidi-me pois a atravessar o Oceano. Cheguei a Montevideo, sete ou oito mezes depois da acção do Salto de Santo Antonio, a reputação da legião italiana, estava então no seu apogeo. Garibaldi era o homem da epoca. Fiz conhecimento com elle, pedi-lhe se me recebia na sua legião, e elle consentiu. No dia seguinte, já tinha vestido a blouse encarnada com divisas verdes, e dizia com orgulho: —Sou soldado de Garibaldi! Depressa tomei intimidade com elle, tomou-me affeição, depois confiança, e quando tudo se determinou para a sua partida, um mez antes que elle deixasse Montevideo, parti eu para o Havre em um paquete. Tinha as suas instrucções claras e precisas, como todas as que dá Garibaldi. Estava encarregado de ir ao Piemonte e á Toscana e ver varios homens eminentes, e alem d'outros Fanti, Guerazzi, e Beluomini filho do general, tinha a morada de Guerazzi, escondido proximo a Pistoia. Ajudado d'estes poderosos auxiliares, devia organisar a insurreição, de modo que quando Garibaldi desembarcasse em Via Reggio, a achasse prompta, e então apoderar-nos-ia-mos de Lucques, e marchariamos para onde houvesse esperança. Atravessei París, depois da revolta de 15 de Maio, passei á Italia, e ao cabo de um mez, tinha 300 homens, promptos para marchar para onde quizesse, até para o inferno se fôra necessario; foi então que sube que Garibaldi tinha desembarcado em Nice. A minha primeira impressão, foi o sentimento que elle se tivesse esquecido do que entre nós tinhamos convencionado. Logo depois sube que Garibaldi tinha sahido de Nice, e ahi tinha deixado Anzani a morrer. Gostava muito de Anzani, todos gostavam d'elle. Corri a Nice, Anzani estava ainda vivo. Fil-o transportar para Genova, onde recebeu hospitalidade no palacio do marquez Gavotto, no quarto que occupava o pintor Gallino. Estabeleci-me á sua cabeceira, e não o abandonei mais, estava affectado mais do que merecia, com a minha preocupação contra Garibaldi, muitas vezes me fallava d'elle, e um dia agarrando-me uma mão, e com um ar prophetico, disse-me—Medici, não sejas severo com Garibaldi, é um homem que recebeu do ceo tal felicidade, que faz bem de se seguir. O futuro da Italia depende d'elle, é um predestinado; algumas vezes me zanguei com elle, porém convencido da sua missão, sempre fui o primeiro a fazer as pazes. Estas palavras chocaram-me, como as ultimas de um moribundo, e muitas vezes depois me tem vindo á memoria. Anzani era philosopho, e praticava pouco os deveres materiaes da religião; comtudo na hora da morte, perguntando-se-lhe se queria um padre, disse que lhe levassem um, e como eu me admirasse d'este acto que chamava fraqueza, disse-me: —Meu amigo, a Italia espera muito n'este momento em dois homens, Pio IX e Garibaldi; pois bem, é preciso que não sejam accusados os companheiros de Garibaldi, de herejes. E dizendo isto sacramentou-se. Nessa mesma noute, ás tres horas da madrugada, morreu nos meus braços, sem perder um momento os sentidos, nem ter tido um momento de delirio. As suas ultimas palavras foram: —Não te esqueças da minha recommendação, a respeito do Garibaldi. E deu o ultimo suspiro. O corpo, e os papeis de Anzani foram entregues a seu irmão, homem inteiramente dedicado ao partido austriaco. O corpo foi levado para Alzate, patria de Anzani, e o cadaver do homem, que seis mezes antes, não tinha achado em toda a Italia, uma pedra em que descançasse a cabeça, teve uma marcha triumphal. Quando se soube a sua morte em Montevideo, houve lucto geral na legião, cantaram-lhe um requien, e o doutor Bartholomeu Udicine, medico e cirurgião, recitou um discurso funebre. Pelo que diz respeito a Garibaldi, fez quanto poude reviver a sua lembrança, e quando organisou os batalhões lombardos, chamou ao primeiro, batalhão de Anzani. Depois da morte de Anzani parti para Turim. Um dia passeando debaixo das arcadas, achei-me por acaso cara a cara com Garibaldi; vendo-o, a recommendação de Anzani; veio-me á memoria, é verdade que era secundada do profundo respeito e amisade que tinha a Garibaldi. Cahimos nos braços um do outro. Depois de nos termos ternamente abraçado, a lembrança da patria, veiu-nos á memoria ao mesmo tempo. —Que faremos, dissemos nós um ao outro. —Então, perguntei-lhe, se não chegava de Robervella de offerecer a sua espada a Carlos Alberto? Sorriu desdenhosamente. —Essa gente me disse elle, não é digna que corações como os nossos se lhes submettam. Não tratemos de homens, caro Medici, só da patria, e nada mais! Como não parecia disposto, a contar-me a sua entrevista com Carlos Alberto, cessei de interrogal-o. Depois sube, que o rei Carlos Alberto, o tinha recebido friamente; mandando-o para Turim, esperar as ordens do seu ministro da guerra, mr. Ricci. Mr. Ricci dignou-se lembrar que Garibaldi esperava ordens suas, mandou-o chamar e disse-lhe: —Aconselho-vos, que partaes para Veneza, e ahi tomando o commando de alguns pequenos navios, podereis como corsario, ser muito util aos venezianos, julgo que o vosso logar é ahi, e em mais parte alguma. Garibaldi não respondeu a Mr. Ricci, só em logar de ir para Veneza ficou em Turim. Eis a razão porque o encontrei nas arcadas. —Que faremos pois, dissemos nós em seguida. Com os homens da tempera de Garibaldi as resoluções são repentinamente tomadas. Resolvemos ir para Milão, e partimos essa mesma noute. A occasião era boa, acabava-se de receber a noticia dos primeiros revezes, soffridos pelo exercito piemontez. O governo provisorio deu a Garibaldi o titulo de general, e authorisou-o para organisar batalhões de voluntarios lombardos. Garibaldi e eu, debaixo das suas ordens, tratamos logo d'isso. Principiamos por um batalhão de voluntarios de Vicencia, que nos chegou organisado de Pavia. Garibaldi creava o batalhão Anzani, que bem depressa completou. Eu tinha a meu cargo disciplinar toda essa mocidade das barricadas, que durante cinco dias, com 300 espingardas e 400 ou 500 homens, affastou de Milão Radetzki e os seus vinte mil soldados. Porem nós luctavamos com as mesmas dificuldades, com que Garibaldi luctou em 1859. Os corpos dos voluntarios, que representam o espirito da revolução assustam sempre os governos, uma só palavra bastará para dar idéa dos nossos. Era Mazzini o porta-bandeira, e uma companhia denominava-se Medici. Por esta razão, commeçaram a recusar-nos armas; e um homem d'oculos, que occupava um logar importante no ministerio, dizia em voz alta que eram armas perdidas, por que Garibaldi era um espadachim, e mais nada. Nós diziamos, que nos forneceriamos d'armas, porém que ao menos nos dessem uniformes, responderam-nos, que não havia uniformes, mas abriram armazens onde existiam uniformes austriacos, hungaros e croatas. Eram os proprios, para gente que pedia para morrer combatendo croatas, hungaros e austriacos, e todos os nossos soldados, mancebos pertencentes ás primeiras familias de Milão, de que algumas eram millionarias, recusaram com indignação. Mas como era necessario tomar uma resolução, porque não podiamos combater uns de fraque outros de sobrecasaca, acceitamos os fatos dos soldados chamados _ritters_, e fizemos delles uma especie de _bluses_. Era irrisorio pois pareciamos um regimento de cosinheiros, e era preciso ter boa vista para reconhecer debaixo d'aquelle panno grosseiro a flor da mocidade milaneza. Em quanto que se affeiçoavam os fatos á medida de cada um, procuravam-se armas e munições por todos os meios possiveis, e emfim depois de armados e vestidos, marchamos para Bergamo, cantando hymnos patrioticos. Pelo que me diz respeito tinha debaixo das minhas ordens, cerca de 180 jovens, quasi todos, como disse, das primeiras familias de Milão. Chegamos a Bergamo, e nos juntamos a Mazzini, que vinha tomar o seu logar nas nossas filas, e foi recebido com acclamações. Ahi um regimento de linha regular piemontez se nos juntou, trazendo comsigo duas peças pertencentes á guarda nacional. Apenas chegamos, recebemos uma ordem da «comité» de Milão, que se compunha de Fanti, Maestri e Resteli, para voltarmos a marchas forçadas para Milão; obedecemos e começamos a nossa contramarcha para Milão. Porém chegando a Monza, soubemos que Milão tinha capitulado e que um corpo de cavallaria austriaca tinha sido mandado em nossa perseguição. Garibaldi ordenou então uma retirada sobre Como, a nossa estrategia era approximar-nos quanto nos fosse possivel da fronteira suissa. Garibaldi mandou-me para a retaguarda para sustentar a retirada. Estavamos já muito cançados da marcha forçada que acabavamos de fazer, não tinhamos tido tempo para comer em Monza, cahiamos de fome e cançasso, e a nossa gente retirava-se em desordem e completamente desmoralisada. O resultado d'esta desmoralisação foi que quando chegamos a Como começaram-nos a desertar soldados, de modo que sobre cinco mil homens que tinha Garibaldi, quatro mil e duzentos passaram para a Suissa, ficando apenas com oitocentos. Garibaldi como se tivesse ainda os seus cinco mil homens, com o seu sangue frio habitual, collocou-se em Camerlata, ponto de juncção de diversas estradas, diante de Como. Ahi estabeleceu uma bateria com as duas peças de artilheria, e expediu correios a Manara, Griffini, e a Durando e Apice, e aos chefes dos corpos de voluntarios da alta Lombardia, convidando-os a concordarem entre si, o tomarem posições fortes, e sustentaveis até á ultima, apoiados na fronteira suissa. O convite não teve resultado. Então Garibaldi retirou de Camerlata para San Fermo, onde em 1859, batemos completamente os austriacos. Porém antes de nos collocarmos na Praça de São Fermo, reuniu-nos e fez-nos uma falla.—Os discursos de Garibaldi, vivos e pittorescos, tem a verdadeira eloquencia do soldado. Disse-nos que era preciso continuar a guerra em guerrilha, que esta guerra era a mais segura e a menos perigosa, que bastava confiar no chefe, e ajudarem-se os camaradas. Apesar d'esta energica allocução houveram novas deserções durante a noute, e de madrugada a nossa gente achava-se reduzida a quatrocentos ou quinhentos homens. Garibaldi, com grande desgosto, decidiu-se a entrar no Piemonte, porém na occasião em que atravessava a fronteira, envergonhou-se de retirar sem combate, demora-se em Castelletto sobre o Tecinio, ordena-me que percorra os arredores e que lhe traga o maior numero de desertores possivel. Fui até Lugano e trouxe trezentos homens, contamos-nos, eramos setecentos e cincoenta. Garibaldi acha-se em força sufficiente para marchar contra os austriacos. No dia 12 d'agosto, fez a sua famosa proclamação, na qual declara que Carlos Alberto é um traidor, que os italianos, nem se podem nem se devem fiar n'elle, e que todo o patriota deve ter como um dever, o fazer a guerra por sua conta. Feita esta proclamação, no momento em que de todos os lados se tocava á retirada, nós unicos marchavamos adiante, e Garibaldi com setecentos e cincoenta homens, fez um movimento offensivo contra o exercito austriaco. Marchámos sobre Arona, apoderamos-nos de dois navios a vapôr, e de outras pequenas embarcações. Começámos o embarque, que durou até á noite, e no dia seguinte de madrugada chegámos a Luino. Garibaldi estava doente, tinha uma febre intermitente contra os accessos da qual tentava em vão luctar. Com um d'estes accessos, entrou na estalagem da _Galinhola_, casa isolada á entrada de Luino, e separada da vinha por um riacho, sobre o qual está lançada uma ponte. Mandou-me chamar e disse-me: —Medici, necessito por força de duas horas de descanço, toma o meu logar, e vigia por nós. A estalagem da _Galinhola_ era mal escolhida para quem queria socegar, era a sentinella avançada de Luino, a primeira casa que devia ser atacada pelo inimigo, suppondo-o nas circumvisinhanças. Nada sabiamos dos movimentos dos austriacos, ignorando se estavamos a dez legoas d'elles ou a um kilometro; comtudo disse a Garibaldi que dormisse tranquilamente, asseverando-lhe que tomaria todas as precauções para que o seu somno não soffresse interrupção. Feita esta promessa, sahi; as armas estavam ensarilhadas do outro lado da ponte, e a gente acampada entre ella e Luino. Colloquei sentinellas á estalagem da _Galinhola_, e mandei uns lapões explorar as proximidades. Passada meia hora, os meus vigias voltaram todos assustados gritando: —Os austriacos! Os austriacos! Corri ao quarto de Garibaldi, dando o mesmo grito: —Os austriacos! Garibaldi estava na maior força da febre, saltou do leito, e ordenando-me que mandasse tocar a reunir, da janella poz-se a descobrir campo dizendo que não tardaria em nos alcançar. Com effeito d'ahi a dez minutos estava no meio de nós. Dividiu a nossa pouca gente em duas columnas; uma obstruindo o caminho, foi destinada a fazer frente aos austriacos, a outra tomando uma posição de flanco, impedia que nos voltassemos, e podia tambem atacar. Os austriacos em breve appareceram na estrada, seriam mil e duzentos homens, e apoderaram-se immediatamente da _Galinhola_. Garibaldi deu ordem logo á columna que obstruia a estrada de atacar; esta columna compunha-se de quatro centos homens, atacando resolutamente mil e duzentos. É o costume de Garibaldi, nunca conta os inimigos nem os seus, o inimigo está na frente, logo deve ser atacado. É forçoso confessar que quasi sempre esta tactica lhe deu bom resultado. Comtudo os austriacos faziam resistencia, e por isso Garibaldi julgando que seria necessario engajar todas as forças, chamou a columna do flanco e renovou o ataque. Tinha diante de mim um muro que escalei com a minha companhia, achando-me n'um jardim. Os austriacos faziam fogo por todas as aberturas do albergue. Apesar d'isso lançámo-nos no meio das ballas, atacámos á bayoneta, entrando por essas mesmas aberturas que um instante antes vomitavam fogo. Os austriacos retiraram-se em completa desordem. Garibaldi havia dirigido o ataque a cavallo, no meio da ponte, sendo um verdadeiro milagre que exposto ao fogo do inimigo não fosse ferido. Quando viu fugir os austriacos disse-me que os seguisse com a minha companhia. A deserção havia-a reduzido a cem homens, e com elles persegui mil e cem. Comtudo n'esta acção não houve grande merito, porque os austriacos tomados por um verdadeiro panico, fugiam abandonando as espingardas e patronas, não parando senão em Veneza. Deixaram na _Galinhola_ uns cem mortos e feridos, e oitenta prisioneiros. Devo dizer que os austriacos tinham parado em Germiniada; voltei ahi, mas já elles tinham partido. Segui então as suas pisadas, mas apesar de correr bem, não os pude alcançar. Durante a noite soubemos que uma força austriaca, mais consideravel que a primeira, se dirigia para nós. Garibaldi ordenou-me que ficasse na Germiniada, mandando eu logo fazer barricadas. Tinhamos um tal habito d'estas fortificações que nos era só necessaria uma hora para pôr a ultima em estado de sustentar um circo. A noticia era falsa. Garibaldi enviou duas ou tres companhias em differentes direcções, e quando voltaram, mandou reunir todo o nosso exercito, dando-lhe ordem para marchar sobre Guerla, e de lá para Varese, onde foi recebido em triumpho. Dirigiamo-nos directamente sobre Radetzki. Em Varese occupámos Duimodi-Sopra, logar que domina Varese, e que nos assegurava a retirada. Ahi Garibaldi mandou fusillar um espião austriaco, que devia dar esclarecimentos a tres columnas de austriacos que se dirigiam contra nós. Uma marchava sobre Como, outra sobre Varese, e a terceira separando-se d'estas, dirigia-se sobre Luino. Era evidente que o plano dos austriacos era de se collocarem entre Garibaldi e Luzano, cortando-lhe a retirada fosse para o Piemonte ou para a Suissa. Partimos então de Buimo para Arcisate. De Arcisate, Garibaldi mandou-me com a minha companhia que ia sempre de vanguarda, para Viggia. Chegando ahi com os meus cem homens, recebi ordem de me dirigir immediatamente contra os austriacos. A primeira divisão de que eu tive conhecimento foi a de Aspre, forte de cinco mil homens. Foi este mesmo general que ordenou depois os massacres de Livourne. Em consequencia da ordem recebida, preparei-me para o combate, e para o dar na melhor ordem possivel apoderei-me de tres pequenas villas que formavam um triangulo—Catzone, Ligurno, e Rodero. Estas tres villas guardavam todas as estradas que vinham de Como. Por detraz d'estas villas achava-se uma forte posição, S. Maffeo, rochedo inexpugnavel, e pelo qual não tinha senão deixar-me escorregar para me achar na Suissa. Havia dividido os meus cem homens em tres destacamentos, occupando cada um d'elles uma villa. Eu estava em Ligurno. Tinha chegado durante a noite com os meus quarenta homens e havia-me fortificado o melhor que tinha podido. Ao romper do dia fui atacado pelos austriacos. Tinham-se primeiramente apoderado de Rodero, que haviam encontrado abandonado, porque durante a noite a guarnição havia-se retirado para a Suissa. Fiquei com os meus sessenta e oito homens. Chamei os trinta homens que estavam em Catzone e dirigi-me para S. Maffeo aonde podia resistir. Apenas ahi tinha chegado fui logo atacado. De Rodero os canhões austriacos nos enviaram foguetes á congreve. Lancei os olhos em roda de mim, a montanha estava rodeada de cavallaria, mas apezar d'isso resolvi-me defender-nos em quanto podessemos. Os austriacos começaram o assalto. Infelizmente cada um de nós só tinha vinte cartuxos, e as nossas espingardas não eram das melhores. Ao estrondo da fuzillaria as montanhas da Suissa, visinhas de S. Maffeo, cobriram-se de curiosos, e cinco ou seis d'estes não se podendo conter vieram unir-se comnosco tomando parte no combate. Sustentei o combate até que os meus homens tivessem queimado os ultimos cartuxos. Esperei sempre que Garibaldi ouvindo o estrondo do combate viria coadjuvar-me, mas Garibaldi tinha mais que fazer, porque tendo os austriacos marchado sobre Luino, Garibaldi ia-lhe ao encontro. Tendo queimado até ao meu ultimo cartuxo, pensei que era tempo de cuidar na retirada. Guiados pelos nossos suissos tomámos atravez os rochedos um caminho sómente conhecido dos habitantes do paiz. Uma hora depois estavamos na Suissa. Retirei-me com os meus homens para um pequeno bosque, emprestando-nos os habitantes caixas para esconder-mos as espingardas, afim de as encontrarmos quando nos fosse necessarias. Durante mais de quatro horas, sessenta e oito homens tinham feito frente a cinco mil. O general d'Aspre mandou annunciar em todos os jornaes que tinha sustentado um combate encarniçado contra o exercito de Garibaldi havendo-o posto em completa derrota. Só os austriacos são capazes de dizer d'estas petas. XIII CONTINUAÇÃO DA CAMPANHA DA LOMBARDIA Garibaldi marchava como já disse sobre Luino; mas antes d'ahi chegar, recebera noticia de que Luino estava já occupado pelos austriacos, ao mesmo tempo que a columna d'Aspres, depois da sua grande victoria sobre nós se apoderava d'Arcisate. A retirada de Garibaldi sobre a Suissa tornava-se desde então difficultosa. Decidiu-se pois a marchar direito a Morazzone, posição muito forte e por consequencia muito vantajosa. Além d'isso, o ruido do canhão que tinha ouvido lhe tinha feito crescer agua na bocca. Apenas tinha acampado viu-se completamente rodeado por cinco mil austriacos. Comsigo tinha quinhentos homens. Durante um dia com seus quinhentos homens sustentou o ataque dos cinco mil austriacos. Vindo a noite, formou os seus em columna cerrada, e lançou-se sobre o inimigo á bayoneta. Favorecido pela obscuridade fez uma sanguinolenta passagem, e achou-se em campo raso. A uma legua de Morazzone licenciou seus voluntarios, dando-lhes ponto de reunião em Lugano, e a pé com um guia, desfarçado em paisano seguiu para a Suissa. Uma manhã soube em Lugano que Garibaldi, que todos criam morto, ou pelo menos prisioneiro em Morazzone, tinha chegado a uma aldêa visinha. Então vieram-me á memoria as palavras propheticas de Anzani. Corri a Garibaldi, achei-o na cama, quebrado, moido, e apenas podendo fallar. Acabava de fazer uma marcha de seis horas, e só por milagre havia escapado aos austriacos. A sua primeira pergunta ao ver-me foi: —Tens a tua companhia prompta? —Tenho, lhe respondi. —Pois bem, deixa-me dormir esta noite, e ámanhã prepararemos a nossa gente e recomeçaremos. Não pude deixar de me rir: era evidente que no dia seguinte estaria tolhido a ponto de não poder mover uma perna. No dia immediato, com grande admiração minha, Garibaldi estava a pé; a alma e o corpo n'este homem são eguaes, ambos de bronze. Mas nada havia a fazer; a campanha de Garibaldi na Lombardia estava finda. Garibaldi então entrou no Piemonte e volveu a Genova. Ali recebeu propostas que lhe trazia uma deputação siciliana. Estas propostas eram de embarcar para a Sicilia, afim d'ahi sustentar a causa da revolução. Acceitou-as e partiu com trezentos homens para Livourne; mas ahi sabendo o que se passava em Roma, abandonou a idéa da sua expedição á Sicilia e partiu para Roma. É ali que prestes o encontraremos. Quanto a mim fiquei em Lugano com a minha companhia, a que tendo reunido alguns desertores se achava com o numero de oitenta homens, e foi-me permittido conservar-me com elles n'um deposito. As nossas armas estavam sempre occultas, mas debaixo de mão. Durante este momento de repouso organisámos, para não perder tempo, uma insurreição na Lombardia. O governo da Suissa foi prevenido d'isto, e fez occupar o cantão de Tessino pelos contingentes federaes. Resolveu-se então de me internar. Fui com duzentos homens, a maior parte dos quaes haviam servido com Garibaldi, e outros comigo, enviado para Bellinzona, onde nos guardaram n'um quartel, como perigosos e capazes de violar a fronteira. O projecto não deixou de marchar. Os generaes Ascioni e d'Aspice deviam partir de Lugano e dirigir-se sobre Como pelo valle de Intelvi. Quanto a mim devia partir de Bellinzona, atravessar a passagem do Jorio, uma das mais elevadas e difficeis da fronteira, descer sobre o lago de Como, e chamar os habitantes ás armas. Depois do que, com a minha gente, iria reunir-me aos dois generaes. Como eramos guardados á vista, a cousa era difficil de executar. Sobre uma altura que dominava Bellinzona estão as ruinas de um velho castello que out'rora pertenceu aos Visconti. É ali que tinha feito guardar as nossas armas e as munições que depois podera obter. Ao todo tinha duzentos e cincoenta homens. Dividi-os em oito ou dez bandos, que deviam por muitas estradas, evitando a vigilancia das tropas, reunir-se no castello. Contra toda a esperança o projecto realisou-se completamente. Cada um se encontrou no ponto de reunião sem encontrar impedimento; armei todos e estava prompto para partir para a montanha, quero dizer atravessar a fronteira. Repentinamente ouvi tocar a rebate; as tropas dispunham-se a marchar em minha perseguição. Mas os habitantes que me tinham votado amisade decidida, sublevaram-se em meu favor, e ameaçaram se se não calasse o tambor, de se armarem e fazer barricadas. Livre d'este cuidado dei á minha gente ordem de se pôr em marcha; estavamos no fim de outubro, o norte soprava e promettia-nos nova noite de tempestade. Marchámos toda a noite contra o vento, com o rosto açoutado pela neve. Vindo o dia, marchámos sem