The Project Gutenberg eBook of Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo: Tentativa de coordenação historica This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo: Tentativa de coordenação historica Author: Manuel Pinheiro Chagas Release date: October 23, 2020 [eBook #63534] Most recently updated: October 18, 2024 Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES E OS DE COLOMBO: TENTATIVA DE COORDENAÇÃO HISTORICA *** OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES E OS DE COLOMBO OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES E OS DE COLOMBO [Illustration] TENTATIVA DE COORDENAÇÃO HISTORICA POR MANUEL PINHEIRO CHAGAS SECRETARIO GERAL DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA [Illustration] LISBOA Typographia da Academia Real das Sciencias 1892 I Os problemas geographicos do seculo XV A festa do centenario de Colombo deve acima de tudo ser uma festa de justiça e um dos grandes jubileus da humanidade. Os centenarios dos grandes homens e os centenarios dos grandes acontecimentos são as solemnidades com que se festeja sobretudo a chegada a cada um dos marcos milliarios da estrada, que até agora parece ser infinita, do Progresso. Lançando os olhos para o passado, vê-se que a humanidade não parou um só instante na sua marcha para um fim ainda hoje desconhecido. Parece ás vezes aos observadores superficiaes que ha epochas em que se recúa, porque se extingue uma luz que brilhava com immensa intensidade, ou porque retrocede uma ou outra das legiões que formam o immenso exercito da especie humana; mas, se ha umas que retrocedem, porque estavam muito adeante das outras, estas em compensação avançam e ganham o terreno perdido pelos seus companheiros de jornada. Se um clarão se apaga, outros ha que se accendem em pontos que até ahi estavam immersos em trevas profundas. O nivel da humanidade restabelece-se como se restabelece o nivel das aguas depois dos grandes cataclysmos que afundam as mais altas montanhas, e que deixam enxutas immensas planicies cobertas até ahi pela vaga. Assim não ha um só dos grandes cataclysmos historicos de que não resultasse um progresso. Mudou-se a fórma da civilisação occidental quando cahiu o imperio romano. Ao impulso dos barbaros alluiram-se as instituições e os monumentos, a sciencia e as lettras eclipsaram-se, mas a alma humana illuminou-se com a irradiação do Evangelho que só n’essa raça virgem que vinha do Norte e do Oriente podia accender os candidos explendores que foram como que novas estrellas no nosso firmamento moral, que foram a divinisação da mulher e a apotheose da familia e ao mesmo tempo a esperança immortal que expirára no mundo antigo podre de civilisação e que reviveu no mundo barbaro. Cahiam deante do alvião vandalico os monumentos magestosos de Roma e as puras obras primas da Grecia, mas erguia-se envolta n’um nimbo estranho de fé e de poesia a cathedral gothica, e recortavam-se em mil caprichos phantasticos as torrinhas e as innumeraveis agulhas dos paços municipaes, em que a burguezia ostentava, em frente da realeza da espada, a realeza do trabalho. Desappareciam debaixo dos codices monachaes as obras primas dos tragicos e as epopéas gregas, mas a alma complexa da tumultuosa meia edade palpitava nos tercetos de Dante. E, quando a invasão musulmana derrubava no Oriente o ultimo baluarte da antiguidade erudita, quando a Grecia via os seus marmores despedaçados pelas ferraduras dos cavallos do deserto, e o Egypto as suas esphinges sepultadas nas nuvens de areia que as hordas arabes levantavam, no Occidente arrancava Colombo á esphinge do Oceano o seu segredo secular, fixava para sempre Guttemberg os vestigios do pensamento humano, e ás portas orientaes, vindas de remoto occaso, assomavam as prôas das caravelas portuguezas, que acabavam de sulcar, vanguarda da civilisação, as ondas do mar Tenebroso illuminadas pela sua audacia. Estas festas devem ser porém acima de tudo as festas da justiça, porque n’ellas devem emmudecer perante a grande causa da humanidade as mesquinhas invejas, as pequeninas rivalidades nacionaes, com que por muitas vezes se procura deslustrar a memoria d’aquelles, que foram os agentes providenciaes d’estas grandes transformações. O progresso humano obedece a leis de uma ineluctavel logica. Não ha saltos nem lacúnas. Tudo se succede com uma logica surprehendente. As grandes descobertas derivam-se umas das outras. Todo o grande homem tem os seus humildes predecessores. O seu genio fórma-se com elementos dispersos que elle aproveita, concatena, e de que tira só elle o resultado fecundo. Não foi Watt que inventou a machina de vapor, mas a elle e só a elle cabe a gloria do invento, porque foi o seu genio que encontrou o segredo capital, sem o qual essa machina não seria sempre senão uma curiosidade, inutil para os grandes progressos da sciencia e da industria. Não foi Colombo sem duvida o primeiro que sonhou que para além das vagas do Atlantico se encontrava terra, nem o primeiro que devaneou que a marcha de um navio pelo occidente o deveria conduzir ás plagas orientaes da Asia. Não foi o infante D. Henrique o primeiro que pensou que, torneando a Africa, se poderia chegar ao mar Roxo e á India, mas foram Colombo e o infante D. Henrique que tiveram a audacia, a fé e o espirito scientifico, foram elles que romperam os obstaculos, deante dos quaes recuava pallida e tremente a multidão dos navegantes, ou refugia hesitante o sonho de alguns capitães devaneadores. A elles cabe sem duvida a gloria incontestavel, perante elles se deve curvar com respeito a humanidade, que só a elles deve a conquista maravilhosa de mais de metade da terra. Quando vejo a azafama com que procuram ainda hoje espiritos demolidores sustentar que os Portuguezes foram precedidos por outros povos nos seus descobrimentos, que teve Colombo predecessores no descobrimento da America, pasmo que se não veja claramente o obstaculo deante do qual baqueiam todos os seus argumentos. Esse obstaculo é o seguinte: antes dos navegadores do infante D. Henrique terem demonstrado o contrario, era ponto incontestavel para todos a impossibilidade de se viver na zona torrida. Antes de Colombo ter mostrado o contrario, era ponto incontroverso que a immensa extensão do Atlantico tornava impossivel que um navio, caminhando na direcção do occidente, encontrasse terra antes de terem perecido de fome e de sede todas as tripulações. Pois, se um navio qualquer tivesse, como se diz dos navios dieppezes, chegado antes de nós ás costas da Guiné, não estava desde logo quebrado o encanto, não cahia por terra toda a geographia systematica dos antigos, não estava aberto para sempre o _mare clausum_, e podia alguem sustentar ainda que era inhabitavel a zona torrida, quando havia em França marinheiros que a tinham atravessado sem perigo, que tinham voltado incolumes, deixando n’essas regiões que todos diziam completamente queimadas pelo sol colonias florescentes como esse Petit-Dieppe e esse Petit-Paris, que ainda hoje são citadas por escriptores francezes notabilissimos, em cujo espirito um mal-entendido amor patrio parece extinguir completamente a faculdade do raciocinio? Seria necessario que essa descoberta fosse completamente inconsciente, que os marinheiros nem soubessem que tinham entrado na zona torrida, e essa ignorancia é completamente incompativel com os conhecimentos embora rudimentares que precisava de ter o navegador que se arriscava a tão aventurosas viagens. O mesmo diremos das navegações antigas de que se encontra noticia nos livros de Herodoto e no Periplo de Hannon. Se os marinheiros phenicios de Necho tivessem dado volta ao cabo da Boa Esperança, e tivessem entrado no Mediterraneo pelo estreito de Gibraltar, percorrendo tão immensa extensão de costas, como poderiam persistir no espirito dos geographos antigos idéas tão absolutamente falsas a respeito da configuração da Africa e da distribuição das zonas? Pode allegar-se por acaso que essa viagem não deixou vestigios, quando vemos que as viagens dos Phenicios nos mares da Europa tão difficeis e tão inhospitos foram sempre continuadas, que nunca se perdeu o conhecimento da Islandia, essa terra gelada, e que pelo contrario perderam immediatamente esses Phenicios, esses Orientaes, que viviam nas terras ardentes, o conhecimento de costas que o sol tambem aquecia e em que encontravam muitas vezes como que a reproducção das suas terras nataes? E não seria extranho tambem que Hannon tivesse feito a longa viagem que do seu Periplo se quer deduzir que fez, e que se apagasse completamente na memoria carthagineza o conhecimento das terras percorridas em tão memoravel expedição, preferindo tambem, ao que parece, esses filhos de paiz africano, as costas geladas e os mares tempestuosos da Europa ao clima quente e ao mar sereno da Africa Occidental? O que é estranho realmente, é que o alto espirito de Humboldt acceitasse sem exame as pretenções dos Normandos, limitando-se a observar na sua _Historia da geographia do Novo Continente_ que esses factos citados não diminuem a gloria de quem tentou a exploração seguida das costas africanas![1] Não viu o grande historiador, o immortal geographo, que esses factos isolados bastavam para destruir todas as lendas, que eram a chave com que ficava para sempre aberto o mar Tenebroso, que só se abriu comtudo radiante de luz deante dos esforços dos navegadores portuguezes, que bastavam para abrir o caminho para a _terra antichtona_, para o _alter orbis_, onde muitos diziam que ficava situado o Paraizo Terrestre, e que nós não poderiamos conhecer nunca, porque ás duas zonas temperadas se interpunha, intransitavel e terrivel, a zona torrida completamente queimada pelo sol? Tão profunda seria a ignorancia em Dieppe que ninguem visse a importancia da maravilhosa expedição? Nos seculos XIII e XIV, sobretudo, em que já começava a actuar nos espiritos europeus a febre das viagens, já depois de Marco Polo ter escripto a sua curiosa narrativa, depois das viagens para o Oriente de Rubruquis e de Carpino, e das viagens de sir John Mandeville, quasi um normando tambem? Ninguem via semelhante coisa! Tendo de casa quem lhes ensinasse a verdade, continuavam geographos e cartographos, todos os sabios, todos os estudiosos a repetir as velhas fabulas, a encher de monstros horrificos os desconhecidos plainos africanos, a pintar a vermelho nos mappas, para bem indicar o ardor do clima, os mares equatoriaes? Possuindo colonias na costa africana, tendo marinheiros que tão bem conheciam esses mares podiam os reis de França consentir que, por bulla de 8 de janeiro de 1454, o papa Nicolau V concedesse aos reis de Portugal «todas as conquistas da Africa com as ilhas nos mares adjacentes _desde o cabo Bojador e de Não até toda a Guiné com toda a sua costa meridional_?»[2]. E era possivel ainda que no principio do seculo XV os capellães de João de Bethencourt, _fidalgo normando_ que occupára as Canarias, compondo a narrativa da famosa expedição, nem uma palavra escrevessem ácerca das expedições dos seus patricios, e que pelo contrario dissessem, elles normandos, que «_si aucun noble prince du royaume de France ou d’ailleurs vouloit entreprendre aucune grande conqueste par deçà, qui seroit une chose bien faisable et bien raisonnable, le pourroit faire à peu de frais; car Portugal et Espagne et Aragon les fourniroient pour leur argent de toutes vitoailles et de navires plus que nul autre pays, et aussi de pilotes qui savent les ports et les contrées_?»[3] Com tanta superficialidade porém se estudam estes assumptos que nem se pensa em se saber se a Guiné do seculo XIV é a Guiné posterior aos descobrimentos. Isso leva escriptores francezes e o proprio Humboldt a allegar que este mesmo Bethencourt explorou a Guiné antes dos portuguezes, sem verem que o que os seus capellães contam é o seguinte: que «os navegantes normandos se affogaram nas costas _da Barbaria ao pé de Marrocos_»,[4] e que Bethencourt tencionava visitar a parte da «terra firme que fica _entre o cabo Cantim e o Bojador_»[5] que para isso consultara o livro de um religioso hespanhol «_que visitára a Guiné, mas que, chegando ao cabo Bojador se limitára a reconhecer as ilhas que ficavam áquem_».[6] A Guiné do tempo de Bethencourt era, como se vê, a que ficava para cá do cabo Bojador, e tanto assim que o papa Innocencio VII disse, escrevendo a Bethencourt, que sabia ficarem as ilhas Canarias a doze leguas de Guiné.[7] Que immenso cuidado é necessario, quando se procura destruir uma tradição profundamente e fortemente documentada! Quantas causas de erro escapam ao investigador ou frivolo, ou negligente, que se ufana de encontrar n’um velho alfarrabio um facto que vem destruir completamente o que parecia assente e demonstrado! Basta uma variação de nome para transtornar todas as deducções. Basta que uns não saibam, que outros não reparem que o nome de Guiné foi mudando de sitio, como outros muitos nomes geographicos, á medida que os descobrimentos foram caminhando, para que todas as interpretações caiam por terra! Não basta que se diga que no seculo XIV ou XV houve Francezes que chegaram á Guiné, torna-se indispensavel apurar tambem se a Guiné do principio do seculo XV era a mesma que assim se denominou depois dos descobrimentos. Este apuramento, d’onde resulta sabermos que a Guiné ficava, para os capellães de Bethencourt, áquem do cabo Bojador, destruiria completamente a singularissima reivindicação franceza se tantos argumentos fortissimos não houvesse para lhe demonstrar a inanidade.[8] É o que succede tambem com os detractores de Colombo. Não vêem immediatamente os que dizem que antes de Colombo chegaram a terras americanas João Vaz Côrte Real, ou o francez Jean Cousin, que, se algum d’elles tivesse levado a termo tão importante expedição, bastava isso para ficar logo resolvido o grande problema do fim do seculo XV que trazia preoccupados sabios e estudiosos, deante do qual tanto hesitou D. João II, que inflammou em França o animo do cardeal Pedro d’Ailly, em Italia o do famoso Toscanelli! Com que jubilo se saudaria essa resolução do grande problema! O que faz tambem com que homens de valor no nosso tempo possam acceitar fabulas tão pueris, como a de João Vaz Côrte Real e a de Jean Cousin, é que raros estudam a fundo o problema que pretendem resolver a seu modo, e não o sabem pôr em equação. Uns estabelecem a lenda de Christovão Colombo considerado como um visionario por dizer que se encontraria a India navegando-se pelo occidente, outros a lenda de Christovão Colombo tratado como um louco por imaginar que para o lado do occidente havia terras. E por isso dizem uns que elle sabia perfeitamente que havia terras porque tinha conhecimento de viagens a que os navegadores não tinham ligado importancia alguma e que tinham passado despercebidas, outros que algum dos reis com quem elle tratara, D. João II por exemplo, não ignoravam que havia terras para o occidente a grandissima distancia da Europa, porque a essas terras já um portuguez aportara, mas estavam convencidos que essas terras não eram a India, e n’isso, accrescenta-se, eram elles que tinham razão e não Colombo. É mal posto o problema: que se poderia chegar á Asia indo-se pelo occidente, raros seriam os homens de alguma instrucção que o podessem pôr em duvida. A idéa da esphericidade da terra já penetrara em todos os espiritos, e a sua consequencia natural era que pelo occidente se poderia chegar ao oriente. Que devia haver terras para o occidente era por conseguinte egualmente incontestavel. A questão toda estava exclusivamente na distancia. D. João II não julgava Colombo um visionario por elle lhe dizer que pelo occidente se chegaria á India, julgou-o um visionario por elle suppôr que poderia atravessar para chegar ao seu destino a enorme extensão dos mares. Não o suppoz visionario por elle cuidar que encontraria terras ao occidente, ainda que essas terras não fossem a India, suppôl-o visionario por elle imaginar que teria tempo de chegar a essas terras a salvamento. Logo, se Jean Cousin ou João Vaz Côrte Real tivessem realisado essa façanha, estavam dissipadas todas as duvidas. Havia terras a grande distancia da Europa, terras que ou seriam a India, ou algum d’esses archipelagos em que Toscanelli tinha fé, que serviriam de escala aos navios que demandassem pelo occidente a Asia?[9] O jubilo immenso que se sentiu na Hespanha quando Christovão Colombo voltou, sentir-se-hia em Lisboa quando João Vaz Côrte Real tornasse, ou sentir-se-hia em França quando Jean Cousin entrasse n’algum dos seus portos. O erro d’aquelles que assim procuram contrapôr a glorias consagradas não só pela tradição, mas pelos factos incontestados e pelos resultados conseguidos, estas lendas pueris forjadas ou pela inveja dos contemporaneos, ou pela phantasia audaciosa dos historiadores sem probidade scientifica que abundaram no seculo XVII, está em pôrem completamente de parte o estudo do meio em que os grandes descobrimentos se fizeram, de modo que o infante D. Henrique e Colombo apparecem como uns vultos inexplicaveis sem raizes no passado e sem relações de especie alguma com o espirito das gerações de que fizeram parte. Querem então reduzir á estatura normal esses vultos descommunaes, e aproveitam qualquer tradição apocrypha para mostrarem com um sorriso de mofa, que elles não fizeram senão aproveitar os esforços inconscientes feitos por alguns vultos humildes, para forjarem com esse metal roubado a pobres as estatuas da sua grandeza. Applique-se o methodo scientifico ao estudo d’estes grandes phenomenos da vida da humanidade, e ver-se-ha como o genio d’estes dois homens apparece ainda mais brilhante quando vemos que elle resume as vagas aspirações da geração a que pertencem, satisfaz a anciedade que ella sente, encontrando a solução que os outros debalde procuram. O infante D. Henrique surge no meio de uma geração que se debate na ancia do desconhecido, que se julga apertada na jaula d’este mundo antigo, e anceia por encontrar espaço mais amplo em que mais livremente respire. Havia um seculo já que a sede das viagens se apoderara dos espiritos, que o conhecimento da terra era a preoccupação constante de todos os espiritos mais illustrados e cultos, em que já se multiplicavam os documentos cartographicos, em que aquellas encyclopedias medievaes que tinham o titulo quasi consagrado de _Imago mundi_ se enchiam com as mais phantasticas noções, revelando comtudo o ardor com que se procurava supprir com uma geographia conjectural a falta do conhecimento verdadeiro da terra. Já se tinham emprehendido as grandes viagens terrestres pela Asia, procuravam os povos maritimos sondar os segredos do Occeano. Tentavam os Normandos perscrutal-os, e a expedição de João de Bethencourt bem o demonstrou, aspiravam a descobril-os os Genovezes, e a infeliz expedição de Vivaldi de que nunca mais houve noticias depois das suas galés terem transposto o estreito de Gibraltar confirma-o cabalmente, queriam os Catalães encontral-os e Jayme Ferrer, que apenas transpoz o cabo Não, e não conseguiu passar além do Bojador, foi um dos que se illustraram n’essas tentativas; mas paralysou-os a tradição geographica tão enraizada nos seus espiritos como o estão hoje no nosso as theorias da geographia moderna. Logo que a costa africana, em vez de voltar para o oriente, continuava a seguir para o sul, internando-se por conseguinte na zona torrida, a affirmação scientifica de que o sol a ia tornar impossivel de se transpôr impunha-se ao espirito dos navegantes, e bastaria para os fazer recuar, ainda que as affirmações cathegoricas da orthodoxia e os terrores da superstição os não movessem. D. Henrique teve o genio de um livre espirito que se revolta contra uma tradição que se não baseia em dados positivos, e que a submette audaciosamente ao exame da experiencia, teve a coragem que transmittiu aos seus navegadores de arcar contra as affirmações da sciencia, contra os dogmas da religião, contra os pavores da lenda. Continuou e venceu! E a noticia do triumpho correu a Europa toda, e resoou em toda a parte como uma grande conquista do espirito humano, e a theoria das zonas inhabitaveis desappareceu, e a da impossibilidade de communicação entre as duas zonas temperadas dissipou-se, e a Egreja teve de se conformar com a existencia dos antipodas que ella considerava como uma affirmação incompativel com o espirito christão. Pois não se vê que tudo isso aconteceria, logo que um navegador audacioso tivesse penetrado na zona torrida, muito para além das regiões habitaveis? E não se vê tambem que semelhante navegação não passaria despercebida n’uma epocha em que era universal a anciedade pela ampliação dos conhecimentos geographicos? Succede o mesmo com Christovão Colombo. A existencia de terras para o occidente é um dos sonhos da humanidade desde longas eras. Quanto esse problema preoccuparia os navegadores portuguezes n’esse seculo XV todo illuminado pelas suas glorias pode bem imaginar-se. Attestam-n’o as aventurosas expedições dos mareantes açorianos; mas, como Vivaldi que procurou sondar as regiões inexploradas da Africa, muitos d’esses audaciosos se perderam no vasto Occeano, como Jayme Ferrer, outros chegaram a terras um pouco afastadas e foi assim que a ilha das Flores se descobriu, mas como o mesmo Ferrer recuando deante do Bojador, como Bethencourt não ousando afastar-se para além das costas de Marrocos, os açorianos desmaiaram deante da infinita solidão do Atlantico. Quando Colombo quebrou essas ultimas barreiras, com que enthusiasmo o receberam, com que despeito por lhe não ter dado inteiro credito o acolheu D. João II! Como logo partiram de toda a parte navios a sondar esses mares desconhecidos! Não aconteceria o mesmo se Jean Cousin ou João Vaz Côrte Real tivessem, antes de Colombo, vencido o grande obstaculo? Não seria para Lisboa ou para Dieppe que se voltaria logo a attenção e a inveja de toda a Europa? Assim, resumindo as questões capitaes em que se condensa o nosso ponto de vista, temos que os dois grandes problemas geographicos que foram resolvidos pelos navegadores do infante D. Henrique e pelas caravellas de Christovão Colombo eram as seguintes: 1.º Atravessar a zona torrida, que, segundo as affirmações da sciencia, tornava impossivel a communicação entre as duas zonas temperadas, entre a terra em que habitamos e a terra antichthona, entre o mundo antigo que tinha Jerusalem no centro e o _alter orbis_ onde a humanidade vivera antes do diluvio, transpôr o Atlantico, pintado pela lenda e pela tradição antiga como o mar tenebroso, entrar n’um occeano que passava por sobrenatural, onde se estava talvez á mercê das potencias infernaes; 2.º Atravessar a solidão do Atlantico do occidente ao oriente, até chegar ás praias orientaes da Asia. A resolução do segundo problema estava dependente da resolução do primeiro. O primeiro acto de audacia era abrir os mares fechados, mostrar que não tinha o Atlantico os perigos reaes e sobrenaturaes de que o rodeiavam a tradição scientifica e a lenda popular. Esse resolveram-n’o os Portuguezes, e ninguem os precedeu nem os podia preceder, pelo simples motivo de que, se alguem antes d’elles tivesse aberto o _mare clausum_, não teriam elles que o tornar a abrir. Não se fecha o mar como se fecha uma porta. Não tornam a crear-se os phantasmas que o primeiro audacioso dissipou. Se alguem, antes do infante, houvesse rasgado a cortina do mysterio que sequestrava o Atlantico, estava o Atlantico patente. A geographia systematica da antiguidade e da edade média caía em ruinas logo que o primeiro facto real e tangivel tivesse mostrado a inanidade do systema. Resolvido o primeiro problema, trepidou-se deante do segundo. Não se oppunham á sua resolução nem as theorias geographicas dos antigos, porque bem conhecidas são, acima de tudo, as opiniões de Eratosthenes, nem as opiniões orthodoxas que não contrariavam de um modo formalmente directo as doutrinas de Colombo, nem as lendas maravilhosas que, depois da desapparição do mar Tenebroso, não faziam senão excitar os navegadores a procurarem no Occidente as ilhas paradisiacas de que S. Brandão voltára com as vestes rescendentes a celestiaes perfumes. O que se oppunha simplesmente á resolução do problema era a immensidade do Occeano, que parecia confirmada exactamente pelas navegações portuguezas. Navegara-se durante annos e ainda se não chegara ao sul da Africa. Quanto tempo teria de se navegar para se chegar á India! Embora! exclamava Toscanelli, um dos enthusiastas da escola colombina, porque, se lá não chegardes em breve, encontrareis disseminadas pelo Occeano centos e centos de ilhas e de archipelagos que servem de guarda avançada ao grande continente oriental. Sonho de visionario! dizia-se e Colombo era repellido. Mas Colombo persistiu e foi elle que rompeu o encanto, elle e só elle que por ninguem poderia ter sido precedido, porque, se o fosse, tinham caido por terra todas as objecções, visto que o problema estava reduzido a este simplissimo termo: atravessar o Occeano e encontrar terra a distancia a que cheguem os viveres de uma caravela. O primeiro que o conseguisse tinha quebrado o feitiço, tinha desvendado o mysterio. Portuguez, francez, hespanhol ou italiano, seria a sua volta saudada pelas acclamações freneticas de toda a Europa maritima. Se foi essa gloria que aureolou Colombo foi por que só a elle podia competir. Curvemo-nos com respeito deante dos precursores, deante dos marinheiros que tentaram romper o mysterio, deante da intrepidez dos normandos que, depois de occupadas as Canarias, tentaram reconhecer a costa africana, e cujos cadaveres despedaçados nas rochas da costa marroquina foram o primeiro cimento com que se começou a erguer o monumento da gloria portugueza, deante da audacia dos catalães que mais adeante foram ainda, que já transpozeram o cabo Não, e que investiram talvez com o Bojador, mas não sacrifiquemos a essa homenagem a justa gloria que cabe aos que mais felizes, mais perseverantes, e sobretudo dirigidos por um genio excepcional, quebraram definitivamente as barreiras, e, sem hesitar um momento, proseguiram no caminho encetado, e methodicamente foram desenrolando folha a folha o livro do mundo desconhecido, ainda enrolado nas vagas, como se enrolavam em volumes os antigos papyros. Não acceitamos como uma especie de premio de consolação para os precursores menos felizes a phrase de Humboldt, que diz como que encolhendo os hombros deante da injustiça do mundo que as descobertas só se principiam a contar desde que formam serie. As descobertas contam-se desde que se fazem, e, se os Catalães ou os Normandos ou os Genovezes as tivessem feito, para elles iria a gloria. Não esperou a Europa que as caravelas do infante D. Henrique fossem muito adeante para que affluissem a Portugal estrangeiros, nem o governo portuguez esperou por isso para reclamar do Papa o reconhecimento do seu direito. Descobrem-se as Canarias? Logo apparecem Portuguezes, Francezes e Hespanhoes a reclamar a sua posse. Descobriam-se os Açores e a Madeira e ninguem com isso se importava. Não, o Homero da grande epopéa maritima foi o infante D. Henrique. Antes dos grandes epicos apparecem os cantos vagos e anonymos, em que se desata a inspiração da musa popular, em que se modulam as aspirações e os enthusiasmos do povo. Chega emfim o grande cantor, o epico inspirado, em cuja fronte Deus accendeu a scentelha do genio, e que escuta pensativo esses echos da guerra, essas cantilenas sublimes. Incende-se-lhe a imaginação, concentra na sua alma as palpitações da alma nacional, e dos seus labios brota emfim a epopéa victoriosa em que tudo se condensa, e encontra a sua expressão definitiva, que se fixa para sempre na memoria do povo e na memoria da humanidade. As caravelas que iam ainda, silenciosas e timidas, aventurar-se ao mar mysterioso, e que ou voltavam sem ter rompido o mysterio, ou no mysterio das vagas envolviam os seus cadaveres fluctuantes, eram os bardos isolados que afinavam pelo rugido do Occeano os seus epodos audaciosos, mas o infante foi o poeta soberano que fez irromper da sua alma, pela voz dos seus marinheiros, a epopéa triumphal e definitiva, a Iliada da audacia portugueza, como foi Colombo depois que desenrolou no sulco argenteo dos seus navios a Odysséa do Atlantico. II Causas de erro para a historia da solução dos problemas Para podermos seguir passo a passo a marcha dos descobrimentos, para vermos como pouco a pouco se foi correndo a cortina que escondia aos olhos dos homens da nossa raça metade do mundo conhecido, é necessario a cada instante abstrahirmos dos nossos conhecimentos actuaes, para nos collocarmos no ponto de vista em que os homens de eras anteriores se collocavam em virtude do que elles então sabiam. A falta d’essa correcção indispensavel arrasta muitos escriptores notaveis a erros grosseiros, que muitas vezes lhes escapam exactamente por não terem o cuidado constante de applicarem essa correcção ás tradições que dos tempos passados lhes vem. O proprio Humboldt, que frequentemente observa quanto é funesto esse erro, a esse erro cede só porque uma vez se esqueceu de verificar qual era a região que nos principios do seculo XV era conhecida pelo nome de Guiné. Se reparasse que a Guiné de Bethencourt ficava comprehendida entre o cabo Cantim e o Bojador não acceitaria a pretenção franceza de terem chegado os Normandos de Dieppe e o proprio Bethencourt a essa Guiné tropical que já muito para além fica do Cabo Bojador. Pois é elle comtudo que nota como é fallaz a denominação de India dada pelos antigos a varias regiões, visto que muitas vezes comprehendia as regiões meridionaes da Asia, a parte da Asia que chegava ao mar Vermelho, e ainda o extremo Oriente. Marco Polo designava tres Indias, havia a India exterior e a India inferior, a India superior que era a parte mais oriental da Asia etc.[10] Pois ainda hoje frequentemente se espantam homens instruidos não de que Colombo julgasse ter encontrado a Asia, mas de que imaginasse ter encontrado a India, arrastados pela tendencia natural de vermos com os nossos olhos de agora a geographia dos outros tempos; e de suppôrmos que a India não podia ser no seculo XV senão a que nós hoje conhecemos e como tal designamos. Quantas vezes mudou no decorrer dos tempos a posição geographica de varias terras, a que attribuimos a sua posição actual, logo que lhes encontramos em mappas antigos os nomes! Quantas terras differentes receberam o mesmo nome que de umas a outras foi passando, segundo as conjecturas dos geographos! As ilhas Afortunadas, como a ilha fluctuante de Delos, foram sempre navegando para o occidente, até que a geographia positiva as fixou nas Canarias, arrancando-lhes o véo da lenda em que os antigos as envolviam. Estiveram primeiro no grande Oasis no Egypto, passaram depois para o sul da Cyrenaica, depois ainda para defronte do rio Lukkos, quer dizer, quasi pegadas com a costa marroquina, e só depois para o ponto em que estão as Canarias.