parar durante o seu curso; era preciso atravessar o cimo cuberto de neve do Jorio; o inverno tinha tornado impraticaveis as passagens; entretanto atravessamol-o com neve quasi sempre até ao joelho, muitas vezes até aos sovacos dos braços. Depois de trabalhos infinitos, chegámos, emfim, ao cume; mas ali um inimigo mais terrivel do que todos os que tinhamos vencido até então nos esperava: a tormenta. N'um instante ficámos completamente cegos, e não distinguiamos nada a dez passos de distancia. Disse então aos meus bravos de se apertarem uns contra os outros, marchar n'uma só fila e seguir-me avançando com a maior rapidez. Tres ficaram para traz, cahindo para não mais se levantarem, escondidos em a neve, dormindo ou velando talvez no cume do Jorio. Marchei primeiro, sem seguir nenhuma estrada real, sem saber onde ia, fiando em a nossa boa fortuna, quando repentinamente parei; o rochedo me faltava debaixo dos pés; um passo mais e cabia no precipicio! Fiz alto, ordenando que cada um ficasse no logar em que estava até nascer o dia. Então só com um guia procurei um caminho toda a noite; a cada instante a terra, ou antes a neve faltava debaixo de nós, ou os pés nos escorregavam. Era por milagre que um de nós não ficava escondido, ou morto na queda. Emfim ao raiar do dia, chegámos perto de algumas cabanas abandonadas. Entretanto como offereciam um abrigo, quiz voltar para os meus homens. Mas então as forças abandonaram-me, e cahi quebrado de fadiga e transido de frio. O meu guia levou-me para uma das cabanas, e conseguiu accender fogo e fez-me tornar a mim. Durante este tempo a felicidade quiz que os meus soldados seguissem o mesmo caminho que eu tinha seguido, de sorte que duas horas depois tinham-me encontrado. Tornámos de novo a pôr-nos a caminho, e descemos a Gravedona, sobre o lago de Como. Chegado ali, depois de uma paragem de meio dia, puz-me em marcha para reunir-me aos dois generaes com quem devia encontrar-me, e que durante a minha passagem deviam haver feito o levantamento. Mas elles em vez de bater os austriacos haviam sido batidos, e eu ia dar de face com a divisão Wohlgemmuth que occupava já o valle de Intelvi, e com alguns barcos a vapor cheios de austriacos. Tomei então por um atalho, e entrei no valle Menaggio, e occupei na sua extremidade Porteyzo, sobre o lago de Lugano, reservando-me para a retirada o valle Cavarnia, que tocava na fronteira suissa. A posição era magnifica; estava em communicação com Lugano, d'onde podia receber gente e munições: mas ninguem veiu juntar-se-me, e fiquei ahi oito dias inutilmente. No fim d'este tempo, os austriacos concentraram suas forças e marcharam sobre Portecco. Retirei-me ao valle de Cavarnia, que separa a Lombardia da Suissa. Contava, se me atacassem fazer tanto como em São-Maffeo. Mas houve apenas alguns tiros de espingarda. Dois dos meus homens morreram de suas feridas. Nada havia a fazer; todas as passagens eram cobertas de neve; o inverno tornava-se cada vez mais rigoroso; entrei na Suissa; escondi as espingardas e em seguida eu mesmo me escondi. Por desgraça, eu era mais difficil de esconder que uma espingarda; e como estava tão compromettido, tratava-se em relação a mim, não de um simples internamento, mas da prisão; muito feliz seria, se agarrado pelas authoridades suissas não me entregassem aos austriacos. Resolvi pois fazer todo o possivel para reentrar no Piemonte. Prestaram-me uma carruagem para sahir do Lugano. Sahindo, iria a Magadino; de Magadino a Genova, e de Genova Deus sabe aonde. Atravessava pois Lugano de carruagem, quando um carro carregado de madeira, que obstruia o caminho me fez parar. Era mister esperar que o descarregassem. Estava esperando, quando o commandante do batalhão federal me reconheceu, chamou gente e fez-me prender. Conduziram-me prisioneiro; era o menos que tinha a esperar. Entretanto aconteceu-me cousa melhor ainda. Como os principaes habitantes de Lugano eram todos meus amigos, obtiveram que em vez de ficar prisioneiro seria levado ás fronteiras sardas. Não fiz mais que atravessar o Piemonte. A Toscana estava governada por republica; embarquei em Genova, e parti para Florença. Em Liorne um despacho telegraphico nos noticiou que o grão-duque illudindo Montanelli por uma doença, acabava de fugir de Liorne e se tinha refugiado em Porto-Ferrajo. Immediatamente Guerazzi ordenou á guarda nacional de Liorne de embarcar, perseguir o duque e prendêl-o. Quando assignava esta ordem disseram-lhe que eu tinha chegado a Liorne. —Offerecei-lhe o commando da expedição, disse Guerazzi, e instae para que acceite. Como se comprehende bem não foi preciso pedir-me muito; submetti-me immediatamente ás ordens do governo provisorio. Embarcamos a bordo do _Giglio_ e fizemo-nos de vela para a ilha d'Elba. Apenas estavamos no mar deram-nos signal de que se avistava uma fragata a vapor. Era franceza, ingleza, austriaca? Não sabiamos; mas a prudencia ordenava que não nos aproximassemos. Fiz pois que o _Giglio_ se voltasse, e em vez de abordar directamente em Liorne, abordei em Golfo-di-Campo; atravessei a ilha n'um apice, e cheguei a Porto-Ferrajo. Não se havia ahi visto o grão-duque. A expedição estava terminada. Então volvi a Florença, e ahi organisei livremente os despojos da minha columna, que reforcei com novos voluntarios; porque tudo o que era refugiado em Florença quiz acompanhar-me. Durante a minha estada ali, foram tentados dois ensaios de reacção, e comprimi-os. Uma manhã espalhou-se o boato de que os austriacos entravam pela fronteira de Modena; corri ahi com a minha gente. Nada havia. Uma terceira tentativa de reacção vingou; o governo do grão-duque foi restabelecido, e eu que tinha sido encarregado de o prender, fui naturalmente obrigado a partir. Além da minha legião havia em Florença uma legião polonesa perfeitamente organisada; chamei-a e seguiu-me. Atravessei os Apeninos e desci a Bolonha. Ahi fui muito mal recebido pelo governo republicano, que me tratou como desertor. O general Mezzacapo formava em Bolonha uma divisão destinada a marchar em soccorro de Roma. Passou-nos em revista, reconheceu que não eramos desertores, e fez de nós sua vanguarda. Seguimos a estrada de Foligno, de Nami e de Civita-Castelhana. Chegados lá, apoiamos sobre a Sabina para evitar os francezes. Entramos em Roma pela porta San-Giovanni. Digamos onde era Roma. XIV ROMA No dia 24 de abril de manhã, a vanguarda da divisão franceza chegou diante do porto de Civita-Vecchia, e um ajudante de campo do general Oudinot desembarcou para fallar na qualidade de parlamentario com o perfeito da republica romana, Manucci. Disse-lhe que o fim da intervenção franceza era garantir os interesses materiaes e moraes do povo romano; que a França queria, inimiga como era do despotismo e da anarchia, assegurar á Italia uma util liberdade; que esperava encontrar no povo romano a antiga sympathia que o tinha unido ao povo francez, mas que entretanto, como a armada corria perigo em se conservar a bordo, necessitava uma prompta licença de desembarque; se esta licença fosse negada, o general francez, com grande sentimento, vêr-se-ia obrigado a empregar a força. Além d'isto, devia prevenir a cidade de Civita-Vecchia de que lhe lançariam o tributo de um milhão, no caso de se disparar sequer um tiro. E, dito isto, sem esperar a resposta do governador de Roma, a quem Manucci queria contar o occorrido, o general Oudinot desarmava o batalhão Métara, occupava o forte, fechava a imprensa da cidade, collocava uma sentinella á porta, e oppunha-se ao desembarque de um corpo de quinhentos lombardos. Estes quinhentos lombardos eram o batalhão de _bersaglieri_ commandado por Manara, que, expulso da sua patria, e repellido pelo Piemonte, vinha pedir um tumulo a Roma. Este batalhão compunha-se da aristocracia lombarda, e vinha juntar-se aos defensores da republica. O mesmo Dandolo confessa no livro intitulado _Voluntarios e Bersaglieri_ que não era por sympathia pela causa dos romanos, mas porque não sabia onde pedir um asylo. Os _bersaglieri_ tinham chegado dois dias depois do general Oudinot; era então o general quem dava as licenças de desembarque de que elle por assim dizer, não tinha feito caso. Henrique Dandolo, descendente do doge do mesmo nome, usando como o historiador, filho do celebre vencedor de Constantinopla, do sobrenome de Henrique, veiu duas vezes a terra para pedir ao general a licença; não sómente lhe foi recusada, como teve ordem positiva de voltar para bordo. Levou esta resposta a Manara, que tambem veiu a terra para vêr se era mais feliz do que elle. A Manara porém foi-lhe negada, como o tinha sido a Henrique Dandolo. —Sois lombardo? perguntou-lhe o general. —Sem duvida, respondeu Manara. —Pois bem, retorquiu Oudinot, se sois lombardo, por que vos intrometteis nos negocios de Roma? —Tambem vós, que sois francez, vos intrometteis n'elles, e muito, respondeu Manara. E virando as costas ao general, voltou para bordo. Mas, quando se soube a bordo que o general francez se oppunha ao desembarque, a exasperação chegou ao seu auge. Depois da partida de Genova tinham soffrido o mar com todos os seus rigores e muitas privações; _bersaglieri_ e voluntarios queriam deitar-se ao mar e ganhar a costa a nado, arriscando-se ao que podesse acontecer. Quando Manara viu que a sua gente estava decidida a recorrer a este extremo, voltou segunda vez a fallar com o general Oudinot, e obteve, depois de uma longa resistencia, que o seu batalhão desembarcasse em Porto de Anzio. O general francez exigiu logo que Manara se conservasse longe de Roma, e totalmente neutral até ao dia 4 de maio, em que, dizia elle, tudo estaria acabado. Manara porém recusou. —General, lhe disse elle, não sou mais que um major ao serviço da republica romana, subordinado por tanto ao ministro e ao meu general. Como dependo d'elles, não posso fazer uma tal promessa. Foi então que M. Manucci, julgou que devia, em nome do ministro da guerra, acceitar as condições impostas pelo general Oudinot, e foi mediante esta promessa que os voluntarios e _bersaglieri_ lombardos poderam desembarcar, em Porto de Anzio, no dia seguinte, de manhã, 27 de abril; partindo no dia 28 para Albano, e pernoitando nas campinas de Roma. Durante a noite, chegou uma ordem do general José Avezzana, ministro da guerra, que, ou ignorava a promessa feita por M. Manucci em nome de Manara, ou não lhe dava importancia: essa ordem dizia que marchassem para Roma immediatamente. Entraram em Roma no dia 29 pela manhã, no meio do enthusiasmo de uma innumeravel multidão de povo. Á noticia da chegada dos francezes a Civita-Vecchia, a assembléa romana declarou-se permanente. Ventilou-se então esta grave questão: Abrir-se-hão as portas aos francezes, ou resistir-se-lhe-ha? O triumviro Armellini e muitos outros eram de parecer que os francezes fossem recebidos amigavelmente. Mazzini, Cernuschi, Sterbini e a maioria queriam que se defendessem com energia até á ultima. Era necessario, antes de tudo, salvar a honra, diziam elles. A assembléa não hesitou: no dia 26 de abril, ás duas horas da tarde, foi votado o seguinte decreto com os applausos de toda a Roma. «Em nome de Deus e do povo, «A assembléa, segundo a communicação recebida pelo triumvirato, entrega-lhe a honra da republica e encarrega-o de repellir a força com a força.» Decretada a resistencia, Cernuschi, que tinha feito as barricadas de Milão, foi nomeado inspector das barricadas de Roma: os pontos elevados foram guarnecidos de boccas de fogo, e o povo agitou-se, arquejando, á espera de algum acontecimento importante. Foi então que appareceu o homem providencial. De repente um grito unanime se ouviu nas ruas de Roma: —Garibaldi! Garibaldi! Depois uma immensa multidão que o precedia, atirava com os chapeus ao ar, e agitava os lenços, gritando: —Eil-o! eil-o! Seria impossivel descrever o enthusiasmo que se apoderou da população logo que o viu; dir-se-ia que era o deus salvador da republica que corria a defender Roma; a coragem do povo cresceu então pela confiança que n'elle tinha, e pareceu que a assembléa não só tinha decretado a defeza mas até a victoria. Algumas linhas da _Historia da revolução romana_, por Biagio Miraglia darão uma idéa d'este enthusiasmo: «Este vencedor mysterioso, circundado de uma aureola de gloria tão brilhante, que, estranho ás discussões da assembléa, e ignorando-as, entrava em Roma na vespera mesmo do dia em que a republica ia ser atacada, era, no espirito do povo romano, o unico homem capaz de sustentar o decreto de resistencia. «Por isso, immediatamente se reuniram ao homem que personificava as necessidades instantaneas e que era a esperança de todos.» D'esta fórma a necessidade publica dava a Garibaldi o seu posto de general, contestado na ultima guerra por aquelles mesmos por quem elle combatia. ⁂ Garibaldi não poude dar-nos os detalhes que se seguem, pela necessidade que tinha de partir immediatamente para a Sicilia; foram-nos porém fornecidos pelo seu amigo, M. Vecchi, o historiador da guerra de 1848, o membro da assembléa romana, o soldado do dia 30 de abril, 3 e 30 de junho; finalmente, o homem em cuja casa Garibaldi passou o ultimo mez da sua estada em Genova, e que d'ali sahiu para embarcar. Deixamos fallar M. Vecchi, ou antes damos as suas notas originaes. M. Vecchi falla o francez tão bem como o italiano. ⁂ Garibaldi estava em Ravenne, alistando uma forte legião de voluntarios, quando soube da morte de Rossi e da fuga do papa. Determinou ir elle só a Roma para se entender com o governo provisorio, cujo factotum era Sterbini; mas fizeram-lhe comprehender que a sua presença em Roma era tão perigosa como os aquartelamentos dos seus legionarios nas legações; e recebeu ordem de se aquartelar em Macerata, cidade socegada, onde o fizeram preceder pela reputação de salteador. Tendo chegado ali, recebeu ordem de passar com a legião para Rieti. A tropa encaminhou-se por Tolentin, Foligno e Spoléte. Garibaldi veiu a Ascoli porque soube que a policia bourboneza e papista começava a sublevar a povoação dos Apenninos contra o governo de Roma empregando para isso o dinheiro, o temor e o anathema. N'esse tempo era eu capitão do 23.° de linha no exercito piemontez e estava em Ascoli gosando dois mezes de licença quando os meus compatriotas me elegeram deputado na constituinte romana. Garibaldi visitou-me no dia 20 de janeiro, no dia seguinte quiz partir para Rieti atravessando a montanha que estava coberta de neve e onde havia um grande numero de salteadores; os conselhos prudentes que lhe deram, a opposição dos patriotas não fizeram mais que reascitar o seu desejo de intrepido militar; por espaço de uma legua fomos acompanhados pela multidão que se lamentava e chorava: muitos me abraçaram pensando que não tornariam a vêr-me. Seguiam o general, Nino Bixio seu oficial de ordenança, o capitão Sacchi seu companheiro de armas no novo mundo, e de Aguyar seu negro. O resto da comitiva compunha-se de mim e de um cãosinho que ferido n'um pé no dia do combate de Santo Antonio tinha desertado da bandeira de Buenos-Ayres com a qual tinha andado até ali para se alistar na bandeira de Garibaldi. Chamava-se Guerillo. O intelligente animal caminhava coxeando sempre entre as quatro pernas do cavallo de Garibaldi. Na primeira noite alojamo-nos em casa do governador de Arguata, Caetano Rinaldi, chefe da reacção clerical que surgia atraz de nós a pouco e pouco e á medida que avançavamos. Ficámos n'uma sala ao _rez-de-chaussée_ ás escuras até ás dez horas da noite com pessoas que entravam, sahiam e fallavam em segredo. Notei isto ao general que me respondeu com o seu habitual socego. —Estão detalhando o jantar. Nada podia dizer mais verdadeiro, levantamo-nos da mesa á meia noite tendo sido tratados como se fossemos cardeaes. Quando partimos o governador deu-nos quatro arrateis de batatas para a viagem. Ás quatro horas da manhã montámos a cavallo e fomos acompanhados até ao cume da montanha pelo filho de M. Rinaldi que trazia uma bandeira tricolor de seda. Ao meio dia devorámos um cordeiro que o general mandou assar por partes n'uma fogueira de lenha, e á noite alojamo-nos n'uma estalagem isolada cheia de camponezes armados. Talvez tivessem recebido a palavra de ordem de Arguata, as physionomias eram sinistras, convidamol-os todos para beber e recusaram. Fomos deitar-nos e dormimos com o sabre ao lado e a mão sobre o gatilho da pistola. Garibaldi levantou-se, tinha o cotovelo esquerdo dorido e o joelho direito inchado pelo rheumatismo apanhado na America, não poude calçar a bota e foi de braço ao peito. Depois de meia hora de marcha os cavallos não poderam continuar. Com effeito trepavamos uma montanha escarpada que o gelo da noite tornara escorregadia como um espelho. Pelo espaço de uma legua os cavallos caminharam sobre os nossos capotes que estendiamos diante d'elles, atravessamos em seguida uma planicie coberta de neve onde os cavallos se enterravam até aos peitos; para me aquecer apeei-me e fui saber da saude do general que cavalgava na minha frente só com uma bota calçada e no outro pé uma meia de algodão. —Então, perguntei-lhe eu, como vae, general? Cumprimentou-me com o sorriso affavel que é habitual á sua natureza forte e serena, e disse-me: —Perfeitamente, obrigado. Como eu ia ao lado d'elle, sem duvida para se distrahir das dôres pungentes que lhe torturavam a carne, mostrou-me com a mão o aspecto grandioso d'esta natureza selvagem. Effectivamente achavamo-nos no meio de elevadas montanhas cujos cumes cheios de rochas se assimilhavam aos fortes castellos edificados pelos Titans. Por toda a parte rochedos escarpados, minados pelos seculos, desprendendo-se das cumiadas tinham rolado para os valles estreitos e escarpados e jaziam no leito de uma torrente espumosa, terrivel, murmurante e limosa; a espaço viam-se algumas casas escondidas na espessura de choupos, faias, castanheiros e outras arvores, distinguindo-se pelas alvas nuvens de fumo que sahiam das chaminés. Esta paysagem á Salvador Rosa assombreada pela tormenta e tornada mais ameaçadora pelo sopro do vento, exaltou a alma de Garibaldi. —É aqui, disse elle, que eu queria encontrar todo o exercito de Radetzki: os nossos bravos legionarios não deixariam regressar a Vienna um dos seus soldados; aqui vingariamos Varus e nossos irmãos mortos na floresta de Teutberg. Pelas cinco horas estavamos perto de Cascia, pequena reunião de casas agrupadas no cume de uma collina verdejante; o vento tinha dispersado as nuvens, o sol brilhava sobre as nevosas cumiadas, formando montanhas de prata que se destacavam sobre um fundo azul que se tornava côr de rosa para o lado do poente. Descançavamos junto a um montão de palha, quando quatro mancebos vieram perguntar-nos quem eramos, ao nome de Garibaldi partiram correndo e passado um quarto de hora o porta-bandeira, as notabilidades, a guarda nacional, e a multidão com musica na frente vieram receber-nos, e convidar o general a ir á villa. Armou-se, como por encanto, um arco triumphal de folhagem; o theatro illuminou-se; houve jantar e baile em casa do governador, que, não obstante, era um altivo clerical. Lembro-me de terem apresentado a Garibaldi um camponez que, sem saber lêr nem escrever, tinha dictado um poema completo sobre a vida pastoril. Perto das nove horas, um visinho me disse em segredo que um rapaz de quinze annos gemia na prisão embrutecido pelas pancadas e maus tratos do pae, que, casando segunda vez, aos sessenta annos, com uma camponeza muito nova, tinha, por conselho d'ella, accusado o filho de lhe ter faltado ao respeito. O governador recebeu vinte escudos e o rapaz foi lançado na prisão. Fiz constar o facto e fallei d'elle ao general. O pae foi chamado, e tambem o desgraçado rapaz. Houve então uma scena ao mesmo tempo comica e horrenda. O pae queria, é verdade, que soltassem o filho; mas reclamava com toda a sinceridade o dinheiro que tinha dado para o prenderem. O rapaz chorava amargamente e abraçava Garibaldi; em quanto ao governador, não sabia que postura havia de tomar. Por fim, fez um discurso ao povo da janella, e o rapaz foi levado em triumpho por todos os galopins da villa. No dia seguinte, as cinco horas da manhã, um destacamento da guarda nacional partiu comnosco por baixo de uma chuva miuda mas penetrante. Acompanhou-nos até Rieti e escoltou um empregado das finanças que tinham prendido no sitio onde almoçamos, porque era um espião pago pelo general bourbonez Landi, commandante da columna movel na fronteira dos estados romanos. A legião italiana aquartelada em Rieti compunha-se de tres batalhões (quinhentos homens) aos quaes se tinham juntado noventa lanceiros equipados e montados á custa do seu commandante, o conde Angelo Masina de Bolonha. Foi com elles que o conde marchou a soccorrer Roma. Quando os francezes desembarcaram em Civita-Vecchia, a legião achava-se em Anagni, berço e tumulo de Bonifacio VIII. _Aug. Vecchi._ ⁂ Mas a este general que tinha todo o povo a seguil-o faltava-lhe soldados. Improvisaram-lhe uma brigada de elementos estranhos uns aos outros de homens que não se conheciam, e que deviam reunir-se, fundir-se n'um só, misturar-se por effeito do enthusiasmo que elle inspirava. Esta brigada formou-se de dois batalhões da sua propria legião, entre os quaes havia uns quarenta vindos com elle de Montevideo, trajando _blouse_ vermelha com canhões verdes, de trezentos homens de volta de Veneza, de quatrocentos mancebos da universidade, de trezentos officiaes da alfandega, mobilisados finalmente de trezentos emigrados, ao todo dois mil e quinhentos homens que foram encarregados de defender os muros desde a porta Portese até ás portas San-Pancracio e Cavallegieri, e occupando todos os pontos elevados por fóra das muralhas da villa Corsini, conhecidos sob o nome dos _Quatro-Ventos_ até á villa Pamphili. Segundo toda a probabilidade era sobre este ponto que empregariam mais força os francezes que queriam conservar Civita-Vecchia para base das suas operações. No dia 28 de abril a vanguarda franceza estava em Palo, onde tinha chegado na vespera um batalhão de caçadores para explorar o caminho. No dia 29 estava em Castel-di-Guido, isto é a cinco leguas de Roma. Então o general em chefe mandou em reconhecimento seu irmão, o capitão Oudinot, e um official de ordenança com quinze soldados de cavallaria ligeira. Este reconhecimento avançou para o sitio onde se dividiam as duas estradas Aurelianas, antiga e moderna, e a uma legua de Roma encontrou os postos avançados dos romanos. O official que commandava os postos avançados dirigiu-se então aos francezes e perguntou-lhes: —Que quereis? —Ir a Roma, responderam os francezes. —Não é possivel, disse o official italiano. —Nós fallamos em nome da republica franceza. —E nós em nome da republica romana, por tanto para traz senhores! —E se nós não quizermos voltar para traz? —Trataremos de os obrigar a isso. —Por que meio? —Pela força. —N'esse caso disse o official francez voltando-se para os seus, se assim é, fazei fogo. E ao mesmo tempo disparava uma pistola que tirara dos coldres. —Fogo! respondeu o official italiano. O reconhecimento muito fraco para resistir, retirou-se a galope deixando em nosso poder um caçador francez debaixo do cavallo que estava morto. Foi preso e enviado a Roma. O boletim francez diz que fomos nós que fugimos e fomos perseguidos, mas se assim fosse como era possivel termos enviado a Roma um prisioneiro feito por nós que estavamos a pé, em quanto que os francezes estavam a cavallo? No seguimento teremos de relevar mais de um engano d'este genero. O reconhecimento foi pois levar ao general a noticia de que Roma estava prompta a defender-se, e que deviam perder a esperança de entrar ahi sem queimar uma escorva, e no meio das acclamações do povo como esperavam. O general em chefe nem por isso afrouxou a marcha. No dia seguinte, 30 de abril, avançou a passo dobrado, deixando em Maglianilla as bagagens dos seus soldados. Relevemos um novo engano relativo ao dia 30 de abril como relevamos o de 29. Certos escriptores disseram que victimas de uma vil intriga, os soldados tinham sido attrahidos para a cidade em perseguição de um simples reconhecimento e tinham cahido n'uma cilada. O negocio do dia 30 não foi um reconhecimento aos francezes, não se lhe armou cilada alguma. O successo do dia 30 foi um combate em que muito esperava o general francez, e a prova é o plano de batalha que se segue achado a um official francez morto, e transmittido pelo coronel Masi ao general ministro da guerra.