[11] A quantas ilhas se applicou o nome de Taprobana, que nós affirmamos hoje que era Ceylão, quando muitas vezes a sua posição corresponde á de Sumatra, e quando outras vezes a collocava a geographia conjectural dos antigos no oriente das Indias![12] A que peninsulas tão diversas se attribuiu o nome de Aurea Chersoneso que arbitrariamente suppomos agora que correspondia á peninsula de Malaca![13] Como é perfeitamente conjectural, apezar dos argumentos de alguma força apresentados por Mr. d’Anville, a identificação de Sofala com Ophir![14] Como ainda se illudem hoje os mais serios investigadores com o nome de Ethiopia, que intentam applicar ao paiz que hoje consideramos como tal, quando a Ethiopia, na supposição dos antigos, abrangia toda a parte meridional da Africa e vinha ligar-se com a costa marroquina![15] Como poderiamos nunca ter fé n’essas identificações, se vemos que os antigos e os Arabes, e os povos da edade média davam á India uma fórma completamente phantastica, suppunham que o mar das Indias era um mar mediterraneo, approximavam assim a costa asiatica da costa africana, como a costa africana está proxima da Europa no Mediterraneo europeu, sendo por conseguinte tão possivel que ficasse Ophir na Africa como na India! Depois que enorme cautella é ainda necessaria para o exame dos antigos mappas, onde a phantasia se dava largas, e onde se misturavam com alguns factos positivos todas as conjecturas que formava ou a imaginação ou o espirito reflexivo d’aquelles que os traçavam! Como é ridiculo para quem conhece o espirito que presidia á elaboração dos mappas ouvir escriptores serios fallarem com muita gravidade no famoso mappa trazido pelo infante D. Pedro das suas viagens, e onde estão traçados o cabo da Boa Esperança e até o estreito de Magalhães! Não sabem esses escriptores que, até depois de feitos os descobrimentos, a phantasia dos cartographos não se contentava com os factos positivos narrados pelos navegadores e continuava a ampliar por sua conta o mundo conhecido! Os proprios navegadores ás vezes contribuiam para illudir os cartographos. Christovão Colombo, ao tocar na ilha de Cuba, julgou ter chegado a terra firme e tanto d’isso se convenceu que fez jurar aos seus tripulantes que fôra n’um continente que tinham effectivamente tocado![16] Pedro Alvares Cabral tomou o Brazil por uma grande ilha. Em mappas muito posteriores aos descobrimentos americanos, feitos já depois de Vasco Balboa ter encontrado o Pacifico, collocou-se no sitio em que está o isthmo de Panamá[17] um estreito que punha em communicação os dois mares. Mas isso não impediu os que se enlevam na demolição de glorias estabelecidas de sustentar que o infante D. Henrique tinha mappas que até lhe mostravam onde era o cabo da Boa Esperança, que Colombo levava comsigo mappas que lhe davam o traçado da America, que Fernão de Magalhães n’um globo de Martim de Behaim vira traçado o estreito famoso que hoje tem o seu nome, e que Pedro Alvares tinha um mappa tambem que lhe designava o sitio em que encontrou o Brazil! Puerís tentativas! Quantas vezes effectivamente n’esses mappas conjecturaes podia fazer o acaso que coincidisse com a descoberta a ilha ou a terra phantasiada pela imaginação dos cartographos; mas logo o formigar dos erros perfeitamente incompativeis com o imaginario descobrimento prova exuberantemente que só em coincidencias fortuitas e insignificantes elle se poderia basear. O que melhor pode mostrar como faltava completamente aos antigos o conhecimento da terra, para além dos estreitos limites em que se concentraram as civilisações do Oriente e a civilisação greco-romana, está na variedade dos systemas com que se procurava explicar a fórma do mundo. A sciencia não caminhava com passo seguro, juntando ao thesouro das idéas conquistadas cada idéa nova que ia sendo adquirida. Como todas as explicações eram conjecturaes, cada nova theoria provava apenas a argucia e o engenho do espirito que a concebia, mas estava sujeita á discussão e á contradicção como todas as soluções que não assentam em factos positivos e incontestaveis. Pode dizer-se que a idéa da esphericidade da terra triumphou na antiguidade, mas pode dizer-se que triumphou porque a sustentavam os mais esclarecidos espiritos, não porque todos a reconhecessem, e porque não houvesse tambem homens de primeira plana que absolutamente a negassem. Sustentou-a Ptolomeu, mas contestou-a vivamente Plutarcho.[18] A theoria de ser a terra um disco cercado pelo rio Oceano, que é a theoria homerica, essa desappareceu é certo, porque a observação dos phenomenos celestes mostrou de um modo evidente quanto era absurda, porque se via bem que não era possivel que o sol se sumisse no occidente, e voltasse depois pelo mesmo caminho e em segredo de noite para reapparecer no Oriente, porque o movimento apparente do céo não podia explicar-se senão allegando-se que os corpos celestes n’uma parte da sua marcha passavam por debaixo da terra, para reapparecerem no sitio opposto áquelle por onde se tinham sumido. Então sim, então a idéa de que a terra assentava em bases solidas, tendo por cima de si o céo estrellado, desappareceu completamente, e a primeira conquista da sciencia foi a que suspendeu a terra no espaço, embora fizesse d’ella ainda o centro da creação, embora suppozesse que tudo se fizera no Universo em sua honra, que em torno d’ella giravam no immenso espaço em varias espheras concentricas os orbes luminosos que entoavam a harmonia, que Platão julgava escutar n’um arrobamento infinito, e que espalhavam nos intermundios a chamma ora intensa como a do sol, ora meiga como a da lua, ora palpitante e suavissima como a das estrellas, das corôas resplandecentes com que a Divindade as cingiu. Mas com relação á fórma da terra que diversidade de opiniões! Pomponio Mela considerava a terra chata como a suppunham os Hebreus, como a suppozeram depois os Padres da Egreja, e entre elles Santo Agostinho, Lactancio, S. Justino martyr; Ephoro dava-lhe a fórma de um quadrilongo, Cicero, no famoso _Sonho de Scipião_, acceitava as doutrinas dos geographos mais notaveis, considerava-a espherica, e essa opinião foi seguida por Macrobio, que tambem dava, como Cicero, á parte habitada a fórma de uma chlamyde. Entre os sabios que sustentavam na antiguidade o principio de que a terra era espherica, avulta o grande nome do geographo antigo Ptolomeu. Outros porém baseiam-se na doutrina de Thalés, suppõem a terra ovoide, e Posidonius suppõe que essa ellipse estreita que constitue a terra termina em duas pontas agudissimas.[19] Apezar d’essas differenças porém, a opinião da esphericidade da terra é a que predomina entre os antigos, é a que tem a seu favor a enorme authoridade de Ptolomeu e de Platão e de Aristoteles e de Eratosthenes e de Hipparcho e de Cicero e de Strabão, a que é preconisada pela escola de Alexandria e que adquire por conseguinte um verdadeiro valor scientifico, mas a religião christã intervem no debate, e a theoria dos antigos é considerada como heterodoxa pelos Santos Padres. A terra tem a fórma de tabernaculo, a existencia dos antipodas é condemnada como absolutamente contraria á logica divina, e esta opinião tão respeitada, tão importante introduz immediatamente a confusão nos espiritos da edade média. O conhecimento da sciencia arabe traz ainda um novo elemento de complicação. Na sciencia oriental sente-se de um modo accentuadissimo o reflexo da tradição grega. Ptolomeu e Aristoteles teem ferventes discipulos nos sabios orientaes, que podem esfumar as suas doutrinas no vago do seu maravilhoso, mas que no fundo as acceitam e as applaudem. E assim vamos encontrar por toda a edade média a velha theoria grega reforçada agora pela adhesão arabe em lucta com as prescripções christãs. Não se pode apagar n’esses espiritos medievaes, que tinham pelo saber da antiguidade um supersticioso respeito, a influencia de Ptolomeu, mas deante da voz auctorisada dos Santos Padres tudo se inclina e emmudece. Então vamos encontrar os cartographos da edade média empenhados na improba tarefa, que tantas vezes se tem repetido, de procurarem conciliar as doutrinas da Egreja com a tradição da sciencia. Apparece-nos muitas vezes a terra como um quadrado inscripto n’um circulo, e, ao passo que o systema das espheras applicado ao systema cosmographico encontra nos espiritos da meia edade um verdadeiro engodo, a terra fixa no meio do universo espherico mantem a fórma especial que os Santos Padres decretaram que tivesse.[20] Durante largos seculos pairou sobre a humanidade a duvida mais profunda ácerca da fórma do planeta que ella habita. Se alguns sabios entrevêem a verdade, e a sustentam e a defendem, é simplesmente pelas deducções que tiram dos seus calculos e das suas observações astronomicas, não pelo conhecimento directo que possam ter do planeta. Por isso tambem a orthodoxia triumpha, embora as razões em que se funda não sejam bastante poderosas contra o raciocinio dos philosophos, mas, apezar da fraqueza da argumentação, a fé supera sempre facilmente as theorias conjecturaes dos seus adversarios. É por isso que ella ainda hoje é sempre victoriosa na sua lucta contra os systemas philosophicos adversos. Ella dá uma certeza sem fundamento que não seja a auctoridade respeitada da tradição e da crença, os outros oppõem-lhe theorias mais ou menos verosimeis, mas todas baseadas em simples conjecturas. No dia em que o materialismo conseguir fazer palpar o principio vital, ainda hoje incoercivel, e que se representa por esse nome fascinador da alma dotada de immortalidade, o espiritualismo cahiu para não mais se levantar. Emquanto a demonstração da redondeza da terra e da existencia dos antipodas não sahiu do dominio conjectural, a fé que oppunha a essas vagas theorias uma affirmação baseada em tradicções tão conjecturaes como os raciocinios adversos mas aferradas ao espirito humano pelas raizes potentissimas da tradição, os Santos Padres triumphavam. Veiu um dia, porém, em que um pequeno povo debruçado sobre os mysterios do Oceano resolveu sondal-os e quebrar as barreiras que separavam do mundo conhecido essa região enigmatica, transpôr o que lhe diziam que era inultrapassavel, chegar ás regiões defezas, arrombar as portas fechadas pela triplice chave da sciencia, da fé e da lenda, e o que dezenas de seculos não tinham conseguido conseguiu-o meio seculo apenas. Então a sciencia não parou, não retrocedeu, não se contradisse, não se perdeu em conjecturas. Cada facto que se adquiria era uma confirmação de uma theoria contestada, ou a revelação de uma theoria nova. A fé cedeu deante da evidencia. Quando os marinheiros portuguezes entraram na zona torrida, cahiu por terra a idéa consagrada da impossibilidade d’alli se viver, quando entraram na zona temperada do sul, desappareceu, substituida pela real, a terra antichthona, e a Egreja teve de acceitar os antipodas; quando Colombo transpoz o Oceano occidental, a idéa da immensidade dos mares perdeu-se para sempre; quando Fernão de Magalhães passou do Atlantico ao Pacifico, e quando o seu ultimo navio veiu fundear n’um porto da peninsula hispanica depois de ter dado volta completa ao mundo, não teve mais contradictores nem descrentes a theoria da esphericidade da terra. O quadrado dos Santos Padres cahiu desfeito pelas cargas repetidas d’esses cavalleiros do Oceano. Não é já só, porém, com as phantasias orthodoxas, nem com os devaneios dos sonhadores scientificos, que a terra depois de explorada audaciosamente se torna incompativel. O proprio systema scientifico de Ptolomeu, essa gloria da antiguidade greco-romana, estala não podendo conter em si o mundo tal como foi estudado e descoberto. O systema de Copernico restitue ao sol a sua magestade e a sua humildade á terra. Se não era o sol que percorria lentamente o zodiaco, illuminando no mais alto do seu curso com a sua luz fecundante a terra privilegiada, e queimando quando se abaixava a terra condemnada e maldita, se a zona torrida não era um inferno sempre em chammas, nem nas suas proximidades pullulavam os monstros como os Cerbéros d’esse Tartaro, como as viagens portuguezas amplamente demonstravam, que motivo havia para se suppôr que o Sol não era senão o instrumento das bençãos ou das maldições de Deus sobre a Terra, e porque não seria antes a Terra que adejaria no espaço, irmã d’esses numerosos planetas que no céo resplandeciam, atomo no meio d’essa immensidade de atomos, bago d’essa poeira de luz dispersa no firmamento, e posta em movimento pelo sopro mysterioso da grande attracção universal? E a Copernico succediam Képler e Newton, e as leis do Universo iam-se coordenando n’um Codigo formulado pela sciencia, não ao acaso das conjecturas, mas segundo as indicações positivas dos factos. E assim foi que a audacia portugueza transformou completamente a sciencia humana, e iniciou esta epocha portentosa que dura ha quatro seculos apenas, e que deu mais á humanidade que as dezenas de seculos da historia conhecida que a precederam. E assim é que, se a Colombo cabe a indisputavel gloria de ter destruido a fabula que tornava inaccessiveis as terras do occidente, ao infante D. Henrique mais do que a nenhum outro cabe a gloria immensa de ter affrontado a sciencia, a fé e a lenda para fazer da sciencia conjectural uma sciencia positiva, da fé que amesquinhava a humanidade a fé que a ampliou, da lenda que acovardava a alma humana a epopéa que a enalteceu. Foi grande Colombo, grande Vasco da Gama, e grande Magalhães! Formam um grupo de heroes os audazes marinheiros que desde Gil Eanes até Bartholomeu Dias, desde Pinzon até Queiroz, sulcaram todos os mares, e affrontaram todas as tempestades, compõem uma phalange benemerita os missionarios da sciencia, que, desde João Fernandes o humilde iniciador da exploração scientifica do continente africano até aos modernos sabios viajantes, se internaram nos sertões affrontando os povos barbaros, como formam uma legião sagrada os missionarios da fé que não recúaram deante dos mais horridos perigos para levarem a regiões ignotas a palavra divina, mas o genio iniciador, que tornou possiveis todos estes feitos, e concebiveis essas audacias, foi o pensativo infante, que accendeu com as suas mãos intrepidas, entre os motejos da sciencia, os anathemas da Egreja e os gritos pavidos da superstição, esse pharol glorioso que projectou de Sagres sobre o vasto Oceano, por cima das suas ondas tenebrosas, a luz radiosa e serena que foi a verdadeira aurora da civilisação moderna. III A zona torrida perante as sciencias da antiguidade e da edade média Accentuámos bem que tres elementos havia que se oppunham ás expedições que os Portuguezes audaciosamente emprehenderam: a sciencia, a fé e a lenda. Foi a primeira a que se oppoz sempre a que os ousados navegadores da antiguidade lustrassem o caminho que os Portuguezes depois percorreram. Não eram de certo mais terriveis os mares africanos do que os mares da Europa septentrional, e os marinheiros phenicios, que affrontaram a bahia de Biscaya e o canal da Mancha e o mar do Norte até á Islandia, não podiam facilmente assustar-se com os mares muito mais manejaveis da costa africana. Mas a idéa da navegação para o sul fazia recuar os mais audaciosos. Era ahi que o sol estendia o seu terrivel dominio, era ahi que os seus raios queimavam a terra e o mar, e tornavam impossivel a passagem do homem. Á medida que esses calores excepcionaes iam sendo mais proximos, o seu effeito fazia-se sentir na vegetação e na fauna, e na propria humanidade. Então a natureza, violentada por assim dizer, produzia os mais extraordinarios monstros. Por mais de uma vez tentaram os Phenicios e os Carthaginezes demandar essas regiões do sul, mas a mais insignificante estranheza os fazia recuar. De Hannon se conta que percorreu quasi a Africa toda, e no seu periplo se relata essa viagem maravilhosa. Logo mostraremos como elle de certo não passou para além da costa de Marrocos. Gabava-se a sua intrepidez, porque voltára narrando que vira horrorosos monstros, cynocephalos, quer dizer, homens com cabeça de cão, e gorgonas ou mulheres com o corpo absolutamente coberto de pellos. Os escriptores modernos, que teem procurado benevolamente interpretar estas descripções phantasticas, dizem que os cynocephalos eram simplesmente macacos e as gorgonas simplesmente gorillas. Na hypothese mais favoravel para elle, o que isso prova é que, apenas viu na costa de Africa duas especies de macacos, julgou-se chegado ao paiz dos monstros e confirmou todas as mentiras que ácerca das vizinhanças da zona torrida estavam estabelecidas, e não chegou portanto á zona torrida. Mas não é bem mais natural ainda que Hannon, um carthaginez, um africano, não ignorasse a existencia do macaco, e portanto não podesse confundir facilmente o genero simiesco com uma variedade monstruosa do homem? Essas noções rudimentares de cosmographia, que existiam no espirito dos antigos, chegaram ao seu apogeu com a escola de Alexandria. Sabios notabilissimos imprimiram grandes progressos á sciencia, e principalmente á astronomia. O nome de Ptolomeu e o nome de Hipparcho bastam para fazer a gloria de uma escola, de um paiz e de um seculo. A conclusão a que chegaram era falsa, mas quantas descobertas importantes lhes serviram para assentar os primeiros alicerces de uma sciencia a que pozeram então uma cupula errada, por lhes terem faltado informações e elementos que só a audacia dos navegadores lhes podia levar! Que maravilhosos instrumentos de estudo não encontraram elles! Que calculos levaram a cabo que os sabios do seculo XVI, ao poderem juntar-lhes novos elementos, aproveitaram para a transformação da sciencia! Sem Ptolomeu como se comprehenderia Copernico? Sem Hipparcho o que poderia fazer Tycho-Brahé? N’esta conquista da verdade, os antigos tomaram as obras avançadas e julgaram estar senhores da cidadella; mas, só depois de occupadas essas obras, só depois dos maravilhosos esforços dos navegadores peninsulares, é que se podia descortinar e assaltar a cidadella... E quem sabe se será esta definitivamente a verdadeira! Mas o que é absolutamente indispensavel saber, para que se possa avaliar a transformação produzida no seculo XV pelos descobrimentos portuguezes, é quaes eram os principios estabelecidos como certos e indubitaveis com relação á terra por esses sabios cuja auctoridade era incontestavel, cujas doutrinas se ensinavam ás creanças, como hoje se ensinam as novas theorias, e que representavam portanto a verdade absoluta d’esse tempo. Alguns pontos havia que encontravam contradicção, como era o da redondeza da terra. N’outros, porém, não havia a mais leve divergencia, como em todos os que se ligavam com o movimento dos corpos celestes, com a marcha do sol em volta da terra para produzir o dia e a noite, com a marcha do sol pelo zodiaco produzindo a differença das estações. Tantas maravilhas conseguira já a astronomia que as doutrinas que ella promulgava não podiam soffrer contestação. Se ella já conseguira adivinhar os eclipses, que maior prova podia dar de que encontrára a chave do mechanismo celeste? Essas doutrinas de Ptolomeu passaram para a edade média, que teve sempre pela sciencia antiga um louco fanatismo. Encontramol-as ás vezes adulteradas, misturadas com manifestações de ignorancia, com superstições e crendices, mas naturalmente arraigadas nos espiritos, e exaltadas com enthusiasmo pelos sabios da primeira Renascença, pelos que arrancaram das trevas a Europa barbara, e que levantaram como um facho luminoso a doutrina já completa e bem comprehendida do grande geographo antigo. Vamos encontrar n’um dos livros d’esses sabios medievaes, n’uma d’essas _Imago mundi_ ou _Thesaurus_, que eram as encyclopedias do tempo, a condensação de toda a sciencia, a doutrina antiga resumida, explicada, mas tambem modificada. Queremos falar nos _Dialogos_ de Pedro Affonso. Os dois que dialogam são Pedro e Moysés. Aquelle é o mestre, este o discipulo. Diz Moysés: —Não ha pois da terra senão uma só parte habitavel. Que parte? _Pedro_—Desde o meio da terra até á parte septentrional. _Moysés_—Demonstra-me isso n’uma figura geometrica, porque n’essa materia cada nação tem tido, segundo os auctores, idéas differentes. Divide-se effectivamente a terra em cinco zonas: uma no meio, queimada pelo ardor do sol, e por conseguinte inhabitavel; duas nas extremidades, muito afastadas do sol, e egualmente inhabitaveis, por causa do rigor do frio; e duas médias, temperadas pelo calor da primeira e pelo frio das outras duas, e unicas habitaveis[21]. _Pedro_—Esse systema está em contradicção com o testemunho dos nossos olhos. Vemos effectivamente _Aren_ situado no centro da terra; no seu zenith principiam o Aries e a Balança; o ar é alli tão suave que a temperatura das quatro estações é quasi sempre a mesma. Nascem alli plantas aromaticas de côr brilhante e de sabor delicioso; os homens não são nem descarnados, nem obesos, mas de uma compleição bem proporcionada. O clima que exerce esta salutar influencia no corpo não actúa menos efficazmente sobre o espirito que brilha pela sensatez e por uma moderação cheia de acerto. _Como se pode pois dizer que um logar que o sol percorre em linha recta em toda a sua extensão é inhabitavel?_ Não: todo o espaço de terra comprehendido entre esse logar e o segmento septentrional é habitavel sem interrupção, e os antigos dividiram-n’o em sete partes chamadas climas, em conformidade com o numero dos sete planetas. O primeiro clima está na linha do meio; ahi é que Aren foi fundado. O setimo occupa a extremidade do mundo septentrional. Nenhuma d’essas partes é inhabitavel, se exceptuarmos os sitios em que grandes massas de areia quasi sem agua ou então montanhas pedregosas se recusam ao trabalho da charrua. _Moysés_—Resta-me pedir-te que me demonstres como succede que esta parte da terra que fica para além de Aren para o sul não é habitada como a que está para áquem para o norte, de modo que Aren se ache no centro da região habitavel, ou então tambem porque não é a parte meridional que é habitavel, emquanto a parte septentrional seria inhabitavel, ao inverso do que succede. _Pedro_—Porque o circulo do sol é excentrico relativamente ao circulo da terra, e porque essa excentricidade atira a maior parte da circumferencia para uma distancia maior do septentrião. Segue-se d’ahi que, logo que o sol passa para os signos do hemispherio meridional, quer dizer para a parte da circumferencia comprehendida entre a Balança e Aries, approxima-se da terra, e, queimando os seus raios o solo a esta curta distancia, tornam-n’a esteril e por conseguinte inhabitavel. Só a partir do primeiro clima para o norte é que o espaço que comprehende os sete climas é habitavel. Mas tudo o que vem depois a partir do setimo clima é privado de todo o calor, por causa do afastamento do sol, que vae percorrer os seis signos meridionaes; d’ahi o excesso das nuvens, dos nevoeiros e das geadas; e emfim a ausencia de toda a creatura animada n’essa parte da superficie terrestre[22]». Não era esta, porém, a doutrina de Ptolomeu. Esta era a doutrina que procurava conciliar a theoria scientifica com as palavras da Egreja. A doutrina de Ptolomeu, a doutrina em geral de todos os sabios da antiguidade e da edade média, era que a zona torrida estava collocada debaixo do zodiaco, que, proxima do sol por conseguinte, era por elle abrazada, mas que para além d’essa região havia outra temperada como a nossa, assim como outra tambem glacial como a zona arctica. Essa foi sempre a doutrina predominante, embora contra ella protestasse a orthodoxia; mas qualquer das duas sustentava como facto incontroverso que a zona torrida era absolutamente inhabitavel, quer fosse, como queria Ptolomeu, que o sol, descrevendo um circulo perfeito em torno da terra durante as vinte e quatro horas, e descrevendo-o ao longo do zodiaco perfeitamente parallelo á zona torrida, sobre ella fizesse caïr perpendicularmente os seus raios e a queimasse e destruisse, ou, como pretendia Pedro Affonso, não descrevendo o sol esse circulo perfeito que Ptolomeu imaginára, mas descrevendo um circulo excentrico ao da terra, d’ahi resultasse que, ao passar pelos signos meridionaes do zodiaco, estivesse mais proximo da terra, e fosse o hemispherio meridional o que os seus raios incendiavam. Devemos notar que esta ultima hypothese era a que se approximava mais da ellipticidade da orbita da terra hoje demonstrada. Se não se suppunha ainda que o sol descrevesse uma ellipse em torno da terra como hoje se sabe que a terra descreve uma ellipse em torno do sol, já se principiava a querer applicar ao sol a theoria dos _epicyclos_ e dos _excentricos_, com que a astronomia antiga procurava conciliar com a theoria geral do Universo as contradicções que resultavam do movimento apparente de muitos planetas. A theoria de Pedro Affonso conduzia-o á doutrina moderna da _periphelia_ e da _aphelia_. Adivinhava que ha um periodo em que o sol está mais afastado da terra do que n’outros, e dava-se a coincidencia de que, dando-se a _periphelia_, quer dizer o periodo de maior approximação do sol, em janeiro, quando é verão no hemispherio austral, d’ahi resulta que effectivamente os verões austraes são mais quentes do que os nossos, e Pedro Affonso adivinhou assim uma verdade hoje perfeitamente demonstrada. Acontece porém que, sendo a terra que se move e não o sol, quando chega a _aphelia_, quer dizer o periodo de maior afastamento do sol, em julho, sendo então verão entre nós e inverno no hemispherio austral, tambem succede que são os seus invernos mais regelados. Mas, se a terra se conservasse immovel, como até Copernico se suppoz, passando o sol sempre á mesma distancia do mesmo ponto da terra, seria sempre effectivamente o hemispherio austral o que mais lhe sentiria os implacaveis ardores. Comtudo era incontestavelmente o systema de Ptolomeu que triumphava nas escolas, era esse o que tinha a sua consagração scientifica. Segundo a theoria do grande geographo, a terra espherica estava dividida em cinco zonas, as zonas glaciaes tão longe do sol que a vida era alli impossivel por causa da falta absoluta de calor, a zona torrida tão proxima do sol, que em torno d’ella descrevia a sua enorme e rapidissima viagem, que a vida era impossivel pelo excesso do calor, emfim as zonas temperadas onde nem o calor era extraordinario nem extraordinario o frio, e que a vontade suprema destinara evidentemente para habitação do homem. Era conforme esta theoria com o espirito, com o pensamento grego que em tudo se manifestava, na arte, na poesia, na philosophia, no viver social e politico. O ideal grego é a moderação e a harmonia. O universo devia regular-se tambem por essas leis harmonicas, que marcam tanto o rhythmo da architectura do Parthenon como o da poesia de Sophocles, tanto o da philosophia de Platão e de Aristoteles e o da eloquencia de Demosthenes e de Lysias como o das concepções mythicas d’aquelle harmonioso anthropomorphismo hellenico, que produziu aquelles typos idealmente bellos nas suas proporções sublimes, Apollo e a Aphrodite. Assim o homem tambem não poderia viver senão nas regiões em que o clima tivesse a harmonia e a moderação compativeis com o desenvolvimento normal da vida humana. Logo que o calor principiasse a exaggerar-se, desmanchando o equilibrio da temperatura, desmanchava-se tambem o equilibrio das proporções e da fórma humana. Por isso nas proximidades d’essa pavorosa zona torrida começava a terrivel degeneração da raça, surgiam creaturas cada vez mais monstruosas, e era assim effectivamente que Plinio explicava essa efflorescencia de monstros que, no seu entender e no entender dos outros geographos antigos, se manifestava nas regiões mais proximas da zona torrida[23], onde desapparecia emfim no immenso incendio com que o sol abrazava o mundo. Mas, como diziamos, Ptolomeu entendia e bem que eram duas as zonas temperadas, uma ao norte, e outra ao sul do Equador, mas entre as duas, pela sua theoria, não podia haver communicação. Essa terra é a famosa _terra antichtona_, a _terra austral_, o _alter orbis_ que figura conjecturalmente nos antigos mappas, e em que, por mais de uma vez, uns teem querido ver a America, outros as regiões descobertas pelos Portuguezes! A America nunca pela _terra antichtona_ podia ser designada, porque a _terra antichtona_ ficava para o sul, mas tão levianamente homens de merito notavel teem estudado estes assumptos, que se deixaram muitas vezes illudir pela orientação de antigos mappas que é quasi sempre diversa da nossa. O oriente era muitas vezes collocado nos mappas no sitio onde hoje collocamos o norte, o occidente onde fica o sul, o norte para o lado do occidente e o sul para o lado do oriente. Os Arabes então invertiam completamente o systema. O sul fica para o norte e o norte para o sul. Com estas alterações que immenso cuidado é necessario quando se pretendem tirar quaesquer illações dos mappas antigos! É essa a doutrina que prevalece durante toda a edade média. É Macrobio que suppõe a zona torrida inhabitada e queimada pelos fogos do sol, e a zona temperada austral povoada por homens de uma especie desconhecida[24], Orosio que declara que do interior da Africa nada se pode conhecer porque o calor da zona torrida o reduz a uma brazeira.[25] S.ᵗᵒ Izidoro de Sevilha sustenta egualmente a existencia da _terra antichthona_ onde habitam os antipodas, se não são fabulosos.[26] Bedo o Veneravel, que tem a sua theoria cosmographica exposta pittorescamente pela comparação do ovo, que vê a terra collocada no meio do mundo como a gemma, a agua em torno como a clara, o ar como a membrana e o fogo como a casca, tambem apresenta a doutrina da terra antichthona separada da nossa pela zona inhabitavel.[27] S. Virgilio imagina que o _alter orbis_ tem outra lua, outro sol e outras estações.[28] Raban Mauro, que falla nos basiliscos fabulosos, e nas Gorgonas cabelludas e phantasticas, tambem indica a terra antichthona separada pelo ardor do sol[29]; Alfrico, Moysés de Choréne, Pedro des Vignes, o famoso Pedro d’Ailly, Marino Sanuto, Nicolau d’Oresme e quantos outros estabelecem e proclamam esta doutrina que é a que tem um caracter scientifico. Quando o mundo christão entra em relações com o mundo arabe então illuminado por uma forte civilisação, quando trava conhecimento com os seus grandes geographos, Edrisi, Abulféda, Masoudi, o que encontra? Encontra a influencia de Ptolomeu alli tambem predominante como em geral a influencia grega, o _Almagesto_ considerado como uma obra divina, e portanto egualmente triumphante a doutrina da antichtona e da zona torrida inhabitavel. Ha alguns espiritos que se revoltam contra essa idéa? Ha de certo, mas esses são só os espiritos independentes como Alberto Magno, como Rogerio Bacon, como Pedro d’Abano, esses simplesmente não acceitam o que não está demonstrado, mas não vão contra factos incontestados. Assim Alberto Magno não acceita sem demonstração a idéa de que o sol percorra especialmente a zona torrida e a prive de toda a vegetação e de toda a manifestação de vida, mas, não contestando que não ha relações entre a terra que habitamos e a terra desconhecida, attribue esse facto em primeiro logar á immensidade dos mares, em segundo logar á existencia na antichthona de montanhas magneticas que prendem os habitantes e que os não deixam transpôr os incommensuraveis espaços que os separam da terra que habitamos[30]. Rogerio Bacon sustenta opinião approximadamente identica[31]. Pedro d’Abano refugia-se na vaga observação de que o meio deve ser mais perfeito do que as extremidades[32], e uns e outros sustentam que a zona torrida é toda occupada pelo mar, que o Occeano não rodeia simplesmente a terra, que se interna no seio d’ella formando os quatro grandes golphos do Mediterraneo, do Mar das Indias, do Mar Roxo e do Caspio, porque este mar interior foi por muito tempo e por muitos geographos considerado como um mar que communicava ou com o Baltico, ou com o Occeano. Para todos então a approximação da zona torrida era assignalada pela existencia de monstros, em que se desentranha com uma espantosa exuberancia a fertil imaginação dos povos infantis. A teratologia das antigas religiões transportava-se e desenvolvia-se de um modo prodigioso nas descripções dos mais serios geographos. Nas regiões que confinavam com as que eram defezas aos homens brotavam as plantas maravilhosas, a especie humana torcida e desfigurada desatava-se em fórmas phenomenaes, e ao lado d’ellas percorriam animaes monstruosos, como os que reconstitue para as epochas primitivas a paleontologia moderna, essas regiões devastadas. Para o norte no Caucaso e na Scythia collocava Raban Mauro os gigantes, os gryphos e os dragões que zelosamente guardavam o oiro e as pedras preciosas[33]. Para o sul, segundo o pensar de Vicente de Beauvais, um dos grandes geographos da edade média, havia dragões logo para deante de Marrocos[34]. João de Hase collocou na India os pygmeus que apenas viviam 12 annos, e rochedos magneticos que attrahiam os navios para o fundo do mar[35]. As obras de Plinio eram fonte inexgotavel de extraordinarias divagações. Cynocephalos e acephalos, cyclopes e arimaspes, antipodas que não tinham dedos, hippopodas que tinham pés de cavallo, e juntamente com elles os gryphos pullulavam n’essas regiões mysteriosas, como aviso supremo que a Providencia dava aos que pretendiam penetrar nas regiões em que o sol impera e que o sol devasta. No famoso mappa da cathedral de Hereford encontra-se uma das collecções mais completas d’essa estranha producção zoologica e anthropologica da sciencia d’esse tempo. E note-se que essa sciencia não a produzia a edade média, colhera-a nos livros da erudita antiguidade. Era lá que ella encontrava os troglodytas que comiam serpentes, eram Mela e Plinio e Vopisco que apresentavam os Blemmyos que tinham os olhos no peito e os Presumbanos sem orelhas. Se seguimos as indicações d’esse famoso mappa-mundi lá encontramos ao norte os gryphos que teem azas de aguia e corpo de leão e que defendem contra os Arimaspes as minas das verdes esmeraldas, os Hyperboreos, povo que conhece a eterna felicidade e que só morre quando, cançando-se de viver, se lança ao mar do alto de um rochedo, e os Scythas de olhos verdes que vêem melhor de noite que de dia, e os minotauros que teem corpo de homem, cabeça, cauda e pés de toiro, e os tigres da Hyrcania a que os homens escapam se, quando fogem deante d’elles, se lembram de lhes atirar um espelho, e na India então a monstruosa mantichora que tem corpo de leão, rosto de homem, cauda de escorpião, tres ordens de dentes, olhos glaucos, côr de um vermelho sanguineo, os pelicanos que abrem o seio para sustentar os filhos, e povos sem nariz, e outros sem lingua, e os Monoculos que teem um olho só, uma perna só e um pé tamanho que, depois de terem andado largo caminho, apesar dos seus poucos meios de locomoção, com uma rapidez prodigiosa, ao descançarem levantam o pé e adormecem á sua sombra. Na Phrygia apparece o _bomaco_, um estranho animal, que tem crinas de cavallo e cabeça de toiro, e que se defende, quando foge, com os proprios excrementos que queimam tudo em que tocam, na Arabia a phenix animal unico que vive quinhentos annos, na Bythinia o lynce que vê atravez dos muros e urina uma pedra negra, e até na Palestina tem o rio Jordão, junto do Asphaltite, a designação de que nas suas aguas sobre-nada o ferro e mergulham as pennas. Na Africa então ha uma verdadeira orgia zoologica, botanica e anthropologica. Alli vive a salamandra, um dragão venenoso que se deleita nas chammas, alli floresce a _mandragora_, essa planta de face humana que tem miraculosas virtudes, alli corre o _éalo_, que tem corpo de cavallo, cauda de elephante e queixos de cabra, cujo pello é negro e cujos chavelhos moveis teem uma braça de comprimento. Alli se succedem emfim os _Ambaros_ que não teem orelhas e cuja planta dos pés é queimada, os Scinopodas que teem as mesmas particularidades que os Monoculos, os Androgynos que reunem n’um só individuo os dois sexos, os Himantopodas que arrastam as pernas de fórma que mais rastejam do que andam, os Blemmyos de que já fallámos, os Psyllos que experimentam o pudor das suas mulheres expondo os filhos ás serpentes, os _Parvini_ que teem quatro olhos, os Agriophagos que se sustentam da carne das pantheras e dos leões e cujo rei tem só um olho, e os Virgogicos que habitam em cavernas e comem insectos, e os satyros, e os faunos que são meio homens e meio cavallos, e outros povos que teem o rosto comprimido e se sustentam por meio de um canudo, outros que teem nos hombros os olhos e a bocca e outros que dão sombra ao rosto estendendo um dos labios, tão proeminente elle é, e entre animaes além dos dragões e dos gryphos o famoso basilisco, animal monstruoso que tem na fronte uma faxa branca que imita um diadema, e que empesta o ar que respira, mata as plantas de que se approxima, devasta o paiz que percorre, e a esphinge que tem azas de passaro, cauda de serpente e cabeça de mulher, e o monocerio, que, apesar de ser perigosissimo, quando d’elle se approxima uma donzella que lhe mostra o seio, toda a sua furia se aplaca, e sobre esse seio adormece, e as formigas enormes que guardam as areias de oiro. Alli tambem se encontram montes em fogo cheios de serpentes, montes silenciosos de dia, mas onde, á noite, accorda, á luz de estranhas claridades, o som dos pandeiros dos Egipans, e fontes que punem com a cegueira os ladrões, e o poço maravilhoso, que se conserva todo o anno immerso na sombra, mas que em certo dia, quando o sol chega ao zenith, e os seus raios se projectam verticalmente sobre a sua superficie, se enche de subito de immensa claridade, e cidades como a de Adaber onde os dragões pullulam. Mas tudo isto são contos de velhas, patranhas de viajantes? Não! isto tem, pelo menos em grande parte, um caracter scientifico. A antiguidade o transmittira e o que se não encontrava em Strabão, ou Ptolomeu ou em Aristoteles encontrava-se em Plinio, ou em Solino, ou em Pomponio Mela. Durante os descobrimentos estas noções acompanhavam os nossos viajantes, que, ao passo que destruiam umas, ainda iam acalentando as outras. O mytho das amazonas, que, durante a antiguidade, fluctuára entre a Scythia e os arredores do Egypto, chegou a transplantar-se para a America, e estava na mente do explorador que deu o nome de Amazonas ao gigante fluvial da America do Sul. As singularidades da phenix e do lynce eram perfeitamente admittidas como authenticas, e a dedicação materna attribuida ao pelicano, e que é tão contraria á verdade, que esse passaro, longe de se dedicar pelos filhos, nem sequer os defende como fazem os outros animaes, até ha bem pouco tempo passou por certa. As monstruosidades humanas não espantavam pessoa alguma, e bem o podemos perceber se nos lembrarmos que não estranhariamos monstruosidades semelhantes se nol-as contassem, com certa auctoridade scientifica, dos habitantes da lua. Sabendo como os organismos animaes se adaptam aos meios em que teem de viver, não nos custa a admittir que os habitantes da lua, se não teem ar respiravel, não tenham tambem os orgãos respiratorios, que lhes faltem a bocca e o nariz, e que engulam o alimento, se de alimento precisam, por outra fórma qualquer. Desde o momento que se admittia o rigor inflexivel do sol nas regiões tropicaes, como se não admittiria a existencia dos Himantopodas e dos outros povos em cujo organismo a providente natureza desenvolvera sobretudo os orgãos que tivessem por fim preserval-os do sol? Assim as affirmações positivas e serias da sciencia eram todas contrarias á navegação para a zona torrida. Tão estranho pareceria a todos tentar-se uma viagem n’essa direcção, como hoje nos pareceria a nós tentar uma viagem em direcção á lua. Azurara, se escrevesse a sua _Chronica da Guiné_ antes dos descobrimentos portuguezes serem conhecidos lá fóra, passaria por auctor de um outro _Amadis de Gaula_, e ninguem estranharia que a patria de Lobeira produzisse outro escriptor não menos phantasioso, ainda que d’esta vez o conto excedia demasiadamente todos os limites da verosimilhança. Mesmo n’essa epocha de credulidade o livro de Azurara faria sorrir os leitores, se a realidade dos factos não fosse já conhecida de todos, como hoje nos fazem sorrir os romances de Julio Verne. Mas não apparece agora a todos evidente e claro o absurdo de se suppor que por alguem fomos precedidos nos descobrimentos africanos? Seria necessario suppor, para que os normandos tivessem ido á zona torrida, e creado estabelecimentos na costa e desamparado depois essa navegação sem que ninguem tivesse ligado a essas expedições a minima importancia, seria necessario suppor que as questões geographicas encontravam no mundo medieval a mais completa indifferença, que ninguem sabia se havia zona torrida ou não, e que viagens d’essas não levantavam a minima curiosidade. Não; a edade média preoccupava-se avidamente com as questões de geographia, principalmente depois das cruzadas, e sobretudo depois d’essa grande Renascença do seculo XIII, que foi a aurora do grande esplendor do seculo XVI. Cosmas Indicopleustas, Jornandés, Gregorio de Tours, Marciano Capella, Vibio Sequester, St.° Avito, e Prisciano e Cassiodoro e Proclo e Macrobio e Paulo Orosio nos seculos V e VI; St.° Isidoro de Sevilha, Philopomus, Bedo o Veneravel, S. Virgilio no seculo VIII, Anonymo de Ravenna, Dicuil, Raban Mauro, Alfredo o Grande no seculo IX, Alfrico, Adelbod, o monge Richer, Moysés de Chorène no seculo X, Herman Contractus, e Azaph o Hebreu no seculo XI, Honoré d’Autun, Othão de Frisa, Hugo de Saint-Victor, Jacques de Vitry, Hugo Metello, Guilherme de Jumiège, Herrade de Landsberg, e Bernardo Sylvestris no seculo XII, Sacro Bosco, Vicente de Beauvais, Alberto o Magno, Rogerio Bacon, Roberto de Lincoln, Pedro d’Abano, e Dante, Cecco d’Ascoli, Roberto de S. Marianno d’Auxerre, Gervais de Tilbury, Pedro des Vignes, Brunetto Latini, Joinville, Omons, Alain de Lille, Guy de Basoches, Engelberto e Nicephoro Blemmyde no seculo XIII, Marino Sanuto, Nicolau d’Oresme, Ranulfo Hydgen, Faccio degli Uberti, João de Mandeville, Boccacio, Petrarcha, Bartholomeus Anglicus, Gervais, Ricobaldi de Ferrara no seculo XIV, Pierre d’Ailly, Guilhermo Fillastre, Leonardo Dati, João de Hése no seculo XV, e quantos outros mais ainda sustentaram e ensinaram as doutrinas cosmographicas que temos exposto! Uns mantinham a doutrina de Ptolomeu de que só a zona torrida era inhabitavel, outros a de que era inhabitavel toda a parte meridional da terra, outros e esses ainda assim rarissimos como Alberto Magno e Roger Bacon, se não acceitavam sem contestação nem como verdade absoluta a affirmação de que era inhabitavel a zona torrida, sustentavam que nem por isso deixava de ser impossivel a transposição dos seus limites, porque o mar immenso a cobria toda, e porque nas terras antichtonas havia as terriveis montanhas magneticas cujo pensamento paralysava os viajantes. Os mappas, que acompanhavam as copias dos manuscriptos antigos, como de Sallustio, do Apocalypse, de Pomponio Méla, de Ptolomeu, e os poemas geographicos, e as _Imago mundi_ e as _Thesaurus_, e os que se elaboravam nos conventos mais eruditos, todos reproduziam estas affirmações, esta fórma estranha da terra, e inflammavam com a tinta vermelha os mares da zona torrida e inscreviam nas regiões mais proximas, que na Africa principiavam logo ao sul de Marrocos, as indicações dos estranhos povos que as habitavam. E, quando tão arraigada se achava esta convicção no animo de todos, quando no seculo XIV se discutiam com ardor as doutrinas capitaes que expozemos ácerca da zona torrida, a ponto de Pedro d’Abano escrever, com o titulo de _Conciliator_, um livro destinado, como indica o seu titulo, a conciliar essas doutrinas, quando as viagens de Marco Polo excitavam immensa curiosidade e muita incredulidade tambem, tão estranhas coisas contava—apesar de nenhuma d’ellas destruir afinal de contas os pontos capitaes da sciencia do seu tempo—era possivel imaginar-se que navegadores quaesquer fizessem viagens, que destruissem completamente as noções essenciaes da geographia essencialmente admittida, viagens em que penetrassem na zona torrida não só sem perigo, mas tambem sem encontrar nas regiões circumjacentes nem povos monstruosos, nem animaes estranhos, nem maravilhosas plantas, e que nem esse facto surprehendesse capitães e marinheiros, nem excitasse a curiosidade dos reis, nem dos sabios monges, nem dos que escreviam os poemas geographicos, nem dos que compunham as encyclopedias, nem dos que desenhavam os mappas, nem dos aventureiros dos outros paizes, como succedeu com as viagens dos Portuguezes, que deram logo brado em toda a Europa, como não podia deixar de succeder quando se désse um passo tão gigante no conhecimento do mundo, quando a prôa dos nossos navios, como o teria feito a prôa dos navios normandos, se as suas viagens fossem verdadeiras, fazia cair por terra todo um systema geographico, sustentado desde a mais remota antiguidade pelos respeitados eruditos? Diz Laplace que o merito de uma descoberta pertence não a quem a faz, mas a quem a demonstra. Aqui dava-se o caso mais notavel ainda, de bastar para a demonstrar fazel-a. Como o philosopho antigo que respondia aos que negavam o movimento andando, os Portuguezes responderam aos que sustentavam a impossibilidade de transpor a zona torrida transpondo-a. Essa demonstração tel-a-hiam feito os Normandos, se antes de nós lá tivessem ido, ou os Genovezes ou os Catalães. A gloria tel-a-hiam elles, mas gloria immediata, porque o facto era de tal ordem que não era necessario que decorressem seculos para se lhe reconhecer a importancia. No capitulo immediato veremos como a fé e a lenda, ainda mais do que a sciencia, fechavam a zona torrida e os mares, que, no dizer de alguns, a enchiam, á investigação do homem. Essas lendas, como as da sciencia, iam sendo rasgadas a pouco e pouco, mas pendiam, assim esfarrapadas, dos hombros dos navegadores. Lembram aquelles nevoeiros de Cintra, que envolvem o valle e a montanha, tendo por cima o céo azul. Á medida que os transpomos, vão-se rasgando por baixo de nós, surge uma aldeia, irrompe um arvoredo, um grupo de rochas, mas em muitos pende ainda dilacerado o manto do nevoeiro. Assim veremos os navios portuguezes e hespanhoes caminhar envoltos em nevoas, até que a sua audacia tudo rompeu, e o mundo appareceu emfim na sua completa e radiosa realidade. IV A religião e a lenda Se eram estas as idéas scientificas predominantes no principio do seculo XV, é importante saber-se se a religião as acceitava. Era tão poderoso o dogma nos espiritos medievaes que a condemnação de uns certos principios pela auctoridade ecclesiastica bastava para que a grande maioria os suppozesse completamente falsos. Espiritos independentes como os tem havido sempre protestavam contra a condemnação da sciencia pela fé; mas protestavam timidamente, e nós veremos que nos pontos mais capitaes a fé estava completamente de accordo com a sciencia, de fórma que uma e outra fechavam deante das tentativas dos navegadores o mar mysterioso, que a audacia portugueza conseguiu devassar. O principio assente era a impossibilidade de se franquear a zona torrida, mas poucos homens de sciencia punham em duvida que para além da zona torrida existisse outra zona temperada semelhante á do norte, e onde fosse possivel a vida da raça humana. Contra este ponto é que o dogma protestava. Era inultrapassavel a zona torrida, não a tinham podido franquear os discipulos de Christo, portanto a palavra divina de redempção promettida a todos os que tivessem fé não podia chegar a esses povos que Deus esquecera, o que era completamente absurdo.[36] Se a humanidade toda descendia de Adão, como é que viera ao mundo essa raça humana? Tivera outro Adão como alguns sustentaram que tinha outro sol e outras estrellas?[37] Tudo isso era incompativel com a verdade suprema expressa na Biblia. E demais, se Deus dividira a terra depois do diluvio entre os tres filhos de Noé, se déra a Sem a Asia, a Japhet a Europa, e a Cham a Africa, qual fôra o desconhecido filho de Noé que recebera da Providencia a terra antichthona?[38] Encontrára-se em parte uma solução para essa dificuldade. Reconhecia-se a existencia da terra antichthona, mas suppunha-se que fôra a habitação da raça humana antes do diluvio. Alli ficava o Paraizo, e alli vagueando em torno da deliciosa habitação para sempre defeza vivera a humanidade criminosa os seus primeiros annos. Na arca de Noé salvara-se uma fraca reliquia d’essa gente condemnada. A arca boiara sobre as aguas e viera poisar emfim no monte Ararat. Nunca mais o homem tornaria a ver a sua antiga patria[39]. Assim Cosmas suppunha um mar immenso coberto de trevas, porque o sol só illuminava a terra, e formando quatro golphos, o Mediterraneo, o mar Vermelho, o golpho Persico e o mar Caspio; para além d’esse immenso mar a terra antichthona, e n’ella o Paraizo[40]. Outros, porém, não se podiam resignar a estar para sempre separados do Paraizo, e collocavam-n’o no extremo Oriente, no sitio onde, ao que diziam, principia o mundo. Esses baseavam-se na phrase do Genesis, que diz que «Deus plantou no Oriente um jardim delicioso». Para além da India, dizia Santo Avito, fica o Paraizo, cercado por barreiras que o homem não pode transpôr. É a theoria adoptada por S. Basilio, Psellus, Philostorgo, Isidoro de Sevilha, Bedo o Veneravel, geographo de Ravenna, Raban Mauro, Hugo de Saint-Victor, Jacques de Vitry, Honoré d’Autun, Gervais, Vicente de Beauvais, Joinville, Jourdain de Sévérac, Omons, que ainda suppunha que lá estava o anjo da espada chammejante, Ranulpho Hydgen, Dati, Bartholomeu Anglicus, Brunetto Latini, Dante, etc. Uns suppunham-n’o erguido n’uma alta montanha, outros n’uma ilha. E em torno d’esta idéa dogmatica ferviam as lendas. Do Paraizo, dizia-se, saíam quatro grandes rios: o Nilo, o Ganges, o Tigre e o Euphrates. Era necessario, porém, explicar-se como é que estes rios appareciam tão longe da sua celeste origem, e sobretudo como é que o Nilo apparecia na Africa, tendo nascido na Asia. A explicação era a da corrente subterranea, e submarina tambem com relação ao Nilo, quando a supposição de um mar mediterraneo, que trazia comsigo a união da Asia com a Africa, não tornava dispensavel esta conjectura[41]. Esta opinião religiosa perdurou largo tempo no espirito dos homens ainda depois das grandes descobertas. Colombo, cuja alma enthusiastica se deixava invadir facilmente pelas seducções do mysticismo, e que tinha a fé ardente que foi um dos principaes elementos do seu triumpho, nutria a secreta esperança de chegar a esse Paraizo cubiçado, como contava encontrar n’esse Cathay maravilhoso os capitaes indispensaveis para a reconquista do sepulchro de Christo. Era logica a sua esperança. Se elle, partindo do Occidente, esperava chegar ao extremo Oriente, se no extremo Oriente estava o jardim de delicias em que Deus collocara os nossos primeiros paes, como podia duvidar de que o encontraria? Quando na sua terceira viagem chegou á bocca do Orenoque imaginou ter finalmente chegado ao Paraizo terrestre, não pela formosura das paizagens e pela abundancia da vegetação, mas porque, vendo a torrente das aguas do grande rio, suppoz que era um dos que borbulhavam da elevada montanha do Paraizo terrestre[42]. Christovão Colombo não admittia absolutamente a esphericidade da terra. Como varios outros geographos da edade média, que lhe tinham dado uns a fórma ovoide, outros a fórma de um cone ou de um pião[43], Christovão Colombo suppunha que ella teria a fórma de uma pera, e que junto do pé é que estava exactamente o Paraizo[44]. Tambem a esphericidade da terra era absolutamente contradictada pelos Santos Padres, que lhe davam a fórma de um quadrado ou de um parallelogrammo, fórma emfim que se assemelhasse á do Tabernaculo de Moysés. Desdenhando a idéa scientifica oriunda dos Gregos, e sustentada pelos Arabes, vindo talvez para uns e para outros dos orientaes, de que o centro do mundo era Aryn, d’onde se principiavam a contar as latitudes e longitudes, que ficava exactamente a 90° de cada um dos pontos cardeaes, ponto geographico que foi muitas vezes representado pelos cartographos como uma cidade maravilhosa, com um castello, em que habitava um mysterioso soberano, os Padres da Egreja reclamavam para Jerusalem a honra de ser ella o centro da terra, ou pelo menos o centro da terra habitada, quando se imaginava que o resto do mundo estava coberto pelas aguas desde o diluvio. Finalmente para apresentarmos no seu conjuncto as idéas geographicas affirmadas dogmaticamente pela religião, fallaremos ainda, posto que não interesse a questão dos descobrimentos maritimos, na existencia para o norte das terras de Gog e de Magog. Eram os paizes ao norte da Asia, n’essa região desconhecida em que tambem pullulavam as fabulas, porque era a que se approximava das zonas glaciaes inhabitaveis. Ahi, dizia-se, habitavam os filhos de Caim[45], povos que tinham escapado, ao que parece, do diluvio, não por traz da barreira insuperavel da zona torrida, mas encostando-se ás gelidas barreiras dos polos. Irrompiam ás vezes em incursões ferozes, até que Alexandre o Magno, na sua grande expedição, que ficou legendaria, levantou a grande muralha que poz termo ás suas arremettidas[46]. Disse-se depois que aquellas dez tribus de Israel, que não voltaram do captiveiro da Babylonia, n’essa região mysteriosa ficaram internadas, como depois se disse, quando se descobriu a America e alli se encontrou uma raça de homens desconhecida, que eram ainda as dez tribus de Israel que se tinham perdido n’essas regiões que o Atlantico por tanto tempo escondera detraz da cortina das suas vagas[47]. Assim a fé religiosa, se contradictou n’alguns pontos importantissimos as affirmações scientificas, cerrou ainda mais as portas do _mare clausum_. O homem não podia chegar á zona torrida, era esse o ponto capital, que a um tempo sustentavam os homens da sciencia e os homens da orthodoxia. Assim que d’ella se approximavam o mar começava a escandecer-se, a terra inflammava-se, montes ardentes reflectiam as suas chammas nas aguas, e monstros extranhos que o calor fazia brotar, plantas extraordinarias que só podiam florescer n’essa monstruosa estufa, começavam a apparecer n’essas terras extranhas. Assim, para o norte, apenas se chegava ás regiões onde soprava um vento glacial, outros monstros appareciam, e os povos ferocissimos de Gog e Magog só esperavam que um audacioso rompesse a muralha de Alexandre que os refreiava para cairem de novo sobre o mundo, entregue assim nas garras de Satanaz. No centro da terra habitada, que tinha a fórma quadrilateral, erguia-se Jerusalem; no extremo Oriente erguia-se o Paraizo defezo aos homens, e d’onde saíam os grandes rios do Oriente, trazendo ainda nas suas aguas o nateiro fecundante que ia dar como que uns reflexos da vegetação paradisiaca ás terras que atravessava. Em torno do dogma como em torno da sciencia nasciam então as lendas. Deante do dogma inclinavam-se todos, deante da sciencia inclinavam-se os illustrados, deante da lenda refugiam os ignorantes, e uns e outros paravam deante d’esse mar que tantos mysterios encerrava. Classificamos propriamente como legendarias as supposições que não tinham a minima base scientifica ou que não repousavam no dogma. Assim a _terra velada_ de Theopompo não era senão a _terra incognita_ de Ptolomeu; mas, suppondo o auctor grego que os homens que a habitavam eram de uma estatura duas vezes maior que a dos do mundo conhecido, perdia-se completamente nas regiões da phantasia, porque não havia, como para a humanidade monstruosa das regiões tropicaes, as razões do clima. Percebe-se, por exemplo, que a necessidade continuada de se resguardarem contra os ardores de um sol terrivel fosse, atravez de gerações successivas, desenvolvendo cada vez mais os orgãos com que o homem se podia proteger, mas n’esse clima perfeitamente semelhante ao nosso nenhum motivo havia para que se suppozesse que duplicava a estatura humana. E comtudo essa lenda actuava fortemente no espirito dos navegadores, e assim se explica a formação da lenda dos Patagonios. Legendarias eram tambem as ilhas do Oiro e da Prata, que apparecem nos mappas da edade média e que vão fugindo para regiões mais distantes á medida que vae sendo conhecido o mundo oriental, como succedia tambem ás Hesperides, antigas ilhas de fabulosa riqueza, cujo pomar de pomos de oiro opulentos era guardado por um dragão, como tambem na edade média as montanhas que encerravam thesouros preciosissimos eram guardadas por gryphos e toda a especie de fabulosos animaes. É sempre em ilhas situadas nos mares desconhecidos que se colloca ou a região das riquezas ou a região da bemaventurança. As ilhas Afortunadas ou as ilhas das Hesperides eram para os antigos a patria de todos os sonhos da felicidade suprema. Era nas regiões do Norte, onde parecia que devia reinar comtudo a eterna desolação, que elles collocavam tambem a ideal ventura, phantasiando esse povo dos Hyperboreos eternamente feliz. Passou para a edade média essa tradição, e nos mappas medievaes se vêem para além do mundo conhecido as ilhas onde habitam os Hyperboreos. Nos mares orientaes collocavam-se, como dissemos, as ilhas do Oiro e da Prata, as ilhas dos Homens e das Mulheres, que eram o producto de uma tradição arabe, a ilha do Sol de Pomponio Mela, que não fazia senão dar uma nova fórma ás preoccupações da zona torrida. Quem abordasse á ilha do Sol era immediatamente suffocado pelo ar em braza que alli se respirava[48]. Finalmente, nos mappas da edade média já mais proximos da epocha dos descobrimentos apparece semeado de innumeras ilhas o mar oriental: sete mil dizem as legendas de uns, quatorze mil as de outros. Esse pensamento foi suggerido pelo conhecimento das viagens de Marco Polo e pelas indicações que o viajante veneziano dá ácerca das Maldivas, que se suppozeram existentes no mar oriental. É bem provavel, e o que é certo é que o pensamento da existencia de innumeras ilhas no oriente da India actuou nos sabios do seculo XV, e foi uma das esperanças de Christovão Colombo e um dos pontos de apoio de Toscanelli para a sua theoria da possibilidade da viagem que Colombo emprehendeu, porque, dizia elle, ainda que o continente asiatico estivesse mais longe do que se suppunha, sempre se encontrariam no caminho ilhas que servissem de porto de escala e de arribação[49]. Ah! essas ilhas conjecturaes da edade média como serviram aos historiadores superficiaes para procurar attenuar a gloria dos Portuguezes e a gloria de Colombo! Brotavam das ondas mysteriosas como brota a espuma da vaga que se desfaz nos rochedos. Por aquelle Oceano tenebroso que se estendia para o Occidente, nas ondas do ignoto mar indico, por muito tempo considerado, e ainda no tempo dos primeiros descobrimentos portuguezes, como um mar mediterraneo, pelo mar ignorado do Norte semeava a imaginação dos cartographos quantas ilhas ideara a phantasia antiga, a phantasia dos _troubadours_ ou dos _trouvéres_ e a dos mysticos! Lá appareciam, como dissemos, as ilhas das fabulosas riquezas, a Chrysé, a Argyra, Ophir, que talvez bem se possa classificar entre ellas; as ilhas da tradição homerica, a de Calypso, a de Diomedes, a outra em que se vê ás horas do sol poente a sombra gigante e pensativa de Achilles, as ilhas da tradição celtica, essas ilhas que povoavam a imaginação d’estes marinheiros do occidente, que, erguidos ao pôr do sol nos rochedos da costa, sonhavam em cada miragem do Oceano uma ilha fabulosa, que, batidos pela tempestade, quando andavam á pesca, julgavam escutar no surdo rugido das vagas os lamentos das almas penadas nas ilhas milagrosas, e tudo se contava ao serão quando bramia o vento cá fóra e o mar quebrava com doloridas queixas ou com furioso estrepito nas fragas desnudadas. Tudo ia tambem enriquecer as lendas dos claustros para ornar com esses arrebiques de maravilhoso a existencia piedosa de um santo missionario. Foi assim que S. Brandão teve a sua ilha, onde cantavam as aves do Paraizo, e onde se respirava tão celeste e perduravel perfume que n’elle ficaram para sempre impregnadas as vestes do santo viajante. Era na Irlanda sobretudo que essas lendas brotavam, era ahi que se formavam ao lado da legenda de S. Brandão as de S. Patricio, e de tantos outros navegadores celticos que iam atravez dos mares da phantasia procurar ignotas ilhas. Já Brekan, o filho do rei Niel, desapparecera nas ondas do mar com cincoenta navios, e só o cadaver do seu cão reapparecerá na praia, já tres filhos de Corra tinham com os seus quatorze companheiros, entre os quaes iam um bispo e um bardo, abordado ás ilhas das Almas, encontrando depois de quarenta dias e quarenta noites a ilha do eterno choro, e a ilha em que fundidores infieis forjavam e fundiam com as carnes rasgadas pelas aguias negras, e outra em que um moleiro moía eternamente farelo por ter roubado os seus freguezes, e outra em que um alquilador, que roubara o cavallo a seu irmão, passava por deante dos olhos assombrados dos viajantes no galope infernal de um cavallo de fogo. Outros, os famosos navegadores de Iona, tinham chegado á ilha dos Passaros, onde volteiam aves de aureas e de purpureas pennas, regidas por um rei de cabeça de oiro e de azas de prata, que entoam cantos de uma celestial melodia, e a outra onde choram com saudades da patria as doces Irlandezas exiladas mysteriosamente do mundo dos vivos. Depois ainda é o bardo Myrdhinn que vae com mais nove bardos procurar a ilha Verde, que nunca foi submergida pelas vagas, a ilha dos pomos de oiro, onde no meio de uma aurora perpetua dança um côro eterno de bellos rapazes e de formosas raparigas. Tudo se condensa, emfim, na lenda de S. Brandão. Esse encontrara a ilha onde os anjos que acompanharam Lucifer, mas não foram inteiramente seus cumplices, cantam os hymnos de esperança, e o aspero rochedo batido pelas vagas, onde Judas é consumido pelo eterno remorso; e emfim a terra promettida aos eleitos, a terra dos bemaventurados. S. Patricio tambem percorre as solidões do Atlantico. Esse vae, segundo a lenda, quando a quaresma começa, para o seu _purgatorio_, n’uma ilha de que ninguem se pode approximar, onde ha uma caverna que os maus espiritos habitam, e onde se abrem duas estradas subterraneas, que vão ter uma ao Inferno, outra ao Paraizo. Esta ilha mysteriosa do _Purgatorio de S. Patricio_, como a ilha abençoada de _S. Brandão_, é um dos sonhos mais persistentes da edade média, e uma e outra lá apparecem nos mappas medievaes, nos sitios mais diversos, ás vezes applicando-se a ilhas verdadeiras, como acontece com o _Purgatorio de S. Patricio_, que alguns cartographos collocam na Islandia. A imaginação celtica é a mais fecunda n’esta creação de terras phantasticas, e não podia deixar de ser assim, não só porque os povos d’essa raça são essencialmente imaginativos e sonhadores, como tambem porque n’essa Irlanda, collocada na extremidade occidental da Europa, a tão pouca distancia da America, aonde tantas vezes deviam chegar, como chegavam aos nossos Açores e á nossa Madeira, plantas e cadaveres de homens de desconhecido aspecto, não podia deixar de pullular a cada instante na alma do povo o pensamento da existencia de ilhas mysteriosas para esse lado, como muitas vezes tambem, quando um pescador mais audacioso se aventurava ao mar alto, quando o vento de leste lhe enfunava as velas, e o mar lhe parecia cantar no seu doce murmurio as suas maravilhosas lendas, elle seguiria caminho do Occidente, durante dias e dias, até que a fome o salteasse, ou até que o continuado panorama das vagas a seguirem-se ás vagas, sem fim, sem termo, fechando o horizonte, os desanimasse afinal[50]. Mas tambem na peninsula hispanica lendas semelhantes se formavam e pelas mesmas causas. Tambem aqui em Portugal sobretudo e no Algarve principalmente os pescadores, ao largarem a costa, sentiriam a tentação de penetrar nos mysterios do Oceano, e aqui tambem á volta, em noites de luar nas esfolhadas, ou no inverno ao lado da chaminé, fallariam, como se as tivessem visto, em ilhas extranhas, na das Sete Cidades, por exemplo, onde se tinham refugiado, quando os Mouros vieram á peninsula, sete bispos christãos com o povo das suas dioceses, proscriptos agora e encantados como as meigas irlandezas exiladas dos navegadores de Iona. E todas estas ilhas phantasticas, Antilia e Sete Cidades, ilha de S. Brandão e Purgatorio de S. Patricio, iam juntar-se ás ilhas conjecturaes dos sabios e ás ilhas tradicionaes da mythologia antiga para formarem esses archipelagos do sonho e da lenda que se desfizeram em fumo quando das aguas surgiram, envoltas no seu manto de verdura, ou na sua armadura de rochedos vulcanicos, palpitantes ainda com o fogo que lhes lavrava nas entranhas, ou carregadas com a immensa e luxuriante cabelleira das intactas florestas, as ilhas reaes e verdadeiras. Esse sonho das ilhas phantasticas podia não ser senão um estimulo para cavalleiros denodados que não temiam os encantamentos, logo que levavam comsigo as espadas bentas e a cruz do Salvador. Com o coração a bater-lhes um pouco, pallidos de supersticioso terror, mas incitados pelas tentações das sobre-naturaes aventuras, arrojar-se-hiam tanto os celtas da Irlanda como os celtas de Portugal aos mares mysteriosos em demanda das ilhas paradisiacas; outros encontraram tambem no caminho as ilhas infernaes, mas a lenda do mar Tenebroso essa é que deveras regelava o sangue nas veias do mais audacioso. Vinha dos antigos, e mais tambem dos Arabes. Como é que os poetas antigos, ao passo que devaneavam como Seneca no côro da _Medéa_, que para além do Oceano haveria terra incognita, suppunham que n’esses mares longinquos se perdêra