[2] [2] Não estou escrevendo um romance, estou publicando _Memorias_. Vejo-me pois forçado a traduzir textualmente. Não nego nem affirmo, instruo um processo diante d'esse grande e ultimo juizo que se chama a Verdade. «Dever-se-ha dirigir um duplo ataque pelas portas Angelica e Cavallegieri, com o fim de dividir a attenção do inimigo. «Pela primeira forçar-se-hão as tropas inimigas que acampam em Monte-Mario, e em seguida poder-se-ha occupar a porta Angelica. «Quando os nossos tiverem occupado estes dois pontos apertaremos o inimigo com toda a força possivel em todos os sentidos e o ponto geral de reunião será na Praça de S. Pedro. «Recommenda-se sobre tudo poupar o sangue francez.» A idéa do general francez não só era má, mas foi mal executada; vamos tentar proval-o. A estrada que conduz de Civita-Vecchia a Roma separa-se em duas a quinhentos metros pouco mais ou menos das muralhas, conduzindo pela direita á porta San-Pancracio, e pela esquerda á porta Cavallegieri visinha do angulo saliente do Vaticano. Ahi foi o grande erro que os francezes commetteram. Lançaram na direita os caçadores a pé do 20.° de linha que acharam um caminho aspero e cortado de bosques e de um difficil accesso e nas alturas da esquerda os caçadores de Vincennes; cerca de cento e cincoenta metros dos muros estes bravos rapazes perdidos do exercito inimigo foram fulminados com o chuveiro de metralha que vomitava a bateria do bastião San-Mario. Comtudo o mal não foi para elles tão grande como podia ser, por causa da habilidade adquirida na guerra contra os arabes, de fazerem muralhas de todos os accidentes do terreno. O seu fogo admiravelmente dirigido causava-nos grandes perdas. Foi ali que morreram, o tenente Marducci mancebo que dava as maiores esperanças, cuja mãe depois da entrada do Papa Pio IX foi condemnada a oito dias de prisão por ter ido depôr flôres sobre o tumulo de seu filho; o major ajudante Enrico Pallini, o brigadeiro della Ridova, o capitão Pifferi, o tenente Belli, e outros mais desconhecidos ao mundo, mas charos para nós; taes como de Stephanis, Ludovico e o capitão Leduc, bravo belga que combatêra por nós na guerra da independencia. Não faltavam porém vivos para substituir os mortos. Desde manhã o rufar dos tambores annunciou aos romanos que os francezes estavam já á vista e n'um momento os muros e os bastiões cobriram-se de homens. Em quanto o fogo dos caçadores do 20.° de linha e o dos caçadores de Vincennes respondiam ao nosso, o grosso da columna franceza avançava sempre. No momento della apparecer uma bateria de quatro peças collocadas n'um bastião, começou a metralhal-a. O general francez estabeleceu logo uma bateria sobre os aqueductos, encarregada de responder ao nosso fogo, e fez montar sobre uma collina duas outras peças que fizeram face aos jardins do Vaticano, onde estavam poucos soldados, mas uma grande quantidade de povo armado. O general francez vendo que o nosso fogo tinha afrouxado, por causa da certeza do tiro dos caçadores de Vincennes, mandou a brigada Moliére que avançou com bravura até ao pé das muralhas; mas como já disse os mortos tinham sido substituidos com ligeireza, e o fogo animou-se mais ardente ainda, destruindo a frente das columnas Marulaz e Bouat, forçoso lhe foi pois retirarem-se e procurarem um abrigo nas curvas que o terreno fazia. Garibaldi seguia todos estes movimentos dos jardins da villa Pamphili. Entendeu que tinha chegado a sua vez e mandou varios destacamentos através as vinhas, esta manobra porém foi descoberta, e do 20.° de linha mandaram um reforço para impedir que os caçadores de Vincennes fossem surprehendidos e para protegêl-os. Garibaldi então mandou dizer que se lhe enviassem um reforço de mil homens responsabilisava-se pelo exito d'aquelle combate. Enviou-se-lhe logo o batalhão do coronel Galleti e o primeiro batalhão da legião romana commandado pelo coronel Morelli. Dispoz varias companhias para defenderem as passagens ameaçadas, outras foram encarregadas de proteger os flancos e a retaguarda da sahida, e á frente dos homens que lhe restavam Garibaldi lançou-se sobre os francezes. Por fatalidade os nossos tomaram os homens de Garibaldi por francezes e do alto das muralhas fizeram fogo sobre elles. Garibaldi parou até que se conhecesse o engano, e então á bayoneta lançou-se a descoberto sobre o centro do exercito francez. Empenhou-se então um combate terrivel, entre os tigres de Montevideo como lhes chamavam e os leões de Africa. Francezes e romanos luctavam corpo a corpo, matavam-se á bayoneta, cahiam, mas tornavam a levantar-se para começar de novo. Garibaldi achava emfim inimigos dignos d'elle. Ali morreram dos nossos o capitão Montaldi, os tenentes Rigli e Zamboni, foram feridos o major Marochetti, o cirurgião Schienda, o official Gliglioni, o capellão Ugo Bassi que desarmado affrontava os ferimentos e a morte, para soccorrer os feridos e consolar os moribundos; coração piedoso, alma misericordiosa, de que os sacerdotes fizeram um martyr; finalmente os tenentes d'All'Oro, Tressoldi, Rolla, e o joven Stadella, filho do general napolitano. Depois de uma hora de lucta os francezes foram obrigados a ceder: uma parte debandou pelo campo e outra refugiou-se no corpo principal. Ficaram prisioneiros duzentos e sessenta francezes. Foi então que o capitão de artilheria Faby, official de ordenança do general em chefe, vendo o mau exito do ataque tão mal combinado pelo general, julgou remedial-o propondo ao seu chefe guiar um novo ataque por um caminho seu conhecido, dizia elle, e que o conduziria desapercebido até debaixo dos muros de Roma, diante do jardim do Vaticano. Este caminho era flanqueado por quatro ou cinco casas onde se poderiam deixar destacamentos, e que estavam occultas pelas vinhas. O general em chefe acceitou, deu-lhe uma brigada do corpo Levaillant, e o capitão Faby partiu. A empreza foi facil a principio, e a marcha da columna ficou effectivamente desapercebida dos defensores de Roma até á estrada consular da porta Angelica; ali porém ao primeiro brilho das armas francezas um fogo terrivel lançado de todo o circuito dos jardins pontificaes recebeu a columna, e uma das primeiras balas matou o capitão Faby que a conduzia. Apezar de privada do seu guia a columna defendeu-se valerosamente por algum tempo, respondendo ao fogo das muralhas, mas dizimados e destruidos tendo na retaguarda as nossas tropas de Monte-Mario, na frente o fogo do castello Saint-Ange que lhes tomava o caminho da porta Angelica, expostos a descoberto ao chuveiro de balas e metralha que sahia dos jardins do Vaticano, e que lhes não permittia readquirir as suas antigas posições; os francezes foram obrigados a refugiar-se nas casas dispersas nas vinhas e espalharem-se pelo comprimento da estrada onde a nossa artilheria continuou a fulminal-os. Assim pois uma brigada completa que formava o flanco esquerdo do corpo do exercito francez achou-se separada do seu centro, e correndo perigo de ser toda prisioneira. Por felicidade para o general Levaillant as nossas tropas de Monte-Mario não desceram, e dois mil homens agglomerados atraz da porta Angelica não se moveram. O general em chefe não era mais feliz á direita, quero dizer, no ponto em que havia combatido Garibaldi; um instante o fogo e a lucta haviam cessado pela retirada dos francezes; mas sendo sua gente repellida, o general Oudinot receiava vêr cortadas as suas communicações com Civita-Vecchia, e tinha compellido para a frente os restos da brigada Moliére, e o combate resfriado um instante, retomara novo ardor. Mas a sciencia da guerra, a disciplina, a coragem, o ataque impetuoso tudo cahiu ante os nossos soldados, apezar de sua juventude e inexperiencia. É que Garibaldi estava ahi, erguido a cavallo, com os cabellos soltos ao vento, como a estatua de bronze do deus dos combates. Á vista do invulneravel, cada um se recordou das façanhas dos immortaes antepassados e d'esses conquistadores do mundo de que elles pisavam as sepulturas; ter-se-hia dito que todos sabiam que a sombra dos Camillos, dos Cincinnatos e dos Cesares os olhavam do alto do Capitolio. Á violencia, á furia franceza, oppunham o socego romano, a vontade suprema da desesperação. No fim de quatro horas de um combate obstinado, o chefe de um batalhão do 20.° de linha, hoje general Picard, graças a prodigiosos esforços, a uma coragem desmedida, apoderou-se com trezentos homens de uma posição bella, forçando os jovens universitarios a abandonal-a; mas quasi immediatamente, Garibaldi tendo recebido um batalhão de exilados commandado por Arcioni, um destacamento da legião romana, com duas companhias da mesma legião, poz-se-lhe á frente, e de cabeça baixa, bayoneta cruzada, retomou a seu turno a offensiva, e com um fogo irresistivel, destruindo todos os obstaculos, envolveu na casa de que elle havia feito uma fortaleza, o chefe do batalhão, Picard, que atacado de todos os lados pelos nossos, e de face por Nino Bixio, que luctou corpo a corpo com elle, foi forçado a render-se com os seus trezentos homens. Esta lucta agigantada decidiu a refrega, e mudou completamente a face ás cousas. Já não era questão saber se Oudinot entraria em Roma, mas sim se poderia volver para Civita-Vecchia. Garibaldi, com effeito, senhor da villa Pamphili e da posição dos aqueductos, dominava a via Aureliana, e por um movimento rapido podia preceder os francezes em Castel-di-Guido e fechar-lhes a estrada. O resultado d'este movimento era certo; a ala esquerda dos francezes, esmagada nos jardins do Vaticano e abrigada, como o dissemos, nas casinhas dispersas, não podia bater em retirada sem se expôr ao fogo exterminador da artilheria e da fusilaria dos muros. A ala direita, batida e dispersada por Garibaldi, achava-se n'esse momento de desanimação fatal que se segue a uma derrota inesperada, e podia apenas oppôr uma fraca resistencia. Alem d'isto, os francezes estavam extenuados por um combate de dez horas, e sem cavallaria alguma que protegesse a sua retirada. Nós tinhamos dois regimentos de linha em reserva, dois regimentos de dragões a cavallo, dois esquadrões de carabineiros, o batalhão dos lombardos, commandado por Manara, preso, é verdade pela palavra de Manucci, e por detraz d'elles um povo inteiro. Garibaldi tinha previsto a situação porque do campo de batalha, escrevia ao ministro da guerra Avezzana: «Enviae-me tropas frescas, e da mesma fórma que eu vos havia promettido de bater os francezes, palavra que sustentei, eu vos prometto de impedir que um só regresse aos seus navios.» Mas então, diz-se, o triumviro Mazzini oppoz sua palavra potente a este projecto. —Não façamos, disse elle, da França um inimigo mortal, por uma derrota completa, e não exponhamos nossos jovens soldados de reserva em campo raso, contra um inimigo batido, mas valoroso. Este grave erro de Mazzini roubou a Garibaldi a gloria de um dia á Napoleão, e tornou infructuosa a victoria de 30; erro fatal e entretanto desculpavel para um homem que tinha firmado todas as esperanças no partido democratico francez de que Ledru-Rollin era chefe, erro que teve para a Italia incalculaveis consequencias. O plano de Garibaldi, se se houvesse adoptado, podia mudar os destinos da Italia. De feito a posição era das mais simples, e eu o recordo, hoje que os odios politicos estão extinctos, e que um novo dia brilha para a Italia á lealdade dos nossos proprios adversarios. Oudinot tinha atacado Roma com duas brigadas, uma sob as ordens do general Lavaillant, outra sob as do general Manara: um batalhão de caçadores a pé, doze peças de campanha e cincoenta cavallos, completavam a divisão; vimos a que penoso estado ficara reduzido na noite de 30 de abril este corpo de exercito, cuja ala esquerda tinha sido inconvenientemente alongada e a ala direita reunida sobre seu centro por Garibaldi, senhor da villa Pamphili, dos aqueductos e da antiga via Aurelianna; era preciso sem perder um instante e com todas as tropas disponiveis, marchar para a frente, forçar os francezes ou a uma fuga rapida, necessaria se quizessem ganhar Civita-Vecchia, ou a um novo combate, que terminasse por sua completa destruição na desfavoravel situação em que se achavam. Ou o exercito francez teria sido destroçado ou forçado a depôr as armas. O que ha n'isto de curioso é que durante toda esta marcha, as musicas militares romanas tocaram a _Marselhesa_ combatendo aquelles que animados por este canto tinham vencido a Europa. É verdade que elles já não cantavam. Além dos mortos e feridos que nos fizeram, as balas, e projectis causaram n'estes recontros grandes damnos aos nossos monumentos, e não podemos deixar de nos rirmos tristemente quando lemos nos jornaes francezes que o cerco cresceria provavelmente em extensão pelo cuidado que tinham os engenheiros de não offender os monumentos artisticos. As ballas, e os tiros de canhão batiam, com effeito, e se espalhavam como chuva sobre a cupola de São Pedro e sobre o Vaticano. Na capella Paulina, enriquecida com pinturas de Miguel Angelo, de Zuccari e de Lourenço Sabati, uma das pinturas foi diagonalmente ferida por um projectil. Na Sixtina um outro damnificou um caixão pintado por Buonaroti. Emfim, os francezes perderam n'estes combates, feridos e prisioneiros, trezentos homens. Pela nossa parte tivemos uma centena de homens mortos ou fóra do combate e um prisioneiro. Este prisioneiro era o nosso capellão Ugo Bassi que n'um dos nossos movimentos de reanimar, tendo encostado aos joelhos a fronte de um moribundo junto ao qual se havia sentado para o consolar, não quiz abandonal-o senão quando elle exhalou o derradeiro suspiro. Advinha-se facilmente a alegria que se apoderou de Roma em a tarde e noite que se seguia a este primeiro combate. Fosse qual fosse o aspecto que d'ali em diante tomassem as coisas, a historia, pelo menos assim se julgava, não negaria que não só nós tinhamos feito frente um dia inteiro aos primeiros soldados do mundo, mas ainda os haviamos forçado a retirar. A cidade foi toda illuminada, tomando o aspecto de uma festa nacional; de todos os lados ouviam-se cantos e musicas. Sahindo do quartel general estes cantos e estas musicas atormentavam os corações dos soldados prisioneiros. O capitão Faby voltando-se para um official romano, era o historiador Vecchi, perguntou-lhe: —Esta alegria e estes cantos são para nos insultar? —Não, lhe respondeu Vecchi, não supponhaes tal; o nosso povo é generoso e não insulta a desgraça; mas festeja o seu baptismo de sangue e de fogo. Vencemos hoje os primeiros soldados do mundo; quererieis impedil-o de applaudir a memoria dos mortos e a resurreição da nossa velha Roma? Então o capitão Faby mostrou-se vivamente tocado por esta resposta, que era feita em excellente francez, e tão tocado que com as lagrimas nos olhos gritou: —Pois bem, debaixo d'esse principio, viva Roma e viva a Italia! Nenhum soldado prisioneiro foi enviado ao quartel que lhe havia sido destinado sem que recebesse viveres e que fosse provido de tudo que necessitava. Quanto aos officiaes que tinham perdido a espada, foi-lhes no mesmo instante entregue uma outra. No seguinte dia, 1.° de maio, ao raiar d'alva, o infatigavel Garibaldi, havendo recebido do ministro da guerra authorisação para attacar os francezes com a sua legião, quero dizer, com mil e duzentos homens, dividiu-a em duas columnas de que uma parte sahiu pela porta Cavallegieri com Masina, e a outra sob suas ordens, pela porta São-Pancracio. A pouca cavallaria que tinha foi augmentada com um esquadrão de dragões. O fim de Garibaldi era surprehender os francezes no seu acampamento e dar-lhes batalha, ainda que as suas forças fossem seis vezes menores que as d'elles; além d'isso esperava que ao ruido da fuzilaria e da artilharia, o povo todo correria em seu soccorro. Mas chegado ao campo soube que os francezes tinham partido durante a noute retirando-se para Castel-di-Guido, e que Masina que tinha seguido caminho mais curto se havia encontrado com a sua rectaguarda e batalhava com ella. Garibaldi então dobrou a marcha, e alcançou Masina perto da hospedaria de Mallagrota, onde os francezes se reuniam e pareciam apprestar-se para o combate. Tomou logo o flanco do exercito francez, sobre uma elevação, posição vantajosissima; mas no momento em que os nossos hiam carregar, um official destacando-se do exercito pediu para fallar a Garibaldi. Garibaldi ordenou que lh'o conduzissem. O parlamentado disse que era enviado pelo general em chefe do exercito francez para tratar dum armisticio e assegurar-se se realmente o povo romano acceitava o governo republicano e queria defender seus direitos. Como prova das leaes intenções do general, aquelle propunha de nos entregar o padre Ugo Bassi, feito prisioneiro na vespera como já dissemos. [Ilustração: _Lith. de Castro, Poço Novo No 33_ VICTOR MANOEL] Durante isto chegava-nos a ordem do ministro pedindo a Garibaldi de volver a Roma. A legião ahi entrou pelas quatro horas da tarde levando comsigo o parlamentario. O armisticio pedido pelo general Oudinot foi-lhe concedido. XV EXPEDIÇÃO CONTRA O EXERCITO NAPOLITANO Em quanto que se consumavam os successos que acabamos de referir, o exercito napolitano, forte com quasi vinte mil homens, com o rei á sua frente, arrastando atraz de si trinta e seis bocas de fogo, flanqueado por uma cavallaria magnifica, orgulhosa de seus recentes triumphos na Calabria e na Sicilia, avançava para investir a cidade pela margem esquerda do Tibre. Tendo occupado militarmente Velletri, depois Albano e Frascati, protegido á direita pelos Appeninos e á esquerda pelo mar, alongava seus postos avançados a algumas leguas de nossos muros. Vendo isto, Garibaldi, que o armisticio deixava desoccupado, buscou empregar seus ocios fazendo guerra ao rei de Napoles. Foi-lhe concedida a permissão. Na noite de 4 de maio, Garibaldi sahiu com a sua legião, fortalecida com dois mil e quinhentos homens. Entre estes dois mil e quinhentos homens achavam-se o batalhão de _bersaglieri_ de Manara, restabelecido no pleno dominio de seus direitos (que, todavia, não tinham sido alienados a respeito do rei de Napoles), os _douaniers_, a legião universitaria, duas companhias da guarda nacional movel e alguns outros corpos de voluntarios. A reunião tinha sido dada para a praça do Povo. Ás seis horas Garibaldi havia chegado. Um joven suisso, da Suissa Alemã, que escreveu uma historia do cerco de Roma, Gustavo de Hoffstetter, exprime assim o effeito que lhe produziu a vista de Garibaldi. «No momento em que soavam seis horas, o general appareceu com seu estado-maior e foi recebido por um trovão de vivas; via-o pela vez primeira; é um homem de mediana estatura, rosto crestado pelo sol, mas com linhas de uma pureza extranha; estava sentado sobre o cavallo, tão tranquillo e firme como se ahi houvera nascido; debaixo do seu chapeu de largas abas, e copa estreita, ornada de uma pluma de avestruz, se espalha uma floresta de cabellos; uma barba ruiva lhe cobre a parte inferior do rosto; sobre sua camisa vermelha traz um _puncho_ americano branco debruado de vermelho como a camisa. Seu estado-maior trazia a blouse vermelha, e mais tarde toda a legião italiana adoptou esta côr. «Atraz d'elle cavalgava o seu palafreneiro, negro vigoroso que o tinha seguido da America; vinha vestido com um manto preto, e armado de uma lança de lamina vermelha. «Todos os que tinham vindo com elle da America traziam á cintura pistolas e punhaes de uma bella execução; cada um tinha na mão um chicote de pelle de bufalo.» Continuemos a descripção: agora é Emilio Dandolo que falla; o pobre mancebo, ferido no cerco de Roma onde foi morto seu irmão, falleceu depois em Milão, com doença de peito, e tambem nos lega uma narração dos acontecimentos em que tomou parte. «Seguidos de suas ordenanças todos os officiaes vindos da America, debandam, reunem-se, correm em desordem, vão aqui e acolá, activos, vigilantes, infatigaveis; quando a comitiva pára para acampar e descançar, em quanto que os soldados ensarilham armas, é um curioso espectaculo vêl-os saltar abaixo de seus cavallos, e prover cada um de per si, incluindo o general, ás necessidades de seus pobres animaes. «Acabada a operação, os cavalleiros pensam em si, e se das localidades visinhas não podem obter viveres, tres ou quatro coroneis ou majores montam novamente, e armados de laços, aventuram-se pelos campos sobre a traça dos carneiros e dos bois. Quando teem reunido o que querem, volvem trazendo adiante de si o rebanho; distribuem-no em partes eguaes pelas companhias, e todos, sem distincção, soldados e officiaes, se poem a degolar, esquartejar, e fazer assar, ante enormes fogueiras enormes peças de carneiro, boi ou porco, sem contar as alimarias miudas como galinhas, pombos, patos, etc. «Durante este tempo, se o perigo vae longe, Garibaldi fica deitado na sua tenda; se ao contrario o inimigo se avisinha, não desce do cavallo, dá as suas ordens e visita os postos avançados; muitas vezes, despe o singular uniforme, veste-se de paisano, e entrega-se ás mais perigosas explorações; a maior parte do tempo, sentado sobre algum elevado cume que domina as immediações, passa horas a sondar o horisonte com seu oculo; quando a trombeta do general dá o signal da partida, os mesmos laços servem para prender os cavallos dispersos na campina; a ordem de marcha é tomada como na vespera e ninguem sabe ou se inquieta sobre para onde se vae. «A legião pessoal de Garibaldi, é pouco mais ou menos de mil homens; compõe-se do mais desordenado sortimento de homens que se póde imaginar, gente de todas as classes, e edades, rapazes de doze a quatorze annos attrahidos a esta vida de independencia, seja pelo enthusiasmo, seja por uma natural desenvoltura, velhos soldados reunidos pelo nome e pela fama do illustre heroe do novo mundo, e no meio de tudo isto, muitos que não podem lisongear-se de ter senão a metade da divisa de Bayard, sem medo, e que procuram na confusão da guerra o roubo e a impunidade. «Os officiaes são escolhidos entre os mais corajosos, e elevados aos graus superiores, sem que se lhes leve em conta a antiguidade, nem nenhuma das regras ordinarias para os elevar. Hoje vê-se um de sabre ao lado, é capitão; ámanhã, por variedade, tomará um mosquete, e irá collocado nas fileiras tornar-se soldado. A paga não falta: é fornecida por meio do papel dos triumviros, que não custa senão o trabalho de o fazer imprimir: proporcionalmente o numero dos officiaes é maior que o dos soldados. «O commissario geral, quero dizer, o homem encarregado das bagagens, era capitão; o cosinheiro do general, era tenente; a ordenança tinha o mesmo grau; o estado maior é composto de majores e coroneis. «De uma simplicidade patriarchal, que é tamanha que se dissera fingida, Garibaldi assemelha-se antes ao chefe de uma tribu indiana que a um general; mas quando o perigo se aproxima ou declara, então é verdadeiramente admiravel de coragem, e de golpe de vista; e o que lhe poderia faltar de sciencia estrategica para ser um general segundo as regras militares, é substituido n'elle por uma actividade inimitavel.» Bem o vêdes, sobre todos os espiritos; sobre todos os temperamentos, este homem extraordinario faz uma impressão egual. Voltemos á expedição contra os napolitanos. A tropa poz-se em marcha ao cahir do dia, pelas oito horas da tarde. Onde se ia? Ninguem o sabia. Apoiou-se sobre a direita até que depois de ter descripto um immenso circulo, encontraram-se na estrada de Palestrina. A noite era limpida e fresca; marchava-se em silencio, e a passo dobrado. O proprio estado maior provia ao serviço de segurança. Os officiaes acompanhados de alguns homens a cavallo, faziam grandes volteios no terreno; quando o solo estava muito accidentado, a columna parava, e os ajudantes sondando o terreno que se estendia ante elles, volviam a dar novas que faziam retomar a marcha á expedição. Estas paragens tinham, além da vantagem da segurança, a de fazer descançar as tropas, cuja marcha continuou assim sem muita fadiga até ás oito horas da manhã. A uma legua de Tivoli, parou-se; depois de algum tempo tinha-se deixado o caminho de Prenesta que conduzia ao de Palestrina, e tinha-se dirigido a marcha para Tivoli seguindo uma velha estrada romana. Por esta marcha nocturna feita com rapidez o general tinha ganho uma triplice vantagem: 1.