a luz do sol e um manto espesso de trevas se desenrolava sobre as vagas? Como é que o arabe Edrisi, que suppunha que estavam no Atlantico as ilhas da eterna felicidade, suppunha tambem que era o Atlantico o mar tenebroso, onde os navios esbarravam uns nos outros e se despedaçavam em ignorados rochedos? É porque suppunham que, depois do mar Tenebroso, vinha o mar luminoso da India, porque imaginavam exactamente que o mar da India communicava com o mar Tenebroso? Tambem a sciencia não dava fóros de authenticidade ao mar Tenebroso como os dava ás terras incendiadas e ao mar em fogo da zona torrida. Era um dos fundamentos essenciaes da lenda do immenso pélago o ligar-se ainda com as estranhas idéas astronomicas dos que suppunham que para além dos mares tinha o globo um cinto de montanhas, e que detraz d’essas montanhas é que o sol se escondia durante a noite, pertencia a essa classe de phantasias a que pertencem os montes Ripheus e outras visões da desvairada imaginação dos sonhadores da geographia. Mas ainda os Arabes trouxeram do Oriente um novo elemento legendario. O Oriente é a patria das estatuas encantadas, dos monstros de metal dotados de uma vida phantastica, e a esse mar, por tantas razões defezo, punham como sentinellas immoveis e terriveis as estatuas mysteriosas, como os leões de oiro que nos contos arabes defendem os palacios enfeitiçados. Mas ainda a tudo accrescia uma tradição que se baseava na verdade, e que não era menos desanimadora para os que tentassem romper o mysterio. Era a do mar de Sargaço, que não era desconhecido dos antigos, esse mar que os marinheiros de Colombo encontraram já muito para o occidente, e em que se julgava que as plantas enredadas enleiavam por tal fórma os navios que lhes paralysavam completamente os movimentos. Essas idéas falsas, derivadas da sciencia mal comprehendida, e que povoavam os espiritos dos marinheiros d’essa epocha, são as mesmas que ainda hoje habitam no cerebro do povo ignorante, apesar da immensa propagação de dados scientificos verdadeiros, obtidos pela experiencia de todos os dias. No seu delicioso livro _Sull’Occeano_, o grande escriptor italiano Edmundo de Amicis conta-nos o que ouviu a bordo de um paquete que singrava para a America aos passageiros de terceira classe, emigrantes que iam trabalhar no Rio da Prata. Parece-nos estarmos a ouvir as palestras que se travariam entre os marinheiros do seculo XV a bordo das suas esguias caravellas. Apesar dos factos demonstrarem o contrario, ainda suppunham que, ao atravessarem a zona torrida, teriam de atravessar um mar incendiado. Suppunham que veriam claramente a curvatura da terra e o navio descer por ella como um bichinho em volta da superficie de uma laranja. Todos esses terrores pueris dos passageiros que os marinheiros hoje desdenham com um riso sarcastico, eram os que salteiavam o espirito dos seus antepassados nos seculos da edade média, eram esses terrores os que faziam recuar deante dos cabos africanos e deante das solidões do Atlantico os marinheiros que precederam Gil Eanes e que precederam Christovão Colombo, eram ainda os que acompanhavam os descobridores em cada nova exploração, porque só a pouco e pouco é que a luz se foi fazendo, só a pouco e pouco é que se foram desfazendo as idéas falsas da antiguidade substituidas pelos factos verdadeiros, e era necessario que fossem de uma rija tempera os marinheiros que recalcavam no fundo d’alma esses terrores, que fossem denodados espiritos os d’esses commandantes que assim partiam a arcar não só com os pavores da superstição, mas com as affirmações da sciencia e com as determinações da fé, e que fosse emfim um genio verdadeiramente transcendente o d’esse homem quasi divino, que teve a intuição sublime da verdade e a inspiração de um genio creador, que sonhou um mundo aberto inteiramente á luz, um mar sem trévas, a humanidade circulando sem peias em volta da terra seu dominio, e que logrou escrever na face das ondas com a quilha das suas caravelas essa epopéa maravilhosa que elle concebeu em Sagres e que foi a grande epopéa do Renascimento. V O infante D. Henrique e o povo portuguez Nenhum povo estava tão fadado como os Portuguezes para esse emprehendimento maravilhoso na epocha em que elle se encetou. As cruzadas tinham despertado nos povos europeus o espirito da aventura. Era para o Oriente que se voltava esse ardor de conquista, não só porque era a terra classica de todas as opulencias, mas porque a conquista do Oriente fôra o sonho da antiguidade grega e romana e o culto mal comprehendido, mas profundo, pela antiguidade foi um dos caracteres predominantes da edade média. Alexandre o Magno era para elles o ideal do cavalleiro andante, imaginavam-n’o como um soberano cavalheiresco, segundo a formula feudal, como Virgilio, o dôce poeta, era um feiticeiro de legenda; mas a adoração por esse grande vulto vivia em todos os espiritos. Foi para o Oriente pois que se dirigiram os primeiros viajantes, os Rubruquis, os Plan du Carpin, os Marco Polo, quando as expedições guerreiras tiveram de parar deante da resistencia victoriosa dos sarracenos. Mas esses viajantes já tinham feito penetrar um pouco de luz na geographia systematica do seu tempo, e a humanidade evidentemente, despertada para o estudo e para a sciencia pela primeira Renascença do seculo XIII, ia procurar sondar o desconhecido que por todos os lados a envolvia. O segredo dos mares occidentaes devia preoccupar sobretudo os povos que no occidente da Europa viam desenrolar-se diante d’elles a incommensuravel extensão das vagas oceanicas. Os povos do Norte, que tinham chegado até á ultima Thule, a regelada Islandia, não deixaram de aventurar-se por esses mares ignotos, e é incontestavel que, assim como chegaram á Groenlandia, tocaram tambem no continente americano. Se perseverassem na descoberta, se fossem seguindo ao longo da costa da America, emquanto encontrassem terra nas suas aventurosas jornadas, teriam roubado incontestavelmente a Portugal e á Hespanha as suas mais viridentes glorias! Á Hespanha, porque antes de Colombo teriam dado á civilisação esse vastissimo continente, a Portugal, porque antes do infante D. Henrique teriam reconhecido a possibilidade de se transpôr a zona torrida; mas não perseveraram, e assim legitimamente perderam a gloria que teriam podido conquistar. Que, afastando-se da Islandia, encontrassem uma nova terra ainda mais regelada e triste, que, proseguindo na sua viagem, chegassem a territorio mais risonho, não é coisa que nos espante, posto que demonstre mais uma vez a coragem d’esses audaciosos reis do mar. A gloria de Colombo não está em ter encontrado novas terras, está em não ter recuado deante dos dogmas da extensão quasi infinita dos mares, assim como a gloria dos Portuguezes não está em terem juntado novas terras ao peculio da civilisação, está em não terem recuado diante do dogma scientifico e religioso da impossibilidade de se viver na zona torrida e da existencia dos mil perigos e dos mil horrores que defendiam a sua approximação. Ninguem era, comtudo, mais proprio do que os Normandos para tentarem as aventuras maritimas; estavam porém demasiadamente ao norte, e, como ás suas aventuras presidia sempre, como ás dos Phenicios, não o amor da sciencia, mas o amor do lucro, ao chegarem ao cabo de S. Vicente, mais os tentava o caminho do Mediterraneo, onde havia tão seductoras prezas, do que o arriscado caminho do Mar Tenebroso. No seculo XIV os Normandos de França sentiram-se attraídos para os mares do Sul, até porque lhes chegára a noticia de que os marinheiros da peninsula hispanica para esse lado tinham encontrado as ilhas Afortunadas, mas a tentativa de Bethencourt não tivera nem poderia ter imitadores, porque não fôra extremamente prospero o seu resultado, porque as costas áridas do prolongamento de Marrocos, onde tinham encontrado a morte, essa Guiné, como lhe chamavam, Guiné que tinha por limite meridional o cabo Bojador, não promettia grandes proventos aos que lhe tentassem a exploração. A Inglaterra concentrava na conquista da França todas as suas attenções e todo o seu empenho e a França cuidava em defender-se e em completar a sua poderosa unidade. A Italia tinha duas potencias maritimas—Veneza e Genova—cujos navegantes davam lições aos outros povos, mas uns e outros tinham os olhos postos no Oriente, d’onde lhes vinha a riqueza, a gloria e o dominio. Genova é que lançava de quando em quando os olhos para o occidente, em Veneza appareciam ás vezes alguns espiritos que se deixavam tentar pelos mysterios do Oceano, mas as viagens audaciosas e pouco afortunadas dos irmãos Zeni venezianos e de Vivaldi e Doria genovezes, não podiam ser incitamento a que se proseguisse nas tentativas. Acontecia com as duas republicas maritimas o que depois aconteceu com Portugal quando regeitou a proposta de Colombo. Não se deixa o certo pelo duvidoso. Não se empenham vidas e thesouros em emprezas incertas, semi-phantasticas, quando se tem nas mãos, como Veneza e Genova tinham, o vasto commercio do Oriente, quando se tem quasi a certeza de que se está no caminho da India, quando se possuia já o resgate valioso da Mina como acontecia com D. João II. Para esses emprehendimentos que são o sonho da politica, são necessarios não os espiritos positivos, mas as imaginações exaltadas. É indispensavel que haja n’um cerebro esse grão de loucura que faz os grandes poetas e os grandes descobridores, que inspira os poemas que se escrevem—os poemas da phantasia, e os poemas que se executam—os poemas da acção, um homem como o infante D. Henrique, que herdára de sua mãe, como todos os seus irmãos, esse elemento romanesco que toda a mulher do Norte encerra no fundo da sua alma, por baixo da sua apparencia séria, austera e pratica de dona de casa e de mãe de familia, para conceber e levar por deante, n’um jorro de santa loucura, o poema das navegações, ou uma mulher cavalheiresca, romanesca tambem, sensivel e enthusiastica como a rainha Izabel, para comprehender a alma de Colombo, para se irmanar com ella, e para collaborar tão apaixonadamente n’esse ultimo poema de cavallaria, n’essa ultima producção da alma celtica, n’esse ultimo romance do Santo Graal que se chamou Descoberta da America. Restavam os reinos da peninsula hispanica, mas todos esses, á excepção de Portugal, se achavam empenhados ainda nos ultimos arrancos da sua lucta contra os Mouros. No oriente da Hespanha, nas Baleares sobretudo, havia a tentação de sondar o mar desconhecido, mas diante do cabo Bojador ainda se recuava. Tel-o-hiam dobrado comtudo se tivessem perseverado no intento, mas era essa perseverança que não podia deixar de faltar a um povo que não tinha para isso outro estimulo que não fosse o da curiosidade, que mais se deixaria tentar pela Africa mediterranea do que pela Africa atlantica. O povo que estava deveras em circumstancias de tentar os grandes emprehendimentos era sobretudo Portugal. Acabava de atravessar um periodo em que todas as suas faculdades tinham sido vivamente excitadas, e em que empregára todas as suas forças e toda a sua actividade. Havia dois seculos que unificára o seu territorio e que expulsára os Arabes. Desde que o fizera, voltára naturalmente as suas attenções para o Oceano, e o grande rei, que mais cuidára da organisação pacifica do seu povo, D. Diniz, empenhara-se essencialmente em nos dar marinha, animando a mercante, protegendo a pescadora, desenvolvendo a de guerra, já providenciando para que se podessem fazer navios, já indo buscar a Genova, a grande nação marinheira do Mediterraneo, os navegadores que podiam dar aos nossos mareantes os conhecimentos technicos que lhes faltavam. Como se tivesse a previsão de que ainda a Portugal caberia tentar a ultima empreza cavalheiresca da edade média, não se conformára com a suppressão dos Templarios, e fundára para os substituir a ordem de Christo, cujos cavalleiros tinham de vir a ser os Templarios do mar, cujo habito e cuja commenda foram a «estrella dos bravos», cujas phalanges intrepidas foram a Legião de Honra das nossas maritimas victorias. Logo as primeiras expedições atlanticas mostraram que rumo Portugal queria seguir, mas as discordias intestinas e as ambições dos reis adiaram o proseguimento das tentativas. Não se resignavam os nossos soberanos a manter o seu reino em tão estreitos limites, mas Castella engrandecera-se tanto que não nos era facil a dilatação. Foi o contrario que esteve para succeder, foi Castella que esteve a ponto de absorver Portugal; na lucta desegual empenharam-se então todas as nossas forças vivas; toda a energia da nossa organisação, toda a furia do nosso patriotismo local despertaram para essas pelejas homericas. O perigo imminente fez com que a patria se retemperasse na grande corrente democratica. A nacionalidade portugueza luctou com a poderosa Castella como Anteu com Hercules, cobrando novas forças sempre que tocava no solo portuguez. Em 1385 como em 1640 foi o povo que salvou a bandeira. A gente dos concelhos, indo, _ventres ao sol_, na energica phrase de Fernão Lopes, combater contra os cavalleiros vestidos de ferro, manifestava na peninsula hispanica uma nova força social, a mesma que dera aos _yeomen_ inglezes a victoria sobre a cavallaria feudal da França, e aos montanhezes suissos a victoria sobre a cavallaria aristocratica de Carlos o Temerario. Nunca houve uma efflorescencia tão notavel de bravura e de talento, de genio aventuroso e de dedicação patriotica, nunca estiveram em tão continua vibração todos os nervos e todos os musculos de um organismo nacional. Quando acabou a lucta, depois de ter insculpido nos annaes gloriosos da patria os nomes de Trancoso e de Atoleiros, de Aljubarrota e de Valverde, de D. João I e de Nuno Alvares Pereira, a geração que praticára esses feitos estava ainda vibrante de energia, o cerebro que concebera a reorganisação nacional estava scintillante de idéas. Foi então que Vasco de Lobeira devaneou o _Amadis de Gaula_, que Fernão Lopes fez trasbordar nas suas inimitaveis chronicas a exuberancia poetica da alma nacional, que os architectos e os canteiros fizeram desabrochar no campo da peleja a flor maravilhosa da Batalha, que o infante D. Henrique sonhou a epopéa dos descobrimentos. Quando uma nação acaba de se empenhar n’uma lucta aventurosa de muitos annos custa-lhe a voltar de novo ás occupações serenas da paz. Ha em todos os espiritos uma sede de aventuras, uma necessidade absoluta de occupar a sua energia. É por isso que vemos, depois das grandes luctas do principio d’este seculo, os generaes francezes e os officiaes de marinha inglezes procurar em todo o mundo emprego para a sua actividade. Encontramos até no Oriente officiaes de Napoleão pondo a sua espada ao serviço de monarchas indianos, na Europa e na America officiaes de marinha inglezes a commandar as esquadras insurgentes nas luctas da independencia americana e da liberdade europêa. Assim no seculo XV vamos achar cavalleiros portuguezes á cata de aventuras na Inglaterra e na França e até na mais remota Allemanha. Sem fallarmos em D. Alvaro Vaz de Almada, cujos serviços mereceram na Inglaterra a altissima recompensa da ordem da Jarreteira e do condado de Avranches, nem no infante D. Pedro, e em Soeiro da Costa, achamos nas guerras de França, no cêrco de Arras, por exemplo, cavalleiros portuguezes, cujo nome ficou desconhecido, entrando em combates singulares deante dos muros da praça assediada.[51] É esta necessidade de dar vasão a esta superabundancia de energia que leva D. João I, incitado por seus filhos, á expedição de Ceuta, é um povo n’essas disposições que o infante D. Henrique vae encontrar apto para as audaciosas explorações do Atlantico. Note-se: hoje ainda, depois de tantos seculos de decadencia, nós somos o povo da aventura. Indolentes na patria, amanhando sem enthusiasmo um solo uberrimo que se desentranharia em maravilhosos fructos se lhe dessemos francamente todo o trabalho dos nossos braços e todo o pensamento do nosso cerebro, discursadores declamatorios, sem iniciativa nem acção, mudamos completamente apenas transpomos as barras dos nossos rios. Apertados entre as montanhas e o mar, é nas montanhas que temos a nossa força de resistencia, é no mar que temos o nosso vigor de emprehendimento. Os nossos montanhezes intrepidos são ainda hoje os lidimos descendentes dos companheiros de Viriato, os nossos pescadores são deveras os filhos audaciosos dos marinheiros de Gil Eanes. Lá fóra a transformação é mais completa ainda: fizemos o Brazil, e estamos continuando a dar ao seu desenvolvimento os elementos da nossa actividade exotica; estamos fazendo a Africa portugueza, e os vestigios dos nossos aventureiros mercadores são encontrados com espanto no interior da Africa; nos Estados-Unidos temos uma colonia trabalhadora e autonoma que se não deixa absorver pelo povo americano; nas ilhas Sandwich a immigração portugueza rivalisa em importancia com a immigração ingleza; em Demerara constitue o fundo da população branca trabalhadora. A alma celtica palpita ainda hoje nos nossos peitos, como palpitaria então n’esse seculo XV, que foi o nosso seculo aureo, depois das luctas homericas de Aljubarrota, quando o povo trasbordava de vida e de enthusiasmo, prompto para todas as luctas, sazonado para todas as aventuras. A dynastia reinante reflectia perfeitamente o estado da alma popular. O rei era um bastardo, um filho do amor, e de um amor de D. Pedro, o rei mais violento e mais apaixonado que nunca se sentou n’um throno! O sangue borgonhez de seu pae cruzara-se com o sangue normando de sua esposa, e d’ahi nascera aquelle grupo admiravel de principes robustos e intelligentes, educados por sua mãe n’aquelle retiro sagrado das principescas familias medievaes, n’esses quartos forrados de tapeçarias de _haute-lice_, em que pareciam á noite, á luz vacillante das tochas, tomar vida phantastica os heroes das scenas de cavallaria traçadas nos pannos de raz, ouvindo os graves conselhos da mãe, pura, séria e heroica, embalados com a poesia das canções de gesta e com as aventuras dos romances de cavallaria, e, quando saíam do regaço materno, não vendo em torno de si senão rostos energicos de homens como seu pae, como Nuno Alvares, cuja vida inteira era um poema de heroismo, e que, ao viajarem no seu reino, dirigiam quasi sempre os passos para a campina sagrada, onde se estava erguendo sobre as columnatas esguias essa maravilhosa abobada d’onde parecem chover os altos pensamentos, e o altar-mór onde se accendia nas vidraças coloridas o sonho vago e radiante de uma visão paradisiaca. Tal era o meio onde tinham forçosamente de brotar os grandes emprehendimentos. Foi d’esse meio que saiu a expedição de Ceuta, que não bastava para satisfazer a insaciavel cubiça de aventuras d’esses principes, que não viam em torno de si senão homens em cuja alma as suas aspirações encontravam echo ou estimulo. Assim D. Pedro foi pela Europa fóra procurar emprego para a sua energia e para a sua cubiça de saber, D. Fernando devaneou desde logo o proseguimento da conquista africana, D. Henrique, estudioso e reflexivo, sonhou a conquista do mar. É difficil o desenho d’esta notabilissima figura. Levanta-se contra ella agora uma campanha de improperios, em que os adversarios parecem querer applicar ao juizo severo e imparcial da historia os processos das campanhas jornalisticas das luctas contemporaneas. Tomou parte n’esta campanha o sr. Theophilo Braga, e é pena que o fizesse, porque o livro em que essas tendencias incidentemente apparecem é um dos mais notaveis que se lhe devem, a _Historia da Universidade_.[52] Fez-se echo simplesmente comtudo da maledicencia de um d’estes eruditos, que, descobrindo um facto minusculo que pode attenuar a gloria de uma descoberta, ou achar um ponto vulneravel no vulto de um heroe, vem triumphantemente para a rua soltar o _Eureka_ de Archimedes, declarando _urbi et orbi_ que vão demolir uma reputação firmada pelos seculos. Têem odios historicos tão violentos estes biliosos da erudição como os podem ter contra um poderoso adversario os mais fanaticos jacobinos da politica moderna. São perigosos homens assim, e o historiador imparcial tem de afastal-os serenamente como afasta os insultadores contemporaneos do insultado, que entornam com delicias o fel das suas calumnias nas paginas que enviam á posteridade. Seculos depois de desapparecer da face do mundo um homem eminente, apparecem deturpadores vehementissimos, em cujo espirito a vaidade de fazerem vingar um novo pensamento historico produz tão ruins consequencias como as pôde produzir seculos antes o odio de um invejoso, o despeito de um desprezado, ou a vingança de um vencido. Era por acaso o infante D. Henrique um impeccavel? Mais ainda: era um vulto sympathico, affectuoso, altruista, um d’estes entes divinaes como o Christo, cuja doce bondade irradia na Historia, que nos captiva quando lêmos a sua Vida como devia captivar os que no seu tempo viveram, debaixo do influxo magnetico da sua meiguice, da sua amoravel candura? Não, de certo, e nem é esse infelizmente o caracteristico dos homens a quem se devem os grandes emprehendimentos. É terrivel o homem _unius libri_, diz o pensador antigo. Não o é menos o homem de um só pensamento e de uma só ambição. Bondoso, quando se trata de attrahir os outros, de os enfeitiçar e de os fazer escravos da sua idéa e instrumentos do seu plano; absolutamente despido de toda a caridade e de todo o affecto quando o instrumento deixa de servir, e quando o escravo pede em paga uma pouca de dedicação e um pouco de sacrificio. Um dos homens mais captivadores que tem havido foi Napoleão. Prendia, subjugava com o encanto da sua apparente bondade, inspirava dedicações fanaticas, mas nunca foi bom para os outros, nunca pensou na felicidade alheia. Entregue exclusivamente ao seu pensamento ambicioso, á grandeza da sua idéa gigante, absorvia-se todo n’ella, bastante habil para se não esquecer de captar aquelles de que precisava, o exercito, o povo, os principes, o Papa, as mulheres, os artistas, e incapaz de fazer um sacrificio a uma mulher, ou de ter dó de um velho! Impede isso por acaso que a historia não deixe de reconhecer a grandeza excepcional do seu genio e a obra maravilhosa que executou, e que ainda está de pé, porque a verdade é que o organismo da França é hoje ainda o que elle construiu, e portanto o organismo da Europa continental tambem que por elle se modelou?[53] Ninguem pintou melhor o infante do que o sr. Oliveira Martins no seu admiravel livro _Os filhos de D. João I_:[54] duro, sem bondade, asceta do pensamento. E, se outra coisa fosse, poderia por acaso levar por deante uma obra em que era indispensavel a energia, a perseverança e a implacavel obstinação? Sympathicos são seus tres irmãos, D. Duarte, D. Pedro e D. Fernando, que o coadjuvam, que o admiram, que a elle se sacrificam. Mas D. Henrique é um solitario, como todos os que têem a allucinação de uma missão divina. Todo se abraza na embriaguez do mar, no sonho das vagas regiões longiquas, na procura da India, d’essa India triplice e maravilhosa, que, depois do livro de Marco Polo, sobretudo, toma as proporções phantasticas de uma d’essas cavernas das _Mil e Uma Noites_, illuminadas pelas fulgurações das pedras preciosas, pelo fulvo scintillar do oiro, pela nitida brancura da prata. Essa conquista do mar quel-a toda para si e isso lhe lançam em rosto os seus modernos detractores, como os bourbonicos lançavam em rosto a Napoleão não querer ser logar-tenente de Luiz XVIII e os republicanos não se contentar com o consulado electivo—queria-o para si e para a ordem de Christo que era a sua guarda pretoriana. Auxilia-o D. Pedro nas suas investigações, traz-lhe o fructo das suas viagens, auxilia-o D. Fernando na empreza de Tanger, d’essa cidade maritima que elle cubiça como um ponto de partida mais seguro para as suas expedições navaes; mas D. Fernando encontra n’elle um debil auxiliar quando vem a grave questão do seu captiveiro, D. Pedro, um indifferente, quasi um inimigo, na terrivel contenda em que estão em jogo a sua vida e a sua honra; é que todas as faculdades da sua alma estão concentradas na sua grande empreza. Mais do que o doge de Veneza elle casou com a vaga atlantica. Deu-lhe todos os affectos e toda a pureza da sua alma, as faculdades do seu espirito. Por ella captivou com as suas promessas e com as suas seducções quantos estrangeiros o podiam ajudar na sua empreza, por ella abstrahia de todas as ambições que não fossem a de conquistar para si, para a historia, para a fé e para a sciencia um immenso imperio ultramarino. É um monge militar isolado no seu castello sobre o Oceano, como os primeiros mestres do Templo, seus antecessores, nos seus castellos da Palestina. A sua Jerusalem é a Aryn que elle procura ainda, talvez, no meio dos fogos da zona torrida, o seu Santo Sepulchro é esse mar immenso, onde se sepulta o sol, e de que elle affugenta, com a prôa das suas caravellas, como os Templarios os Sarracenos com a ponta das suas lanças, os pavores da superstição, os erros da sciencia e as illusões da fé. Que outros condemnem esse implacavel sonhador que fechou a sua alma aos affectos humanos para todo se concentrar na paixão por um ideal que a um tempo o illumina e o allucina! Que outros lamentem esse egoismo de namorado, que o torna surdo para todas as supplicas e inaccessivel a todas as dedicações, mas que nós Portuguezes lhe regateemos a gloria, e lhe amesquinhemos o caracter, e lhe neguemos a indulgencia que a fraca humanidade deve ter com os defeitos que acompanham fatalmente as grandes qualidades, quando a esse egoismo sagrado, a essa perseverança intransigente devemos o termos dado ao mundo a mais assombrosa conquista, e termos conquistado para nós uma gloria que ainda hoje illumina as nossas ruinas, e dá á nossa decadencia a purpura e o oiro de um pôr de sol explendido, isso é o que se não comprehende, e o que se pode considerar como uma das mais flagrantes injustiças e das mais negras ingratidões que podem macular um povo. VI Queda das barreiras da zona torrida e primeira exploração do Atlantico Qual era o ponto de vista do infante, quando começou a dirigir para o sul as expedições? Era simples: Eratosthenes déra á Africa a fórma de um trapezio, sendo o lado septentrional banhado pelo Mediterraneo, o oriental pelo Nilo, o meridional pelo mar desconhecido, o occidental pelo Atlantico. Este lado era o mais pequeno. Pouco abaixo do estreito de Gibraltar a costa voltava para SSE, e ia juntar-se com a costa oriental. Era esta a doutrina geralmente admittida, e assim se representa a Africa na maior parte dos mappas medievaes. Outros, porém, seguiam a doutrina de Ptolomeu que prolongou a Africa, alargando-a na base: e então imaginavam uma costa ficticia ao sul que ligava entre si a Africa Oriental e a Occidental, mas parando em todo o caso para aquem do Equador, porque a zona torrida era sempre considerada inhabitavel, e para além da zona torrida ficava, segundo a theoria de Ptolomeu, a terra antichthona. Deu isso origem a que corresse a lenda do famoso mappa trazido pelo infante D. Pedro de Veneza, e em que estava traçado o cabo da Boa Esperança, e suppõe-se tambem que o estreito de Magalhães! A confusão é curiosa. O mappa que deu logar a essa lenda é um mappa já posterior aos primeiros descobrimentos dos Portuguezes, representa a Africa terminando n’uma ponta a que dá o nome de cabo de Diab, mas esse cabo está separado do continente africano por um estreito, onde havia, dizia a legenda, a treva absoluta. Parecia que era esse canal a ultima reliquia, que procurava sobreviver ainda, do mar Tenebroso. Parecia-se esse estreito com o estreito de Magalhães, e, da mesma fórma que muitos confundiram a terra antichthona com a America, para lá lhe passaram o imaginario canal do sul da Africa. Humboldt, que tão facilmente acceita o que pode redundar em nosso desfavor, ao passo que regeita tudo o que possa redundar em desfavor de Colombo, Humboldt, que não trata de saber se a Guiné a que chegou Bethencourt é a Guiné que os Portuguezes descobriram depois, apesar de acautellar os seus leitores contra os erros que podem resultar da confusão de nomes identicos que se davam a regiões muito diversas, tambem d’esta vez, reconhecendo que os mappas de Toscanelli, onde todos dirão que se encontram as Antilhas descobertas por Colombo, são mappas perfeitamente conjecturaes, não hesita em acceitar o mappa conjectural de fra Mauro, em que vem o Cabo de Diab, como mappa baseado em conhecimentos positivos.[55] E comtudo fra Mauro nas indicações que acompanham o seu mappa, feito em 1454, é o primeiro a reconhecer os serviços dos Portuguezes, e a declarar que d’estes recebeu muitos mappas, que lhe tinham servido para a elaboração do seu. «Muitos pretenderam, diz elle, e grande numero escreveram que este mar (o _Atlantico_) não pode ser _torneado_, nem navegado, nem ter habitantes nas suas praias como a nossa zona temperada e habitada; _mas é agora de toda a evidencia que se pode sustentar uma opinião contraria, principalmente porque os Portuguezes que o rei de Portugal mandou a bordo das suas caravellas para verificarem este facto, referiram, depois de se terem certificado elles mesmos, que tinham explorado esse continente pelo espaço de mais de duas mil milhas desde o sudoeste do estreito de Gibraltar_, que em toda a parte os recifes da costa não são perigosos, que as sondas são boas, que a navegação é facil, sendo as tempestades mesmo pouco perigosas. Elles levantaram cartas d’estas regiões e deram nomes aos rios, bahias, cabos e portos. Possúo um grande numero de borrões ou esboços d’essas cartas».[56] Accrescenta elle, porém, _que nenhuma d’essas cartas resolvia a grande questão de se saber-se se podia fazer a circumnavegação da Africa_! É fra Mauro que o diz, no proprio mappa, que prova, segundo Humboldt imagina, que o cabo da Boa Esperança era conhecido mais de quarenta annos antes de Bartholomeu Dias o dobrar! Não se vê porém que a emenda conjectural nos mappas antigos é aqui evidente? Já estão os Portuguezes a duas mil milhas do estreito de Gibraltar, e a costa africana não volta bruscamente para leste. Não é bem natural suppor a probabilidade de terminar a Africa em ponta, visto que a occidental se dirige para SE, como a oriental se dirige para SO? Como o proprio Humboldt affirma e faz notar, depois dos descobrimentos os cartographos não se limitavam a inseril-os, mas accrescentavam ás regiões descobertas os seus complementos conjecturaes. E tanto assim é que, ao lado do cabo em que a sua phantasia roçou pela verdade, poz um estreito que não existia, que, depois de ter imaginado a Africa torneavel, continúa a dizer que não sabe-se se poderá tornear, e que, ao passo que fundamenta nas descobertas portuguezas a sua descripção da Africa Occidental, nada diz de quaesquer viagens que tivessem podido esclarecel-o ácerca da fórma que podia dar á Africa meridional! Nada ha mais estranho do que o que succede com os Portuguezes n’esta questão dos descobrimentos. Quando elles os fazem, toda a Europa os applaude, affluem a Portugal aventureiros que querem tomar parte nas nossas expedições, e navegar nas nossas caravelas. Ninguem se lembra de dizer que já sulcaram esses mares, ou que já foram a essas terras. Os Normandos, longe de fallarem em pretenções suas, aconselham a quem queira fazer expedições para esses lados que tome pilotos em Portugal, porque aqui os encontra sabendo bem aquellas derrotas. Os papas concedem-nos o dominio d’essas terras baseado nos direitos de primeiro occupante, os reis de França e de Hespanha, tão ciosos das suas pretenções, reconhecem esse direito sem a minima objecção e até castigam os seus subditos que tentam violal-o, os navegadores de toda a Europa, _os taes que nos tinham precedido_, o que fazem é tentar surrateiramente seguir-nos e apanhar aos nossos pilotos, comprando-os muitas vezes, os segredos da derrota, os cosmographos e os cartographos com os nossos viajantes mantêem relações seguidas, e nas suas relações e nos seus mappas se baseiam para traçar o que já está descoberto e para conjecturar o que não está; tão corrente é na Europa a historia das navegações portuguezas que, estando ainda bem fresca a memoria d’essas primeiras aventuras do mar, e tendo Colombo residido nas ilhas descobertas pelos Portuguezes, allega, quando na sua primeira viagem se quer guiar pelo vôo dos passaros, que foi assim que os Portuguezes descobriram as suas ilhas,[57] e D. Henrique chama para Sagres o cartographo malhorquino Jayme, e comtudo os seus escudeiros ufanam-se de terem descoberto o Rio do Oiro, e com elles se regosija o infante e se regosija o cartographo, sem que este se lembre de allegar que já por um seu patricio, ou por um seu parente, ou por elle mesmo, talvez, como chega a suppor o sr. D. Cesario Fernandez Duro, esse rio fôra descoberto![58] E seculos depois é que apparecem as estultas pretensões de se querer demolir essa gloria toda em proveito de um desconhecido, mas baseadas em tão frivolos argumentos que bastou que o visconde de Santarem passasse uma revista á cartographia da meia edade, ás suas chronicas, aos seus documentos, aos seus tratados e aos seus livros de sciencia, para que a inanidade de semelhantes affirmações se apresentasse com uma evidencia esmagadora! Vão pois os navegadores portuguezes caminho da India que é desde o principio o alvo dos seus esforços. Contam que, antes de chegar ao Equador, voltarão para leste, e ha uma coisa só de que n’esse momento D. Henrique duvida, é que o mar das Indias seja um mar mediterraneo. Se o acreditasse, como bem diz Humboldt, não faria a tentativa. Antes, porém, de se aventurarem para além do cabo Bojador, encontram Gonçalves Zarco e Tristão Teixeira Porto Santo e a Madeira, Gonçalo Velho Cabral os Açores. Muitas vezes os pescadores portuguezes poderiam ter encontrado algumas d’essas ilhas, e possivel era tambem que os nossos navios commandados pelos pilotos genovezes que D. Diniz chamára a Portugal, tivessem arribado a esses archipelagos. Eu mesmo já acceitei um pouco essas doutrinas sustentadas por Major, e a que dava certa apparencia de verdade o modo como Azurara conta o descobrimento. Fil-o, porém, antes de ter estudado mais profundamente a cartographia da meia edade, antes de ter visto como esses cartographos conheciam os phantasticos archipelagos do Oceano Atlantico, e fixavam nos seus mappas as ilhas de S. Brandão, da Antilia, das Almas, do Purgatorio, sonhadas pela imaginação celtica dos povos occidentaes da Europa. Não navegaram os Portuguezes n’um Oceano que imaginavam deserto, mas sim n’um Oceano onde as ilhas pullulavam. Quando a alguma chegavam, não suppunham tel-a descoberto, mas tel-a simplesmente encontrado. Depois de terem descoberto todas, ainda continuaram a procural-as, e hoje mesmo ainda na Madeira se suppõe que a ilha das Sete Cidades se tem conservado escondida, longe das estradas maritimas, por traz de alguma dobra do ainda mysterioso Oceano. Essa ingenuidade portugueza, que serviu depois para os seus detractores, manifesta-se tambem na exploração das costas africanas. Nenhum navegador suppõe que chega a terra desconhecida. Todos imaginam que não fazem senão encontrar terras cuja existencia não era ignorada pela sapientissima antiguidade. Os nomes de Ptolomeu, de Strabão, de Eratosthenes, de Plinio, de Pomponio Mela e de Solino continuam a ser nomes oraculares para aquelles que estão demolindo o castello de cartas da sua vã e ephemera sciencia. Marco Polo está sendo tambem um dos seus idolos. Chegando ao Senegal julgam ter encontrado o Nilo dos Negros, porque estão ainda convencidos da verdade da velha doutrina, que separa o Nilo em dois grandes braços, um dos quaes se dirige para o Atlantico e o outro para o Mediterraneo. O que os espanta e ao mesmo tempo os exalta é o não encontrarem monstros, as ondas tenebrosas, os montes ardentes, toda a guarda avançada da implacavel zona torrida. Para que primeiro arcassem com esses receios foi necessaria toda a energia do infante D. Henrique, mas a pouco e pouco foram-se familiarisando com esses mares que tão terriveis se suppunham anteriormente, e eram elles que davam a fra Mauro as informações tranquillisadoras que elle insere nas annotações ao seu planispherio. No ponto de vista em que nós nos collocamos, e que suppomos ser absolutamente verdadeiro, quer dizer desde o momento que sustentamos que o serviço immorredouro que Portugal prestou á civilisação e á sciencia foi o ter demolido a noção consagrada da zona torrida inhabitavel, e que a prova de sobre-humana audacia que os Portuguezes déram foi a de transpor sem hesitação os limites d’essa zona torrida, percebe-se que nos seria completamente indifferente que se provasse que navegadores estrangeiros tinham precedido os nossos nos mares que ficam para além do Bojador. Isso não faria senão levar um pouco mais adeante o ponto de partida das expedições portuguezas indubitavelmente gloriosissimas, e cuja honra Humboldt confessa que nos cabe sem contestação, as expedições á região equatorial.[59] Mas a verdade irrefragavel é que esse limite, que os Portuguezes transpozeram, foi sem duvida alguma o cabo Bojador. Como Humboldt nota, com perfeita razão, o horizonte geographico vae-se alargando a pouco e pouco, e a verdade é que, uma vez ampliado, não se estreita de novo. Para o lado do occidente os primeiros limites foram os do mar Egeu, depois o do meridiano das Syrtes, depois o das columnas de Hercules, depois para o norte o extremo meridiano da Europa, para o sul o da costa africana.[60] Vemos que a mansão da felicidade suprema acompanhou a ampliação d’esse horizonte, primeiro no Oasis do Egypto, depois na Cyrenaica, depois na costa africana, a pequena distancia das columnas de Hercules, depois nas Canarias. Não ha saltos n’este progresso forçosamente methodico. Logo que se transpõe um limite maritimo a navegação prosegue. Para o sul o cabo Não foi por muito tempo o limite, depois o Bojador. Transpoz-se esse limite em 1433? logo affluiram a Portugal estrangeiros curiosos d’essa novidade, e logo D. Henrique tratou de se assegurar da posse das terras que vae descobrir. Depois da expedição de Antão Gonçalves e de Nuno Tristão em 1441, vão embaixadores portuguezes ao papa Eugenio IV a pedir-lhe as bullas necessarias, e já com Antão Gonçalves na viagem immediata vae o allemão Balthazar, que vem da côrte do imperador Frederico III correr estas novas aventuras.[61] E comtudo desde 1415 se empenhava o infante em explorações maritimas, sem que reclamasse do Papa quaesquer concessões, sem que os estrangeiros se interessassem por essas tentativas infructiferas. Tudo muda de 1433 por deante. Porque? porque se rompera evidentemente mais uma das barreiras que tinham successivamente detido a marcha da humanidade, porque se tinham transposto mais algumas das columnas que formavam o portico do mundo sobre o desconhecido, columnas de Briareu primeiro, columnas de Hercules depois, estatuas das ilhas Khalidat dos Arabes, emfim. Em 1436 chegou Affonso Gonçalves Baldaya ao Rio do Ouro, ou o que elle suppunha que era um rio, e que não era afinal senão um braço de mar, e, dando-lhe esse nome, conformou-se mais uma vez com o respeito pela tradição antiga, que affirmava que para o lado das ilhas Afortunadas, como dizia Pindaro nas suas Olympiadas, rios que conduziam ouro entravam no Oceano.[62] Assim os Arabes davam o nome de rio do Ouro a muitos, situados muito áquem do cabo Bojador, assim os Catalães chamavam rio do Ouro a um rio que encontravam para além do cabo Não e proximo das Canarias, tanto que no proprio mappa em que se affirma que Jayme Ferrer procurara o rio do Ouro, o traçado da costa não vae além do cabo Bojador.[63] Podia haver mais evidente prova de que o Rio do Ouro catalão não é o Rio do Ouro portuguez? Não fallemos sequer em que o Rio do Ouro de Jayme Ferrer é, como o descreve o manuscripto de Genova, com que se pretende dar authenticidade ao facto,[64] um rio largo em que podem fundear náus potentes, emquanto o Rio do Ouro de Affonso Gonçalves Baldaya nem rio é sequer, e n’elle, segundo affirma o almirante Roussin que o estudou hydrographicamente, só canôas podem entrar.[65] Basta vermos que os mappas em que se baseia a pretenção, param no Bojador, como no Bojador pararam os navegantes a quem depois se quiz attribuir a gloria de o ter transposto. Em 1441 descobria Nuno Tristão o cabo Branco, em 1443 os ilheus de Arguim, em 1445 acabava-se de descobrir a costa do Sahará e entrava-se na costa da Senegambia, e n’este meio tempo entravam já em Portugal com abundancia os escravos africanos. Nodoa é esta com que se pretende manchar a gloria dos nossos descobrimentos, como se n’essa epocha em que os proprios brancos ainda tinham, pode dizer-se, roxos os pulsos dos grilhões com que lh’os algemára a servidão da gleba, n’essa epocha em que tinham escravos os proprios mosteiros e as egrejas, se podesse ter ácerca da liberdade do homem as idéas largas que, só uns poucos de seculos depois, e a muito custo, se implantaram na legislação dos paizes mais cultos. E é curioso que sabios escriptores accusem o infante de ter sido o responsavel pela escravatura negra, como se não fosse tão facil ás virtuosas nações, cujo credito elles defendem, eximir-se a seguir tão mau exemplo! como se ao Papa, que representava a suprema lei moral da sociedade de então, não coubesse o dever de conceder as terras, mas de prohibir os escravos! como se não fosse evidente que o mesmo faria qualquer nação que nos precedesse, e que o facto de não apparecerem escravos pretos na Normandia no seculo XIV é mais uma prova contra as suas pretenções! E comtudo a prioridade na escravisação das populações africanas essa é que os Normandos podem reclamar sem contestação, porque, bastantes annos antes de se venderem nas praças de Lagos os escravos da costa africana, já o normando João de Bethencourt, rei das ilhas Canarias, vendêra na Hespanha os seus subditos.[66] Mas o que dominava sobretudo no espirito de D. Henrique era a anciedade da investigação scientifica e o ardor pela conquista dos grandes ideaes religiosos da meia edade, e é isso o que faz com que o espirito do infante só encontre depois na historia dos descobrimentos outro que com elle se irmane—o de Christovam Colombo. Essa allucinação em que ambos vivem é que os torna proprios para emprezas, que só com grande perseverança se podem realizar, e essa perseverança só a encontra quem tem um enthusiasmo absolutamente exclusivo. Quaes são as instrucções que levam sempre os capitães dos navios de D. Henrique? Procurar identificar os rios que descobrem com o Nilo dos Negros, que a geographia systematica dos antigos considerava como um braço do grande rio egypcio que vinha desemboccar no Atlantico. Julgam encontral-o ao ter chegado ao Senegal como depois o imaginam ainda no Niger, e talvez no Zaire tambem. E tão absortos estiveram por muito tempo os Portuguezes no seu respeito cego pelo saber da antiguidade, que ainda foi um piloto portuguez no seculo XVI que procurou commentar e explicar o Periplo de Hannon, sendo o seu commentario na Italia de todos o mais apreciado.[67] No proprio momento em que podiam justamente ufanar-se de sulcar mares nunca d’antes navegados, ainda se escondiam modestamente por traz da sombra de Hannon, o legendario navegador, que, tendo chegado a algumas leguas do estreito de Gibraltar, imaginou logo ter percorrido um immenso espaço de agua![68] O outro desejo ardente do infante D. Henrique era encontrar as terras do Prestes João, esse mytho medieval que tomou mil fórmas, apparecia nas mais variadas terras, até que, ao condensar-se na realidade prosaica, appareceu transformado n’aquelle pobre _negus_ da Abyssinia, symbolo curioso da dissolução dos mythos, que no periodo poetico da humanidade se revestem dos mais extraordinarios esplendores, e que nos frios annos da prosa se reduzem ás mais chatas personalidades. O Prestes João fôra a prolongação pela edade média da lenda da primitiva Egreja Oriental, que déra ao apostolo João, ao discipulo amado, ao evangelista mais querido da imaginação popular, a perpetuidade da existencia. Não acceitou a Egreja a lenda, mas ella permaneceu no Oriente, modificada, fluctuante, desdobrando-se o personagem que é seu protoganista, no apostolo e no presbytero.[69] Talvez porque n’uma das epistolas, conhecidas pelo nome de João, o apostolo, por esse nome se designa este _presbytero João_, que toma em parte o caracter do apostolo, em parte o caracter de um discipulo do apostolo, torna-se, por assim dizer, a gloria e o tormento da Egreja de Epheso; a gloria, porque essa Egreja se ufana de lhe pertencer o personagem privilegiado que herdou do venerado Mestre o amor e a predilecção do céu; o tormento, porque esse personagem é vago, confuso, indefinido, mal visto pela Egreja em geral, e fonte de possiveis heresias. Mas entretanto corria a edade média com a sua louca anciedade pelo advento de um mundo melhor. Não se cumpriam as promessas do christianismo. Não chegára o reinado da justiça. Na terra atormentada por mil flagellos arrastava o homem uma existencia atribulada, calcado aos pés pelos poderosos, faminto, presa a cada instante da peste e da guerra implacavel e atroz. Não chegára a era millenaria, a era sublime em que Jesus voltaria, e em que, rodeiado dos seus martyres, como de uma legião sagrada da fé e do bem, reinaria sobre a terra até que ella desapparecesse subvertida no cataclysmo final. O que nascia, pelo contrario, era a crença desanimadora ao anno Mil, annunciado como o anno em que o mundo acabaria sem ter tido a consolação suprema de vêr o reinado do Bem; mas o anno Mil passou sem trazer comsigo o cataclysmo esperado. Seria afinal verdadeira a promessa do reino millenario, do reino dos martyres, que o Apocalypse de João annunciou? E a idéa d’aquelle Presbytero João, que vive a sua longa existencia nos páramos do Oriente, testemunha millenaria do grande acto da Paixão, fluctúa no animo dos povos. Não será em torno d’elle que se agruparão os bons, os martyres, os fieis, e não será nas suas terras que estará irradiando uma perpetua aurora, tranquilla, suave, toda misericordia e paz, emquanto cá pelo Occidente parece que o sol se afoga todos os dias n’um occaso sanguineo, n’um horizonte perpetuamente em braza, entre os clamores dos miserandos que teem sêde de justiça e o tinir das espadas gottejantes de sangue, o crepitar das chammas dos incendios e o rugido dos mares e as gargalhadas da impiedade? E lá no Oriente, onde existe o Paraizo, começa-se a devanear tambem a existencia de outro Paraizo mais accessivel ao homem, se é que se não confundem n’um só Paraizo aquelle de que o homem foi expulso, e o outro em que o homem ha de entrar, quando lhe franquear a entrada o guarda a quem o confiaram Christo e o discipulo amado. Essa lenda vaga, ou antes essa incerta aspiração, concretisou-se n’uma d’essas obras anonymas em que o sentimento popular se manifesta, em que os devaneios da sua alma são encorpados, desenvolvidos e ordenados por um trovador ignorado, por um narrador mysterioso, que é afinal de contas quem produz verdadeiramente a obra popular, que depois muitas vezes um grande poeta aproveita para uma obra immortal. Assim se formou a lenda do Prestes João com o seu reino de maravilhas, a do Judeu errante, a do dr. Fausto, a de D. João Tenorio, e a de mil outros, que não tiveram outro berço senão a redacção humilde e vulgar de um pobre sonhador ignorado, que desapparece entre o povo, a quem se attribue a gloria da concepção, e a obra do grande poeta que deu á lenda a fórma definitiva e litteraria que a tornou immortal. O modo como esta lenda se formulou foi na redacção de uma carta dirigida pelo Prestes João ao imperador de Roma e ao rei de França e em que lhes contava as maravilhas do seu reino, onde os homens viviam annos quasi infinitos, onde havia maravilhosas riquezas, onde os animaes e as plantas tinham um tamanho descommunal, e onde reinava a paz e a justiça.[70] O que deu origem talvez á carta, ou o que chamou para esse vago personagem do _Presbyter Johannes_ ou _Prestre Jean_ ou _Prestes João_ a attenção dos povos occidentaes, foi a vinda a Roma[71] de um estranho personagem, que se dizia patriarcha das Indias, que da Asia vinha effectivamente, e que dava noticia da existencia n’essas remotas partes, ou na verdadeira India, ou na propria Tartaria, de christãos convertidos por S. Thomé o apostolo, e que eram evidentemente christãos da heresia nestoriana, christãos dos ritos syriacos, sacudidos da Egreja Catholica, mas possuindo aquella tenacidade de resistencia, que faz com que ainda hoje, em pleno regimen papal e catholico, tenham na India os seus prelados e mantenham os seus ritos estes christãos primitivos.[72] Assim parece effectivamente que devia ser: porque na carta do Prestes João diz-se que «cada anno, _quando S. Thomé vinha prégar a quaresma no seu reino_, elle fazia uma peregrinação ao tumulo do propheta Daniel, com dez mil clerigos, outros tantos cavalleiros e duzentos elephantes, que levam, não torres, mas castellos, para exorcismarem e combaterem os dragões que espreitam a caravana na passagem».[73] A lenda do Prestes João localisou-se por conseguinte na India, não, como seria natural, na India verdadeira, mas na India ultima, quer dizer, no extremo Oriente da Asia, onde todas as lendas se refugiavam, a India que ficava para além dos limites das conquistas de Alexandre, e onde o proprio heroe toma tambem um aspecto legendario, como se lhe bastasse tocar n’uma região nevoenta para que o seu proprio vulto em nevoas se envolvesse. Alexandre, já o dissemos, foi para a Europa medieval, como Virgilio, um ente sobrenatural, meio pagão e meio christianisado posthumamente, meio feiticeiro e meio conquistador. É elle, como dissemos tambem, que encerra os povos de Gog e de Magog por traz da famosa muralha, é elle que na sua carta a sua mãe Olympias, carta não menos apocrypha, é claro, do que a do Prestes João, lhe diz que encontrou a arvore do sol e a arvore da lua, e que lhes ouviu os oraculos.[74] É para além do Ganges tambem que os geographos da meia edade imaginaram povos que se sustentam só com o aroma das flores, lenda que vamos ainda encontrar em Camões. É no extremo Oriente que está o Paraizo, e junto do Paraizo, note-se bem, o antro em que S. Macario se escondeu para viver immerso em prece, depois de ter tentado debalde penetrar na morada dos nossos primeiros avós, e foi ahi que o encontraram _um seculo depois_, e sempre orando, tres monges gregos que tinham ido a essas longinquas partes do mundo para tentarem tambem ver o Paraizo de perto.[75] Avisados pelo exemplo de S. Macario, voltaram os tres monges para traz, mas S. Macario lá ficou orando e atravessando, absorto na prece, os seculos sem fim. Vê-se pois que aquelles ares do Paraizo espalhavam ainda nos seus arredores umas fragrancias divinas. Parecia que da eternidade promettida a Adão e Eva tinham ficado uns resquicios para os que do Paraizo se approximassem; era para alli portanto que a imaginação popular levaria o reino paradisiaco do Prestes João. Mas as viagens de Marco Polo vieram dar uma nova physionomia ao mytho do Prestes João, approximando-o da realidade, tornando-o um personagem curioso, mas não rodeiado d’aquelle immenso prestigio anterior. Ou porque effectivamente, como sustenta o grande sinologo Pauthier, elle encontrasse christãos nestorianos na Tartaria, na provincia a que Marco Polo chama Tanduc, que Pauthier identifica com a provincia chineza de Ta-Thung, e esse facto explica-o Pauthier pela entrada de nestorianos persas na Mongolia ou no Thibet, onde teriam feito conversões, e onde effectivamente o soberano chinez lhes permittiu que erigissem um templo, ou porque, como sustentava Stanislas Julien, outro sinologo tambem notavel, Marco Polo tivesse confundido com christãos os budhistas que nas regiões que elle atravessava tinham uma das mais importantes sédes da sua religião, e que ao ver a theocracia do Grão-Lama o imaginasse um padre-rei christão, e o Prestes João por conseguinte, é certo que elle declara ter encontrado christãos regidos por um padre, que descendia em linha recta do Prestes João, que era o seu sexto descendente e que se chamava Jorge.[76] D’elle diz João de Monte-Corvino que o conheceu e o converteu á fé catholica, e Rubruquis tambem declara que na Tartaria encontrou nestorianos que viviam debaixo das leis do Prestes João. Embora tudo o que se narrava nos livros de Marco Polo estivesse envolvido nos véos do maravilhoso, é certo que esta semi-realisação do _Presbyter Johannes_ estava longe de corresponder ao ideal que d’elle se formára. O personagem legendario não encontrava positivamente n’um descendente chamado Jorge, subdito do Grão-Khan e chefe de uma especie de tribu nestoriana, uma encarnação satisfatoria. Continuou portanto a fluctuar por todo o Oriente, e, como de certo havia noticia vaga da existencia de um povo christão para os lados da Ethiopia, foi para esse lado que se transferiu a localisação da lenda, pois que a India, na edade média, como dissemos, abrangia, pode-se dizer, toda a Asia, parte da Ethiopia, e a indeterminação da residencia do rei legendario caracterisava-se bem com a denominação que se lhe dava de Prestes João _das Indias_. Não se imagine portanto que é simplesmente um rei christão perdido no meio da onda musulmana e do paganismo que se procura, o que se procura é o reino maravilhoso das lendas millenarias, é a terra estranha onde tudo floresce com extraordinario viço, onde o oiro, a prata e as pedras preciosas fulguram por todos os lados, onde se vive como que n’um antecipado Paraizo. Procuram-n’o logo na Africa, ao pé de Marrocos,[77] e não havia n’isso contradicção com o nome que se lhe conservava de Prestes João das Indias, porque, segundo a antiga geographia systematica, podia bem ser que a Ethiopia se ligasse com a Asia, e que já n’essas terras ainda proximas de Marrocos principiasse o reino maravilhoso do Prestes João. É essa anciosa curiosidade que domina no espirito dos Portuguezes, é ella que os arroja aos grandes feitos, ás pertinazes investigações. Como das investigações astrologicas com as quaes se procurava ler nas conjuncções dos astros o segredo dos destinos humanos saía a astronomia, como nas locubrações dos alchimistas se foram desvendando os segredos da chimica, assim na procura ardente do reino do Prestes João se foi desvendando, por tantos seculos escondido, o segredo da geographia africana, o da sua fauna, da sua flora e da sua ethnologia. Logo n’uma das primeiras viagens um audacioso portuguez, João Fernandes, se internou no sertão africano, e por lá andou mezes inteiros, convivendo com os indigenas, aprendendo a sua lingua, estudando os seus costumes.[78] Devia-lhe ter corrido um calafrio nas veias quando abandonou os seus companheiros para se immergir no desconhecido. Ia encontrar talvez os povos monstruosos da tradição scientifica, os troglodytas, os himantopodas, os virgocosgigs, e ao lado d’elles os dragões de terrivel aspecto e o basilisco de halito pestifero, passeiando pelos mattos meio inflammados a sua estranha corôa de horrifico soberano. Era perfeitamente um cavalleiro andante que se arrojava a um mundo encantado, como esses heroes de novellas de cavallaria que ousavam emprehender as mais incomprehensiveis façanhas. Mas tudo elle ousava para conseguir chegar emfim ás terras paradisiacas em que o Prestes João reinava, e, quando elle voltou, depois de longos mezes, não trazia noticias nem de monstros horrendos, nem de reinos maravilhosos, mas trazia, o que valia mais que tudo isso, o conhecimento exacto da Africa interior, a revelação para a sciencia de um mundo ignorado, de arvores soberbas, que não eram a phantastica _mandragora_, mas o baobah agigantado e verdadeiro. Supprimia a flora sobrenatural, mas ampliava os dominios da flora verdadeira; acabava com a fauna phantastica, mas alargava os dominios da zoologia verdadeiramente scientifica. E, da mesma fórma que os alchimistas, ao procurarem nas suas longas vigilias a pedra philosophal, encontravam o segredo das combinações chimicas, assim estes audazes alchimistas do Oceano, ao procurarem o Prestes João, que era a pedra philosophal dos sonhos geographicos da meia idade, encontravam um mundo inteiro, que valeu mais para a riqueza scientifica e para a opulencia do commercio do que todos os reinos fabulosos banhados por phantasticos Pactolos e scintillantes de oiro e de pedraria. Quando o infante D. Henrique morreu, já os Portuguezes tinham conhecido o cabo Branco e o cabo Roxo, e o cabo Verde e as ilhas que d’este cabo tomaram o nome, e os rios Senegal e o Gambia e o Casamansa. Os terrores da zona torrida tinham desapparecido, posto que se não tivesse chegado ainda ao Equador, mas era evidente já que o mundo não alterava o seu aspecto com a approximação da equinoxial, e que os monstros não existiam senão na imaginação dos geographos, que se não encontrava senão a variante negra da raça humana, e que os novos passaros que appareciam, depois classificados pelos zoologos como _remora_, _phenicoptero_, _bucerus_ _africano_ ou _pristis_, enriqueciam as collecções ornithologicas, mas não a teratologia. E estas conquistas positivas deviam-se ao enthusiasmo e á sede do ideal. Nada se faz grande no mundo sem esse grão de loucura, que desequilibra um pouco o genio dos grandes poetas e dos grandes descobridores. A pedra philosophal transmuda deveras o cobre vil em oiro, porque é ella, como symbolo de todos os ideaes phantasticos, que faz da quebradiça argila de que se formou o homem o bronze em que se fundem os ousados pensamentos, que transforma no oiro das grandes almas o minerio banal dos espiritos vulgares. E era exactamente o que havia de estranho e de louco nas expedições portuguezas que chamou para aqui os aventureiros e os ousados. Os Venezianos como Cadamosto, os Genovezes como Usodimare, vem aqui buscar simplesmente emprego para a sua actividade de marinheiros; os Malhorquinos como Jayme de Malhorca vem para um centro de actividade scientifica, mas esse Valarte que vem do fundo do Norte, das remotas regiões da Suecia, vem em demanda do ideal, esse loiro Scandinavo, que traz no olhar o azul dos seus lagos e no rosto a candidez das suas neves, vem procurar a estas regiões de aventura a barca dos cysnes dos Eddas que o ha de levar atravez dos mares da lenda ás regiões dos sonhos. Para esses e para muitos outros Portuguezes, como o velho Soeiro da Costa, como esse Alvaro de Freitas que tanto acaricia a idéa de ver de perto o Paraizo terreal,[79] é um romance de cavallaria que se está pondo em acção na patria de _Amadis de Gaula_. São os Templarios resuscitados que investem com o mar como os Templarios antigos com as ondas dos sarracenos, e o manto branco da ordem de Christo que fluctua ao sopro do vento, e a bandeira com a cruz vermelha que palpita na popa das caravelas com os bafejos do Oceano são os ultimos symbolos d’esse idealismo da idade média cavalheiresca que vae dissolver-se na epocha burgueza que já apparece no horizonte dos tempos. E esse rijo cavalleiro, ascetico, tenaz, que do alto do promontorio de Sagres lança os seus legionarios á conquista do desconhecido, ao cair prostrado pela morte, sem ter ainda encontrado o edeal que lhe absorvera a existencia, desapparece da scena do mundo, deixando resolvido um dos grandes problemas da existencia humana na terra, no mesmo momento em que outro cavalleiro andante, esse deveras o ultimo, Christovão Colombo, o Genovez, já vagueia, sonhador e pensativo, nas praias do Mediterraneo, escutando esse rumor de gloria e de aventura que vem do Occidente, e revolvendo na imaginação juvenil a solução de outro problema geographico, que ainda ficava em aberto, e que ia dar ao homem emfim a Terra inteira por dominio. VII Preludios açorianos e madeirenses do descobrimento da America Emquanto os Portuguezes proseguiam intrepidamente para o sul no caminho da zona torrida o que se fazia para o Occidente? Era possivel, era natural, que a descoberta do Porto Santo, da Madeira e dos Açores satisfizesse completamente a curiosidade portugueza? Os que defendem as duas versões ácerca do descobrimento dos dois archipelagos commettem uns e outros um erro capital; uns suppondo que os Portuguezes não os encontraram senão porque antes d’elles lá tinham aportado outros navegadores, de cujas informações os nossos se aproveitaram, os outros imaginando que antes das descobertas portuguezas se considerava como completamente vasia de ilhas a vasta extensão do Atlantico. Descobertas positivas não as podia ter havido, porque ás terras que podessem ter-se descoberto aconteceria o que succedeu ás Canarias, que logo foram cubiçadas e disputadas. O que havia era o sonho celtico das ilhas mysteriosas no seio do Atlantico, e em busca d’esse sonho quantos navios teriam corrido, sem que das suas tripulações voltasse ás costas européas nem sequer o cadaver do cão da frota legendaria de Brékan. Mas essas ilhas phantásticas estavam profundamente radicadas no animo dos homens da edade média, e a ilha de S. Brandam tinha para elles existencia tão real como o reino mysterioso do Prestes João. Ah! quem a encontrasse, quem arribasse a uma ilha qualquer no meio da vastidão dos mares, como voltaria contente e triumphante do seu achado, doido de alegria por ter conseguido emfim fixar n’um ponto do Oceano alguma d’essas ilhas que fluctuavam no mar da lenda, filhas da miragem do mar como da miragem do sonho; ilhas phantasticas como o navio phantasma da lenda hollandeza, que todos suppunham avistar ao longe, recortando na tela de oiro e purpura do horizonte o fino perfil das suas arvores, ou a ondulosa curva das suas montanhas! Deserto o Oceano? Não. Estava povoado, pelo contrario, de muito mais ilhas do que as que se encontraram! E quando o infante D. Henrique mandou os seus navegantes procural-as, é porque tinha a convicção profunda de que existiam, e os seus audazes marinheiros o que julgavam era seguir o sulco espumoso do barco do santo irlandez, como quando seguiam, segundo a phrase de Colombo, o vôo das aves que os conduziam a terra, cuidavam seguir talvez, alados mensageiros celestes que os conduziam ás ilhas de promissão, ou pelo contrario demonios encarnados em passaros, que os arrastavam ás ilhas infernaes. Os que trazem com ufania, como uma conquista para a historia, a lenda da ilha da Madeira descoberta antes de Zarco, ou a dos Açores antes de Velho Cabral, partem da errada supposição de que esses ignotos descobridores deram grande novidade aos Portuguezes dizendo-lhes que havia ilhas no Oceano! Bem convencidos estavam d’isso, mas a questão era encontral-as. Feliz o paiz que as descobrisse! Não as largava facilmente! A posse tranquilla e indisputada da Madeira e dos Açores prova bem que ninguem punha em duvida o direito de prioridade que os Portuguezes se arrogavam. O que faziam porém os colonos d’essas novas ilhas, tudo gente marinheira e aventurosa, que não ficava socegada no pequeno pedaço de terra em que se achava confinada? N’elles se condensava, pela sua posição especial, pelo espirito mais aventuroso que a essas ilhas os levou, a tendencia emigrante dos Portuguezes. Não é essa tendencia a que ainda hoje domina nos habitantes d’essas ilhas? Não foram sempre os Madeirenses e os Açorianos os que predominaram na colonisação portugueza? Não foram elles, sobretudo, que fizeram o Brazil colonial? Não são os Açorianos quasi exclusivamente os Portuguezes que vamos encontrar na America do Norte, em Boston, e até na California, e, o que é mais estranho ainda, á beira da rede dos lagos que separam os Estados Unidos do Canadá, sendo tão numerosa a colonia portugueza de Erié, que alli se publica um jornal portuguez, chamado o _Erié_ tambem? Não são os Madeirenses que nós vamos encontrar em Demerara, nas ilhas Sandwich, e que estão formando, em Angola, o nucleo das colonias do plan’alto de Mossamedes? E se isto acontece hoje, no nosso periodo de decadencia, de repouso, quando esse instincto emigrante é perfeitamente atavico—não era bem natural que acontecesse de um modo muito mais independente n’esse periodo de vigor e de febre descobridora, e quando os que habitavam a Madeira e os Açores não eram os que lá tinham nascido, mas sim os proprios que as tinham descoberto, ou os que primeiro, idos de Portugal, as tinham colonisado? Na descoberta africana logo encontramos os Madeirenses. Entre os mais audaciosos descobridores conta-se Alvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves Zarco, e com elle o seu companheiro de seu tio no descobrimento do archipelago, Tristão Vaz Teixeira.