° Tinha illudido os espiões, que vendo-o sahir da porta do Povo, deveriam julgar que a expedição era dirigida contra os francezes, os quaes, parados em Palo, tinham entabolado uma especie de congresso com o triumvirato. 2.° Garibaldi achava-se, em Tivoli, sobre o flanco direito da linha de operações dos napolitanos que acampavam em Velletri, e que enviavam os seus observadores na direcção de Roma até ás alturas de Tivoli. 3.° A marcha nocturna por um paramo deserto, privado de sombra e de agua, era, graças á fresquidão da noite, um verdadeiro beneficio para as tropas. Ás cinco horas da tarde, os homens retomaram suas fileiras, e marchou-se para as ruinas da villa Adriana, distante uma legua pouco mais ou menos, do logar onde se tinha feito alto, e que jaz ao pé da montanha em que se eleva o Tivoli. O general teve logo tenção de ahi acampar, mas mudou de resolução e fez proceder a uma completa exploração dos logares. Não poz tropas em Tivoli, porque só no ultimo caso é que elle queria entrar nas cidades. No meio das ruinas da villa Adriana, que formam uma fortaleza, a brigada inteira plantou seu campo, homens e cavallos, porque as camaras subterraneas d'este edificio estavam muito bem conservadas para ali se poderem alojar. Esta cidade foi elevada pelo proprio Adriano; tem duas milhas de extensão, e uma de largura. Uma pequena floresta de larangeiras e figueiras brotam sobre a base do antigo palacio. A 6 de maio partiu-se ás oito horas da manhã, com os _bersaglieri_ á frente; e para alcançar a grande estrada de Palestrina foi mister passar pela garganta de São-Veterino. Levou-se uma hora a passar este desfiladeiro; ao meio dia acampou-se n'um outro valle onde se encontrou agua fresca e sombra. Não se via uma casa, mas nadava-se em verdura. Ás cinco horas e meia, retomou-se a marcha e subiu-se a montanha. Os soldados tinham ante si os animaes de carga que levavam as munições de guerra. Quanto aos soldados, todos levavam seu pão; a falta de carne não os inquietava, encontravam-na em todas as paragens; só os bersaglieri tinham marmitas. Chegada ao cume da montanha a expedição encontrou uma antiga estrada romana perfeitamente conservada que conduzia á Palestrina, onde chegou á uma hora da manhã. Foi uma fortuna encontrar esta estrada romana, tão bem conservada, que nem só um dos animaes de conducção deu um passo em falso, nem o vento levantou um só grão de poeira. Entretanto fizeram-se frequentes altas para dar repouso aos soldados. Tinha-se necessidade, visto a lide que se lhes reservava, de que não chegassem fatigados. O general enviou patrulhas para todos os lados. Uma d'estas patrulhas formada por sessenta homens e commandada pelo tenente coronel Bronzelli, o mesmo que dez annos depois foi mortalmente ferido no campo de batalha de Treponti, obteve felizes resultados; atacou uma villa occupada por napolitanos, pôl-os em fuga e fez-lhes alguns prisioneiros. Dois dos nossos que não quizeram render-se foram mortos e feitos em pedaços. A 9 teve-se aviso de que um corpo consideravel de napolitanos avançava para Palestrina; e com effeito pelas duas horas da tarde, do alto da montanha de S. Pedro que domina a cidade e que era occupado pela nossa segunda companhia, viu-se avançar em boa ordem, pelas duas estradas que se reunem á porta del Sole, a columna inimiga. Eram dois regimentos de infanteria da guarda real, e um de cavallaria. Garibaldi enviou diante d'elles em atiradores, duas companhias da sua legião, uma da guarda nacional movel, e a quarta companhia bersaglieri. Aquella occupava a ala esquerda da longa cadeia de montanhas que vem expirar no valle. Manara, da plataforma da porta, dominava a cavallo esta scena magnifica, e por intervenção de uma trombeta indicava os movimentos que era mister obrar. Ter-se-hia julgado isto uma revista, pela tranquillidade com que estas cousas se passavam, e pela maneira com que os movimentos respondiam aos sons da trombeta. Quando chegámos perto dos napolitanos, um vivo fogo começou, e os outros corpos da expedição, formados em columna, se apresentaram fóra da porta. O chefe inimigo quiz então estender em atiradores seus primeiros pletões; mas viam-se os soldados horrorisados recusarem affastar-se uns dos outros. Quanto a nós, avançámos sempre proseguindo o fogo. Então a nossa extrema direita, commandada pelo capitão Rozat, torneou um muro que a impedia de avançar e foi correr vivamente a estender-se sobre os flancos do inimigo. Os napolitanos oscillaram um instante; depois, rompendo suas fileiras repentinamente, tomaram a fuga sem quasi descarregar as espingardas. Então alguns homens do batalhão de Manara penetraram até ao meio de suas fileiras, e sahiram d'ahi conduzindo cinco ou seis prisioneiros. Da direita, ainda que marchando mais lentamente, as cousas procederam da mesma fórma; a primeira companhia de _bersaglieri_ deixou aproximar os napolitanos a um tiro de pistolla, e com uma carga viva e inesperada, e um choque vigoroso á bayoneta, facilmente os poz em fuga, repellindo-os successivamente de tres casas que occupavam, e sustentando com a maior ordem uma carga de cavallaria que custou a vida a bom numero de cavalleiros napolitanos. Garibaldi esperava este momento: enviou de reforço um batalhão a Manara, ordenando-lhe que carregasse sobre toda a linha á bayoneta. Fulminados sobre o flanco pelos lombardos, repellidos em frente pelas legiões e pelos exilados, os reaes tomaram a fuga rapida e completamente deixando no campo tres canhões. O combate durou tres horas, e foi conduzido a bom fim sem grande perda. Os inimigos oppozeram tão fraca resistencia que nos maravilharam. Se houvessemos tido cavallaria para a lançar em perseguição dos fugidos, a sua perda teria sido consideravel. Mas quando Garibaldi viu o inimigo retirar-se precipitadamente e os nossos perseguil-os em desordem, temeu uma emboscada, e fez tocar a retirada. Tivemos doze mortos e vinte feridos, entre elles o bravo capitão Ferrari, que recebeu uma bayonetada no pé. A perda dos napolitanos foi de cem homens. O resultado material, como se vê, era pouca cousa, mas o effeito moral era grande. Dois mil soldados de Garibaldi tinham posto em completa derrota seis mil napolitanos. Perto de vinte e quatro pobres diabos prisioneiros, quasi todos da reserva, e por consequencia arrancados a suas familias e obrigados a combater por uma causa que não era a sua, foram trazidos á presença de Garibaldi. Trementes e de mãos juntas pediram-lhe a vida. Eram bellos homens, bem vestidos, mas detestavelmente armados de espingardas de pederneira, com sacos cheios de imagens de santos e santas, de reliquias e de remedios. Tinham-nas ao pescoço, nas algibeiras, por toda a parte. Disseram que o rei estava em Albano com dois regimentos suissos, tres de cavallaria e quatro baterias; esperavam-se outros reforços de Napoles. Sob as ordens do general Zuechi tinham elles sido enviados para tomar Palestrina e apoderar-se de Garibaldi, que lhes inspirava um terror que ninguem podia imaginar. Á noite acampamos fóra de Palestrina. No dia seguinte avançámos para occupar os postos avançados, duas milhas mais longe; as nossas patrulhas aventuraram-se até ás linhas inimigas, que tinham os piquetes a quatro milhas de distancia. Para não ficarmos ociosos faziamos manobrar os nossos soldados que desde Solaro não tinham feito exercicio uma só vez. Era um bello e animador espectaculo para a nossa causa republicana, vêr estes homens que a um quarto de legua do inimigo, aprendiam o manejo das armas de que iam servir-se contra elle, e que ao som da trombeta estudavam a escóla de plutão e o fogo de atiradores. Á tarde voltámos á cidade, mas foi para dar um novo assalto. A 7 de maio, tinhamos chegado á meia noite debaixo de torrentes de chuva. O batalhão Manara tinha recebido para alojamento um convento de agostinhos; mas os monges não tinham querido abrir; e, fatigados e molhadissimos os republicanos bateram debalde á porta durante uma hora e soffrendo um vento glacial. Enfim, por muito grande que fosse a paciencia dos _bersaglieri_ esgotou-se; fizeram vir os sapadores, e a porta do convento foi arrombada. Ainda que esta noite os soldados horrivelmente cançados, ficassem furiosos por similhante acolhimento, ainda que o general dissesse claramente, e não deixasse ignorar á sua gente, que fazia tanto a guerra aos monges hostis á republica, como aos napolitanos, as exhortações de Manara e de seus officiaes chegaram a acalmar os soldados e a impedir as desordens que se podiam esperar em tal occasião. Deitamo-nos tranquillamente sobre o chão dos corredores, e procuramos n'um curto repouso força para supportar novas fadigas. Por felicidade a fadiga que nos deram os napolitanos não foi grande. Na noite da batalha os bersaglieri reganharam o seu convento, e de novo o encontraram fechado. Foi preciso recorrer novamente aos sapadores para arrombar as portas a golpes de machado. Os irmãos d'esta vez haviam fugido. Não tinham podido crer que os republicanos fossem tão pouco rancorosos, e temeram que a doçura que tinhamos mostrado não fosse um laço que occultasse alguma sinistra volta. Tambem, fugindo os irmãos haviam levado comsigo as chaves das cellas. Para obter roupas e objectos necessarios a um acampamento, por muito modesto que elle fosse, foi mister forçar algumas portas. Por felicidade os sapadores não estavam longe. Estas portas arrombadas, foi contagioso o exemplo; em vez de se contentarem, como da primeira vez com o chão dos corredores, os soldados quizeram ter, uns colxões, outros enxergões; os chefes, cançados de moralisar, seguiram o mau exemplo e apoderaram-se das cellas. Em menos de meia hora, foi cheio de alto a baixo; apenas houve tempo de collocar sentinellas á egreja; aos carneiros e á bibliotheca. De resto, nada havia a tomar; os irmãos não tinham deixado senão grandes moveis, dos quaes nenhum cabia n'um saco; mas bom numero de paisanos que haviam excitado os nossos soldados a esta desordem, aproveitavam a confusão, e, como formigas, se juntavam aos tres e aos quatro afim de levarem os bocados com que um só não podia. Muitos dos nossos, pouco religiosos, corriam por todo o convento felizes por uma vez se poderem assimilhar-se aos monges. Um sahia de uma cella com um largo chapeu dominicano na cabeça, outro passeava gravemente nos corredores com um grande habito branco sobre o uniforme. Todos appareceram á chamada com uma enorme tocha na mão, e durante a noite de 9 a 10, em honra da nossa victoria sobre os napolitanos, o convento foi explendidamente illuminado. A correspondencia dos pobres irmãos não foi mais respeitada que o resto, e mais de uma carta que se abriu e leu em triumpho teria feito córar até ás orelhas os castos fundadores da ordem. A 10, parámos em Palestrina e acampamo-nos nos prados. Os napolitanos pareciam ter perdido o gosto de nos atacar, e coroavam as collinas de Albano e de Frascati aproximando-se pouco a pouco de Roma. Garibaldi, que temia um assalto combinado dos napolitanos e francezes poz-se a mesma tarde em marcha, para voltar sobre Roma; passámos em silencio, e n'uma perfeita ordem, a duas milhas do campo inimigo, por sendas quasi impraticaveis, sem que nenhum accidente perturbasse a tranquillidade de uma marcha magnifica. Emfim na alvorada de 12 chegámos a Roma tendo feito durante a noite vinte e oito milhas sem pararmos um instante; tinhamos a maior necessidade de repouso; muitos de entre nós julgando partir para uma campanha de algumas horas sómente, não tinham trazido para maior ligeireza, nem marmita, nem saco, nem utensilio algum. Mas vindo a noite, em logar de descançarmos, fomos obrigados a retomar as nossas espingardas; foi dado alarme na cidade, correndo o ruido de que os francezes atacavam o Monte-Mario; sahimos precipitadamente pela porta Angelica, trocámos alguns tiros com os francezes, e dormimos á borda de um fosso com a mão sobre as armas. _G. Medici._ XVI COMBATE DE VELLETRI A partir d'este momento as notas deixadas por Garibaldi na occasião de partir para a Sicilia, facilita-nos o podêl-o agora deixar relatar as suas aventuras. ⁂ A 12 de maio a assembléa constituinte romana, á noticia da heroica defeza de Bolonha, proclamou este decreto. Roma, 12 de maio de 1849. «A assembléa constituinte em nome de Deus e do povo. «Decreta: ARTIGO UNICO «O heroico povo de Bolonha, bem mereceu da patria, e da republica, sendo o digno emulo de seu irmão o povo romano.» No dia em que Bolonha cahia, o embaixador extraordinario da republica franceza, Fernando de Lesseps entrava em Roma com Miguel Accursi, enviado da republica romana em Paris. O armisticio de que se tratava havia quinze dias, e contra o qual eu me tinha pronunciado no dia 1 de maio, estava concluido. O governo romano resolveu aproveitar-se d'estas treguas para se desembaraçar do exercito napolitano; porque ainda que elle não fosse para temer, é sempre mau ter sobre os hombros vinte mil homens e trinta e seis bocas de fogo. Engano-me, eram só trinta e tres porque tres tinhamos nós trazido da Palestrina. O governo julgou esta occasião favoravel para crear dois generaes de divisão, um, de um coronel, e o outro, de um general de brigada; o primeiro foi Roselli, eu o segundo. Roselli foi nomeado general de expedição. Alguns amigos me aconselhavam a não acceitar esta posição secundaria, para obedecer a um homem que, ainda na vespera, era meu inferior. Confesso porém que sempre me tem sido indifferentes estas questões de amor proprio, se me tivessem dado, ainda mesmo como simples soldado, a occasião de desembainhar a espada contra o inimigo do meu paiz, teria servido como _bersaglieri_. Acceitei pois, com reconhecimento, o posto de general de divisão. No dia 16 de maio, á noite, todo o exercito da republica, isto é dez mil homens e doze bocas de fogo sahiu dos muros de Roma, pela porta San-Giovanni. Entre estes dez mil homens haviam mil de cavallaria. No caminho deu-se pela falta do corpo Manara designado tambem para fazer parte da expedição. Enviou-se um official do estado maior para saber a razão porque Manara, que era sempre o primeiro a marchar contra o inimigo não apparecia. Não tinha sido prevenido. Estava furioso, julgava que só elle tinha sido desviado da expedição. Passámos o Teverone pela estrada de Tivoli, ali costeamos á direita e chegamos a Zagarola ás onze horas da manhã, depois de uma das marchas mais custosas para a nossa gente. Apezar de não termos avançado muito, tinhamos andado dezeseis horas. Isto provinha do grande numero de gente. Havia uma poeira insupportavel. Além d'isto a estrada era tão estreita em certas partes que tivemos de passar a um e um. Quando chegamos a Zagarola não havia pão nem carne, a divisão napolitana tinha comido tudo, e vinho pouco deixou. O estado maior tinha-se esquecido de prever o caso. Felizmente tinha levado comigo alguns bois, e a minha gente agarrou outros ao laço; mataram-se, esquartejaram-se, assaram-se e comeram-se. É verdade que quando me queixei d'esta falta de cuidado que esteve a ponto de matar á fome a expedição, respondeu-se-me que temeram reunindo viveres despertar o inimigo. Perfeitamente! Estivemos trinta horas pouco mais ou menos n'esta pequena villa, d'onde sahimos sem pão como tinhamos entrado. A ordem de marcha deu-se no dia 18 á uma hora da tarde, não partimos porém senão ás seis horas. Estas paragens fatigam mais que marchas forçadas. Finalmente, ás seis horas puz-me á frente da brigada da vanguarda e parti para Valmontone. Seguiam-me as outras brigadas. Tinha mandado observar o maior silencio nas fileiras e grande vigilancia na frente e nos flancos. Recebi aviso de que o exercito napolitano estava acampado em Velletri com desenove a vinte mil homens entre os quaes haviam dois regimentos de suissos e trinta bocas de fogo. Dizia-se que o proprio rei de Napoles estava na cidade. Effectivamente os realistas occupavam Velletri, Albano e Frascati, as vanguardas estendiam-se até Fratocchi. Tinham o flanco esquerdo protegido pelo mar e o direito apoiado pelos Apeninos e haviam occupado Palestrina depois que eu a abandonei e dominavam d'este modo o valle onde havia o unico caminho praticavel a um exercito que viesse atacal-os de Roma. Podiam pois oppor-nos uma séria resistencia e além d'isto levavam-nos vantagem em posição, numero, bocas de fogo e cavallaria. O feliz resultado porém da primeira empreza era uma promessa de sorte para a segunda. Por outro lado as tropas do rei de Napoles estavam completamente desmoralisadas e como se sabe, na guerra a força moral é tudo. Para obrigar o inimigo a fugir ou a combater, julgou-se que era necessario apoderarmo-nos de repente do valle, occupar uma posição de lado que ameaçasse as communicações do exercito napolitano com Napoles. Monte-Fortino tinha sido escolhido para formar este ponto estrategico. Com effeito, senhores d'este ponto, podiamos lançar-nos sobre Citerna e fechar aos realistas o caminho da fronteira, apoderarmo-nos de Velletri, se por acaso a abandonassem para nos fazer frente, ou finalmente lançarmo-nos com toda a nossa força sobre o corpo mais fraco do inimigo, se elle commettesse o erro de se dividir. Ao anoitecer descobrimos um caminho muito estreito que conduz perto de Valmontone; gastamos duas horas a percorrel-o. O batalhão Manara ajudado d'um esquadrão de dragões e duas bocas de fogo foi encarregado de proteger a vanguarda. Chegamos ás dez horas, as trevas eram espessas e o sitio do acampamento pessimo; fomos obrigados a ir buscar agua a uma milha de distancia. No dia 18, continuamos a marcha com a mesma ligeireza; assim como na vespera tinhamos encontrado Palestrina e Valmontone evacuadas pelo inimigo achamos tambem Monte-Fortino livre, tão livre que era facil disputar-nos. Todo o exercito bourbonez retirava para Velletri. No dia 19 de manhã deixei a posição de Monte-Fortino para marchar sobre Velletri com a legião italiana, o terceiro batalhão do terceiro regimento de infanteria romana e alguma cavallaria commandada pelo bravo Marina, seriam ao todo quinhentos homens. Tinha a meu lado Ugo Bassi, que sempre desarmado mas excellente cavalleiro, servindo-me de ajudante d'ordens, me dizia sem cessar no meio do fogo: —General! por favor, mandai-me onde houver maior perigo, em logar de enviar para ahi alguem de mais utilidade. Chegado á vista de Velletri, enviei um destacamento com ordem de avançar até aos muros da cidade, para que reconhecesse os logares, e, chamando o inimigo, o obrigasse, se fosse possivel, a tomar a offensiva. Eu não esperava, é verdade, com os meus quinhentos homens, bater os vinte mil do rei de Napoles; mas tencionava, empenhado o combate, attrahil-os a mim, e, em quanto os entretinha, dar tempo ao grosso do nosso exercito para chegar e tomar parte no combate. Nas alturas que flanqueam a estrada que conduz a Velletri, colloquei metade da minha legião, duzentos ou trezentos homens no centro, a metade do batalhão á direita, e os poucos soldados de cavallaria, commandados por Marina, na estrada mesmo. Guardei o resto da minha gente em segunda linha como reserva. O inimigo, vendo o nosso pequeno numero não tardou a atacar-nos; primeiro, um regimento de caçadores a pé sahiu dos muros, e, espalhando-se, começou um fogo de atiradores sobre os nossos postos avançados. Segundo a ordem que tinham recebido os postos avançados pozeram-se em fuga. Os caçadores napolitanos foram então seguidos de alguns batalhões de linha e d'um numeroso corpo de cavallaria. O choque foi violento, ao principio. Chegados que foram a distancia de meio tiro de espingarda da nossa gente, um fogo perfeitamente socegado e bem dirigido os fez parar. Havia meia hora que o fogo estava travado. N'este momento, o inimigo lançou sobre a estrada dois esquadrões de caçadores a cavallo; uma carga desesperada d'elles devia decidir a victoria. Puz-me então á frente dos meus cincoenta ou sessenta cavalleiros e carregamos quinhentos homens. Os napolitanos trazidos pelo impulso passaram-nos por cima. Eu fui derrubado, e lançado a dez passos do meu cavallo; levantei-me e fiquei no meio do combate, dando quanto podia ser para que me não dessem. O meu cavallo seguira-me o exemplo: tinha-se levantado. Lancei-me sobre elle, e fiz-me reconhecer dos nossos homens, que podiam julgar-me morto, pondo o meu chapeu e agitando-o na ponta da minha espada. Eu era bem reconhecido por ser o unico que trazia um ponche branco debroado de vermelho. Grandes gritos accolheram a minha resurreição. No seu ardor, a cavallaria napolitana penetrou até á nossa reserva, em quanto os batalhões de linha, a seguiam em columna cerrada. Perdeu-os o seu ardor; pois tendo os flancos protegidos pelo regimento de caçadores a pé, achando os nossos embuscados em todas as collinas da direita e da esquerda, com a nossa reserva na frente, apresentaram-se como um alvo aos tiros dos nossos soldados. N'esta occasião mandei pedir reforço ao general em chefe participando-lhe que a batalha estava, a meu ver, de boa face. Responderam-me que não m'o podiam enviar, antes dos soldados terem tomado a refeição. Resolvi então fazer o que podesse com minhas proprias forças, por desgraça sempre insufficientes nas circumstancias decisivas. Fiz tocar a carregar sobre toda a linha; eramos mil e quinhentos contra cinco mil. No mesmo instante as nossas duas peças foram postas em bateria e descarregaram; o fogo de atiradores redobrou, e meus quarenta ou cincoenta lanceiros conduzidos por Marina, lançaram-se sobre tres ou quatro mil homens de infanteria. Entretanto Manara que estava a duas milhas de nós pouco mais ou menos, ouvia nosso fogo e pedia ao general em chefe permissão de marchar debaixo do fogo da artilheria. Ao fim de uma hora foi lhe concedida. Estes bravos mancebos chegaram a marche-marche pela grande estrada debaixo do fogo inimigo. Quando attingiram a nossa retaguarda, esta abriu-se para os deixar passar. Desfilaram ao som das cornetas e no meio de um admiravel enthusiasmo. Á vista d'estes jovens, pequenos, trigueiros e vigorosos; á vista de seus negros penachos fluctuantes, o grito de _vivam os bersaglieri!