[80] E acabemos por uma vez com a accusação que se nos fez de que nos limitámos a uma navegação costeira, e de que receiavamos sair para o mar alto! Como se pode dizer isso de um povo, cujos primeiros descobrimentos exactamente no mar alto é que se fazem, cujos _coups d’essai_ são as viagens em que encontram a Madeira e sobretudo os Açores, cercados de um mar tempestuoso e terrivel, ainda hoje considerado como o de mais aspera educação para o marinheiro, e que estão mais avançados para o occidente do que a propria Islandia, essa _ultima Thule_, onde parou por tanto tempo amedrontada a navegação antiga? Mas, percebe-se bem que, desde o momento que o fito das viagens portuguezas era chegar á India torneando a Africa, desde o momento que a geographia systematica dos antigos lhes dizia que logo abaixo de Marrocos principiava a Ethiopia, e que a costa logo fazia uma inflexão para léste; era essa volta da costa que elles sobretudo procuravam encontrar, e decerto não a encontravam abandonando a costa. E, comtudo, quantas vezes, fatigados d’essa investigação inutil, soltavam os nossos navegadores as velas ás brizas do Oceano, e percorriam de um vôo um grande espaço, chegando a um ponto muito adiantado da Africa e tendo depois de voltar atraz para explorar miudamente o trato de costa que tinham deixado em branco![81] Navegadores do seculo XV não podiam positivamente achar-se confinados nos estreitos limites de umas ilhas perdidas no meio do Oceano, sem terem a tentação irresistivel de sondar esse mar mysterioso, sobretudo quando a lenda confirmada pela sciencia conjectural d’esse tempo lhes fallava de ilhas maravilhosas a que não tinham chegado ainda, e quando as vagas do Oceano lhes traziam a cada instante a prova evidentissima de que para além d’esse horizonte branqueado pela espuma das vagas distantes, havia terras, terras habitadas, terras cobertas de vegetação. Sobretudo nos Açores os documentos multiplicavam-se e as tentações eram mais fortes. As ilhas não se apinhavam n’um só grupo como Madeira e Porto Santo. Havia ilhas destacadas como as vedetas d’essa guarda avançada da civilisação europea. Ainda se perceberia que taes tentativas se não fizessem, se não se houvesse chegado á ilha das Flores e á ilha do Corvo. Podia-se comprehender então que, satisfeitos com as ilhas paradisiacas que tinham encontrado, como a deleitosa S. Miguel, ou a fertilissima Terceira, se tivessem deixado ficar n’um ocio de Capua, sentimento aliás bem pouco natural em açorianos, e em açorianos d’esse tempo. Mas a descoberta do Corvo e da ilha das Flores mostram claramente que se não acalmára a sua irrequieta actividade, e que o Oceano continuava a ser sondado por esses audazes marinheiros, que são hoje accusados de não ousarem arriscar-se ás aventuras do alto mar! «A Islandia, os Açores, e as Canarias, diz Humboldt, são os pontos de paragem que mais importante papel representaram na historia d’estas descobertas e da civilisação, quer dizer na série dos meios que os povos do Occidente empregaram para estender a esphera da sua actividade e para entrar em relação com as partes do mundo que lhes tinham ficado desconhecidas.» Em nota accrescenta Humboldt: «Ha da extremidade septentrional da Escocia á Islandia 162 leguas marinhas; da Islandia á extremidade sudoeste da Groenlandia 240 leguas; d’esta extremidade ás costas do Lavrador 140 leguas; á embocadura do S. Lourenço 260; da Islandia directamente ao Lavrador 380 leguas. _Ha de Portugal (embocadura do Tejo) aos Açores (S. Miguel) 247 leguas_; dos Açores (Corvo) á Nova Escocia 412 leguas!»[82] É isto o que explica de um modo bem positivo como foi que os intrépidos marinheiros da Islandia poderam encontrar a America, e não a poderam encontrar os não menos intrépidos marinheiros dos Açores. É isto o que responde, de um modo bem cathegorico, tambem, aos que dizem que os Portuguezes não largavam as costas. Um povo que nas suas primeiras viagens percorria 247 leguas maritimas para encontrar um ponto perdido no meio do Oceano, e que o fixava, e que n’essas ilhas ou proximas ou distantes estabelecia colonias regulares e em constante communicação com a metropole, era um povo que se encontrava bem mais apto do que outro qualquer para as grandes navegações maritimas, era um povo que os pavores do Oceano não obrigariam a desistir de tentar novas emprezas. Ah! se a Providencia, em vez de ter agrupado os Açores n’um só ponto, destacando apenas como sentinellas avançadas as Flores e o Corvo, as tivesse disseminado por toda a extensão do Atlantico, fazendo de todas ellas os marcos milliarios d’esse vasto percurso maritimo, como foram as Orcades, as Feroé, a Islandia e a Groenlandia para o continente norte-americano, seria talvez Colombo, mas Colombo em navios portuguezes, que teria realizado a empreza que de tão justa gloria rodeiou o seu nome. Mas razão tem de sobra o nosso illustre patricio, o eminente escriptor Ernesto do Canto, quando diz: «Foi certamente com a pratica da navegação para os Açores que os pilotos portuguezes se aperfeiçoaram nos processos de observar os astros para d’essas observações deduzirem a sua posição nas solidões do Oceano ou das terras que demandavam. Sem esta escola todo o progresso seria lento. A existencia e o achado do archipelago açoriano foi pois a causa determinante das posteriores e importantes descobertas do seculo XV.»[83] E razão tem ainda quando encima o capitulo IV da sua obra com esta affirmação justiceira: «Os Açores foram um posto avançado para a descoberta da America e um fóco de irradiação para as explorações maritimas.»[84] Como podiam os açorianos pois desprender a sua attenção d’essas terras do occidente se ellas a cada instante se faziam lembradas, arrojando-lhes troncos de arvore, pedaços de madeira lavrada, canoas e até cadaveres de homens de estranha physionomia?[85] Era o que succedia tambem na Irlanda, e o que tambem incitava os Irlandezes a procurar essas mysteriosas terras. Note-se, porém, que as circumstancias eram um pouco differentes. O genio aventuroso e emigrante dos celtas da Irlanda podia-os levar, e levava-os effectivamente, a navegar para os lados occidentaes; em todo o caso os Irlandezes estavam na sua patria e na sua casa, viviam na terra em que tinham nascido, prendiam-se ao solo por estas mil raizes tenues e poderosissimas que reagem insensivelmente contra o espirito de aventura, emquanto que esses primeiros colonos dos Açores, transplantados do solo natal, arrastados alli pelo desejo de tentar fortuna, achavam-se já elles proprios em plena aventura, estavam fundeados no meio do Oceano, e emquanto esse navio, porque até as agitações vulcanicas das ilhas faziam com que o solo lhes palpitasse debaixo dos pés como a tolda de uma embarcação, se não tornava para elles uma nova patria, estavam promptos sempre a saltar para as lanchas e a ir demandar nova poisada. Succedia um pouco a mesma coisa aos Madeirenses, mas esses, mais proximos da Africa, menos mettidos pelo Oceano, para a Africa, que era a grande e exclusiva preoccupação portugueza, voltavam naturalmente a attenção e os esforços. Os Açorianos, destacados perfeitamente do grande corpo de exercito, fóra da corrente das navegações methodicas que o infante D. Henrique dirigia, para o occidente e só para o occidente deixaram voar as suas aspirações. É a prova d’isso que nós encontramos no proprio Herrera quando dá conta das revelações que incitaram Colombo a intentar a sua empreza. Foi a narrativa do piloto açoriano Martim Vicente, que, navegando a 450 leguas da costa de S. Vicente, encontrou boiando nas aguas um pedaço de madeira lavrada; foi a dos mareantes, que, saindo do Fayal, correram 150 leguas ao occidente, e que, voltando, encontraram a ilha das Flores. E, como n’um escripto publicado ultimamente na _Illustracion española y americana_ se tratava com desdem este facto, alcunhado até de phantastico, paremos um instante para mostrar a sua perfeita authenticidade. Foi Herrera que escreveu o seguinte: «Uno llamado Diogo de Tiene (_Teive_), cuyo piloto Diego Velasques vezino de Palos, afirmó a Don Christoval Colon, en el monasterio de Santa Maria de la Rabida, que se perdieron de la isla del Fayal, y que anduvieron cento y cincuenta leguas por el viento Leveche, que es el Sudueste; y que á la buelta descobriron la isla de las Flores, guiandose por muchas aves que vian boiar házia allá, las quales conocieron que non eran marinas.»[86] Lembram-se os leitores de que o proprio Christovam Colombo, no seu _Itinerario_, quando diz os motivos porque mudou em certa altura o rumo da sua viagem, refere que o principal foi o exemplo dos Portuguezes, que, seguindo o vôo das aves, tinham descoberto as suas ilhas. Mas temos mais, temos o documento authentico que mostra que foi effectivamente esse Diogo de Teive que descobriu a ilha das Flores. É a carta de doação da ilha das Flores a Fernão Telles, feita por D. Affonso V em Estremoz a 28 de janeiro de 1475, e onde diz: «Outrosim nos praz e queremos que o dito Fernão Telles tenha e haja e assim seus successores as ilhas que chamam das Flores _que pouco ha que achára Diogo de Teive e João de Teive seu filho_, e elle dito Fernão Telles ora houve por um contracto que fez com o dito João de Teive, filho do dito Diogo de Teive que as ditas ilhas achou e tinha, e isto n’aquella forma com aquellas condições e maneira que as elle houve do dito João de Teive e que ficaram por morte do dito seu pai e no dito contracto é contheúdo.»[87] Mas os documentos não faltam para provar a actividade febril com que os Açorianos se arrojavam ao mar Oceano. N’essa mesma carta de doação se vê que Fernão Telles era um dos exploradores ou dos emprezarios d’essas explorações: «A nós praz, diz El-Rei, que indo elle ou mandando seus navios ou homens nas partes do mar Oceano ou alguem que por seu mandado a isso vá, lhe fazemos mercê, pura e irrevogavel doação para todo o sempre, como logo de feito fazemos, de quaesquer ilhas que elle achar ou aquelles a que as elle mandar buscar novamente e escolher para as haver de mandar povoar, não sendo pois as taes ilhas nas partes de Guiné.»[88] Felizmente os documentos publicados pelo sr. Ernesto do Canto lançam vivissima luz n’este periodo preparatorio do descobrimento da America, e explicam com uma clareza perfeita as questões relativas a Colombo e a Portugal. Assim vemos primeiramente que os Açorianos e os Madeirenses não deixam de procurar terras para o occidente, e que tratam de obter do governo as concessões necessarias para que das suas conquistas e descobertas tirem a utilidade que desejam; segundo que os reis se mostram prodigos em fazer a esses exploradores todas as concessões desejadas, comtanto que do real thesouro não tenham de gastar nem mealha, e que esses exploradores por conta propria não vão entender com os descobrimentos para o lado da Guiné, que esses reservam-n’os para si ou para a ordem de Christo os soberanos portuguezes. E tão arraigado estava no espirito dos soberanos o desdem pelas viagens occidentaes que, ainda depois de descoberta a America, o proprio Gaspar Côrte-Real fez a viagem em que descobriu a Terra-Nova completamente á sua custa. Vejamos então a fórmula das concessões dos reis: Temos em primeiro logar a concessão feita a 21 de junho de 1473 a Ruy Gonçalves da Camara, filho segundo de João Gonçalves Zarco, o qual manda dizer a el-rei, segundo na carta se diz, «como o seu desejo e voomtade era buscar nas partes do mar ouciano huumas ylhas para as aver de povorar e aproveytar». E o rei declara-lhe que «de huma ilha que elle perssy ou seos navyos achar, com outorga e prazer do principe meu sobre todos muyto prezado e amado filho, pura e yrrevogavell doaçom valledoyra amtre vivos, jure erdatore pera elle e todos seus erdeyros que delle decemderem assy e tam compridamente como ella a noos perteemce e de dereyto pertemcer deva e esto com todollos foros dereytos e trebutos em ella em qualquer tempo a nos poderiam perteemcer despoys que povoada seja sem acerqua de nos ficar cousa algua. E como sse começar a povoar logo lhe fazemos mercee de toda a jurdiçom civell e crime mero misto ymperoi em todallas pesoas que em ella morarem e a povoarem ressalvando somente pera nos alçada de morte ou talhamento de membros nos feitos crimes porquanto queremos e nos praz que em todo o all assy civel como crime elle aja todo sem superioridade algua. E per os homens teerem mays rezom de a hyrem povoar a nos praz que todollos vezinhos e moradores em a dita ylha ajam todollos privillegios liberdades e framquezas que per nos e nossos antecessores sam dados e concedidos e outorgados aos vezinhos e moradores da ylha da Madeira que ora he do dito duque meu muyto prezado e amado sobrinho dos quaes queremos que gouvam os vizinhos e moradores em ella fazendo certo dos privilegios da dyta ylha da Madeyra e pruvica escriptura. E per esta presemte damos licença e logar ao dito Ruy Gonçalvez a que assy fazemos mercee da dita ylha que possa dar forall aos que a ella forem morar e a povoarem. O qual forall que lhe elle assy der queremos que seja firme e valha como sse per nos lhe fosse dado e outorgado e per elle sejam obrigados todos aos juizes, e justiças, officiaes e pessoas fazer comstranger os moradores e povoadores della como os comstramgeriamos per lex e ordenações nossas que per assi teer pera ello nossa autoridade, nom menos vigor deve a teer aver como se per nos fosse fecto».[89] Vimos que a carta de doação a Fernão Telles tambem lhe confere a posse das ilhas que descobrir, mas logo em seguida a essa carta vem outra de 10 de novembro de 1475, em que se dão umas explicações bem proprias para esclarecer as navegações d’esse tempo, e destruir completamente as mesquinhas duvidas postas ácerca da prioridade dos descobrimentos portuguezes no Atlantico por extrangeiros que só muito superficialmente estudaram a historia portugueza. Na carta de 28 de janeiro não se falava senão em ilhas que Fernão Telles mandasse povoar, e então o rei explica: «E poderia ser que em elle as assi mandamdo buscar _seus navios ou jente achariam as sete cidades ou alguuas outras ilhas poboadas que ao presemte nom som navegadas, nem achadas, nem trautadas per meus naturaaes_ e se poderia dizer que a mercee que lhe assi tenho fecto nom se deve a ellas estender per assi serem poboadas.»[90] E declara então que a mercê tambem a essas se estende e que dá a Fernão Telles sobre os habitantes d’essas ilhas os mesmos direitos que lhe concede sobre os povoadores que elle mandar para as ilhas desertas. O que se vê d’aqui? Vê-se que os Portuguezes procuravam muito ingenuamente no Oceano as ilhas que a phantasia dos cartographos estampava nos mappas, que tinham viva crença na existencia verdadeira da ilha das Sete Cidades e na ilha de S. Brandão, e da Mayda e da Mão de Satanaz, da Antilha e da ilha do Brazil, e em todas as que nos mappas appareciam, filhas das conjecturas da geographia medieval ou antiga, e, se effectivamente as encontrassem, longe de quererem fazer suppor ao mundo que tinham encontrado terras cuja existencia era de todos desconhecida, se ufanariam de ter achado o que no mappa se designava, e a descoberta das ilhas desertas e vulcanicas dos Açores, e da propria ilha da Madeira toda coberta de bosques não era para elles senão um desapontamento, porque as ilhas que elles cubiçavam, as ilhas celebres, as ilhas dos mappas, essas fugiam-lhes constantemente das mãos. Que espanto seria o d’esses navegadores, e dos seus contemporaneos se podessem ter conhecimento das duvidas modernas! Como achariam extranho que se lhes dissesse que só encontraram os Açores, porque a posição dos Açores estava indicada nos mappas, quando elles levaram annos a passar de umas para as outras ilhas que teriam n’uma só viagem encontrado se fosse pelos taes mappas que se guiassem![91] e como o infante D. Henrique ficaria surprehendido ao ver Humboldt encontrar a prova do conhecimento anterior dos Açores no facto d’elle ter dito a Gonçalo Velho Cabral, depois da descoberta das Formigas, que voltasse porque havia de encontrar nas suas proximidades uma ilha! muitas ilhas era o que deveria dizer-lhe, visto que o mappa lhe dava um archipelago. Como se espantaria de que um homem de sciencia como Humboldt não percebesse que o descobrimento de uns recifes como as Formigas com muita probabilidade indicava a proximidade de terra! Mas o grande espirito do sabio allemão estava evidentemente coberto com a nuvem do preconceito. Assim vemos que o sonho das terras para o occidente e o sonho das ilhas do mar Oceano provocou a mente dos açorianos e dos madeirenses a arrojar-se ás perigosas aventuras. O rei facultava aos aventureiros tudo o que elles podiam desejar, menos dinheiro. A Guiné e o caminho para a India por esse lado eram a preoccupação constante do governo portuguez, que em todas as cartas estabelece bem o principio de que elle faz todas essas concessões, comtanto que as ilhas descobertas não fiquem nos mares da Guiné. Basta a leitura d’estas cartas para que se veja a impossibilidade do legendario descobrimento da Terra Nova por João Vaz Côrte Real, com que se tem procurado attenuar a gloria de Colombo. Percebe-se logo que o governo portuguez não podia dar a capitania da ilha Terceira em recompensa a quem descobrisse a Terra Nova, quando o que elle promettia aos descobridores era simplesmente a capitania das terras que descobrissem como fizera com a ilha da Madeira. E seria singular tambem que o descobridor de uma nova ilha, em vez de receber a capitania d’essa ilha e de a povoar e aproveitar, a abandonasse completamente e recebesse como premio d’esse descobrimento inutil a capitania de uma ilha já povoada e aproveitada, isto quando em 1473 o rei D. Affonso V, deferindo o requerimento de Ruy Gonçalves da Camara, dizia: «E visto per nos sseu requerimento e por que a nos perteemce primcipalmente as cousas desertas e nom aproveytadas fazer povoar e aproveytar pelo carrego que per deos nos he dado emquamto per sua graça tinhamos o regimento destes rregnos e senhorios que teemos». Veremos no capitulo immediato como era absurdo que o rei fizesse a Toscanelli perguntas ácerca do problema do occidente no mesmo anno em que João Vaz Côrte Real lh’o resolvia quasi, e como é mais absurdo ainda que D. João II, rei habilissimo e zeloso do seu dominio, estabelecesse no tratado de Tordesillas um artigo transitorio que sacrificava, sem uma palavra de cedencia ao menos, terra descoberta por Portuguezes; agora mostraremos apenas que tudo é falso no que se allega com relação ao descobrimento de João Vaz Côrte Real. A falta de seriedade historica do auctor da _Historia Insulana_, Antonio Cordeiro, não deixára de impressionar os que mais se interessavam por essa reinvidicação portugueza, mas reanimava-os um pouco o verem que a noticia já Antonio Cordeiro a encontrára em Gaspar Fructuoso, auctor das _Saudades da terra_; mas Gaspar Fructuoso pertence tambem ao grupo d’aquelles historiadores que entendem que são licitas as mentiras quando d’ellas pode resultar a glorificação de um paiz, principio leviano contra o qual protestamos quando Villaut de Bellefond o aproveita contra nós e em beneficio da Normandia, mas que nos parece bem quando redunda em nosso favor. Gaspar Fructuoso, apesar de ter um merito superior ao do seu desastrado copista que outra coisa não é Antonio Cordeiro, não deixa de ser um auctor que acceita todas as lendas quando as reputa honrosas para os seus heroes.[92] Ora Antonio Cordeiro diz que em 1464 foram dadas as capitanias da ilha Terceira a Alvaro Martins Homem e João Vaz Côrte Real como recompensa da descoberta da Terra do Bacalhau que por ordem regia tinham effectuado. Em primeiro logar não era o rei que dava as capitanias dos Açores que pertenciam ao donatario seu irmão D. Fernando; em segundo logar a doação da capitania de Angra é feita pela _infanta D. Beatriz, viuva de D. Fernando_, a 2 de abril de 1474, nem ella a podia ter feito em 1464, porque então ainda vivia seu marido; em terceiro logar a infanta o que recompensa são «os serviços que João Vaz Côrte Real, fidalgo da casa do dito senhor meu filho, fez a seu padre que Deus haja, depois a mim e a elle»;[93] em quarto logar Alvaro Martins já tinha uma capitania da ilha Terceira muito antes de João Vaz, tanto que a carta de doação a Alvaro Martins, em 17 de fevereiro de 1474, allega o seguinte motivo: «Considerando eu como entre Jacome Bruges e Alvaro Martins, _capitão da sua ilha Terceira de Jesus Christo_, sempre houve alguns debates por a terra da dita ilha não se ter de todo partida...»[94] Gaspar Fructuoso o que diz simplesmente, e n’um capitulo inçado de erros historicos evidentissimos, recheado de lendas, e em que parece até que ignora a existencia do grande Gaspar Côrte Real, é que, «vindo João Vaz Côrte Real do descobrimento da Terra Nova dos Bacalhaus, que por mandado de el-rei foi fazer, lhe foi dada a capitania de Angra da Ilha Terceira e da Ilha de S. Jorge.»[95] Sem nos alongarmos em considerações basta que citemos os seguintes documentos: a carta de doação de 12 de maio de 1500, em que D. Manuel concede a Gaspar Côrte Real as terras que descobrir, _per sy e a sua custa... por ho asy querer fazer com tanto trabalho e perigo_,[96] e a carta de doação de 17 de setembro de 1506, que transfere para Vasco Annes Côrte Real a doação da Terra Nova, «avemdo respeyto e lembramça como o _dito Gaspar Corte Real seu irmão ffoy o primeiro descobridor das ditas teras_.»[97] O que se deprehende de tudo o que diz Gaspar Fructuoso é que João Vaz Côrte Real era nos Açores um heroe legendario, um forte e um intrepido. Formara-se a lenda em torno d’elle. Pae de uma familia de navegadores, foi de certo navegador elle mesmo. Como tantos outros dos seus patricios, procurou tambem talvez, como elles, desvendar os segredos do occidente, mas voltou sem ter encontrado novas ilhas e novas terras. Teria ido talvez mais longe do que Diogo de Teive, que chegou a cento e cincoenta leguas ao occidente do Fayal, mas, se o fez, desanimou tambem e voltou sem encontrar a cubiçada terra. Foi mais feliz seu filho, e mais feliz porque o exemplo de Colombo pozera termo aos desanimos, e se nova prova fosse necessaria basta lembrarmo-nos que Martim de Behaim, o famoso geographo, que acariciou ardentemente o mesmo ideal de Colombo, que tudo queria saber do que se passava para o occidente, que viveu nos Açores em alta situação, que alli trabalhou, pensou e elaborou os seus trabalhos geographicos, ao fazer o globo de Nuremberg, em 1492, n’elle não inseriu a Terra Nova dos Bacalhaus, apesar de se não esquecer de inserir as ilhas phantasiadas. É no meio d’este grupo de marinheiros intrepidos, devorados da curiosidade do Oceano, que não pensam senão nas suas secretas maravilhas, que não sonham senão com prestigiosas terras, cercadas por todas as miragens do mar e por todas as miragens da phantasia, por todas as confidencias mysteriosas que as correntes pelagicas lhes trazem de remotos mundos, é n’este synhedrio de pilotos que não ignoram o que dizem os livros, mas que sabem sobretudo o que diz o livro immenso do mar, que apparece de subito a figura pensativa e ardente de Christovam Colombo. N’essas torres de atalaya, como que erguidas pela natureza no seio dos mares, debruça-se a mirar sofregamente o Oceano o rosto ardente do Genovez. Era o homem providencial, um d’estes homens em que se incarna fatalmente a idéa que fluctúa sobre uma geração revolvida pela ancia do desconhecido no mundo physico ou no mundo moral. Se o problema do Occidente preoccupa já todos os espiritos na Europa, nos Açores e na Madeira apresenta-se com dobrada intensidade. Não volta um navio do occidente que não se trate logo de saber se traz comsigo a noticia de um novo descobrimento. Por uma coincidencia singular quasi ao mesmo tempo apparece nos Açores um homem intelligente e sabio, Martim de Behaim, que se sente tambem arrastado pela invencivel convicção de que ha terras para o lado do occidente, e que é por alli o verdadeiro caminho da India. Esse homem tem na sua vida singulares relações com a de Colombo. Este casou com a filha do donatario de Porto-Santo, aquelle com a do donatario do Fayal; um foi á Guiné nos navios portuguezes, o outro foi em navios portuguezes até ao Zaire. Mas um é allemão, um diplomata, um burguez, um discipulo correcto e regular de um dos maiores sabios da Europa, Regiomontanus; o outro é um italiano, um sonhador, um irregular, um estudante incompleto. O primeiro encontra facil accesso junto aos principes e nas universidades, o outro não acha muitas vezes nos altos logares senão repulsas e desdens; mas este é um perseverante, um ardente, um allucinado, o seu convencimento é uma paixão que o absorve, que o devora. O que actua n’elle não é tanto o raciocinio como a visão. A alma do infante D. Henrique parece renascer n’elle. Passou de Sagres para o Porto-Santo o vulto do asceta. Secularisou-se apenas; já não é o monge militar, é o cavalleiro andante, mais affectivo, mais dulcificado pelo seu conhecimento do amor, mas tendo a mesma paixão pelos ideaes da fé e da sciencia. E como sempre são estes inspirados os que attraem por um magnetismo indizivel as idéas audaciosas que fluctuam no ar, como em D. Henrique se incarnaram todas as aspirações de um mundo que anceia por quebrar as grades do carcere em que a tradição o encerra, foi tambem em Colombo que se incarnaram todas essas idéas que pairavam na atmosphera do seculo XV, e muito especialmente na atmosphera açoriana e madeirense. Triumphou mais uma vez o sonho sobre a razão, a dilatação da phantasia inflammada sobre o trabalho mecanico e lento do raciocinio, o meridional expansivo e apaixonado sobre o septentrional fleugmatico e frio, e foi Christovam Colombo e não Martim de Behaim quem resolveu o segundo dos grandes problemas geographicos. VIII Christovam Colombo e D. João II Quando Christovam Colombo, que viajára largamente, que estivera na Islandia e na Guiné, que estivera nos Açores, e que, casando com a filha de Bartholomeu Perestrello, tivera demorada residencia no Porto-Santo e na Madeira, combinou tudo o que lhe diziam os pilotos portuguezes, tudo o que os seus olhos viam n’essa terra da sua residencia, com o que encontrou nos livros, e sobretudo nos seus livros predilectos, os geographos antigos e a _Imago Mundi_ de Pedro d’Ailly, fixou-se no seu espirito, de um modo indelevel, a convicção de que era perfeitamente possivel chegar á Asia partindo dos Açores, e communicou essa idéa ao rei de Portugal. Actuou por acaso, de algum modo, no espirito de Colombo a viagem que elle fez á Islandia, e onde poude ter conhecimento das viagens dos navegantes escandinavos do seculo XII, que chegaram á Groenlandia e até á America do Norte, que elles denominaram Vinlandia? Não, decerto. Que tinham que vêr esses paizes do Norte com o seu sonho da Asia encontrada pelo occidente? Que houvesse para além da Islandia mais ilhas e mais terras, não era caso de espanto. Hoje que conhecemos toda a terra sabemos a importancia que isso tinha, então nenhuma se lhe ligou, nem nenhuma se lhe ligara no seculo XII. As descobertas não têem importancia pelo que hoje se reconhece que teriam, mas pela que tinham realmente na occasião em que se fizeram. O problema era, como dissemos, o seguinte: atravessar o Oceano Atlantico em toda a sua largura. Passar da Islandia á Groenlandia e da Groenlandia ao Vinland era façanha muito menos importante do que a que praticaram os Portuguezes descobrindo os Açores.[98] Seriam por outro lado as instancias de Colombo ao governo portuguez que levaram el-rei D. Affonso V a perguntar a Toscanelli em 1474 se suppunha que se podesse chegar á India caminhando-se pelo occidente? É possivel que não. Como sabemos, esse problema já atormentava as imaginações dos que se preoccupavam com as questões geographicas, e era assumpto de vivos debates. A concessão feita em 1473 por D. Affonso V a Ruy Gonçalves da Camara e que já aqui mencionámos, leva-nos a suppôr que o fidalgo portuguez não a obteria tão simples e tão despida de auxilio governamental sem ter instado com o rei para obter um subsidio ou um apoio mais efficaz do que a concessão platonica das pelles de urso, que Ruy Gonçalves obteria se matasse os ursos. Logo veremos que havia esses pedidos, e que D. João II em occasião importante lhes prestou ouvido mais attento. Foi, decerto, então que el-rei perguntou a Toscanelli o que pensava a este respeito, e que recebeu de Toscanelli a resposta de que Colombo, ancioso tambem de conhecer a opinião do sabio geographo, não deixou de ter conhecimento, porque o proprio Toscanelli lh’a communicou. Que facil ensejo tinha Humboldt de demolir a gloria de Colombo, como pretendeu demolir a dos navegadores portuguezes! Se ha carta que possa mostrar que as Antilhas eram conhecidas antes de Colombo é a carta de Toscanelli. O grande geographo italiano conhece o caminho como conheceria o caminho da sua casa. Sabe a distancia a que fica a Asia, os archipelagos que o navegador ha de encontrar no caminho, e tudo isso vae para o mappa como se fosse traçado á vista das terras! E os archipelagos lá estavam effectivamente como os Açores, como a Madeira, como as ilhas que se descobriram e as que se não descobriram. Acontecia ás ilhas o que acontece ás prophecias. Com um pouco de boa vontade sempre ha algumas que, mais ou menos, parece que saem certas. Nós porém é que não vemos as coisas com os olhos da parcialidade, e applicamos a todos o são preceito de Humboldt que elle tão pouco respeita. As cartas da edade média são excellente elemento de estudo quando se analysam com criterio, quando se não perde de vista o pensamento de que ellas encerram o que realmente se descobriu e o que os sonhadores conjecturavam que se podia descobrir. Os navegadores d’esse tempo é que não sabiam as maravilhas que praticavam, e a sua aspiração não era encontrar terras desconhecidas, era encontrar as terras adivinhadas. Se os Açores e a Madeira estivessem em mappas anteriores, os Portuguezes exclamariam com enthusiasmo: São estas mesmas! O maior prazer d’esses navegantes, quando chegassem á Antilha ou á ilha de S. Brandão, seria bradarem com orgulho e com ufania: Encontrámos a ilha de S. Brandão, encontrámos a Antilia, como Fernão Telles ía pelos mares fóra com a esperança de encontrar a ilha das Sete Cidades. Este é que era o criterio que os Portuguezes applicavam á descoberta das costas africanas. Todo o seu desejo era confirmarem o periplo de Hannon e as theorias da antiguidade. Foi para elles um desapontamento reconhecerem que um rio que descobriram era o Senegal, completamente ignorado pelos antigos, em vez de ser o Nilo dos Negros, cuja existencia a sabia antiguidade affirmava, e que os Portuguezes só aspiravam a confirmar. Que impressão produziria a opinião de Toscanelli não no animo de D. Affonso V, que tinha outros pensamentos e outras ambições, mas no de D. João II, logo que subiu ao throno, e começou a pensar sériamente nos descobrimentos? Não muita, e de certo contribuiria para isso, bastante, o proprio movimento maritimo dos Açores. É bem natural que os mareantes que voltavam d’essas expedições de tentativa exaggerasem o espaço de mar que tinham percorrido, sem encontrar signaes de terra. Demais as idéas geographicas dos antigos ainda dominavam muito os espiritos. O systema geographico de Ptolomeu e dos seus adeptos não fôra alluido todo e de uma vez só. Ia caindo aos pedaços, mas ficava de pé o que se não demolia directamente. Ora uma das idéas favoritas da geographia antiga era a grande extensão dos mares. Suppunha-se que de toda a terra só a septima parte estava fóra das aguas. Colombo sustentava a opinião contraria, dava razões de equilibrio, mas não conseguia facilmente derrubar o preconceito. Accrescente-se ainda que tudo parecia indicar que os Portuguezes se achavam no caminho verdadeiro da India. Qual era a opinião antiga? que a costa africana occidental, _antes de se chegar ao equador_, voltava para o oriente e ia ou á Africa Oriental ou á Asia. Se as viagens portuguezas tivessem mostrado que esse facto se não dava, e, ao mesmo tempo, a zona torrida fosse inhabitavel, estavam perdidas todas as esperanças, mas as viagens portuguezas tinham demonstrado exactamente que não havia zonas inhabitaveis, logo podia-se proseguir com afoiteza, que mais longe ou mais perto havia de se chegar ao fim do continente africano e havia de se voltar para a India. Corria-se o perigo de se entrar na zona glacial antarctica? Embora! Como era natural, passava-se de extremo a extremo. Desde que se descobrira que a zona torrida não era inhabitavel, conhecia-se que não havia zonas inhabitaveis, e que se poderiam atravessar as zonas glaciaes como se estava atravessando a zona torrida.[99] E note-se que a idéa de que teria de se dobrar um cabo quando se chegasse ao fim da peninsula africana, estava tambem em todos os espiritos, e era a conjectura natural da geographia. As peninsulas, sabia-se bem, terminam geralmente em promontorios. Portanto o empenho de D. João II estava todo concentrado no proseguimento das descobertas africanas. Não podia elle, diz-se, se tinha confiança, como sabemos que tinha, não no projecto do Genovez, mas no seu talento, e nos seus conhecimentos maritimos, confiar-lhe duas caravelas? Não, porque isso era completamente contrario ao seu systema de exploração. As tentativas dos Açorianos e dos Madeirenses, protegia-as o governo, fazendo-lhes larguissimas concessões nas terras que descobrissem, mas não as subsidiava, nem consentia tambem que elles interferissem nas descobertas reservadas para si. As terras concedidas eram-n’o com a condição de não serem nos mares da Guiné. Ah! Se Christovam Colombo armasse duas caravelas á sua custa, ou conseguisse que um capitalista o _commanditasse_, com que facilidade elle obteria de D. João II todas as concessões que desejasse! Foi uma felicidade para o mundo que Colombo não tivesse dinheiro para a empreza, nem socios capitalistas. Se os tivesse, quando percorresse tanta extensão de mar sem encontrar terra, quando visse a perspectiva de perder completamente o seu dinheiro ou o dos seus socios, talvez não ousasse proseguir, e decerto lh’o não consentiriam os que representavam a bordo os interesses dos armadores. Para se levar a effeito essa obra grandiosa era necessario que estivesse empenhada no triumpho a honra de uma nação! Como é que aquelle grande espirito de Christovam Colombo não inflammou no seu enthusiasmo o espirito, que passa tambem por ter sido grande, de D. João II? Enganou-se a historia no seu juizo? Era, afinal, o rei D. João II um espirito vulgar, ou pelo menos um espirito absolutamente pratico e forte em todas as questões da vida positiva e real, mas desdenhoso de tudo o que excede os limites do seu horizonte? ou por acaso não tinha elle pelas coisas geographicas o interesse real que manifestava, ou não tinha d’ellas o conhecimento que se lhe attribue? Não, não, nada d’isso. D. João II foi realmente um dos grandes principes do seu tempo, um dos soberanos que estavam mais á altura de comprehender os grandes projectos dos descobrimentos. O proprio Colombo o diz a cada instante, Toscanelli farta-se de o affirmar: o rei de Portugal era o soberano que melhor entendia de coisas geographicas, o nosso grande rei! diz Colombo ás vezes. E comtudo Colombo não conseguiu captival-o. É quasi incomprehensivel esse facto, mas talvez se explique um pouco se analysarmos os caracteres de um e de outro. Ha, naturalmente, duas especies de organismos entre os homens da mais alta esphera: os desequilibrados e os equilibrados. Á primeira pertencia Christovam Colombo, á outra D. João II. D. João II era um d’estes fortes espiritos, perfeitamente assentes n’uma base segura, que têem a perspicacia, a energia, as concepções arrojadas mas nunca desmandadas, espiritos capazes de formarem um plano e de o desenvolverem serenamente, completamente desembaraçados da rotina, amando e acolhendo as innovações, mas não sem as sujeitarem ao criterio do seu lucido juizo. Homens assim, n’este jogo da existencia têem as cartadas atrevidas mas calculadas, nunca se entregam aos irreflectidos caprichos do azar. O perigo não os assusta, e affrontam-n’o quando é necessario, mas não o procuram por uma vã fanfarronada de cavalleiros andantes. Soldado, ninguem o foi como D. João II: em Arzilla escureceu a fama dos mais denodados cavalleiros, em Toro a ala que elle commandava internou-se no mais denso das fileiras dos castelhanos e destroçou-as, emquanto a ala commandada por seu pae era desbaratada pelo inimigo, mas depois de subir ao throno nunca mais teve uma guerra, nem entrou n’uma peleja. As guerras de Portugal tinham de ser com o Oceano, os combates do rei com a sua nobreza rebelde. É um organisador e não um aventureiro, o que o não impede de querer a grande aventura da India, mas prepara-a, organisa todos os elementos de successo, antes de jogar a cartada decisiva. A razão é a faculdade que domina o seu espirito, a imaginação é a escrava obediente. É inaccessivel aos vagos terrores que tão facilmente assaltam os nervosos e os phantasistas. Uma noite, e já depois d’elle ter cercado de cadaveres o seu throno, no cumprimento implacavel da sua missão centralisadora, sente baterem de noite mysteriosamente á porta do quarto onde dormia com sua esposa. Levanta-se e vai ver quem é. Ninguem, mas ao longe uns passos mysteriosos, como que um vago deslisar de sombras. Jaz em silencio e na escuridão da meia-noite o palacio todo. Vive-se n’uma epocha de crenças e de superstições. É algum dos espectros das suas victimas que o vem chamar para a expiação? D. João II sorri-se com este pensamento, vai, segue o passo mysterioso, vai até aos sotãos em sua obstinada procura, só, com a sua espada e uma luz, e quando os servos, acordados pelos clamores da rainha, correm em sua busca, vão encontral-o n’um desvão, sondando com a luz os recantos sombrios, impassivel e sereno como quem não comprehende sequer os pavores da superstição. De toda a sua raça o homem a quem mais se assemelha pelas tendencias nobres do seu espirito é o infante D. Pedro, mas este possuia uma qualidade que arredondava todos os angulos do seu caracter, que amaciava todas as durezas do seu pensamento: a bondade feminil, que elle herdara de sua mãe, D. João II tinha a violencia do bisavô, sem ter ao seu lado a mulher propria, como Filippa de Lencastre, para attenuar as asperezas da indole do matador do conde Andeiro. D. Leonor era uma nobre e intelligente senhora, não adquirira comtudo influencia sobre o seu terrivel marido, porque não era amada. Mas a alta razão, a comprehensão de todos os grandes emprehendimentos, a cultura que o punha a par do seu seculo, a reacção contra as tradições medievaes, que eram a sombra povoada de visões, quando elle sonhava uma sociedade radiante de luz e de sciencia e dominada pela Ordem: tudo isto tinha D. João II. D. João II era a Renascença que principiava com os ideaes de Platão e o culto da sciencia antiga seriamente estudada e seriamente comprehendida, e Colombo, que mais do que ninguem ia contribuir para a Renascença, era comtudo pelas tendencias do seu espirito o ultimo representante d’essa meia edade bellicosa e mystica, que, antes de se sumir para sempre, legava ao mundo que nascia a realisação do seu ultimo sonho cavalheiresco. Imagine-se agora Colombo tratando com D. João II, que o ouve, que o attende, que percebe que não tem deante de si um homem vulgar, mas que desconfia, que hesita deante d’aquelles projectos meio mysticos, meio scientificos, deante d’aquella exuberancia de palavras e de pensamentos que não quadra ao seu espirito nitido, e conciso. Colombo é um italiano, com aquella prodigalidade de palavras e de formulas obsequiosas, caracteristicas da raça. O que era elle? um sabio ou um charlatão? Se do sublime ao ridiculo apenas vai um passo, como Napoleão dizia, de um homem de genio que traz uma idéa fecunda a um charlatão que traz um elixir tambem a distancia não é grande. Colombo, profundamente convencido, era prodigo de promessas e não menos de exigencias. Os thesoiros que elle encontrasse no Cathay destinava-os, segundo dizia, á conquista do Santo Sepulcro. Ora a conquista do Santo Sepulcro era, sem desfazer nos sentimentos christãos de D. João II, _le cadet de ses soucis_. Christovam Colombo enganara-se na porta. Essas declarações eram optimas para D. Affonso V, detestaveis para D. João II. Tudo quanto cheirasse a cavallaria andante, a cruzadas, e a romances em acção, encontrava em D. João II um antagonismo ferrenho. E percebe-se que assim fosse, desde o momento que fôra tudo isso que estivera quasi arruinando Portugal, que fôra tudo isso que fizera a desgraça de D. Affonso V e que era a esses bellos sonhos que D. João II devia o ter ficado, como costumava dizer, por morte de seu pae, rei das estradas de seu reino. Ainda havia um facto que não podia produzir boa impressão em D. João II. Arrastado pelo ardor das suas convicções, como acontecia com Toscanelli, Colombo dizia conhecer a distancia exacta a que ficava Cipango de Portugal. Ora D. João II era um espirito bastante positivo para perceber o que havia de absurdo em semelhante calculo, e a segurança manifestada por Colombo mais ainda o punha em guarda contra os seus projectos. Hoje que os factos mostram como Colombo tinha razão, todos imaginam que só o espirito de rotina podia fazer com que elles fossem regeitados. E comtudo, examinando-os bem comprehende-se que espiritos positivos não acceitassem. Colombo suppunha por exemplo que a relação entre a terra e o mar era de 7 para 1, quando a verdade é que essa relação é de 1 para 2,7, ou mais exactamente de 29 para 82.[100] Quaes eram as razões em que elle se baseava para suppor que a Asia estava proxima da Europa? Sobretudo as que deduzia das affirmações da sciencia antiga. Segundo Ctésias a India formava metade da Asia, Plinio suppunha que era só por si o terço da superficie do globo, Nearcho sustentava que eram necessarios quatro mezes de caminho para se chegar á extremidade oriental da India, e Strabão que até esse extremo oriental ninguem poderia conduzir um exercito. O geographo a que Colombo se encostava para avaliar a distancia que tinha a percorrer não era Ptolomeu, era Marino de Tyro. Ptolomeu sustentava que a terra habitada entre o meridiano das ilhas Afortunadas e o meridiano de Sera, quer dizer da China, era de 177°¼, portanto o espaço de mar a percorrer era de 182°¾, visto que o parallelo tem 360°. Marino de Tyro sustentava que a porção de terra habitada era de 225°, portanto o espaço de mar a percorrer limitava-se a 135°; mas Colombo fazia conjecturas que ainda diminuiam este espaço. Effectivamente dizia elle que Marino não chegára á extremidade oriental da Asia em 15 horas (calculando-se as longitudes em tempo, e correspondendo cada hora a 15°) porque a extremidade oriental da Asia ficava muito além do ponto marcado por Marino. Portanto a distancia de mar entre a extremidade oriental da Asia e as ilhas de Cabo Verde era não de 9 horas ou 135°, mas de menos de 8 horas ou de menos de 120°. Note-se porém que fôra Ptolomeu que corrigira os calculos de Marino de Tyro, e que a opinião de Colombo tinha portanto contra si a do geographo mais afamado da antiguidade. Comtudo Colombo aferra-se á sua opinião, e quando está na America julgando estar na Asia, persiste, e até se apoia nas opiniões dos navegadores portuguezes, dizendo: «E agora que os Portuguezes navegam tanto, acham que Marino foi exacto.»[101] E note-se ainda que Colombo avaliava o grau em 56 milhas e ⅔, baseando-se nos calculos do geographo arabe Al-Fragan, e confundindo assim a milha italiana com a milha de Al-Fragan, de fórma que o grau ficava tendo apenas pouco mais de 14 leguas. Toscanelli, na sua famosa carta de 1474, avaliava o espaço a percorrer de um modo differentissimo. D. João II ver-se-hia de certo embaraçado para avaliar quem tinha razão, e regeitaria então sem hesitar o projecto de Colombo se soubesse que de todos os geographos da antiguidade o que menos se enganára fôra Eratostenes que calculára a distancia entre o promontorio Sacro, quer dizer o cabo de S. Vicente e a Sera, quer dizer a China, em 240 grau. A distancia verdadeira é 230.[102] Junte-se a isto a opinião contraria do seu conselho scientifico, que a manifestava não só porque todas as corporações sabias têem uma tendencia innata para repellir as idéas novas apresentadas por quem não pertence ao seu gremio scientifico, mas tambem porque as propostas de Colombo tinham, como acabamos de ver, muitos pontos vulneraveis. Faziam parte do conselho dois judeus, Rodrigo e Josef, que de certo conheciam bem o arabe, e aos quaes talvez não escapasse o erro da interpretação do geographo arabe Al-Fragan na medição dos graus. A rejeição da proposta de Colombo era portanto inevitavel. E comtudo D. João II, se não tinha a imaginação apaixonada do infante D. Henrique, que se deixaria de certo seduzir pelo enthusiasmo do italiano, tinha o espirito bastante elevado para reconhecer que não era Colombo um aventureiro vulgar. Apenas elle saíu do nosso paiz, teve um baque no coração, e, passando por cima de tudo e da opinião dos seus conselheiros, e das tendencias naturaes do seu espirito, escreveu-lhe a famosa carta em que o chamava.[103] Porque não veiu Colombo? Porque saíra bastante irritado com o parecer naturalmente desdenhoso do conselho scientifico do rei, ou porque os seus amores com D. Beatriz Enriquez, a mãe de Fernando Colombo, o retiveram em Sevilha? Julgamos mais verosimil a primeira hypothese. O resentimento de Colombo era tão profundo que não duvidou accusar D. João II de uma acção que elle bem sabia que era absurda em primeiro logar, que seria indigna de um homem cujo caracter elle não podia deixar de respeitar. E comtudo a historia tem repetido essa accusação, injusta, mesquinha e disparatada! Colombo accusou D. João II de o ter repellido, mas de ter aproveitado ao mesmo tempo as suas indicações para mandar dois navios em busca da Asia pelo occidente, e que esses navios, açoitados por uma tempestade, tinham sido obrigados a voltar para Lisboa. Em primeiro logar era evidente que a viagem de descoberta não podia começar senão em Cabo Verde ou nos Açores. Se uma tempestade occasional os tivesse feito voltar a Lisboa, poucos dias depois de terem d’aqui saído, não era caso para descoroçoar. Só passado o meridiano dos Açores é que principiava a expedição. Demais, não sabemos que antes de Colombo muitos navegadores portuguezes tinham sondado os mares do occidente, não com o fito de demandarem a Asia, mas com o intuito de descobrirem terras novas? Era a transformação do intuito que representava o abuso de confiança? Era a escolha do parallelo a seguir? Não tinha o rei de Portugal a carta de Toscanelli que preconisava tambem a escolha do parallelo que a Cipango conduzisse? Não vemos nós claramente que a unica difficuldade de D. João II estava em fazer por sua conta a expedição? Se Colombo a fizesse á sua custa, não receberia do rei de Portugal senão todas as animações. E, recusando isso a Colombo, que elle considerava e estimava, ia fazel-o com outros pilotos, que, ainda que não tivessem menos habilidade nautica, não teriam de certo estudado a questão com a perseverança e o enthusiasmo de Colombo? Mas não continuemos, podemos hoje felizmente mostrar de um modo evidentissimo qual foi o facto verdadeiro que, mal interpretado, mal comprehendido, adulterado por alguma informação calumniosa, mais ainda pelo resentimento de Colombo, serviu de base á sua accusação. Temos mostrado como o governo portuguez fazia as concessões aos navegadores ilheus que queriam demandar terras novas: dava-lhes n’essas terras todos os privilegios possiveis, o direito de administrar a justiça, reservando sempre para a corôa os casos de pena de morte ou de talhamento de membros. Accentuava bem que esses privilegios não se limitavam ao caso de ser despovoada a terra que se encontrasse, mas que, se encontrassem terra habitada, como a famosa ilha das Sete Cidades, por exemplo, tinham sobre os seus moradores o mesmo poder com as mesmas restricções, e esses moradores tambem os mesmos privilegios. Ora em 1486, pouco depois de Colombo partir de Portugal, appareceu Fernão d’Ulmo a pedir uma concessão semelhante. El-rei fez-lh’a nas condições das anteriores, com umas modificações que são eloquentes: Em primeiro logar Ruy Gonçalves da Camara pedira _pera buscar nas partes do mar ouciano huumas ylhas_, Fernão Telles obtem a concessão de _quaesquer ilhas que elle achar_, e depois diz-se-lhe que a mesma concessão se faz no caso das ilhas serem povoadas. Fernão Dulmo pede que El-rei «lhe faça mercê e reall doação da dita hylha ou hylhas OU TERRA FIRME povoradas ou despovoradas, etc.» El-rei concede. Além d’isso faz-lhe mercê de toda a justiça _com alçada de poder enforcar, matar e de toda outra pena criminall._ Prevê o caso de que as ilhas ou _terra firme_ sejam povoadas e offereçam resistencia a Fernão Dulmo, que vae á sua custa, é claro, e com a gente que poder levantar e pagar, e então El-rei diz-lhe: «ssendo caso que sse não queiram sujeitar _as ditas hylhas e terra firme a nos, mandaremos com o dito Fernam Dulmo gente e armadas de navios com noso poder pera sogigar as ditas hylhas e terra firme e ele Fernam Dulmo hyrá sempre por capitam moor das ditas armadas_.» O que mostra isto? Mostra que a insistencia de Christovam Colombo fez impressão em El-rei. Não vai nem por sombras intentar uma expedição á sua custa, mas procura facilitar o mais possivel as expedições para o occidente. Admitte a possibilidade de se encontrar terra firme, não põe as minimas restricções ao poder do descobridor, e, se a terra firme ou as ilhas se encontrarem e forem povoadas, se forem a Asia, é o que isto quer dizer, Fernão Dulmo pode contar que terá o rei comsigo com todo o seu poder para o ajudar, e o posto de capitão-mór garantido nas armadas que se expedirem. O sr. Ernesto do Canto, que publica no seu livro esta carta de doação na integra, estranha o facto que acabamos de notar, e escreve: «A jurisdicção concedida por esta carta é muito mais extensa do que a dos documentos analogos e anteriores, _o que admira da parte de D. João II, que tanto luctou para estabelecer a centralisação do poder real_.»[104] É positivamente a impressão produzida na alma do rei pelas propostas de Colombo. A visão do occidente começa a assenhorear-se da sua alma e atormenta-o. Querem outra prova ainda? Esta carta régia foi apresentada ao tabellião, e entre Fernão Dulmo e João Affonso celebra-se um contracto em que ha a seguinte clausula: «e quanto he ao cavalleiro alemam que em companhia deles hadir que ele alemam escolha dir em qualquer caravella que quiser e do dia que ambos partirem da dita hylha Terceira, etc.» Quem é este cavalleiro allemão que está evidentemente nos Açores e que parte com a expedição escolhendo a caravela que quizer? É claramente Martim de Behaim, que acaba de voltar da viagem que fez ao Zaire com Diogo Cão, Martim de Behaim, que tambem sonha com o encontro da Asia pelo occidente, que muita vez trocou idéas com Christovam Colombo a esse respeito, que se resolve a fazer uma tentativa, tentativa que parece não ter ido por deante, ou que, se se realisou, foi infeliz e se realisou sem elle, porque annos depois o encontramos na Allemanha trabalhando no seu famoso globo, e voltando de Nuremberg a Lisboa com o intuito de realisar emfim a sua expedição, munido de recommendações do imperador para o rei de Portugal e de animações de sabios. No intervallo Colombo antecipára-se-lhe. A America estava descoberta. Demais entre a saída de Christovam Colombo de Portugal e o descobrimento da America dera-se um grande acontecimento que robustecera a confiança de D. João II no methodo que seguira e que dissipára as suas apprehensões de um curto caminho para a Asia pelo occidente. A costa africana occidental fôra completamente descoberta, transpozera-se o Equador, percorrera-se toda a zona torrida, encontrára-se o termo do continente africano, e dobrára-se o cabo em cujo nome _Boa Esperança_ D. João II condensára o immenso jubilo da sua alma. O primeiro dos grandes problemas geographicos, que nem a antiguidade nem a edade média tinham conseguido resolver, tinham-n’o os Portuguezes resolvido. A preoccupação, que evidentemente tinham deixado no espirito do rei as propostas de Colombo, dissolvia-se por completo na alegria d’este triumpho. Mas vê-se bem agora como o conhecimento da nova tentativa açoriana, semelhante aliás a tantas outras que Colombo bem conhecia, devia ter irritado o animo do Genovez, que saía de Portugal, azedo e despeitadissimo. Chegou-lhe provavelmente aos ouvidos tambem a noticia das concessões excepcionaes feitas pelo rei, e até da designação especial de terra firme a descobrir. Tanto bastou para que se dissesse roubado, como se Colombo tivesse outra coisa que se lhe roubasse que não fossem as suas qualidades pessoaes, o seu genio, o seu enthusiasmo, o seu conhecimento da nautica e da astronomia. Tudo isso o levára elle comsigo. Demais, as concessões de D. João II, por mais amplas que fossem, não chegavam ao subsidio. O que D. João II recusára a Colombo, recusava-o tambem a Fernão Dulmo. N’estas circumstancias, mantinha-se nos seus principios; de que podia então queixar-se Colombo? Tambem, deve dizer-se, só d’essa vez se mostrou Colombo, n’um momento de colera, injusto com o nosso paiz. A terra de sua mulher, terra onde nascera seu filho, fôra sempre a terra dos seus amores. Com este povo de marinheiros se creára, pode assim dizer-se, porque foi aqui que brotaram devéras na sua alma as suas grandes aspirações, foi com o trato dos nossos pilotos que se instruiu praticamente, que aprendeu, por assim nos exprimirmos, a theoria das descobertas. Não o esqueceu nunca, nem quando pensava que era pelo vôo das aves que os Portuguezes tinham descoberto as ilhas, nem quando invocava, para sustentar uma das suas affirmações, os Portuguezes que tinham navegado tanto. Como Portuguez até se considerava, e fazia-lh’o sentir Toscanelli.[105] Com os nossos descobrimentos se enlaçaram os seus, e, apesar de tudo, vê-se-lhe não sei que funda pena de não ter podido fazer a sua gloriosa descoberta nos navios da nação amada. «O rei de Portugal, diz elle n’uma carta escripta a Fernando o Catholico pouco tempo antes da sua morte, _que entendia mais do que qualquer outro rei de descobertas de paizes desconhecidos_, de tal fórma o cegou a vontade do Altissimo que, durante quatorze annos, não pôde comprehender o que eu lhe dizia.» E tão extranho lhe parece esse caso que o toma á conta de milagre, e diz que _Nuestro señor le atajó la vista, el oido y todos los sentidos_.[106] Não! a verdade era que a empreza de Colombo era a empreza de um allucinado de genio, de um homem em quem a imaginação predomina, de um visionario que tem visões lucidas, de um inspirado, de um louco, e homens assim não podem dirigir-se, sem ser repellidos, áquelles que teem o forte equilibrio de todas as faculdades, aos que se deixam guiar em vida não pelas columnas de fogo da visão biblica, nem pelas scintillações dos sonhos, mas pelo clarão firme, sereno, da razão e do raciocinio. Encontraria Christovam Colombo no infante D. Henrique um homem que o comprehendesse, porque era um allucinado tambem; na epocha em que apparecia só o podia comprehender uma alma feminina, vibratil a todos os enthusiasmos, apaixonada pelas visões mysticas, accessivel á influencia magnetica de uma eloquencia aquecida pela sinceridade de uma convicção ardente, de uma mulher, emfim, que se chamava Isabel a Catholica, a mais radiosa encarnação da alma heroica da Hespanha, aquella que nos apparece nos longes da historia como a estatua da Poesia do Romancero, cavalheiresca e meiga, varonil na intrepidez e feminil na suave e captivadora influencia, e que elle vinha encontrar no momento mais proprio para a levar para as grandes conquistas ideaes, dentro dos muros da conquistada Granada, tendo varrido do solo de Hespanha a ultima tribu arabe e o ultimo soberano oriental, tendo feito tremular sobre o crescente prostrado a bandeira da cruz, e anciando tambem por abrir novos mundos á energia hespanhola, novas conquistas ao seu pensamento, enamorando-se facilmente da idéa de transpôr os limites do Oceano, de tentar, como outr’ora o infante D. Henrique, a gloriosa cruzada dos mares, e de ir arrancar emfim aos thesouros escondidos no tumulo do Sol o oiro do resgate para o tumulo de Christo. IX O tratado de Tordesillas e a viagem de Pedro Alvares Cabral Quando em março de 1493 Christovam Colombo entrou triumphalmente em Lisboa, e apresentou a D. João II os indigenas que trazia de Guanahani e lhe disse que voltava das terras de Cipango, o despeito de D. João II foi extraordinario. Tão pouco o soube esconder que houve fidalgos que lhe propozeram punir com a morte a jactancia do Genovez.[107] D. João II regeitou a offerta, e esmerou-se em dar a Christovam Colombo todos os testemunhos do seu apreço, mas a dôr era profunda e o desejo de desforço imperioso. Sustentando desde logo que as ilhas descobertas por Colombo estavam nos mares adjacentes á Guiné, tratou de mandar uma esquadra a esses paizes do occidente. A Hespanha protestou logo, e D. João II percebeu que tinha de desistir do intento, mas a sua diplomacia não descançou um instante, e o tratado de Tordesillas foi para essa diplomacia um verdadeiro triumpho. Tanto se empenhavam os reis de Hespanha em tomar conta das terras que Christovam Colombo descobrira, que a toda pressa se pediram para Roma as bullas necessarias, e com tanta rapidez se andou na negociação, facilitada, pelo facto de ser o Papa Alexandre VI—Rodrigo Borgia—hespanhol de nascimento e creatura dos soberanos hespanhoes, que, tendo chegado Christovam Colombo no dia 15 de março de 1493, e só tendo sido recebido por Fernando e Isabel em abril, logo a 3 de maio do mesmo anno se concediam á Hespanha essas ilhas e terras descobertas por Christovam Colombo; mas n’essa noite, ao que parece, pensou-se que seria bom, para evitar disputas com os Portuguezes, que se marcasse uma divisão entre estes, a quem os papas anteriores tinham concedido os mares adjacentes á costa africana do cabo Não e Bojador para deante, e os Hespanhoes, e no dia 4 de maio é que se promulgou a bulla definitiva, em que se traçou a linha divisoria do polo arctico «ad polum antarcticum quæ linea distet a qualibet insularum quæ vulgariter nuncupantur de los Azores et Cabo Verde centum leucis versus occidentem et meridiem».[108] Claramente se vê por este _qualibet_ que a segunda bulla foi redigida á pressa e á noite, não estando presente nenhum cosmographo, que podesse dizer aos negociadores qual era a mais occidental das ilhas dos Açores e de Cabo Verde, porque, como sensatamente observa Humboldt, é singular esta expressão applicada a dois archipelagos que ambos occupam uma grande extensão em longitude. Mas não havia tempo para demoras porque era necessario que apparecesse o facto consummado antes que o rei de Portugal tivesse tempo de saber de que é que se tratava. Depois do Papa ter julgado, suppunha-se que um rei catholico não ousaria protestar. Enganaram-se; já se não estava em plena edade média, nem D. João II era homem que deixasse o Papa interferir nos seus negocios temporaes. Protestou immediatamente e tanto que a bulla de Alexandre VI caducou, e a linha divisoria, que passava a cem leguas de qualquer das ilhas dos Açores e de Cabo Verde, transformou-se n’uma linha que passava a 370 leguas do archipelago de Cabo-Verde. As negociações levaram tempo, e não foi sem reluctancia que Fernando e Izabel cederam ao seu impertinente visinho; mas nem Portugal n’esse tempo era paiz cuja inimizade fosse indifferente, nem os reis catholicos tinham ainda consciencia bem nitida da importancia das descobertas feitas; demais havia intimas relações de familia entre as duas casas reinantes.[109] O que é certo é que Portugal triumphou e o tratado assignado em Tordesillas em 7 de junho de 1494 substituiu para todos os effeitos a bulla de 4 de maio do anno anterior. Pois tão superficialmente se estuda a historia d’estes grandes acontecimentos da vida da humanidade que ainda hoje passa em julgado que foi a bulla de Alexandre VI que marcou a linha divisoria entre as descobertas portuguezas e as descobertas hespanholas, e o proprio Humboldt, eruditissimo como é, tanto parece ignorar o texto do tratado de Tordesillas que, suppondo que foi Christovam Colombo que indicou a linha das cem leguas por consideral-a a linha em que não tinha variação a agulha magnetica,[110] imaginando que a adaptação d’essa demarcação physica á demarcação politica tinha immensa importancia para Colombo, nem levemente allude ao desapontamento que a Colombo a mudança da linha divisoria devia ter causado. N’esse tratado, comtudo, ha um artigo transitorio que bem claramente mostra o absurdo da supposta descoberta de João Vaz Côrte Real. «E porque pode ser, diz o artigo, que os navios d’El-Rei e Rainha de Castella e Aragão tenham descoberto até vinte do corrente mez de junho algumas ilhas ou terras firmes dentro da sobredita linha que se ha de lançar de polo a polo a trezentas e setenta leguas das ilhas de Cabo Verde para o Poente, assentaram as Altas Partes Contractantes por seus Procuradores, que, para se evitarem duvidas, todas quantas tivessem sido achadas ou descobertas até os vinte de junho, bem que o fossem por navios e gente de Castella, sendo dentro das primeiras duzentas e cincoenta leguas das sobreditas trezentas e setenta a partir das ilhas de Cabo-Verde para o Poente, ficariam para El-Rei de Portugal, _e as que tivessem sido achadas dentro do dito prazo nas outras cento e vinte leguas restantes em que deve findar a dita linha pertenceriam a El-Rei e Rainha de Castella, bem que as cento e vinte leguas façam parte das trezentas e setenta leguas que ficam para El-Rei de Portugal_. E se dentro dos ditos vinte de Junho não fôr descoberto nada pelos navios d’El-Rei e Rainha de Castella dentro das ditas cento e vinte leguas, o que dentro d’ellas _d’ahi em diante se descobrir_ ficará pertencendo a El-Rei de Portugal, como acima fica dito.[111] Lá se ía a Terra Nova, se ella já estivesse descoberta, _porque só o que d’ahi em diante se descobrisse_ n’essas ultimas cento e vinte leguas de zona portugueza poderia ficar pertencendo a El-Rei de Portugal. Ora não era de certo platonicamente que D. João II reclamava para si 370 leguas de mar para o occidente, mas em aproveital-as tinha o governo portuguez de ser prudentissimo para não despertar as justas reclamações do governo de Hespanha. Era necessario que se mostrasse sempre empenhado em proseguir as suas descobertas para o oriente, deixando a Hespanha á vontade para o occidente. As 370 leguas deviam servir-lhe para poder navegar com os braços livres para o sul. Tambem no primeiro momento não teria o nosso governo outro intuito. A expedição da India absorvia-lhe todo o pensamento. Vasco da Gama foi e attingiu a meta, e a gloria immensa que d’ahi proveio e os proventos palpaveis e immediatos que d’ahi resultavam escureceram por um momento a gloria de Colombo. Comtudo era incontestavel que a viagem pelo Cabo da Boa Esperança durava immenso tempo, e tinha difficuldades e perigos sem numero, e a Asia, que Colombo encontrára, estava tão perto! Note-se bem que não havia a esse respeito a minima duvida. Colombo chegára á Asia, chegára ás Indias, não á India riquissima a que aportára Vasco da Gama, não ao Cathay e ao Cipango fabulosamente opulentos de Marco Polo, mas a terras selvagens que não podiam ser senão as sentinellas avançadas do continente maravilhoso e dos archipelagos opulentos. Era ainda para o occidente que se encontrava Cipango, era para o sul? A opinião dos sabios tendia para esta ultima solução, e Pedro Martyr d’Anghiera, o celebre amigo de Colombo, exclamava indignado com uma expedição hespanhola á Florida: «Para o sul! para o sul! Para que precisamos nós de producções semelhantes ás producções vulgares do Meio-Dia da Europa?»