_ sahiu de todas as bocas. Elles responderam pelo grito de _viva Garibaldi!_ e entraram em linha. N'este momento era repellido de posição em posição, e retirava-me protegido pelos canhões da praça, de que a maior parte collocados á direita da porta estavam apoiados no convento; duas das peças faziam frente á embocadura da grande estrada, os outros atiravam para o flanco esquerdo da nossa columna, onde os atiradores estavam espalhados; mas visto a natureza do terreno, que offerecia á minha gente numerosos abrigos de terra atraz dos quaes elles podiam esconder-se, ellas não lhe fizeram grande damno. Chegado apenas sobre o campo de batalha, Manara procurou-me com os olhos. Bem depressa me reconheceu pelo meu ponche branco; metteu o cavallo a galope para me alcançar; mas no meio do caminho foi suspenso por um incidente que refiro aqui, porque pinta admiravelmente o espirito dos nossos. Passando diante da musica que tocava uma aria alegre, uma vintena dos seus soldados não poderam resistir á influencia d'esta aria, e debaixo da metralha e fusilaria dos napolitanos tinha-se posto a dançar, como se estivessem n'um explendido baile. No momento em que Manara, debaixo de uma saraivada de ballas, os olhava rindo, uma balla de artilheria levou dois dos dançantes. A este accidente fez-se uma breve pausa. Mas Manara perguntou: —Então, a musica? A musica de novo tocou, e a dança recomeçou com mais ardor que até ali. Por mim vendo chegar os bersaglieri tinha enviado Ugo Bassi para dizer a Manara que viesse fallar-me. A sua primeira palavra foi a perguntar se eu não estava ferido. —Julgo, respondeu Ugo Bassi, que o general recebeu duas ballas, uma na mão, outra no pé, mas como se não queixa, provavelmente as feridas não são perigosas. De feito, eu tinha recebido duas arranhaduras, de que só á noite tratei quando não tinha outra cousa a fazer. Manara contou-me a scena a que acabava de assistir. —Por ventura com homens d'estes, me perguntou elle, não poderiamos tentar levar Velletri de assalto? Puz-me a rir. Conquistar com dois mil homens e duas peças, uma cidade collocada como um ninho de ave no cimo de uma montanha elevada e defendida por vinte mil homens e trinta peças de artilheria! Mas era tal o espirito d'esta brava mocidade que nada via de impossivel. Enviei novos mensageiros ao quartel general. Se tivesse ao menos cinco mil homens teria tentado o assalto tal era o enthusiasmo dos meus e o desanimo dos napolitanos. Á direita da porta via-se uma especie de brecha na muralha; esta brecha era tapada por ramagens e troncos, mas algumas ballas de artilheria a teriam tornado praticavel; columnas de ataque sob a protecção de arvores numerosas, semeadas nos flancos da colina; os sapadores de todos os corpos destruindo os obstaculos teriam feito o resto. Dois ataques simulados teriam protegido o ataque geral. Em vez d'isto era mister contentarmo-nos em deixar os nossos _bersaglieri_ divertirem-se a espingardear as sentinellas das fortalezas em quanto que do convento dos capuchinhos dois regimentos de suissos faziam sobre elles um fogo de artilheria horrivel. Emfim o general em chefe decidiu-se a vir em meu auxilio com o exercito; mas quando chegou tinha passado o momento favoravel. Como eu não duvidava que o inimigo evacuasse a cidade durante a noite, tendo tido a noticia de que o rei tinha já partido com seis mil homens, propuz enviar um forte destacamento pelo lado da porta de Napoles e de passar sobre o flanco inimigo no momento em que elle se retirasse em desordem; mas o terror de nos enfraquecer impediu que fosse executado este plano. Pela meia noite querendo saber onde devia conservar-me, ordenei a Manara de enviar um official com quarenta homens de que elle confiasse, até ás muralhas de Velletri, ou mesmo até Velletri sendo possivel. Manara transmittiu a minha ordem ao tenente Emilio Dandolo, que com quarenta homens avançou através da escuridão para o lado da cidade. Dois paisanos que encontrou lhe asseguraram que a cidade estava abandonada. Dandolo e os seus avançaram então até á porta; nenhuma sentinella a guardava. Destruida pelo fogo dos nossos canhões, havia sido enbarricada. Os bersaglieri escalaram a barricada, e entraram na cidade. Estava completamente deserta. Dandolo fez alguns prisioneiros que se haviam demorado, e por elles e pelos habitantes da cidade que elle despertava, soube tudo que precisava, quero dizer, que apenas vinda a noite os napolitanos tinham começado a retirar, mas com tal precipitação e desordem que haviam deixado a maior parte de seus feridos. Ao raiar do dia, caminhei em sua perseguição; mas foi-me impossivel alcançal-os. Além d'isso quando me achava na grande estrada de Terracina recebi ordem de me reunir á columna cuja metade voltava a Roma, em quanto a outra era destinada a livrar Frosinone dos voluntarios de Zucchi que a infestavam. D'esta sorte o inimigo escapou-nos, e d'um combate que podia ser decisivo resultou só uma simples vantagem. Houve n'este dia quatro grandes faltas: Não me enviar reforços quando os pedi. Não se saber dar o assalto quando se me haviam reunido. Não se saber impedir a retirada aos napolitanos. Não se saber inquietar os fugitivos. XVII 3 DE JUNHO Reentrei em Roma a 24 de maio no meio duma numerosa multidão que me saudava com gritos de alegria. Durante este tempo os austriacos ameaçavam Ancona; de Roma já havia partido o primeiro corpo de quatro mil homens para ir em defeza das legações. Tratava-se de enviarmos segundo, mas antes de lhe fazer abandonar Roma, o general Roselli julgou do seu dever, e para segurança de Roma, escrever ao duque de Reggio a seguinte carta. «Cidadão general «A minha intima convicção é que o exercito da republica romana combaterá um dia ao lado da republica franceza para sustentar os mais sagrados direitos dos povos. Esta convicção me leva a fazer-vos propostas que espero acceiteis. Está assignado um tratado entre o governo e o ministro plenipotenciario de França, tratado que não recebeu a vossa approvação. «Não entro nos mysterios da politica, mas dirijo-me a vós na qualidade de general em chefe do exercito romano. Os austriacos estão em marcha; tentam concentrar suas forças em Foligno; d'ali apoiando a sua ala direita no territorio toscano, tem o designio de avançar pelo valle do Tibre e de operar pelos Abbruzos, a sua juncção com os napolitanos. Não creio que possaes ver com indifferença realisar-se tal plano. «Julgo dever communicar-vos as minhas supposições ácerca dos movimentos austriacos, sobre tudo no momento em que a vossa indecisa attitude favorecia nossas forças e póde dar um successo ao inimigo. Estas razões parecem-me poderosissimas para que vos peça um illimitado armisticio e a notificação das hostilidades quinze dias antes de as recomeçar. «General, julgo este armisticio necessario para salvar a minha patria, e peço-o em nome da honra do exercito e da republica franceza. «No caso em que os austriacos apresentassem as suas cabeças de columna em Civita-Vecchia, é sobre o exercito francez que, perante a historia, recahiria esta responsabilidade de nos ter forçado a dividir as nossas forças n'um momento em que ellas nos são tão preciosas, e de ter, obrando assim, assegurado o progresso aos inimigos da França. «Tenho a honra de vos pedir, general, uma prompta resposta, rogando-vos de receber a saudação fraternal. «_Roselli._» O general francez respondeu: «General, «As ordens do meu governo são positivas; prescrevem-me de entrar em Roma o mais breve possivel. Participei á authoridade romana o armisticio verbal que, sob instancias de Mr. de Lesseps, quiz conceder momentaneamente. Fiz prevenir por escripto os nossos postos avançados de que os dois exercitos estavam no direito de recomeçar as hostilidades. «Unicamente para dar aos vossos compatriotas, que pretenderem deixar Roma, e a pedido do chanceller da embaixada de França, a possibilidade de o fazer facilmente, transfiro o ataque da praça até segunda feira de manhã. «Recebei general os protestos da minha alta consideração. «O general em chefe do corpo de exercito do Mediterraneo. «_Oudinot, duque de Reggio._» Segundo esta affirmativa, o ataque devia começar apenas a 4 de junho. É verdade que um author francez, Folard, disse nos seus commentarios sobre Polybo: «Um general que adormece sobre a fé de um tratado acorda trahido.» A 3 de junho pelas tres horas acordei ao troar do canhão. Estava aquartelado em via Carroze n° 59, com dois amigos; Orrigoni, de que já disse alguma cousa, e Daverio, de que tambem tive occasião de fallar, o mesmo que em Velletri, commandava a companhia das creanças. Ambos a este ruido inesperado, saltaram de seus leitos ao mesmo tempo que eu. Daverio estava muito doente por isso lhe ordenei que ficasse em casa. Quanto a Orrigoni não tinha razão alguma de o impedir de vir comigo. Montei a cavallo, deixando-lhe a liberdade de me ir encontrar onde e quando quizesse, e corri a galope para a porta de São-Pancracio. Achei tudo em fogo. Eis o que tinha acontecido: Os nossos postos avançados da villa Pamphili consistiam em duas companhias de bersaglieri boloneses e duzentos homens do 6.° regimento. No momento em que soava meia noite e em que por conseguinte, se entrava no dia 3 de junho, uma columna franceza se deslisou no meio da obscuridade, para a villa Pamphili. —Quem vive? gritou a sentinella, advertida pelo ruido dos passos. —Viva a Italia, respondeu uma voz. A sentinella julgou estar com compatriotas, deixou-os aproximar e foi desarmada. A columna lançou-se na villa Pamphili. Tudo quanto encontrou foi ferido, morto ou aprisionado. Alguns homens saltaram pelas janellas para o jardim, e do jardim precipitaram-se dos muros abaixo. Os mais apressados retiraram-se atraz do convento São Pancracio, gritando: «Ás armas!» Os outros correram na direcção das villas Valentini e Corsini. Como a villa Pamphili, foram surprehendidas, e cederam, não sem haver resistido. Os gritos dos que se haviam refugiado atraz de São-Pancracio, os tiros atirados pelos defensores da villa Corsini e da villa Valentini haviam despertado os artilheiros. No momento em que viram a villa Corsini e Valentini occupadas pelos francezes, dirigiram seu fogo para estas duas casas de campo. O troar do canhão acordou o tambor e os sinos. Demos uma idéa do campo de batalha onde se vae jogar o destino d'este terrivel combate. Da porta de São-Pancracio parte uma estrada que conduz directamente ao Vascello; esta estrada tem proximamente duzentos e cincoenta passos de extensão. Depois divide-se o caminho. A principal ramificação desce á direita, alongando os jardins da villa Corsini, rodeados de muros, e vae juntar-se á grande estrada de Civita-Vecchia. O ramo secundario, deixa de ser um caminho publico para se tornar uma rua de jardim, que conduz directamente á villa Corsini, a distancia de trezentos metros. Esta rua é flanqueada de cada lado por altos e espessos muros de myrtos. Um terceiro ramal volve á esquerda, e costeia do lado opposto a alta muralha do jardim Corsini. A villa Vascello é uma grande e macissa fabrica de tres andares, rodeada de muros e jardins. A cincoenta passos d'ella encontra-se uma pequena casa da qual se pode fazer fogo contra as janellas da villa Corsini. Sobre o caminho á esquerda a cem passos do logar onde se separa da estrada ha duas casinhas, uma atraz do proprio jardim da villa Corsini, outra vinte passos antes. A villa Corsini collocada sobre uma eminencia, domina todos os arredores; a posição ahi é fortissima, attendendo a que se se ataca simplesmente e sem fazer preparativos, é-se forçado a passar pela gradaria que está na extremidade do jardim, e a soffrer antes de chegar á villa, o fogo concentrado do inimigo, abrigado pelos silvados, vasos, parapeitos, estatuas e pela propria casa, feita no ponto em que os muros do jardim veem juntar-se no angulo agudo, não deixando entre elles outra abertura mais que a da porta. Este terreno é por toda a parte muito accidentado e além da villa Corsini, apresenta muitos pontos favoraveis ao inimigo, que, deitado nas suas rugas ou abrigado pela ramagem póde collocar reservas ao abrigo do fogo dos assaltantes, supposto que é forçado a deixar a casa. Quando cheguei á porta de São-Pancracio, a villa Pamphili, a villa Corsini, e a villa Valentini estavam tomadas. O Vascello apenas estava em nosso poder. Ora a villa Corsini tomada, era para nós uma enorme perda; porque estando nós senhores d'ella os francezes não podiam descobrir seus parallelos. Era mister retomal-a a todo o custo; era para Roma uma questão de vida ou de morte. Os fogos armaram-se entre os artilheiros das fortalezas, os homens do Vascello e os francezes das villas Corsini e Valentini. Mas não era fogo de fuzilaria ou artilheria do que haviamos mister, era necessario um assalto, assalto terrivel mas victorioso, que nos entregasse a villa Corsini. Lancei-me no meio da estrada, inquietando-me pouco se o meu ponche branco e meu chapeu de plumas iam servir de alvo aos atiradores francezes, e pela voz e gesto chamei todos os que estavam dispostos a seguir-me. Officiaes e soldados pareciam sahir debaixo da terra. N'um instante tinha junto a mim Nino Bixio, meu official de ordenança; Daverio que eu julgava, segundo a minha ordem, em via Carroze; Marina commandante ordinario dos meus lanceiros; emfim Sacchi e Marocchetti, meus antigos companheiros de guerra de Montevideo. Reuniram os despojos dos _bersaglieri_ boloneses, pozeram-se á frente da legião italiana, e foram os primeiros a avançar levando apoz si os mais. Nada poude suster a sua furia: a villa Corsini foi retomada; mas antes d'ahi chegar, ficaram tantos homens na estrada que foi preciso atravessar, que os que n'ella penetraram não poderam resistir ás numerosas columnas que vieram assaltal-os. Foram obrigados a recuar. Mas durante esta carga outros haviam chegado e a elles se juntaram; os chefes furiosos da sua derrota pediam para marchar de novo. Marina que tinha recebido uma bala no braço, levava-o ensanguentado gritando: «Ávante!» Para secundar estes valentes soldados entreguei a Vascello os homens que poude; tocou de novo a carga e a villa foi retomada. Um quarto de hora depois foi reperdida, custando-nos um sangue precioso. Marina, como disse, estava ferido no braço; Nino Bixio recebêra uma bala na ilharga; Daverio fôra morto. No momento em que exigi de Marina que fosse vedar o sangue, aonde eu faria conduzir Bixio; Manara que tinha corrido do campo Vaccino, apesar das ordens contradictorias, que tinha recebido, estava ao pé de mim. —Faz sahir a tua gente, lhe disse eu; bem vês que é preciso retomar esta casita. A sua primeira companhia, commandada pelo capitão Ferrari, antigo ajudante de campo do general Durando, era já posta em atiradores fora da porta de São-Pancracio. Ferrari era um bravo que tinha feito comnosco a dupla campanha de Palestrina e de Velletri; em Palestrina tinha sido ferido de uma bayonetada na perna, mas estava curado. Manara fez tocar á chamada; Ferrari arranjou a sua gente e veiu receber as ordens do coronel. Fez armar bayonetas, tocar á carga e avançou. No momento em que chegou á grade, quero dizer a tresentos metros do «cosino» uma saraivada de balas começou a chover sobre elle e os seus. Não deixou todavia de avançar sobre a villa, que lançava chammas como um vulcão, quando o seu tenente Mangiagalli puchando pela manga da tunica lhe disse: —Capitão, não vêdes que somos apenas dois? Ferrari pela vez primeira olhou para traz; vinte oito dos seus homens entre oitenta estavam deitados junto a si mortos ou feridos. Os outros batiam em retirada. Mangiagalli e elle fizeram o mesmo. Manara ficou furioso ao vêr que á sua vista o resto da sua companhia tivesse abandonado seus dois officiaes. Chamou a segunda companhia commandada por Henrique Dandolo, nobre e rico milanez de raça veneziana como o indica seu nome ducal. Reuniu-lhe os despojos da primeira e gritou:—Ávante! lombardos! Trata-se de morrer ou tomar a villa. Pensae que Garibaldi vos contempla. Ferrari fez signal que tinha uma cousa a dizer. —Falla, disse Manara. —General, me disse Ferrari, o que vou dizer-vos não é na esperança de diminuir o perigo, mas na de aproveitar. Conheço as localidades, saio d'ellas, e vêdes que hesitei mais em sahir que em entrar. Fiz-lhe com a fronte um signal de assentimento. —Pois bem: eis o que proponho: em vez de seguir a rua e atacar de frente, nós nos esconderemos, a companhia de Dandolo á esquerda e a minha á direita, atraz dos silvados de myrtos. Uma pedra lançada por mim á companhia de Dandolo lhe significará que a minha gente está prompta; uma outra lançada de seu lado, será sua resposta; então as nossas oito trombetas tocarão a um tempo e lançar-nos-hemos ao assalto do pé do terrasso. —Fazei o que quizerdes, respondi eu, mas retomae a casa. Ferrari partiu á frente da sua companhia, e Dandolo á frente da sua. Fil-os seguir pelo capitão Hoffstetter e por cincoenta estudantes, encarregados de occupar a casa da esquerda da que já fallei, e que foi mais tarde conhecida pelo nome de _casa queimada_. Ao fim de dez minutos ouvi as trombetas e quasi immediatamente a fuzilaria. Eis o que se passava: As duas companhias, protegidas pelos silvados e pelas vinhas, effectivamente tinham penetrado, como Ferrari o esperava, cerca de quarenta passos no terraço, sem serem vistas nem presentidas. Chegadas ahi, deram-se os signaes, as cornetas resoaram, e os meus bravos _bersaglieri_ arremeçaram-se ao assalto. Porém, do terraço, da sala do primeiro andar, da escada circular que a elle conduzia, finalmente de todas as janellas sahia um fogo espantoso. Dandolo cahira, porque uma bala lhe atravessara o corpo; o tenente Sylva estava ferido ao pé do capitão Ferrari; o alferes Mancini tinha recebido, quasi ao mesmo tempo, duas balas, uma na perna, outra no braço. E apezar d'isto, os _bersaglieri_ commandados pelo capitão Ferrari, pois que Dandolo estava morto, tinham continuado, por um supremo esforço, a caminhar para a frente; tinham escalado o terraço e repellido os francezes até á escada circular da villa. Ahi porém todos os seus esforços foram infructiferos; tinham os francezes na frente e nos flancos; disparavam sobre elles quasi á queima roupa, e cada bala derribava um homem. Via-os levantarem-se e tornar a cahir; comprehendi que morreriam até ao ultimo sem resultado algum. Mandei tocar a retirar. Tinha dois mil homens, os francezes tinham vinte mil, eu tomava o quartel Corsini com uma companhia, elles retomavam-no com um regimento. É porque, bem como eu, os francezes comprehendiam perfeitamente a importancia da posição. Os meus _bersaglieri_ voltaram, tinham deixado quarenta mortos no jardim da villa; quasi todos estavam feridos. Era preciso esperar novas forças. Mandei Orrigoni e Ugo Bassi percorrer a cidade, com ordem de me trazerem tudo que encontrassem; queria, para descargo de consciencia, tentar um ultimo, mas supremo esforço. Abriguei os meus homens por detraz do Vascello. Uma hora depois, pouco mais ou menos, chegaram-me, misturadamente, companhias de linha, estudantes, _douaniers_, o resto dos _bersaglieri_ lombardos, e fragmentos de diversos corpos. No meio d'elles vinha Marina a cavallo, que me trazia uns vinte lanceiros. Tinha ido curar-se e voltava a tomar parte na acção. Sahi então do Vascello com um pequeno grupo de dragões; immediatamente começaram os gritos de «Viva a Italia! Viva a republica romana!» o canhão troou, e as balas, passando por cima de nossas cabeças, annunciaram aos francezes um novo attaque; e, a um tempo, sem ordem, misturados todos, Marina á frente dos seus lanceiros _bersaglieri_, eu á frente de todos, lançamo-nos sobre a inexpugnavel villa. Chegados á porta não poderam todos entrar; os que ficavam de fóra espalharam-se em atiradores nos dois flancos do quartel; outros escalaram os muros e entraram nos jardins da villa; outros finalmente, adeantaram-se até á villa Valentini, tomaram-na e fizeram alguns prisioneiros. Vi então passar-se ahi uma scena incrivel: Marina, seguido dos seus lanceiros, compunha a frente da columna. O intrepido cavalleiro galgou o terraço e, chegado que foi á escada, cravou as esporas na barriga do cavallo, fez-lhe saltar os degraus a galope, tão bem que por um momento appareceu, no patamar que conduzia ao salão, similhante a uma estatua equestre. Esta apotheose não durou mais que um minuto; uma descarga á queima roupa deitou por terra o cavalleiro; o cavallo cahio sobre elle ferido por nove ballas. Manara vinha na rectaguarda, á frente d'uma carga de baioneta, a que nada resistio; um momento, foi nossa a Villa-Corsini. O momento foi pequeno, mas sublime. Os francezes, reunindo todas as reservas, attacaram todos a um tempo; antes mesmo de eu poder reparar a desordem inseparavel da victoria, o combate começou então mais encarniçado, mais sanguinolento, mais mortal: vi tornar a passar junto de mim, impellido por esses dois irresistiveis poderes da guerra, o ferro e o fogo, os mesmos que tinha visto passar um momento antes. Levavam os feridos, entre elles o bravo capitão Rozat. —Tenho a minha conta, me disse elle, quando passou por diante de mim. Mostrou-me o peito ensanguentado. Tenho visto bastantes combates terriveis, vi os do Rio Grande, da Boyada, do Salto Santo-Antonio, nada porém vi egual á matança da villa Corsini. Fui o ultimo a sahir, com o ponche crivado de balas, mas sem uma unica ferida. Dez minutos depois, entravamos no Vascello, na linha de casas que nos pertenciam, e o fogo recomeçava de todas as janellas sobre a villa Corsini. Nada mais havia a fazer. Comtudo, á noite, uns cem homens commandados por Emilio Dandolo, irmão do que tinha morrido, e por Goffredo Mameli, poeta genovez de grande esperança, vieram pedir-me para fazer um ultimo esforço. —Tentae, lhes disse eu, pobres rapazes; é talvez Deus que vos inspira. Partiram e voltaram, depois de terem perdido metade dos seus. Emilio Dandolo tinha a coxa atravessada; Mameli estava ferido n'uma perna. Tinhamos soffrido perdas consideraveis. A legião italiana, entre mortos e feridos, tinha quinhentos homens fóra de combate. Os _bersaglieri_, que eram seiscentos tiveram cento e cincoenta mortos. Todas as demais perdas foram na mesma proporção. Perdi mil homens, d'entre quatro mil que formavam a minha divisão, entre os quaes houveram cem officiaes mortos. Á noite, Bertani, no seu relatorio, contou-me cento e oitenta officiaes feridos, tanto na Villa Corsini como na porta do Povo; só _os bersaglieri_ tiveram dois officiaes mortos e onze feridos. Os officiaes mortos foram: o coronel Daverio, o coronel Masina, o coronel Pollini, o major Ramorino, o ajudante Peralta, o tenente Bonnet, o tenente Cavalleri, Emmanuel, o alferes Grani, o capitão Searini, o capitão Davio, o alferes Sarete, e o tenente Cazzaniga. Houveram, n'este dia, rasgos admiraveis de coragem e dedicação. Na ultima carga, Ferrari e Mangiagalli, que não poderam entrar comnosco, lançaram-se seguidos de alguns homens sobre a villa Valentini. Ahi, oppoz-se-lhes uma encarniçada resistencia; combateram de degrau em degrau, de quarto em quarto, não com as espingardas—tinham-se tornado inuteis,—mas com o sabre. O de Mangiagalli quebrou-se ao meio; mas continuava a brandir o pedaço que lhe restava com tanto encarniçamento, elle de um lado e Ferrari do outro, que se apoderaram da villa Valentini. O furriel Monfrini, de dezoito annos de edade, tivera a mão furada por uma bayoneta; foi curar-se, e momentos depois, voltou a tomar o seu logar. —Que vens tu aqui fazer? gritou-lhe Manara. Ferido d'essa maneira, não serves para nada. —Perdão, meu coronel, respondeu Monfrini, _faço numero_. Este bravo rapaz foi morto. O tenente Bronzelli, sabendo que a sua ordenança, a quem era muito affeiçoado, tinha sido morta na villa Corsini, tomou quatro homens resolutos, entrou de noite na villa e trouxe o cadaver do seu amigo, que religiosamente enterrou. Um soldado milanez, de Alla Songa, viu cahir o cabo Fiorani, mortalmente ferido; no momento em que eramos repellidos. Não queria deixar o seu corpo em poder dos francezes. No fim de vinte passos uma bala deu-lhe em cheio, e cahiu morto ao pé do moribundo. O ferimento de Emilio Dandolo entristeceu todo o exercito. Disse que tinha vindo com Mameli pedir-me para dar uma ultima carga, e que eu lhes tinha concedido a licença. Dandolo entrou na villa Corsini mas só tratou de seu irmão; julgava-o sómente ferido ou prisioneiro. No meio do fogo, gritou aos seus companheiros: «Veem meu irmão?» e, não se lembrando de si, aproximou-se dos feridos e mortos, interrogando uns, e examinando os outros. A este tempo, recebeu uma bala na coxa e cahiu. Os seus companheiros levaram-no. Conduzido á ambulancia, ahi foi curado; pediu immediatamente um pau para se suster e, coxeando, foi á procura do irmão. Entrou na casa onde estava Ferrari; ahi tambem estava o cadaver de Henrique Dandolo. Ferrari sentindo-se demasiadamente fraco para assistir ao espectaculo que se ia preparar, cobriu o morto com um panno. Emilio entrou, interrogou, insistiu; todos responderam que Henrique Dandolo tinha sido ferido; que, provavelmente, estava prisioneiro; nenhum porém lhe quiz dizer que estava morto. Finalmente, como era preciso que, cedo ou tarde, Emilio Dandolo soubesse a fatal nova, Manara, á força de pedidos, decidiu-se a dizer-lh'a. No momento em que o joven tenente passava por diante de uma das casinhas tomadas pelos francezes, Manara fez-lhe signal para entrar. Todos que na camara estavam se retiraram. —Não procures teu irmão por mais tempo, meu pobre amigo, lhe disse Manara tomando-lhe a mão; de hoje em diante serei eu teu irmão. Emilio cahiu immediatamente no chão, fulminado mais ainda pela terrivel noticia que enfraquecido pela perda de sangue e pela dôr da ferida. Duas jovens encontraram-se de repente com o pae, que conduziam morto; uma d'ellas cahiu desmaiada sobre o cadaver e levantou-se completamente doida. Uma mãe, vendo morrer seu filho, não pôde derramar uma unica lagrima; sómente, tres dias depois, estava morta. Pelo contrario, um pae cujo nome occultarei para o não denunciar á ira dos padres, tendo o filho mais velho a morrer, mandou-me o segundo, de edade de treze annos, dizendo: —Ensinae-lhe a vingar seu irmão. O velho Horacio, seu avô, não o teria feito melhor. XVIII O CERCO Temendo no dia seguinte um assalto encarreguei Giacomo Medici da defensa de toda a nossa linha avançada, que se compunha do Vascello e de tres ou quatro barracas retomadas por nós aos francezes. Depois passei a noite a organisar os nossos meios de defeza. Não se tratava já de salvar Roma. Desde o ensejo em que um exercito de quarenta mil homens, fazendo rodar trinta e seis bocas de fogo de sitio, consegue fazer os seus preparativos de ataque, a tomada de uma cidade é mera questão de tempo. N'um ou outro dia ella cahirá; a esperança unica que lhe resta é de cahir gloriosamente. Estabeleci na mesma noite o meu quartel general no casino Savorelli, que elevando-se acima das fortalezas, domina a porta de São-Pancracio e deixa vêr tudo o que se passa no Vascello, na villa Corsini, e na villa Valentini. É verdade que eu estava a meio tiro de espingarda dos atiradores francezes. Mas quem se não aventurou nem perdeu nem ganhou. Encarreguei um bravo carreteiro de me procurar trabalhadores e de se occupar de todas as pequenas doçuras de que os meus podiam ter necessidade durante a fadiga, copos de vinho e gotas de aguardente, etc. Era um bravo patriota que mais tarde pagou caro o seu patriotismo; Ciceravacchio era o seu sobrenome, seu nome, Angelo Brunetto. Nunca quiz receber um soldo sequer por seus trabalhos e fornecimentos. Ha homens n'este mundo em cujas almas Deus põe dobrada porção de perfectibilidade. Em dias tranquillos trabalham para o allivio e instrucção da humanidade, e esforçam-se a facilitar a marcha do progresso; então chamam-se Gutemberg, Vicente de Paula, Galileo, Vico, Rousseau, Volta, Filangieri, e Francklin. Em tempos de calamidade, veem-nos repentinamente surgir, guiar as massas e expôr-se com firmeza ao choque das desfortunas. Então o reconhecimento do mundo os designa sob os nomes de Arnoldo de Mescia, de Savonarole, de Cola di Riezzo, de Masaniello, de José de Lesi, e de Ciceravecchio. Estes homens nascem sempre pobres na classe popular, n'esta classe que nas épocas desastrosas é sempre a privilegiada no soffrimento; mas, que gemendo, medita; sonhando, espera; soffrendo, trabalha. Angelo Brunetto, como disse, era um d'estes entes; nada lhe faltou para a consagração da missão recebida pelo martyrio. Durante todo o cerco de Roma foi a bandeira viva do povo. Applaudido, procurado, acolhido por seus companheiros como uma authoridade, era elle o verdadeiro _primus inter pares_; mas apezar de seus triumphos, não ficou menos modesto, vivendo como sempre vivêra; franco, leal, honrado, devia sua importancia ao trabalho, a affeição de seus concidadãos á sua affavel probidade, e a estima do proprio Papa, ao qual prestou grandes serviços no dia das desordens, á sua caridade pelos poderosos, uma das mais raras virtudes dos fracos quando são chamados a occupar o lugar dos fortes. Tinha nascido em Roma em 1802 no bairro de Rijutta. Como era forte, gordo e rubicundo na infancia, sua mãe lhe poz o cognome de _Ciceravecchio_, o que no calão do povo romano quer dizer florescente, cheio de saude. Crescendo, este vigor promettido pela creança desenvolveu-se no homem. Era o titulo que Brunetto reproduzia mais frequentemente. Tinha de quando o conheci em 1849, uma barba loura que começava a embraquecer, cabellos compridos e amellados, pescoço curto e cheio, peito largo, estatura alta, porte firme. Nunca o desgraçado que entrou em sua casa com a mão supplicante sahiu com ella vasia; mas tambem, nunca se viu seu nome inscripto n'essas listas de subscripção destinadas mais a glorificar os subscriptores que a alliviar os desgraçados. Nas innundações do Tibre, tão frequentes em Roma, era sempre elle o primeiro a fazer-se barqueiro para levar viveres e palavras de consolação a seus compatriotas cercados pelas ondas. Este bravo adorava-me. Quando tinha precisão de trabalhadores para os engenheiros, bastava só que eu lhe fizesse um signal: corria logo com duzentos, trezentos, quatrocentos homens; dei-lhe, sobre o ministerio, bonds, dos quaes não utilisou um só. Á minha saida de Roma, seguiu-me com seus dois filhos, tomou com Ugo Bassi, terra em Nessola, depois encaminhou-se com elles n'uma direcção opposta á minha. Em occasião opportuna contarei o seu duplo martyrio como pae e como cidadão. Tenho algumas vezes fallado no capellão Ugo Bassi. Consagremos-lhe tambem algumas paginas. E vão ellas a proposito na tarde e noite de uma batalha que devia tão rude emprego á sua doce piedade. Para os nossos feridos Ugo Bassi, joven, bello, eloquente, era verdadeiramente o anjo da morte. Tinha ao mesmo tempo a alegria de uma creança, a fé d'um martyr, a sciencia de um sabio, a coragem de um heroe. Nascera em Cento, de pae Bolonez, mas como André Clenier, de uma mãe grega. Seu nome era José, mas fazendo-se barnabita, tinha escolhido o de Ugo, sem duvida em lembrança do nosso poeta patriota Ugo Foscolo. Era pois de raça latina e hellenica ao mesmo tempo, as duas raças mais bellas e intelligentes do mundo. Tinha os cabellos castanhos, e naturalmente amellados, olhos brilhantes como o sol, ora serenos, ora fulgurantes, boca risonha, pescoço alvo e longo, membros ageis e robustos, coração de fogo para a gloria e para o perigo, instinctos bons e honrosos, espirito elevado, cálido, rapido, feito ao mesmo tempo para as piedosas contemplações do anachoreta e para os irresistiveis ardores do apostolado. Seus estudos foram, não apenas um labor, mas uma conquista. Apoderou-se rapidamente da litteratura, da sciencia das artes, e como espelho de toda a sciencia, sabia de cór o poema inteiro de Dante. Seis mezes lhe foram sufficientes para aprender grego; quanto ao latim, fallava-o como a sua lingua materna, e fazia versos no genero dos de Horacio; escrevia correctamente com a penna o inglez e o francez, e quando os acontecimentos o levaram ao meio dos combates, trazia comsigo Byron e Shakspeare. O tragico inglez e o poeta que morreu em Missolonghi escutavam as patrioticas pulsações do seu coração. Além d'isto era pintor e musico. Da mesma sorte que eu havia acreditado em Pio IX, Ugo n'elle crêra. Pio IX succedia a Gregorio XVI, Pio IX dava a amnistia, Pio IX promettia reformas, era adorado por todos os italianos, admirado pelos estrangeiros, e imitado pelos demais principes da Italia. A 25 de março de 1848, a cruzada partiu de Roma; os auguros pareciam annunciar toda a unidade da Italia. A sua carreira foi um triumpho perpetuo. Dos campos mais longiquos da Italia accorria a dura raça latina a averiguar e levar a feliz nova da resurreição da Italia, e de que o seu povo com a fronte molhada de suor e de sangue ia emfim ser livre. Ugo Bassi estava em Ancona, onde prégava a quaresma. A primeira legião de voluntarios chegava ahi; Ugo arengou sobre a praça, e tomando argumento do desgraçado estado em que via suas armas e seus trajes, idealisou com a sua eloquente palavra a sua miseria, de que os nossos inimigos faziam escarneo. Dois dias depois juntava-se á cruzada e partia com ella como segundo capellão dos voluntarios romanos. Bassi como Gavazzi, seu amigo, era a providencia do exercito. Não só a sua eloquencia impellia os italianos ao amor da Italia e á dedicação por ella, mas ainda tirava dos mais rebeldes cofres numerosas e ricas offerendas. Em Bolonha fez milagres; os ricos davam dinheiro aos punhados, as mulheres suas joias, seus brincos e anneis. Uma joven não tendo nada a dar cortou a sua linda trança e l'ha offereceu. Elle havia assistido a todos os nossos combates e dedicações em Cornuda, Treviso e Veneza. Irmã de caridade, apostolo, soldado intrepido, foi sobretudo no combate de Treviso, onde morreu o seu amigo e compatriota, o general Guidotti, que mostrou todas as virtudes de seu coração. Uma balla lhe mutilou a mão, o braço esquerdo, e lhe abriu uma longa ferida no peito. Ainda pallido e soffrente d'este cruel ferimento, viram-o no combate de Mestre, com um estandarte na mão, ser o primeiro a subir e sem armas, ao assalto do palacio Bianchini. Bassi acompanhou a legião italiana em todas as peregrinações. A sua palavra potente fascinava as massas, e se Deus tivesse marcado um termo ás desgraças da Italia, a voz de Bassi como a de S. Bernardo, teria arrastrado as povoações aos campos de batalha. Se a Italia um dia se unificar, que Deus lhe dê a palavra de um Ugo Bassi! Quando Roma cahiu, quando me não ficou senão o exilio, a fome e a miseria, Ugo Bassi, não hesitou um instante em acompanhar-me. Recebi-o na minha barca em Cesenatia, e partilhou comigo o ultimo sorriso de despedida! N'esta barca, que eu proprio guiei, estavam Anita, Ugo Bassi, Ciceravecchio, e seus dois filhos. Todos morreram, e de que maneira! Oh! sagrados mortos, eu referirei o vosso martyrio! O nome de Ugo Bassi será a palavra de ordem dos italianos no dia do seu libertamento. Mas deixei-me levar muito longe do meu fim. Voltemos ao cerco de Roma. Na noite de 4 de junho, em quanto que nossos adversarios disfarçavam um attaque na porta de São-Pancracio, foi aberto um fosso a tresentos metros da praça, e foram elevadas duas batterias de arco, uma cem metros atraz do parallelo para fazer face á bateria romana de Vestaccio de Santo-Aleixo. O parallelo apoiava-se á direita em alturas inatacaveis, á esquerda na villa Pamphili. Desde a alvorada, havia feito chamar Manara, pedindo-lhe de resignar o seu titulo de coronel dos bersaglieri para acceitar o grau de chefe do meu estado maior. Era pedir-lhe um grande sacrificio, eu bem o sabia; mas Manara era mais habil que qualquer outro para estas funcções. Era de um valor exemplar, d'uma rara tranquilidade de espirito no meio do perigo, d'um golpe de vista seguro no combate; tinha feito dos seus bersaglieri a tropa mais bem disciplinada do exercito. Fallava quatro linguas; emfim o seu aspecto tinha esta dignidade que convem aos graus elevados. Acceitou. O resto do meu estado maior compunha-se dos majores Cenni, e Bueno, dos capitães Caroni, e Davio, de dois francezes, excellentes officiaes, chamados Pilhes e Laviron; do capitão Ceccadi, que durante seus serviços em Hespanha e Africa tinha merecido a cruz de Hespanha, e a da Legião de honra; de Silco e de Stagnetti, que na Palestrina, conduzia emigrados; do tenente de cavallaria Gili, do correio Giannuzzi, e finalmente d'um membro da assembléa, o capitão Cessi. Manara organisou logo o estado maior no interior; todos queriam ficar comigo na villa Savorelli; porque avistavamos o campo, e nada ahi se passava que não vissemos. É verdade que a distração não era um perigo. Como se sabia que a villa Savorelli era o meu quartel general, ballas de artilharia, de fuzilaria e de obuz, tudo me offertava o inimigo. Era sobretudo quando subia para melhor observar ao pequeno mirante que dominava a casa, que a coisa se tornava curiosa. Era uma verdadeira saraivada de ballas, e nunca vi tempestade com eguaes silvos. A casa sacudida pelas balas, tremia como n'um terremoto. Muitas vezes para dar trabalho aos artilheiros, e aos atiradores francezes, fazia com que me servissem o almoço no mirante, que não tinha outra salvaguarda mais que um pequeno parapeito de madeira. Então tinha uma musica que me dispensava de mandar tocar a do regimento. Isto foi ainda tanto peior quando não sei que má galanteria do estado maior o levou a arvorar no pára raios que sobresahia ao pequeno terrasso uma bandeira onde estavam escriptas em grandes lettras estas palavras: «Bom dia, Cardeal Oudinot!» No quarto ou quinto dia em que eu dava esta distracção aos artilheiros e atiradores francezes, o general Avezzana veiu ver-me, e não achando as janellas do salão a uma altura sufficiente, perguntou-me se não tinha um logar mais elevado de onde podesse contemplar a planicie. Conduzi-o ao meu mirante. Sem duvida os francezes quizeram honral-o; porque apenas ahi chegamos começou a muzica a tocar. O general olhou tranquilamente para as guardas avançadas, depois desceu sem dizer nada. No dia seguinte encontrei o meu mirante intrincheirado com saccos cheios de terra. Perguntei quem havia dado a ordem. —O ministro da guerra, me responderam. Não havia meio de reagir contra uma ordem do ministro da guerra. Esta raiva dos atiradores francezes de crivar o meu pobre quartel general de metralha de toda a sorte, offerecia por vezes scenas divertidas. Um dia, era a 6 ou 7 de julho, o meu amigo Vecchi que era ao mesmo tempo actor e historiador do drama que representavamos, veiu ver-me á hora do almoço; e como eu tinha convidados havia feito trazer de Roma um jantar completo n'uma caixa de folha de ferro. Vi que o aspecto dos nossos petiscos tentava Vecchi. Offereci-lhe por consequencia para partilhar comnosco da refeição. O general Avezzana e Constantino Rita estavam comnosco. Assentamo-nos no chão do jardim. As ballas sacudiam a casa de maneira que, para jantar sobre uma meza seria mister para a segurar um d'estes apparelhos que em similhante caso se usão nos navios em dia de temporal. Mesmo quando o jantar hia em meio, cahiu uma bomba a um metro de nós. Tudo desaccampou; Vecchi ia fazer como os mais, mas eu retive-o pelo pulso—era membro da Assembléa. —Padre conscripto, lhe disse rindo, fica na tua cerulea cadeira! A bomba estalou como, eu acreditava, do lado opposto áquelle em que nós estavamos; fômos porém recompensados, porque ficamos cobertos de poeira; nós e o jantar. Vecchi tinha feito bem em approveitar o nosso banquete, porque nem sempre tinhamos que jantar. Algumas vezes os moços do _restaurant_ espantados pelo ruido dos morteiros francezes, pela fusilaria dos caçadores de Vincennes, e sobretudo pelos cadaveres que encontravam no caminho, paravam não ousando ir mais além; então o primeiro que apparecia apoderava-se do nosso festim e tragava-o. Um dia um dos meus soldados chamado Casanova, fez-me ás tres horas da manhã um _macaroni_. Havia quarenta e oito horas que eu era sustentado por uma chavena de caffé com leite e duas ou tres botijas de cerveja. Além d'isto, era quasi sempre a Vecchi que aconteciam aventuras no genero da que acabo de referir. Um outro dia, como elle tinha sua narração a fazer-me, porque havia dois dias que estava de guarda avançada na vinha Costabili, chamavam assim uma das barracas que tinhamos nas proximidades da villa Corsini, encontrou-me jantando, á mesa. D'esta vez os senhores atiradores tinham tido a bondade de me deixar algum tempo socegado. Ante mim estava um manjar dos mais appetitosos. Dei logar a Vecchi a meu lado e convidei-o a partilhar do jantar. Mas, quando ia assentar-se, Manara o suspendeu. —Não façaes tal, Vecchi, lhe disse elle. Ha tres dias consecutivos que os officiaes convidados pelo general são mortos sem ter tempo de fazer a digestão. E com effeito, Davio, Rozat e Panizzi, acabavam de morrer nas circumstancias assignaladas por Manara. Mas o fumo do manjar foi mais poderoso que o aviso de Manara. —Bem, disse Vecchi, isso quadra perfeitamente com uma predicção que me fizeram. —Qual, perguntou Manara. —Na minha infancia uma bohemia tirou-me o horoscopo. Predisse-me que eu morreria em Roma na edade de trinta e seis annos muito rico. Em 1838 n'uma viagem que fiz a pé de Napoles a Salerno, persegui n'um campo de algodão uma cigana de dezoito annos cujos olhos eu queria absolutamente beijar. Ella defendeu-se com a sua faca; oppuz á arma offensiva uma defensiva; era um bello escudo (moeda) novo. Recebendo o escudo predisse-me, examinando-me a mão, que eu morreria em Roma, na edade de trinta e seis annos muito rico. Estou no trigesimo setimo anno; e sem ser muito rico, sou-o sufficientemente para um homem que vae morrer. Mas sou fatalista como um mahometano. O que está escripto está escripto. Dê-me o manjar, general. Rimos da historia de Vecchi, mas Manara guardava o seu serio dizendo: —É o mesmo, Vecchi, eu só me tranquillisarei depois de findo o dia. Depois, virando-se para mim: —Por Deus general, não o mandeis hoje a parte alguma. Isto effectuou-se assim; Vecchi estava horrivelmente fatigado por ter velado as duas precedentes noites, e depois do jantar, pediu-me para se retirar e ir repousar um pouco. —Deita-te no meu leito, se queres, disse Manara, embora elle fallasse serio ou proseguisse a galanteria. Em nome de Deus, não quero que saias! Vecchi deitou-se no leito de Manara. Uma hora depois vi que os officiaes francezes collocavam saccos cheios de terra no fosso aberto em frente do nosso bastião. Procurei ao redor de mim um official para dirigir contra elles o fogo de uma duzia de atiradores. Não sei onde tinha enviado todos, que me achava só. Pensei no pobre Vecchi, que dormia com os punhos cerrados. Tinha dó de o despertar, mas as balas faziam uma ceifa horrivel. Puchei-o pela perna. Abriu os olhos. —Vamos, lhe disse eu, ha vinte e quatro horas que dormes, a predicção de Manara não se deve temer. Toma uma duzia dos melhores atiradores, e acaricia-me as costas d'esses gentis-homens. Vecchi que é muito bravo, não esperou que lhe gritassem aos ouvidos. Tomou doze bersaglieri amadores, e foi embuscar-se com elles atraz de uma barricada cheia de saccos de terra que um tenente da ordenança chamado Pozzio elevava com a ajuda dos sapadores. D'ali começou sobre os francezes um fogo tão mortifero, que elles responderam por balas de artilheria, ás dos bersaglieri. Meia hora depois vieram dizer-me: —Sabei, general, que mataram o pobre Vecchi. Soffri uma grande dôr. Eu era causa da sua morte, e reprehendi-me de o haver feito. Mas ao fim de uma hora, com grande alegria minha vi-o voltar. —Ah! parabens, lhe disse eu, deixa-me abraçar-te, julgava-te morto. —Estava só enterrado, me respondeu elle. —Como? Então contou-me que uma bala havia partido um dos saccos de terra, que se havia espalhado sobre elle, que no mesmo momento este sacco despejando-se tinha feito perder o equilibrio aos outros, os quaes haviam cahido em numero de dez ou doze sobre elle e o haviam litteralmente escondido. Mas tinha succedido uma cousa mais pittoresca que a morte de Vecchi. A mesma bala que o havia enterrado batêra contra a muralha, e indo de recochete tinha despedaçado pelos rins um joven soldado. O pobre soldado collocado sobre uma paviola tinha cruzado as mãos sobre o peito, elevado os olhos ao ceu e exalado o ultimo suspiro. Iam leval-o para a ambulancia, quando um official se precipitara sobre o cadaver cobrindo-o de beijos. Este official era Pozzio. O joven soldado era Colomba Antonielli, sua mulher que o tinha seguido a Velletri e tinha combatido a seu lado a 3 de junho. Isto recordou-me a minha pobre Annita que tambem estava tão tranquilla no meio do fogo, e que a bem ou a mal eu havia deixado em Rieti. Estava gravida e em nome do filho que trazia, havia-a decidido a separar-se de mim. A 7 houve treguas dos dois lados; era o dia corpo de Deus. A 9 commandei uma grande sortida para interromper os trabalhos avançados dos francezes, que se prolongavam até ao segundo bastião da esquerda. Para esta funcção foram chamados os _douaniers_ e um batalhão do 5.° regimento. Os bersaglieri n'este momento faziam o serviço das barracas, á esquerda do Visellia, e guardavam os bastiões. O capitão Rozat, o mesmo que eu tinha visto levar da villa Corsini e que ao passar me dissera: «General, já tenho a minha conta!» o capitão Rozat, digo, apenas havia recebido uma bala morta, que lhe parara n'uma costella. Ainda que em consciencia a contusão fosse rude bastante e o obrigasse a ficar de cama, havia-se levantado de madrugada, e n'este dia quiz absolutamente tomar o commando da quarta companhia destinada ao segundo bastião. Vendo que a guarda do fosso maltratava os assaltantes, Rozat tomou uma carabina, e como era excellente atirador, despediu quinze tiros a metade dos quaes aproveitaram. Os seus soldados carregavam, elle atirava. A sua certeza de pontaria despertou a rivalidade dos caçadores de Africa que começaram, trocar-lhe tiro por tiro. Uma primeira bala lhe arrebatou o chapeu; mas elle tomando-o de novo o atirou ao ar gritando: —Viva a Italia! N'este momento, porém, uma bala lhe entrou pela boca e sahiu pela nuca, abafando-lhe o grito. No fim de duas horas de agonia expirou. No dia 10 de junho, recebi aviso do general Roselli de que eu devia tomar o commando de uma grande sortida, que se devia compôr de metade do exercito romano. Devia operar-se pela porta Cavallegieri, e tinha por fim retomar ou a villa Pamphili ou a villa Valentini. Em virtude d'isto, o ministro da guerra, Avezzana, tirou-me o commando da linha São-Pancracio, e com a legião italiana e o regimento de bersaglieri, marchei para a praça do Vaticano, onde devia completar-se pelos regimentos Pasi e Mari e a legião polonesa o corpo destinado a esta operação. Passei a cavallo á frente de cada corpo, chamei os commandantes a conferencia, e communiquei-lhes o fim da tentativa e a maneira pela qual eu comprehendia o ataque. Fiz em seguida passar a palavra de ordem, distribuir munições, preparando tudo para a hora designada, em quanto que os soldados com os olhos fixos sobre a lua, a apopavam pela lentidão com que fazia o seu giro. Para evitar um d'estes erros nocturnos tão communs n'estas sortes de expedição, onde, confundindo os amigos com os inimigos, se ferem uns aos outros, ordenei aos meus soldados de vestir suas camisas sobre o uniforme. Foi uma manobra que excitou muito a alegria dos soldados, por causa do estado em que alguns tinham o vestuario interno de que eu fazia o externo. Ás dez horas da noite, abriu-se a porta e a legião polonesa, commandada por Hoffstetter que deixou um excellente jornal do cerco de Roma, sahiu constituindo a guarda avançada; vinha em seguida a legião italiana, á frente da qual ia o coronel Manara. Esta era seguida dos regimentos de bersaglieri, Passi e Masi. Masi commandava a retaguarda. Apenas cheguei ao campo reconheci ter feito uma grande asneira mandando vestir a camisa sobre os uniformes. Os nossos homens eram visiveis como em pleno dia; bastaria elles andarem cem passos para os francezes julgarem ser atacados por um exercito de phantasmas. Mandei tirar as camisas. É desnecessario dizer que nenhum soldado se deu ao trabalho de as tornar a pôr no logar de onde as havia tirado. Cavalgava sobre o flanco da legião italiana, quando alguns soldados que levavam uma escada, passando por uma villa quizeram assegurar-se se ella effectivamente estava abandonada como parecia. Alçaram a escada contra uma das janellas do primeiro andar. O regimento parou para vêr o resultado da inquerição, deixando a vanguarda proseguir o caminho. Cinco ou seis homens subiram a escada. Repentinamente, um degrau se quebra sob os pés do que estava mais em cima, este cahe sobre o segundo, o segundo sobre o terceiro, e todos com um motim admiravel cahem em terra. Na queda dispararam-se duas espingardas. A vanguarda commandada por Hoffstetter e por Sacchi, dois dos meus mais bravos officiaes, julga-se surprehendida pelos francezes que iam surprehender; e enchendo-se de um terror panico, rompe por traz de Hoffstetter e Sacchi que ficam isolados com uma vintena de homens, e vem sobre nós a correr desesperadamente, destruindo com o choque tudo o que encontra ante si. Manara tenta suspendêl-os, mas inutilmente. Eu corro ao meio d'elles, e firo á direita e á esquerda com o meu chicote de gaucho. Nada os detem, e julgo que no mesmo passo os meus heroes teriam entrado em Roma, se os bersaglieri á frente dos quaes estavam dois chefes de batalhão e o capitão Ferrari, não tivessem cruzado bayonetas aos fugitivos. Depois de todo este barulho, não se podia suppôr que os francezes não estivessem a postos, e era mister renunciar á empreza. Quanto a mim estava cançado de bater n'esta canalha, e volvi dizendo a Manara: —Caro amigo errámos em não pôr os bravos bersaglieri na vanguarda. Com effeito, eram homens maravilhosos os bersaglieris, do que Manara devia com justiça ter orgulho. Quando lhe pedia um destacamento de seus soldados, costumava dizer: —Vamos, quarenta homens de boa vontade para uma expedição em que um quarto morrerá e o outro ficará ferido. E apesar do programma todo o regimento se apresentava, de fórma tal, que para não excitar ciumes era mister tiral-os á sorte. A 12, ao meio dia, um batalhão do regimento da União trabalhava em executar uma aproximação á esquerda da via Vitellia, quando os francezes tentaram perturbar-lhe o trabalho. Immediatamente os majores Lanzi e Panizi fizeram tomar armas aos trabalhadores, ao corpo da guarda, e com uma incrivel temeridade lançavam-se sobre o parapeito da muralha franceza. Foram acolhidos por um fogo terrivel. Pedro Lanzi poz-se á frente de seus bolonezes; mas n'um instante teve a mesma sorte que o seu companheiro, e cahiu ferido no braço e no peito. Entretanto os outros conduzidos pelo official Meloni, conservavam ainda o terreno, impotentes para proseguir o ataque, mas gritando com todas as suas forças: «Viva a Italia!» e dando assim coragem a seus companheiros. O regimento da União combateu n'este dia com um valor admiravel: para não perder tempo a carregar, feriam ora com a bayoneta, ora com a coronha das espingardas. Outros, como os Ajax e os Diomedes da _Iliada_, arrojavam pedras aos seus adversarios. A exasperação era tal que o capitão bolonez Vern, que tinha muitas cruzes ao peito, e entre estas a da Legião de Honra ganha em Africa, em pé sobre a barricada, batia com a palma da mão no peito e gritava: —Aqui, aqui, atirae aqui sobre a cruz da Legião de Honra! Uma balla o feriu na cabeça. —Mais abaixo, gritava elle, mais abaixo, maldictos! Segunda balla lhe acertou; levaram-n'o para fóra do combate. Volveu, e depois foi morrer na Grecia. Assisti do meu mirante a este combate. Ainda que pouco prodigo de elogios—os que me conhecem me farão justiça—julguei dever fazer delle uma descripção ao governo. A 14 de maio, pela manhã, pelo menos assim o julgo,—escrevo sem documentos á vista e posso enganar-me nas datas—almoçámos na villa Spada, n'uma camara do terceiro andar, com Sacchi, Bueno e Corcelli; estavamos todos em mangas de camisa; eu, um pouco taciturno, porque acabava de condemnar á morte um dos nossos officiaes, um napolitano, que tomado de terror na noite passada tinha abandonado o seu posto, quando ouvimos passos apressados no corredor. Abriu-se a porta, e dou um grito: era Annita que vinha juntar-se a mim, conduzida por Orrigoni. Os meus companheiros reconhecendo minha mulher, vestiram os uniformes e deixaram-nos. —Sabeis em que ella se tem divertido vindo da via Corrici aqui, general? perguntou-me Orrigoni. —Não. —A parar ao longo de S. Pedro in Montorio para ver a bateria franceza. Olhae, vêde a poeira que nos cobre a ambos: é a que as ballas produziam batendo sobre a muralha. E quando eu lhe dizia «Vinde, senhora, vinde! é inutil fazermo-nos matar aqui!» respondia-me: «Como achaes, meu charo, que os francezes arranjam as nossas egrejas?» Chara Annita! apertei-a contra meu coração. Parecia-me que agora ia tudo marchar á medida de meus desejos. O meu bom anjo volvera a meu lado. Tive pesar de não poder conceder a Annita o primeiro pedido que me fez, e que era o perdão do official italiano; mas era preciso um exemplo. Não podia recompensar Medici por sua admiravel conducta no Vascello, mas devia dar punição ao fraco pela sua fraqueza. Foi fusilado. XIX A SURPRESA A 13 de junho os francezes tinham começado um bombardeamento terrivel. Sete baterias vomitando incessantemente fogo, batiam em brecha a face direita do terceiro bastião da esquerda, a cortina e a face esquerda do segundo bastião. As outras occupavam-se particularmente da villa Spada e da villa Savorelli, que ameaçava a cada instante cahir-nos em cima, de sorte que com grande pesar meu, vi-me a 20 forçado a transportar o meu quartel general para o palacio Corsini. Era impossivel que eu ahi ficasse: estava muito affastado das muralhas. É verdade que julgava poder estar tranquillo. Atacado por todos os lados, todos os dias Medici, que nós chamavamos o infatigavel, repellia os ataques e conservava o Vascello e as suas barracas. Eu não saberei dizer em seu elogio, senão que não sei como elle poude tanto. A 20 de junho havia tres brechas praticaveis, apezar de tudo o que Manara e eu haviamos feito para nos oppôr aos effeitos dos projectis. Afóra isto fazia do assalto um divertimento. Os adversarios que tinhamos em frente eram dignos de nós. Já lhes haviamos mostrado que os italianos sabiam bater-se. Esperava ainda mostrar-lhes o que era uma lucta á faca e ao punhal. Na noite de 21 o segundo batalhão da União estava de guarda ao bastião da esquerda e á defensa da brecha, assim como duas companhias do 1.° regimento, que deviam ser trocadas. Entretanto prolongaram o seu serviço até ao amanhecer, para melhor defensa do terceiro bastião á esquerda. A primeira e a quinta companhia dos bersaglieri estavam ao serviço no Vascello; a sexta e a setima, de guarda aos approches da esquerda, fóra da porta São-Pancracio, de onde se estendiam nossas sentinellas, sobre a direita, até aos muros do casino e a poucos passos da parallela franceza. Este serviço era horrivelmente perigoso. Apenas se fazia de noite, e um pouco antes de amanhecer, todos os postos eram retirados e a guarda de noite reentrava nos muros. O major Calvandro tinha a vigilancia exterior d'esta linha; o coronel Rossi o serviço de ronda interior. Depois de ter disposto todos os postos avançados, o major estava occupado a dar suas instrucções aos capitães Stambio e Morandoli quando pelas onze horas da noite, se ouviu para o lado dos bastiões n.{os} 2 e 3 um certo ruido egual ao de cousa que se quebra. Alguns tiros seguiram este ruido, e tudo reentrou na noite e no silencio. Que acontecêra? Que os francezes se haviam apresentado repentinamente ante a brecha, não como um inimigo que sobe ao assalto, mas como soldados que despertam uma sentinella. De onde sahiram elles? por onde tinham vindo? que caminho haviam seguido? Eis o que foi sempre impossivel saber-se. Muitos suppozeram uma traição. A sentinella interrogada respondeu que os francezes tinham sahido debaixo da terra, e lhe tinham ordenado de fugir. Na mesma noite, apezar de uma energica resistencia, o bastião n° 7 e a cortina que o unia ao bastião n° 6 cahiu depois de um combate sangrento, nas mãos dos francezes. Era justamente no dia precedente que eu havia transportado o meu quartel general da villa Savorelli ao palacio Corsini. Quasi immediatamente ao successo fui d'elle prevenido pelo ajudante Delai, do regimento da União. Confesso que foi grande a minha surpreza, e que não fui dos ultimos a attribuir o facto a uma traição. Seguido de Manara e do capitão Hoffstetter, cheguei aos postos justamente no momento em que os bersaglieri, sempre promptos e álerta, estavam reunidos na rua que conduz a São-Pancracio. A legião italiana, seguiu-me a marche-marche; e logo atraz vinham duas cohortes do coronel Sacchi. Este enviou logo uma companhia a reconhecer os logares; chegada ao segundo bastião foi constrangida a retirar-se para a casa Gallicelli, visto o numero excessivo dos francezes. A terrivel nova já estava espalhada pela cidade; e o triumvirato prevenido d'ella fez tocar a rebate. A este ruido cada casa pareceu repellir seus habitantes; n'um instante encheram-se as ruas de gente. O general em chefe Roselli, o ministro da guerra, todo o estado maior e Marini correram ao Janiculo. O povo em armas rodeiava-nos e pedia para repellir os francezes das muralhas. O general Roselli e o ministro da guerra eram d'este parecer; mas eu declarei-me contra. Temia a confusão que poria nas minhas linhas esta multidão, a irregularidade dos movimentos, os panicos nocturnos tão naturaes em gente não habituada ao fogo, e mesmo entre os já habituados, como vimos na noite de 10. Pedi pois positivamente que se esperasse a manhã. De manhã vêr-se-hia a que inimigo era mister fazer face, fosse elle á traição. Vindo o dia, toda a minha divisão estava prompta, reforçada pelos regimentos que o general Roselli poz á minha disposição. A companhia dos estudantes lombardos que faziam parte da legião Medici estava na vanguarda. A propria legião Medici recebêra ordem de se juntar a nós. Os canhões das nossas baterias voltados para os bastiões occupados, ribombavam ao mesmo tempo de São Pedro in Montorio, do bastião n° 8 e de Santo Aleixo. Os estudantes lombardos marcharam na frente ao assalto. Ainda que fulminados pelo fogo dos francezes, precipitaram-se á bayoneta sobre a guarda principal e sobre os trabalhadores, que forçaram a concentrar-se no casino Barberini. Os bravos mancebos estavam já no terrapleno do casino; mas eu acabava de saber com que forças tinhamos a combater. Vi que um segundo 3 de junho ia roubar-me metade d'estes homens que eu amava como filhos. Não tinha esperança alguma de affastar os francezes da sua posição; ia portanto ordenar uma carnificina inutil. Roma estava perdida, mas era perdida depois de uma defensa esplendida e maravilhosa. A queda de Roma depois de um cerco tal era o triumpho da democracia na Europa. Depois restava-me a idéa de que eu conservava quatro ou cinco mil defensores dedicados que me conheciam, que eu conhecia e que corresponderiam á minha primeira chamada.[3] [3] A campanha de 1859 e a expedição da Sicilia provam que Garibaldi tinha razão. Dei a ordem de retirada, promettendo para as cinco horas da tarde um outro assalto, que não contava dar se não como o primeiro. Os estudantes haviam sido admiraveis. Citarei apenas um exemplo. Um pintor, o milanez Juduno, foi retirado da arena ferido por vinte e sete bayonetadas. Bertani salvou-o, e hoje gosa uma saude admiravel. Para mim, pois, tudo estava perdido, pelo menos provisoriamente, não desde o momento em que os francezes estavam senhores das nossas brechas, mas desde o instante em que o partido que sustentava a republica romana na constituinte franceza fôra vencido. Suppondo que sacrificando um milhar de bravos, eu tinha repellido os francezes das suas posições das villas Corsini e Valentina; como no 3 de junho elles teriam retomado, á força de tropas frescas, todas as posições d'onde eu os repellia. E aqui não tinha eu as mesmas razões de me obstinar. A villa Corsini em nosso poder impedia os trabalhos de approche. Mas uma vez executados os trabalhos de approche, uma vez abertas as brechas, quem podia impedir a tomada de Roma? Ninguem. Antes da noticia da fuga de Ledru-Rollin e de seus amigos para Inglaterra, cada dia em que eu prolongava a existencia de Roma era um dia de esperança. Depois d'esta nova, a resistencia era uma desesperação inutil. Ora, eu julguei que os romanos tinham feito muitos prodigios em face do mundo para não ter necessidade de recorrer á desesperação. Os poderes coalligados tinham encerrado a republica romana, isto é a democracia da Peninsula nas velhas muralhas d'Aurelio. Nada mais tinhamos a fazer do que romper o circulo e levar, como Scipião, a guerra a Carthago. A nossa Carthago era Napoles. É ali que nos encontraremos um dia face a face, espero-o, o despotismo e eu. Deus approxime este dia. XX FIM Estavamos, é verdade surprehendidos, mas não vencidos. A duzentos passos atraz das muralhas eleva-se o antigo recinto do Aurelio. Ordenei que o fortificassem o melhor possivel. Tinha posto de parte a idéa de um assalto, mas queria defender o terreno passo a passo. Uma bateria de sete peças foi collocada no bastião n° 5, e posta, por nossos trabalhos, a cuberto do fogo dos francezes. Começou a funccionar na manhã de 23, e secundada pela bateria de Santo-Aleixo e a de São Pedro in Montorio, cruzou de tal fórma seus fogos sobre a brecha que os francezes foram obrigados a abandonar os seus trabalhos. O fim da engenharia franceza era estabelecer sobre a cortina 6 e 7 uma bateria de canhões, apenas estivesse senhor da brecha. O designio era impedir este estabelecimento. Cobri os incriveis exforços dos francezes e a nossa opposição obstinada. Na noite de 23 estabeleceram elles a sua bateria. Na manhã de 24 esmagados pela nossa artilharia foram obrigados a fechar as suas setteiras. Pensaram então em elevar duas novas baterias sobre os bastiões 6 e 7, d'onde podiam extinguir a bateria de S. Pedro in Montorio defendida pela minha legião. Esperando, o general Oudinot, para mostrar, como o havia dito em seus boletins o culto que tributava á cidade, mormente desde 24, fazia lançar bombas sobre todos os bairros. Era sobre tudo durante a noite que elle empregava este meio de terror. Muitas cahiram no bairro Transteverino, muitas no Capitolio, algumas sobre o Quirinal, sobre a praça de Hespanha, e no Corso. Uma d'estas bombas cahiu sobre o templo que cobre o Hercules de Canova; mas a cupola resistiu. Uma outra estalou no palacio Spada, e damnificou a famosa pintura da _Aurora_ de Guido Reni. Uma outra, mais impia ainda quebrou o capitel d'uma columna do maravilhoso templosinho da fortuna viril, obra prima respeitada pelos seculos. O triumvirato offereceu ás familias populares, cujas casas se achavam destruidas, um asylo no palacio Corsini. O animo do povo romano n'estes dias de provação foi digno dos antigos tempos. Em quanto que á noite perseguido pela saraiva dos projectís que despedaçava os telhados de suas casas, as mães fugiam levando seus filhos apertados contra o peito, em quanto que os ares atroavam de gritos e lamentações, nem uma só voz fallava em se render. No meio de todos estes alaridos um só grito mofador se elevava quando alguma balla de artilharia ou algum obuz destruia uma parede de casa, e era: —Benção do Papa! A certesa maravilhosa das nossas peças durante os dias 25, 26 e 27 de junho, fez callar as baterias elevadas pelos francezes sobre a cortina e os bastiões occupados. Mas duas baterias francezas, uma collocada no bastião n° 6 e outra fóra dos muros, abriram o fogo contra as nossas baterias de Santo Aleixo. Além d'isto duas outras baterias collocadas, uma sobre a cortina, outra sobre o bastião n° 7, abriram tambem fogo contra a nossa bateria de São Pedro in Montorio. Uma quinta bateria de brecha, collocada ao pé do bastião n° 7, e por consequencia a coberto do nosso fogo, descarregou sobre o flanco do bastião n° 8. Uma sexta bateria posta entre a egreja de São-Pancracio, batia o bastião n° 8, e o meu quartel general, na villa Savorelli. Uma setima, emfim, ante a villa Corsini, ribombou ao mesmo tempo contra a porta São-Pancracio, contra a villa Savorelli, e contra a muralha Aureliana. Nunca vi egual tempestade de fogo, egual chuva de metralha. Os nossos pobres canhões estavam soffucados. E todavia, digo apenas isto em elogio de Medici, o Vascello e as barracas estavam ainda occupadas. O cerco do Vascello só por si merecia uma historia. Durante a tarde de 28, as baterias francezas pareceram descançar um instante e retomar alento. Mas no dia 29 de novo começaram a atirar com redobrada furia. Roma estava cheia de feridos. O dia 27 de abril tinha sido terrivel, as nossas perdas eram quasi eguaes ás de 3 de junho. As ruas estavam juncadas de homens mutilados. Mal os trabalhadores tinham a pá ou a enxada na mão, logo eram feitos pedaços ou mutilados pelas ballas. Todos os nossos artilheiros, reparae bem, todos, haviam sido mortos sobre seus canhões. O serviço da artilharia era feito pelos soldados de linha. Toda a guarda nacional estava em armas. Havia, cousa admiravel, uma reserva composta de feridos, que todos ensanguentados faziam serviço. E durante este tempo, notavel contraste, silenciosa e impassivel a Assembléa, permanecia no Capitolio deliberando debaixo das ballas de fuzilaria e artilharia. Em quanto tivemos peças sobre seus eixos, respondemos ao inimigo. Mas a 29 á noite foi desmontada a ultima. Extinguiu-se o nosso fogo. A brecha feita no bastião era praticavel. O muro da porta São-Pancracio e o bastião n.° 9 desmoronavam-se. A noite de 29 desceu egual a um lençol sobre Roma. Para impedir a reparação das nossas brechas a artilharia franceza ribombou de noute: Foi uma noite horrivel. A tempestade do ceu misturava-se á da terra. O trovão troava; o raio cruzava-se com as bombas, o raio cahia em tres ou quatro partes como para sagrar a cidade. Apesar da festa de São-Pedro, os dois exercitos haviam continuado o seu duelo de morte. Vindo a noite como se esperava um ataque nas trevas, toda a cidade inclusivè a grande cupula do Vaticano, foi illuminada. E demais a mais era de uso em Roma, fazel-o na noite de São Pedro. Aquelle que durante esta noite houvesse fixado a vista sobre a cidade eterna teria visto um d'estes espectaculos que o homem não contempla senão uma vez no decurso dos seculos. A seus pés teria visto estender-se um grande valle cheio de egrejas e palacios, dividido em dois pelas aguas do Tibre, que parecia um Phlégéton; á esquerda um monte, o Capitolio, sobre cuja torre fluctuava ao vento a bandeira da republica; á direita o transumpto sombrio do Monte Mario, onde fluctuavam ao contrario unidas as bandeiras dos francezes e do papa, ao fundo a cupola de Miguel-Angelo, alevantando-se no meio das nuvens toda coroada de luz; emfim, como painel ao quadro, o Janiculo em toda a linha de São-Pancracio, tambem illuminada, mas pelo fusilar dos canhões e dos mosquetes. Depois ao lado d'isto alguma coisa mais que o choque da materia: a lucta do bom e do mau principe, do Senhor e de Satanaz, d'Arimano e de Oromaze; a lucta da soberania do povo contra o direito divino, da liberdade contra o despotismo, da religião de Christo contra a religião dos papas. Á meia noute o ceu se aclarou, o trovão e os canhões se calaram, e o silencio succedeu ao infernal mugido;—silencio durante o qual os francezes se approximavam cada vez mais das muralhas, e se apoderavam da ultima brecha feita no bastião n.° 8. Ás duas horas da manhã, ouviram-se tres tiros de peça disparados a distancia. As sentinellas gritaram—alarma,—os clarins tangeram. Os bersaglieri sempre promptos sempre infatigaveis, sahiram da villa Spada e correram á porta São-Pancracio, deixando duas companhias de reserva para guardar a villa. Embebiam-se até aos joelhos na terra lodosa. Puz-me á sua frente, com a espada desembainhada, cantando o hymno popular da Italia. N'este momento, confesso-o, completamente desesperado do futuro, não tinha senão um desejo—o de me fazer matar. Lancei-me sobre os francezes. Que se passava então? Não o sei.[4] Durante duas horas feri, sem descançar. Quando raiou o dia estava coberto de sangue. Não tinha uma só ferida. Era um milagre. [4] Eis aqui como o historiador Vecchi, um dos mais corajosos defensores de Roma descreve este combate: «Nós estavamos cerrados na villa Spada, onde sustentavamos um horrivel fogo de mosquetes e carabinas: Começavam a faltar-nos as munições, quando o general Garibaldi appareceu com uma columna de legionarios e alguns soldados do 6.° regimento de linha, commandados por Pazi, decidido a dar um ultimo golpe, não para salvação, mas para honra de Roma. Reunidos aos nossos companheiros, lançamo-nos sobre a brecha, ferindo com lanças, espadas e bayonetas: a polvora e as ballas faltavam. Os francezes espantados d'este terrivel choque recuaram logo; mas outros vieram, ao mesmo tempo que a artilheria apontada sobre nós começava a levar-nos filas inteiras. O recinto Aureliano foi tomado e retomado; não havia ahi nem logar onde pousar o pé a não ser sobre algum morto ou ferido. Garibaldi, durante esta noite, foi maior do que eu nunca o vira, maior que nunca ninguem o vio. Sua espada era um raio; cada homem ferido era um morto. O sangue de um novo adversario lavava o sangue do que acava de cair. Tel-o-hiam chamado Leonidas nas Termophylas, Ferracio no castello da Gavissana. Eu tremia de o ver cair de um a outro instante; mas não; ficou de pé como o destino.» É n'esta batalha, que o tenente Moronini, pobre moço que ainda não tinha vinte annos e que se batteu como um heroe, foi morto recusando render-se. No meio da sanguinolenta confusão, chegou-me um mensageiro da Assembléa convidando-me a voltar ao Capitolio. Devo a vida a esta ordem. Havia de ter feito com que me matassem. Descendo pela Longara com Vecchi, que era membro da Constituinte, soube que o meu pobre negro Aguyar acabava de ser morto. Tinha-me prompto um cavallo de retorno, e uma balla lhe atravessára a cabeça. Soffri uma dor terrivel; perdia mais que um servidor, perdia um amigo. Mazzini tinha ja annunciado á Assembléa o ponto em que estavamos. Havia só tres partidos a tomar, dissera elle: Convencionar com os francezes; Defender a cidade de barricada em barricada; Ou sair da cidade, Assembléa, triumvirato e exercito, levando comsigo o palladio da liberdade romana. Quando appareci á porta da salla, todos os deputados se levantaram e applaudiram. Eu procurava ao redor de mim que coisa deveria despertar seu enthusiasmo a este ponto. Achava-me coberto de sangue, meus fatos crivados de ballas e bayonetadas. O meu sabre, mocegado á força de golpes, não entrava senão até ao meio na bainha. Gritaram-me: —Á tribuna! á tribuna! Subi. De todos os lados era interrogado. —Toda a defensa é d'oravante impossivel, respondi, a menos que não façamos de Roma uma segunda Saragoça. A 9 de fevereiro propuz uma dictadura militar; só ella podia pôr sobre pé cem mil homens armados. Então existiam os elementos vivazes: era mister procural-os, ter-se-hiam encontrado n'um homem corajoso. N'esta épocha a audacia foi repellida, os pequenos meios levaram-na. Eu não podia avançar mais o argumento. Cedi. Retinha-me a modestia; porque, sinto-o, eu teria sido esse homem. Curvei-me n'isto ao principio sagrado que é o idolo do meu coração. Se me houvessem escutado, a aguia romana teria de novo feito seu ninho sobre as torres do Capitolio, e com os meus bravos, e os meus bravos sabem morrer, bem o teem visto, eu teria mudado a face da Italia. Olhemos com a fronte erguida o incendio que já não podemos dominar. Saiâmos de Roma com todos os voluntarios armados que quizerem seguir-nos. Onde nós estivermos, estará Roma. Eu não me comprometto a cousa alguma; mas o que um homem pode fazer, fal-o-hei, e refugiada em nós a patria não morrerá. Esta proposta, já feita por Mazzini foi regeitada. Henrique Cernuschi, o bravo Cernuschi, um dos heroes dos cinco dias milanezes, o presidente da commissão das barricadas romanas, regeitou-a. Succedeu-me na tribuna e com as lagrimas nos olhos e a voz abafada. —Sabeis todos, disse elle, se eu sou um ardente defensor da patria e do povo; pois bem, sou eu que vol-o digo, não temos um só obstaculo a oppor aos francezes, e Roma e o seu bom povo—as lagrimas o abafavam—devem resignar-se á occupação. Depois d'uma curta deliberação a Assembléa lavrou o decreto seguinte: «Republica romana. Em nome de Deos e do povo. A Assembléa constituinte romana cessa uma defeza impossivel. Fica no seu posto. O triumvirato é encarregado da execução do presente decreto.» XXI QUEM ME AMA SEGUE-ME A 2 de julho reuni as tropas na praça do Vaticano, e caminhei ao centro d'ellas. Annunciei-lhes que deixava Roma, para levar ás provincias a revolta contra os austriacos, contra o rei de Napoles, e contra Pio IX. E ajuntei: —Quem quizer seguir-me, será recebido entre os meus; a esses não peço senão um coração cheio de amor da patria. Não terão soldo nem repouso; terão pão e agua quando o acaso lh'os der. Quem não está contente com esta sorte fique. Uma vez abertas as portas de Roma, todo o passo dado á retaguarda será um passo de morte. Quatro mil infantes e quinhentos cavalleiros se juntaram ao redor de mim; eram dois terços dos defensores que restavam a Roma. Annita vestida de homem, Ciceravecchio que não queria ver a indignidade do seu paiz, e Ugo Bassi, o santo que aspirava ao martyrio, foram dos primeiros a acercar-se. Pela noite sahimos de Roma, pelo caminho do Tivoli. O meu coração estava triste como a morte. A ultima noticia que havia recebido era a da morte de Manara... G. G. ⁂ Aqui interrompem-se as memorias de Garibaldi. Um dia obterei d'elle a segunda parte da sua vida como obtive a primeira. Aquella resumir-se-ha em duas palavras: Exilio e triumphos. A. DUMAS. Seguem alguns pormenores ácerca dos mortos, que o doutor Bertoni se dignou redigir para mim. XXII OS MORTOS LUCANO MANARA A 30 de junho ás 2 horas da manhã começou como se viu nas memorias do general, o ataque do recinto Aureliano, nossa segunda linha de defensa. Manara pelas 3 horas da manhã reentrou na villa Spada; acabava de collocar os seus atiradores. Na vespera uma balla de peça depois de haver batido na muralha cahira sobre seu leito. Elle se tinha desviado para lhe dar logar, e rindo, dissera: —Vereis que não terei a sorte de apanhar uma arranhadura. Entrando achou Emilio Dandolo muito inquieto por causa de Morosini que diziam prisioneiro. Nem um nem outro sabiam noticia alguma a tal respeito. N'este momento uma balla de recochete feriu Dandolo no braço. —Por minha fé, meu pobre rapaz, parece que não ha d'isso senão para ti! Depois desatando o cinturão e deixando a espada, tomou um oculo de observação e veiu á janella para olhar os soldados francezes que apontavam uma peça. No mesmo instante, partiu um tiro de carabina; a bala passou entre dois sacos de terra e feriu-o no ventre justamente no logar que o cinturão teria protegido se elle o conservasse. Dandolo viu-o tremer, e ferido como estava, aproximou-se para o suster: —Estou morto, disse Manara, recommendo-te meus filhos. Veiu um medico; mas vendo-o pallidecer o ferido comprehendeu que tudo havia terminado. Collocaram Manara n'uma paviola, e no meio do fogo os seus companheiros o levaram a Santa Maria della Scala. Foram chamar-me á ambulancia dei Pellegrini onde eu estava; corri. Era elle que tinha querido que o levassem junto a mim. Ai de mim, estimavamo-nos ternamente! A praça estava atulhada de projectis. Uma joven que havia tido a imprudencia de chegar a uma janella, acabava de ser ferida no peito e morta instantaneamente. M. Varenna, official lombardo, ficou com a perna quebrada por um obuz, quando ia a subir os degraus da egreja para se aproximar de mim. Ia, como eu, vêr Manara. Um medico tambem corria para a egreja. Uma granada o prostou do cavallo; e um instante depois o cavallo ferido de egual golpe cahia sobre elle. Eu chegava são e salvo; conduzia-me Deus! Ao fundo da egreja, á direita, perto da balaustrada, estava um leito rodeado pelos officiaes da legião Manara. Logo que o ferido me viu estendeu a mão para mim, e com voz fraca perguntou-me: —É mortal? A mocidade repellia apezar da evidencia a idéa da morte. Vendo que eu lhe não respondia repetiu: —Pergunto-te se a minha ferida é mortal; responde-me! E sem esperar a resposta, prorompeu em palavras cheias de pesares e de saudades. Animei-o tanto quanto o póde fazer um homem a quem a coragem falta; entretanto elle viu bem que eu não tinha esperança. Muitos medicos se aproximaram d'elle, mas fazendo-lhe signal com a cabeça para se affastarem: —Deixae-me morrer tranquillo! lhes disse elle. Seu pulso quasi se não sentia, as extremidades estavam frias, as feições profundamente alteradas, e o sangue corria a golphadas da ferida.... soffria horrivelmente. Seus companheiros perguntaram-me o que eu pensava do seu estado. —Tem ainda pouco mais ou menos uma hora de vida, disse eu a Dandolo. Então o mancebo inclinando-se ao ouvido do seu amigo: —Pensa no Senhor! lhe disse elle. —Oh! penso, e muito! respondeu Manara. Depois accenou a um barbadinho para que viesse. O frade approximou-se do leito, escutou a confissão do moribundo e deu-lhe a absolvição. O nosso pobre amigo então pediu o Viatico. Dandolo exforçava-se em consolal-o o melhor que podia, fallando-lhe em Deus. Elle o interrompeu para lhe fallar de seus filhos. —Educa-os, lhe disse elle, no amor de Deos e da patria. Depois accrescentou: —Conduz a Milão o meu corpo com o de teu irmão. Causa-te pena que eu morra, meu charo amigo, disse elle; ai de mim! tambem eu choro a vida! Chamou então para seu lado um soldado que era sua ordenança, e que bastantes vezes tinha feito enraivecer. —Tu perdoas-me não é assim? lhe disse elle sorrindo. Depois perguntou a Dandolo se tinha havido noticias de Morosini. Dizia-se vagamente que elle estava prisioneiro. Um pouco antes de morrer, Manara tirou um annel do dedo, metteu-o no de Dandolo, e disse: —Saudarei teu irmão por ti: E virando-se para mim: —Ó Bertani! faz-me morrer depressa, disse elle; soffro muito! Foi a ultima queixa que sahiu de sua boca. Entrou em agonia, agarrou-se convulsivamente aos que o cercavam, depois recahiu no leito, com um suspiro, immovel e frio. Puz-lhe a mão sobre o coração; battia ainda, mas lentamente: pouco a pouco as pulsações cessaram. Sua alma está já no Ceu. Eu disse então aos monges que nos rodeavam de me prepararem uma solução arsenical para injectar o cadaver, mas não havia arsenico. Contentei-me de fazer a injecção com sublimado corrosivo. O cadaver foi transportado para uma camara, á direita do altar mór, perto da sachristia, e ali deposto levemente, vestido do seu uniforme, e com a cabeça apoiada n'uma almofada. Seu joven amigo Eleuterio Pagliano que durante todo o cerco tinha valentemente combatido, e que é hoje um dos mais distinctos pintores lombardos, fez o seu retrato. Perto d'elle, deitado sobre uma prancha estava Aguyar, o negro de Garibaldi: Mirava eu estes dois cadaveres tão bellos, e de tão differente bellesa, quando ouvi soluçar atraz de mim. Era Ugo Bassi que chorava. Todo o tempo que estivemos n'esta camara, parecia ella ser o alvo dos projectis francezes. No seguinte dia foi o cadaver transportado a uma casa e d'alli á egreja de S. Lourenço. Depois do que foi deposto na egreja dos Cem Padres, onde o esperava o corpo de Henrique Dandolo e onde devia juntar-se o de Morosini. No proprio dia da morte de Manara chegava uma carta de sua esposa contendo estas sós palavras: «Não penses em mim nem em teus filhos, pensa só na patria.» Pobre mulher! a morte estava encarregada de lhe levar a resposta. EMILIO MOROSINI Estavamos em redor do leito de Manara, perguntando o destino dos nossos mais charos amigos, e entre outros d'Emilio Morosini. Mas n'este dia foi impossivel saber nada de positivo a seu respeito. Na manhã do 1.° de julho Dandolo soube de um soldado que se havia achado na brecha ao mesmo tempo que Morosini, que elle havia cahido gravemente ferido nas mãos dos francezes. Apesar de soffrer muito da sua ferida, Dandolo correu ao triumvirato, depois ao ministerio para obter permissão de sahir. Depois de tres horas de instancia, obteve-a e correu ao campo dos francezes sem salvo-conducto de qualidade alguma. Sustido nos postos avançados, disse o fim a que ia. Um official teve piedade de sua angustia e lhe permittiu de penetrar no campo, onde o conduziram á ambulancia. Soube que Morosini havia morrido. Pediu que lhe entregasse o cadaver para o entregar á sua familia; mas um medico respondeu que havia duas horas que o haviam levado para um cemiterio muito affastado. Dandolo sollicitou uma ordem de exhumação. Em quanto esperava a resposta ao seu pedido, entrou um capitão ajudante do estado-maior, que ficou muito admirado de ver no campo francez um official italiano sem salvo-conducto. Condemnou a prisão o official que o deixára passar, e mandou-o para a linha dos postos avançados sem nada querer ouvir. Dandolo volveu a trazer a triste noticia aos seus amigos, e escreveu ao chefe do estado maior francez para pedir a permissão da exhumação. Obteve-a na manhã de 2. A triste ceremonia do transporte de Manara estava acabada quando Dandolo se aproximou de mim dizendo: —Bertani, d'aqui a algumas horas o cadaver de Morosini estará na egreja dos Cem Padres, em Santa Vieto, onde poderás vêl-o. Fui á egreja um pouco antes da noite. A casa ou antes o convento que confinava com a egreja, estava occupada pelos francezes, de sorte que a egreja estava fechada. Pedi permissão de entrar a um capitão, que vendo a profunda tristesa espalhada em meu rosto, me perguntou affectuosamente se eu era soldado, qual a minha patria, e se havia perdido algum parente ou amigo. Respondi-lhe que havia perdido muitos amigos, e entre outros Manara. Conhecia-o de nome, e pediu-me pormenores sobre sua morte, e tambem me deu alguns. Um caçador de Vincennes, que estava perto d'elle no ataque de Spada, e que elle me mostrou no meio de um grupo de soldados ao pé da porta onde estavamos, lhe dissera no momento em que Manara se approximara da janella com o seu oculo: —Olhae bem este official, está morto. Ao mesmo tempo o soldado havia atirado: a balla chegara ao seu destino; e elle havia visto cair Manara. O capitão continuava a fallar; eu estava tão triste que não lhe pude responder senão pedindo-lhe que me deixasse entrar na egreja. —Que ides ahi fazer? me perguntou elle. —Vou procurar o cadaver de outro amigo, desenterrado hoje mesmo e entregue pelos vossos á dôr de sua mãe. Mandou pedir permissão ao coronel, obteve-a, e confiou-me ao guardião da egreja para que me deixasse entrar. A egreja estava escura; o guardião abriu uma pequena porta que conduzia do convento ao côro da egreja, deu-me uma lampada e apontando-me um canto sombrio disse-me: —Procurae ahi. Mas elle não quiz seguir-me mais ávante. Approximei-me triste e piedosamente, com um tremor em todas as veias. Este silencio, estas trevas, o duvidoso clarear da lampada, o precioso objecto de minhas investigações, a angustia de encontrar assim o encantador mancebo que eu conhecera vivo, tudo isto me fazia pulsar fortemente o coração. Caminhava lentamente, não conhecia aquelles lugares, sem saber onde estava collocado o corpo, levantando a lampada e tremendo de o tocar com o pé. Emfim perto dos degraus descobri uma fórma negra e longa. Reconheci um corpo humano. Quasi louco de dôr, e de um horror que eu não dominava, inclinei-me sobre elle. Oh! triste! triste! triste! Com a mão que me ficava livre, desatei a corda que ligava o lençol ao pescoço, ao ventre e aos pés. Levantei a cabeça. Ainda que já desfigurado, reconheci que era o pobre moço que eu procurava. Larguei-lhe a cabeça. Ella cahiu sobre a lagea imprimindo-lhe um som que eu nunca esquecerei. Não havia em mim um cabello que não tivesse a sua gota de suor. Parei tremendo. Meu Deos, como vós sois grande, e como a morte é horrivel! Fiz um exforço sobre mim. Medico habituado á morte, não queria ser por ella vencido. Pousei a lampada sobre um dos degraus do altar, volvendo os olhos para o rosto do morto, olhando-o tristemente: estava mais pallido que o panno que o cobria. Procurei e toquei suas feridas. Teria querido guardar as ultimas gotas de sangue de seu coração para as levar a sua mãe, e para fazer com este sangue uma cruz sobre o rosto de todos os jovens italianos, que um dia devem levantar-se para o libertamento da sua patria. Cortei uma madeixa de seus cabellos. Talvez elle tivesse um amigo: com certesa tinha uma mãe. Emfim apertei-lhe a mão; descobri uma derradeira vez a minha cabeça ante elle e murmurei: —Até á vista! Sahi transido da egreja, levando este espectaculo de morte exactamente copiado em mim, que hoje, onze annos depois escrevendo estas linhas, vejo ainda o cadaver, a figura pallida, no seu lençol todo cheio de terra e sangue. Sahindo encontrei o guarda, depois o official, ao qual apertei a mão sem poder pronunciar uma palavra. No dia seguinte o cadaver de Morosini foi deposto n'um caixão de chumbo, esperando o momento da partida para o solo natal com os cadaveres dos seus inimigos. Todos nós desejavamos com egual ardor ter pormenores sobre a morte de Morosini; mas os mais eram obrigados a partir. Ficavam só os mortos, e os que ajudavam os feridos a morrer. Eu era dos ultimos. Eis aqui, pois o que soube sobre a morte de Morosini. Colhi estes pormenores que vou dar de mr. de Santi, corso empregado no serviço sanitario dos francezes, e que na noite de 29 a 30 de junho era cirurgião na ambulancia do fosso. Este honrado e bom confrade, ao qual sou devedor de alguns serviços, me contou que a 30 de junho ao raiar d'alva trouxeram a ambulancia um dos nossos officiaes, tão joven e tão bello que elle o tomou por uma mulher. Estava levemente ferido na testa, na mão esquerda e no peito, mas mortalmente no ventre. De Santi o havia tratado com affeição. Morosini que ainda fallava, perguntou-lhe: —Que pensaes das minhas feridas? De Santi respondeu: —Tende confiança em Deus e na vossa mocidade. —Está bom, disse Morosini; comprehendo, estou perdido! Depois ajuntou com um suspiro: —Pobre mãe! Entregou uma carteira ao douctor, volveu a cabeça, e recusou desde então pronunciar mais uma só palavra. Poucos minutos depois de Morosini ter sido curado, um velho sargento do 32.° entrou na ambulancia, e depois de ter anciosamente procurado o leito do joven official, disse ao medico. —É elle! —Que quereis dizer? lhe perguntou de Santi. —Que a lodo o custo queria salvar este pobre moço; tenho feito tudo o possivel. Mas não, isto foi mal para elle. Então elle contou que Morosini, acompanhado sómente de quatro homens tinha sido cercado; tinham-lhe intimado que se rendesse, ao que elle respondêra: —Nunca! E continuou a ferir com sua espada gritando aos seus: —Em nome da Italia prohibo-vos de vos renderdes! O velho sargento então lhe havia apontado a bayoneta ao peito para o intimidar; mas Morosini segurou-a com a mão esquerda, e descarregou um golpe sobre a cabeça do sargento. Este entretanto prohibia aos soldados de fazerem fogo, esperando aprisionar vivo o mancebo e portanto salval-o. Mas então um soldado que se achava atraz d'elle vendo que Morosini continuava a defender-se atirou-lhe um tiro. A bala atravessou-lhe as entranhas; era a ferida mortal. Morosini cahiu, mas sobre um joelho e a mão esquerdo. N'esta posição ainda tentou ferir seus adversarios gritando sempre a seus companheiros: —Fazei-vos matar, mas não vos rendaes! O sargento furioso voltou-se para o soldado dizendo: —Desgraçado! que fizeste? Não vês que era uma creança? Morosini morreu algumas horas depois de ter sido levado á ambulancia, e foi envolvido no lençol em que eu o achára na egreja dos Cem Padres. Morosini tinha á cintura duas pistollas, na coronha das quaes estava gravado o nome de Koscinsko, amigo de sua familia, e que d'ellas fizera presente a seu avô. Fiz todas as diligencias possiveis para encontrar essas pistollas e a espada, mas inutilmente. Parece que o velho sargento as possuia, mas declarou não as dar por preço algum. A 4 de setembro de 1849 os tres feretros que encerravam os cadaveres de Henrique Dandolo, de Lucianno Manara e de Emilio Morosini desembarcaram no Molo-Novo de Genova. GODOFREDO MAMELI Garibaldi conta nas suas Memorias e na curta biographia que fez de Mameli que o joven poeta na noite de 3 de junho veiu pedir-lhe de tentar um novo esforço sobre o casino Corsini e que elle lhe concedeu o pedido. Mameli foi ferido na perna esquerda. A ferida por si não era nada, mas por uma má disposição do sangue, gangrenou em 18 de junho, e tornou-se indispensavel a amputação. A janella da camara de Mameli na ambulancia da _Trinitá dei Pellegrini_, dava sem cessar passagem a toda a especie de projectis; mas Mameli mostrou-se sempre indifferente a este perigo posthumo e póde-se assim chamar. Só no momento em que estava mais enfraquecido pela suppuração elle se tornou um ou dois dias impaciente pelas balas como uma creança pelas moscas. —Ser morto em pleno ar combatendo, embora; mas morto no meu leito como um paralytico, não! No dia 8 de junho delirou, delirio encantador durante o qual elle cantava em voz baixa, e se recordava quasi dia por dia da sua vida intellectual—pobre moço!—tão bella e tão curta. Nos intervallos destes cantos prophetisava ou fazia votos pela sua patria. Tinha vinte e um annos quando morreu. Injectei o seu cadaver, que foi enterrado em Roma. Tinha composto um canto de guerra, que Garibaldi cantava muitas vezes e entoava sem cessar; _Fratelli de Italia_. Este canto é popular na Italia. BERTANI FIM DO 2.° E ULTIMO VOLUME ------------------ Nota do Transcritor Pontuação e hifenização foram normalizados. O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1860. A ortografia originais foi mantida com exceção de alguns erros óbvios. Palavras em itálico e frases são apresentados por em torno do texto com sublinhados (_itálico_). A fonte Versaletes na versão do texto foi alterado para todos os tampões. ------------------------------------------------------------------------ *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS DE JOSÉ GARIBALDI, VOLUME 2 *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.