[112] O que deduzimos d’aqui? Deduzimos que, tendo louvavelmente D. Manuel seguido á risca a politica de D. João II, a descoberta do Brazil por Pedro Alvares Cabral foi resultado não do acaso, mas do intento firme e propositado de procurar nos mares occidentaes o que Colombo ainda não encontrára claramente—outro caminho para a India. Allega-se contra isso o silencio absoluto do governo a esse respeito. Devemo-nos lembrar, porém, que Pedro Alvares Cabral não podia levar instrucções patentes e abertas que denunciassem intentos contrarios aos interesses da Hespanha. Lembremo-nos de que os reis catholicos tinham protestado abertamente contra o projecto de uma expedição portugueza para o occidente tentada por D. João II. Lembremo-nos de que, se a Hespanha prohibia com penas severas as expedições particulares e clandestinas para o lado que o governo estava explorando, não podia consentir que expedições identicas fossem tentadas por um governo estrangeiro. O governo portuguez tinha de se mostrar exclusivamente preoccupado com a navegação do Oriente pela Africa; se as suas esquadras aproveitavam as 370 leguas para se chegarem para o occidente era para evitarem as calmarias da Guiné, e nunca no intento de interferirem com as descobertas hespanholas, tanto assim que, apenas D. Manuel participa ao rei de Hespanha o descobrimento do Brasil, apressa-se a dizer-lhe que é terra muito boa e muito commoda para a navegação da India. Effectivamente o rei de Hespanha obtivera promessa positiva do rei de Portugal de que não tentaria navegar para o occidente, e tão positiva ella era que em cartas a Christovam Colombo declara el-rei D. Fernando, que era aliás bem desconfiado, que não havia motivo para desconfiar das intenções do rei de Portugal. Apesar de tudo estavam sempre prestes caravelas para poderem seguir no encalço das nossas, caso algumas saíssem com intenções suspeitas.[113] Não admira portanto que se falasse bem alto na necessidade de se evitar as calmas da Guiné, que nunca mais preoccuparam os navegadores portuguezes depois do Brasil se ter descoberto, que D. Manuel quizesse convencer bem o rei de Hespanha de que a nova terra não era para elle senão um porto de escala para a navegação do oriente. Além d’isso, sabe-se pela leitura do famoso livro de Duarte Pacheco, _Esmeraldo de situ orbis_, que, apesar de todas as precauções hespanholas, já em 1498 Duarte Pacheco recebera ordens para ir sondar os mares do occidente. De um periodo da sua declaração, confusamente redigido, se quer deduzir que Duarte Pacheco houvesse então descoberto o Brasil, e que Pedro Alvares Cabral não fosse senão tomar posse, mas a descripção de Duarte Pacheco é absolutamente inexacta, o que prova que não vira a terra de que fala, e além d’isto não era natural que Duarte Pacheco, depois de ter descoberto secretamente o Brasil, não fosse na esquadra que era exactamente encarregada de o descobrir officialmente.[114] O que prova porém esta declaração é que o governo portuguez não descançava em proseguir na navegação occidental, que, apesar das precauções dos hespanhoes, lá iam navios nossos perscrutar o occidente, e que bem provavel é que Pedro Alvares Cabral, cujas instrucções—por acaso ou de proposito?—só nos chegaram truncadas, fosse encarregado de ver se, mais feliz do que Colombo, encontrava, de caminho para a India, as terras maravilhosas cujo sonho continuava a perseguir a imaginação dos Europeus. Como era possivel, diz-se, que Pedro Alvares levasse uma esquadra tão numerosa, se fosse no intento de fazer descobertas, que se faziam habitualmente com tres ou quatro caravelas? Em primeiro logar era indispensavel esconder ao rei de Hespanha esses intentos descobridores, em segundo logar, se effectivamente se fosse ter ás terras governadas pelos potentados de que Marco Polo dera noticia, o exemplo do que succedera a Vasco da Gama bem mostrava quanto era necessario que se não apparecesse com pequena força deante d’esses soberanos do Oriente, em terceiro logar o fim principal da viagem era ir á India. Se effectivamente se topasse o Cipango ou o Cathay, a esquadra de Pedro Alvares ia bem, assim forte e numerosa; se nada se encontrasse, ou se se encontrasse terra como a que Colombo encontrara, voltava-se a seguir o velho caminho de Calicut. Porque é que Pedro Alvares, tendo realisado a descoberta de que ia incumbido, não voltou a Lisboa a dar a gloriosa noticia de tão importante feito? Porque nem elle lhe reconheceu a importancia nem na côrte lh’a reconheciam. O que dava cuidado ao governo portuguez não era que Colombo tivesse descoberto umas ilhas selvagens, era que elle tivesse encontrado um novo caminho para a India, assim como o que desconsolava os reis catholicos, e fazia perder a Colombo o seu valimento e auctoridade, era que, em vez d’elle ter encontrado paizes florescentes e civilisados, encontrára ilhas selvagens. Depois do que temos dito, não extranham de certo os leitores e encontra acceitavel explicação o facto de D. Manuel não ter dito aos reis catholicos, nem se ter publicado o verdadeiro motivo da descoberta do Brasil. Vejamos agora se os motivos até hoje allegados teem razão de ser. Foi uma tempestade que arrojou os navios em direcção ao occidente? Extranha tempestade, que, em vez de dispersar os navios, os leva de conserva ao mesmo ponto! Além d’isso nem o piloto da esquadra, que fez a relação que Ramusio publicou nem Pero Vaz Caminha e o physico João nas suas celebres cartas, nem D. Manuel nas cartas que escreveu aos reis catholicos dizem uma palavra a respeito de semelhante tempestade. Foi muito depois que Pedro de Mariz se lembrou de dar, por effeito decorativo, a tempestade legendaria das descobertas á narrativa do descobrimento do Brasil, que lhe parecera provavelmente desenfeitada demais na sua abstenção de episodios. Note-se além d’isto que, segundo as informações dos roteiros colligidas n’uma preciosa memoria do illustre official da marinha portugueza o sr. Arthur Baldaque da Silva, as tempestades que sopram na região percorrida pelas esquadras de Pedro Alvares, e na quadra em que elle a percorreu são de noroeste e de sudoeste, que, longe de impellirem os navios para a costa do Brasil pelo contrario os afastariam.[115] Mas foram as correntes que levaram os navios, diz Gonçalves Dias na memoria em que procura refutar os argumentos de Joaquim Norberto, e a grande corrente equatorial arrastou os navios para a costa do Brasil.[116] Se Pedro Alvares Cabral tivesse chegado ao Pará, a sua ida teria uma explicação, porque a corrente segue de leste a oeste ao longo do Equador, mas, bifurcando no cabo de S. Roque, segue uma direcção tal, combinada com os ventos geraes, que uma esquadra, diz o almirante Monchez ha pouco fallecido, «não pode senão afastar-se cada vez mais da costa, quando quer dobrar o cabo da Boa Esperança, visto que de um lado os ventos permittem navegar para leste, do outro a costa afasta-se para oeste».[117] Se se appella para as correntes da costa, vemos, segundo o testemunho do mesmo almirante Monchez, «que durante a monção de SO levam para o norte»;[118] ora a monção de SO dura de abril a setembro, exactamente quando Pedro Alvares Cabral era, segundo se diz, arrastado pelas correntes para o sul. Estes factos pareceram tão singulares ao almirante Monchez que não podendo explicar por elles a descoberta do Brasil, e não conhecendo os elementos politicos da questão, deduz o seguinte: «É pois quasi impossivel dar outro motivo plausivel da chegada de Cabral á vista de terra pelos 16° de latitude, a não ser um erro de caminho por esse navegador.»[119] Esse erro tinha de ser constante durante 15 dias, e seria singular que só se désse quando trazia em resultado a descoberta do Brasil, ao passo que antes d’isso tinham passado, sem o mais leve engano, pelas Canarias e por Cabo Verde, e depois d’isso foram direitos ao cabo da Boa Esperança. Confronte-se isto tudo, note-se que temos prova authentica de que em 1498, do anno immediato áquelle em que Vasco da Gama sahira de Portugal, foi Duarte Pacheco incumbido de ir descobrir terras a sudoeste, que o governo hespanhol tanto desconfia dos intentos de Portugal que espreita as nossas costas e tem navios promptos para seguir qualquer expedição portugueza que para o occidente se dirija, que D. Manuel, para desfazer suspeitas, trata logo de declarar que a terra descoberta a utilidade que tem é servir de porto de escala para a navegação da India, que trata tambem de disfarçar a distancia a que o Brasil fica de Cabo Verde, porque, tendo-lhe dito Pero Vaz de Caminha na sua carta que a nova terra ficava a 660 ou 670 leguas da ilha de S. Nicolau no archipelago de Cabo Verde, para os reis catholicos diz elle que fica a 400 leguas não da ilha mas do Cabo Verde que bem se pode suppor que seja o da costa africana,[120] de fórma que ficava assim o Brasil dentro da demarcação do tratado de Tordesillas, e veja-se se não é de uma evidencia absoluta que a descoberta do Brasil estava nos planos do governo portuguez, não porque soubesse a terra que ia encontrar mas porque não queria deixar aos seus rivaes o proveito de um caminho para a Asia mais curto do que o que Vasco da Gama acabava de descobrir. Não vale a pena demorar-mo-nos nem um instante na refutação das lendas relativas a suppostos descobrimentos do Brazil, anteriores a Pedro Alvares Cabral. A lenda mais pueril é a que suppõe que, não só antes de Pedro Alvares ter aportado a terras de Santa Cruz, mas ainda antes de Colombo ter aportado a Guanahani, um Portuguez, João Ramalho, chegára a terras brasileiras. Baseia-se essa lenda n’um supposto testamento feito por esse João Ramalho, que foi efectivamente um dos primeiros colonos do Brasil, mas que se tornára, pela sua residencia entre selvagens, quasi tão selvagem como elles, testamento feito por elle em 1580, e em que declara que havia noventa annos que estava no Brasil, aonde chegára, por conseguinte, em 1490. Era portanto macrobio este venerando descobridor que não podia ter menos de 20 annos quando chegou ao Brazil, e, ainda quando o fosse, era singular o testamento de um homem, que, aos 110 annos, tendo perdido as noções da vida civilisada, com tanta precisão chronologica dizia que estava no Brasil não ha oitenta ou noventa annos, como seria natural que o fizesse e talvez ainda exaggerando a conta, mas rigorosamente ha noventa! Ora d’esse testamento não ha noticia senão a que dá um d’esses chronistas fradescos do seculo XVII, que tão facilmente, como é sabido, falsificavam datas e inventavam documentos. Mas o golpe mortal n’esta lenda infantil foi dado por um eminente escriptor brasileiro, o sr. Candido Mendes de Almeida, que depois de mostrar o absurdo da lenda e a ausencia de documentos em que se baseasse, publicou uma carta de um jesuita que, estando em 1559 na terra em que João Ramalho habitava, e dando conta aos seus superiores dos progressos da conversão dos indigenas, lhes fallava n’um Indio que lhe pediu que lhe dissesse quaes os dias em que devia jejuar, porque deixára de o saber desde _a morte de João Ramalho_, que era quem em vida lh’o dizia.[121] O que é, porém, estranho é que ainda encontremos com relação ao Brazil a questão dos mappas. Porque mestre João diz a D. Manuel que, para saber o sitio d’essa terra, veja um mappa-mundi antigo que tem Pero Vaz Bisagudo, d’ahi se conclue que o Brasil já fôra descoberto, tanto que já o inseriam n’um mappa. É a eterna historia dos mappas conjecturaes, dos mappas em que appareciam ilhas que ninguem vira e que ninguem chegou a vêr, e aquella terra ao sul do Equador, a terra incognita austral, a terra antichthona ou o _alter orbis_. Pois não se vê realmente que as cartas muitas vezes acompanhavam as descobertas, e que, se em rigor era possivel que se fizessem descobrimentos que ficassem desconhecidos, o que era impossivel era que a noticia d’esses descobrimentos se propagasse de fórma que lhes inserissem os cartographos nos mappas os resultados, e que apesar d’isso ficassem desconhecidos dos escriptores, dos sabios e dos governos! Cem vezes o repetiremos: os descobridores do seculo XV, cheios de respeito tradicional pela sabedoria antiga, não aspiravam senão a encontrar o que os antigos, no seu entender, conheciam perfeitamente, e por isso faziam esforços para adaptar o que descobriam e que encontravam aos mappas conjecturaes. Como veremos, o que procuravam agora era a terra antichthona, a que já se podia chegar desde o momento que se passára a zona torrida, mas que estava separada da nossa pela extensão dos mares. A essa terra antichthona suppunham chegar agora encontrando o Brasil, e era ao Brasil até que chamavam o _novo mundo_. Que Pedro Alvares Cabral julgára ter chegado á terra separada pelo mar do hemispherio septentrional é incontestavel, e por isso facilmente se convenceu, pelo que julgou deprehender dos gestos dos selvagens, que estava n’uma ilha, a que deu o nome, primeiro que o Brasil teve, de ilha de Vera Cruz.[122] Julgamos porém ter demonstrado que esse descobrimento se liga intimamente com o de Colombo, é a sua consequencia, como era tambem, ao mesmo tempo, o da Terra-Nova por Gaspar Côrte Real. As descobertas portuguezas conjugadas com as de Colombo produziam a descoberta do Brasil. Os dois grandes problemas geographicos estavam resolvidos: a zona torrida não era inultrapassavel, e por isso Pedro Alvares Cabral, seguindo as pizadas de Bartholomeu Dias e de Vasco da Gama transpunha o Equador, entrava em plena zona torrida e ía tranquillamente ao hemispherio meridional. A extensão do mar oceano não era infinita, tinha o Atlantico outra margem, e Pedro Alvares Cabral ía com plena confiança procural-a. Sem os descobrimentos portuguezes nada faria Colombo, porque os Açores eram um ponto capital de partida para as expedições occidentaes, e porque os terrores da zona torrida e das suas proximidades, não lhe permittiriam seguir o parallelo que seguiu. Sem o descobrimento de Colombo nada faria Pedro Alvares Cabral, porque não ousaria ir tão longe para o occidente. A Hespanha e a Portugal devia o mundo essa transformação da sua geographia. Completal-a-hia a circum-navegação do globo e o encontro do caminho pelo occidente para a Asia, e, como se a Providencia quizesse d’essa forma sellar de um modo indestructivel a collaboração dos dois povos na obra mais importante da historia da humanidade, foi um capitão portuguez commandando navios hespanhoes que deu ao mundo o cinto argenteo do rasto das suas quilhas, foi Fernão de Magalhães que planeou dirigiu e iniciou a expedição, foi Sebastião d’El-Cano que a completou e concluiu, e para que n’essa consagração ultima e solemne da conquista definitiva da Terra pelo homem, não faltasse tambem a patria gloriosa de Colombo, a audaz, a pensadora e sonhadora Italia, ía Pigafetta na expedição que narrou, para que assim os tres povos latinos, que eram egualmente benemeritos da civilisação e da sciencia, tivessem n’esse coroamento da grande obra os seus representantes. Essa epopéa ultima que ía pôr o fecho ao trabalho épico de um seculo para sempre glorioso nos fastos da humanidade, foi um Portuguez que a dirigiu, foi um Hespanhol que a completou, foi um Italiano que a escreveu. X Os Côrte-Reaes—Americo Vespucio Fernão de Magalhães Se antes da descoberta de Colombo, se tinham arrojado por mais de uma vez navegadores açorianos para os mares do Occidente, com muita mais razão o fariam, logo que esse importante acontecimento se realisou. Evidentemente as viagens haviam de multiplicar-se. O esforço dos Açorianos e muito especialmente dos Côrte-Reaes dirige-se então sobretudo para o Norte. Desde que Colombo chegou ás Antilhas, que elle tomou por archipelago asiatico, e a Cuba que elle tomou então por um pedaço de terra firme asiatica, opinião em que por muito tempo persistiu, os navegadores de todos os paizes e principalmente os que, antes de Colombo, como os Açorianos, já se occupavam de descobertas para o occidente, haviam de procurar seguir-lhe as pisadas e procurar, o que elle não conseguira, encontrar as terras maravilhosas de Cipango e do extremo oriental das Indias. A convicção geral era que para o sul é que se conseguiria esse _desideratum_, e já vimos como Pedro Martyr d’Anghiera soltava com um enthusiasmo quasi irritado esse grito: Para o sul! para o sul! Era esse effectivamente o caminho que todos em geral seguiam. Colombo e os Pinzon ou foram mais para o occidente, ou foram para o sul. Mas isso não queria dizer que a idéa da navegação pelo norte não entrasse tambem em muitos espiritos. O mappa de Toscanelli, aquelle famoso mappa que era provavelmente o que estava nas mãos de Pero Vaz Bisagudo, obedecia aos principios do geographo que o desenhára e que tinha a convicção de que ao occidente havia um prolongamento da Asia, que defrontava com o continente europeu e africano desde a Islandia até Guiné. Se, indo ao centro, Colombo encontrára effectivamente a Asia, como suppunha, mostrava portanto que era verdadeira a conjectura de Toscanelli, restava confirmal-a completamente. Foi isso que levou Pedro Alvares Cabral e muitos outros navegadores, ou ás occultas ou a descoberto, a dirigirem-se para o sul, foi isso talvez o que levou os Côrte-Reaes para o Norte. Lembram-se os leitores de que uma das supposições da geographia systematica dos antigos era que o mar Baltico tinha saída para o oriente e que ía ligar-se com o mar Indico. Strabão dizia que «o facto de que certos navegadores viessem por mar da India á Hyrcania não é considerado como certo, mas que isso seja possivel, Patroclo nol-o assegura.»[123] Pomponio Mela conta muito positivamente que Metellus Céler, sendo proconsul das Gallias, recebêra de presente de um rei germanico uns Indios que, açoitados pela tempestade, tinham vindo da India á Germania «vi tempestatum _ex Indicis æquoribus abrepti_.»[124] Discutiu-se muito no nosso tempo se estes homens, que eram, ao que parece, e no caso de ser verdadeira a noticia, de uma raça differente da européa, não seriam afinal de contas senão Esquimaus arrojados, como a barcos tantas vezes succedêra e tem succedido, das costas americanas ás costas irlandezas, escocezas ou allemãs. O que é certo é que a idéa de haver communicação entre a Europa e a India pelo norte, indo-se, porém, do occidente para o oriente estava enraizada no animo de muitos geographos antigos. Assim que se encontrou ou se suppoz encontrar a costa asiatica indo-se pelo occidente, a communicação tanto se podia fazer pelo norte, como pelo centro, como pelo sul. Effectivamente as costas asiaticas, como o suppozera Toscanelli, estendiam-se de norte ao sul, desde a Islandia até á Guiné. Era evidente que a expedição do norte tentava os açorianos. Logo que Gaspar Côrte-Real em 1500 encontrou terras, imaginou, como Colombo, ter encontrado terras asiaticas, e uma carta de Pespertigo, embaixador de Veneza em Portugal, é, para esclarecer esse assumpto, muito curiosa. Diz elle: «Tambem crêem (os _Portuguezes_) estar ligada (_a Terra dos Côrtes-Reaes_) com as Antilhas que foram descobertas pela Hespanha, e com a terra dos papagaios (_Brasil_) ultimamente achada pelos navios d’este reino que foram a Calicut.»[125] Humboldt que teve conhecimento d’este documento, espanta-se muito com elle. «No mez de outubro de 1501, diz o sabio escriptor, sabia-se já em Portugal que as terras do norte cobertas de neves e de gelo são contiguas ás Antilhas e á Terra dos Papagaios novamente encontrada. Esta advinhação que proclama, apesar da ausencia de tantos élos intermediarios, como ligação continental entre o Brasil descoberto por Vicente Vanez Pinzon, Diogo de Sepe e Cabral e as terras geladas do Lavrador _é muito surprehendente_.»[126] A surpreza de Humboldt vem apenas da pouca importancia que elle dá á interferencia portugueza no descobrimento da America. Desde o momento que elle ignora as tentativas dos Açorianos para chegarem a terras occidentaes antes de Colombo, as tentativas que fizeram depois, desde o momento que elle não conhece as expedições clandestinas dos Portuguezes para encontrarem ao sul as terras asiaticas que Colombo não achára, desde o momento que attribue a um méro acaso a descoberta do Brasil por Pedro Alvares Cabral é evidente que não pode achar a concatenação de todos estes esforços, de que provém o presentimento da ligação de todas essas terras descobertas separadamente. Era sempre a Asia que todos os descobridores julgavam encontrar, ilhas da Asia ao sul, terras da Asia ao norte. N’um mappa publicado recentemente pelo sr. Harnin, o brilhante apologista dos Côrte-Reaes, se diz que viram n’umas terras a que não chegaram «serras muito espessas, pollo quall segum a opiniom dos cosmófircos se cree ser a _ponta d’asia_.»[127] A prioridade do descobrimento da Terra do Lavrador e da Terra Nova por Gaspar Côrte-Real está hoje tão completamente demonstrada, depois que o sr. Harnin e o sr. Patterson publicaram os seus excellentes trabalhos, que nos parece escusado insistir na refutação das pretenções dos dois Cabots, venezianos ao serviço da Inglaterra. É realmente curioso e estranho, que as descobertas portuguezas, apenas são feitas, encontram logo echo em todo o mundo, e as descobertas estrangeiras, que destruiriam as nossas, tanto em segredo se fazem, que só depois se suppõe reconhecel-as por uma referencia vaga ou por um documento apocrypho. Apenas Gaspar Côrte-Real volta da Terra Nova, apressa-se Pedro Pascaalijo, embaixador de Veneza (de Veneza, que é a patria de Cabot) a communical-a ao seu governo, Alberto Contino ao duque de Mantua. Das viagens de João Cabot só se deprehende que podia ser que tivessem existido, por uma d’essas referencias vagas que temos mencionado. Mais ainda. Henrique VII de Inglaterra, em cujo proveito fizera Cabot a sua expedição, dá a 19 de março de 1501 a mais larga e avultada doação que é possivel imaginar-se a tres negociantes de Bristol, Richard Warde, Thomaz Assehepurat e John Thomaz, associados com os açorianos João Fernandes, Francisco Fernandes e João Gonçalves, para que fossem explorar, descobrir, povoar e dominar todas e quaesquer terras nos mares oriental, occidental, austral, boreal ou septentrional, garante-lhes que, se alguns estrangeiros ou outros individuos ousarem navegar para as partes onde elles forem, sem licença, serão punidos, embora invoquem qualquer concessão que lhes tenha sido feita, etc. É uma verdadeira concessão ingleza, positiva e ao mesmo tempo minuciosissima, sem restricções nem peias, como de quem quer que as coisas se façam e não regateia os meios, mas, se João Cabot se tivesse antecipado a estes mercadores e em proveito do rei de Inglaterra, era absolutamente disparatada semelhante concessão, que só se pode fazer, quando os lezados, se os houver, pertencerem a paiz estrangeiro, e possam, portanto, ser tratados como inimigos.[128] Mas a origem da lenda aponta-a com segurança o sr. Ernesto do Canto. Está na adulteração da versão latina de uma das cartas de Pascaaligo. Diz que «os selvagens têem nas orelhas umas argolas de prata _che senza dubbio pareno sia facti a Venetia_. E, dizendo isto, quer o embaixador dar uma idéa do aperfeiçoamento d’aquella arte selvagem. O traductor diz tranquillamente: _cælaturam Venetam in primis præ se ferentes_. E assim, por uma traducção de má fé ficou estabelecido que antes dos Portuguezes alli tinham estado Venezianos. E quando Pascaaligo affirma que a terra descoberta por Gaspar Côrte-Real até ahi _nunca_ fôra vista por ninguem, Madrijuan traduz: terra até ahi _a quasi_ todo o mundo desconhecida.[129] Mas, apesar d’isso, essas terras do norte figuraram por muito tempo nos mappas como _terras dos Côrtes-Reaes_. Na Terra Nova, no Canadá, no golpho de S. Lourenço conservaram-se nomes portuguezes que se reconhecem atravez da adulteração, como _Por_ Baye bahia da _Torre_, _Mira_, _Minas_, _Porto-Novo_, transformado em _Port-Novy_, e o nome de Lavrador por tanto tempo consagrado difficilmente se pode attribuir a outra linguagem que não seja a portugueza. Felizmente são escriptores americanos e dos mais notaveis que defendem a gloria portugueza e justificam as nossas reivindicações.[130] Na segunda viagem Gaspar Corte-Real singrou mais para o norte, mas nunca mais voltou. Foi em sua busca seu irmão Miguel Corte-Real, mas tambem se perdeu entre os gelos, voltando as caravelas que acompanhavam a sua. E é de ver que, longe de procurarem terras para o sul das que primeiro tinham descoberto, e que seriam de certo mais attrahentes e tentadoras, era sempre para o norte que seguiam, tão radicado estava no seu pensamento o desejo de procurarem a Asia, a Asia opulenta, por aquellas gelidas paragens septentrionaes, de fórma que a procura d’essa passagem do noroeste que fez tantos martyres nos tempos modernos e glorificou tantos navegadores illustres, foi tambem pelos Portuguezes primeiro tentada com audacia mais notavel ainda por serem meridionaes que nem tinham visto talvez em toda a sua vida neve, mas que orgulhosos de terem provado que não era inhabitavel a zona torrida queriam a todas as zonas declaradas inhabitadas pelos antigos, ampliar a sua demonstração, e quando Franklin, o heroe moderno, que esse ao menos sempre vivera em regiões onde o frio é um inimigo constante que se conhece e com que se lucta, ia deixar n’essas ignotas regiões o seu cadaver e dos seus e o casco esmigalhado do seu navio, encontrou talvez enterrada em eternos gelos a caravela de Miguel Corte-Real, e branquejando entre as neves á luz crepuscular do sol dos polos os ossos dos audaciosos Portuguezes que, na epocha aurea da sua gloriosa expansão, não queriam deixar um só recanto do mundo a que não levassem a ousadia do seu genio e o ardor das suas explorações. Por muito tempo perseverou na exploração do Norte a gente açoriana e minhota. A lista dos descobridores não pára nos Côrte-Reaes. João Alves, Fagundes e outros exploraram essa costa, ainda depois dos francezes e inglezes terem tentado tambem ir exploral-a. Houve até tentativas de colonisação, e esses mares foram por muito tempo theatro de actividade dos pescadores portuguezes. Hakluyt ainda notou que eram Portuguezes e hespanhoes os que mais se occupavam da pesca do bacalhau. Navios portuguezes estavam, em certas occasiões, cincoenta ou sessenta.[131] Mas depois cahiu sobre tudo isto a mortalha da decadencia, que, não recobre ao menos a mortalha do esquecimento. Entretanto o Brasil, considerado uma ilha, continuava a ser explorado por Gonçalo Coelho, por Christovão Jacques, Fernando de Noronha, etc., e tambem pelos hespanhoes Pinzon e Solis e pelo veneziano Cabot. N’algumas das expedições portuguezas[132] foi como piloto Americo Vespucio; do seu nome fez Ylacomilas na sua _Cosmographiae introdutio_ o nome do novo continente, e por esse facto se lamenta a injustiça da posteridade, que esqueceu o nome do grande descobridor Colombo para glorificar o nome do fanfarrão cosmographo. É esta questão que rapidamente vamos tratar. Colombo morreu julgando sempre que chegara á Asia e o mundo partilhava a sua opinião. Quando Pedro Alvares Cabral encontrou terra ao sul do Equador, já se não poude acreditar que se estivesse nas visinhanças do Cathay e do Cipango. Não o permittia a latitude. Quando as explorações successivas fizeram reconhecer que se estava realmente n’um grande continente, o que se imaginou, o que se entendeu, porque a tudo presidia a lembrança das theorias da antiguidade, foi que se estava em terra antichthona, e por isso, como diz D. Manuel na sua carta ao rei catholico, muitos lhe davam o nome de Novo Mundo.[133] Era effectivamente _alter orbis_, a quarta parte da terra, com a qual nada tinham as ilhas asiaticas e o continente asiatico que Christovam Colombo descobrira. Quando os Portuguezes em 1501, suppunham que as Antilhas, o Brazil e a Terra Nova constituiam uma terra unica, suppunham que essa terra era a Asia. Quando depois de 1501 se viu que o Brazil se prolongava muito para o sul, entendeu-se que as Antilhas e a Terra Nova faziam parte da Asia, mas que o Brazil constituia a quarta parte do mundo, o _alter orbis_, o Novo Mundo, a terra central de Ptolomeu. Portanto não se fazia uma injustiça a Colombo, nem talvez a Cabral, só aos capitães das expedições em que Americo Vespucio navegara, porque essas expedições é que tinham identificado o paiz novamente descoberto com a antiga terra de Ptolomeu, mas Americo o cosmographo, que espalhara a noticia, foi que colheu o proveito, e o _novo mundo_ descoberto, não por Christovão Colombo, que nem acceitaria semelhante gloria, mas pelas expedições de que fazia parte Americo, recebeu o nome de America,[134] sem que Colombo, se ainda estivesse vivo, podesse ou quizesse protestar. De certo, depois, quando se reconheceu a verdade, quando se percebeu que Novo Mundo era tudo, seria de perfeita justiça restituir a Colombo o que a Colombo era devido, mas já se tomara o habito da nova denominação, demais a mais euphonica e agradavel, e America ficou sendo o todo, quando ao principio só fôra America uma parte. Não temos ensejo agora de discutir a questão das verdades ou das mentiras de Americo. Parece-nos comtudo que tem sido injustamente maltratado o cosmographo florentino. É-lhe muito adverso o visconde de Santarem, que a seu respeito publicou um livro celebre,[135] mas o visconde de Santarem não tinha conhecimento das expedições clandestinas portuguezas, conhecimento que torna hoje mais verosimil a viagem em que Americo Vespucio encontrou, indo para o occidente, Pedro Alvares que voltava da India, e que fôra considerada pelo visconde de Santarem apocrypha. Reconhecida a existencia da terra central, era indispensavel procurar meio de se chegar á Asia. As expedições portuguezas levavam todas o fito de encontrar um estreito que as conduzisse aos mares asiaticos. Essa idéa do estreito era predominante nos espiritos do tempo. Era assim que se fazia a communicação entre os dois mares, e era por estreitos, segundo a cosmographia antiga, que se fazia a communicação entre o mar exterior e os golphos que elle formava, que eram, como dissémos, o mar Persico, o Indico, o Mediterraneo e o Caspio.[136] Como estreitos conhecia a geographia conjectural os mares descobertos por Christovão Colombo. Havia-os em Panamá, e alguns rios da America do Sul foram tomados primeiro por estreitos.[137] D’ahi a lenda que attribue a Fernão de Magalhães o ter tido já conhecimento, por um mappa, do estreito que descobriu. O que elle tinha era a lição dos mappas conjecturaes, era o culto pelas velhas theorias que faziam passar por estreitos as aguas do mar exterior para os mares interiores, e se elle descobriu o que os outros não acharam, se á Hespanha levou essa gloria, foi porque D. Manuel, cançado de não encontrar senão terra para o sul, entendeu que o novo continente se immergia ao sul, como ao norte, pelo polo. Magalhães perseverou, dizendo que penetraria no estreito, ainda que tivesse de sumir-se na região polar, onde ha o frio e a brisa;[138] depois a descoberta das ilhas do mar Pacifico ao sul da Asia, feita por Antonio de Abreu e os outros expedicionarios enviados por Albuquerque, mais o convenceu de que haveria ilhas tambem ao sul da America como as havia ao sul da Asia, e que entre essas ilhas havia de encontrar por força o famoso estreito que o conduziria pelo occidente á Asia. * * * * * Tinha concluido este meu trabalho, e tratava já de lhe pôr o fecho, quando exigencias de uma missão official me levaram a Hespanha. Assisti no dia 11 de outubro de 1892, em Huelva, á ultima sessão do congresso dos americanistas, e, não podendo apresentar o livro que estava por completar, apresentei uma resumida indicação em francez das idéas que lhe serviam de fundamento. Acolhida com extraordinaria benevolencia, essa communicação teve a felicidade de encontrar echos sympathicos. O sr. Hamy, membro do Instituto de França, e dignissimo successor do grande Quatrefages, e o sr. Marcel, distincto geographo, deram noticia ao congresso, logo em seguida á leitura do meu resumo, e a mim em particular, de trabalhos seus que confirmavam plenamente a minha conjectura ácerca da descoberta do Brasil. A linha de demarcação de Tordesillas fôra origem de falsificações cartographicas inspiradas pelo zelo patriotico dos cartographos, falsificações pelas quaes Portuguezes e Hespanhoes procuravam fazer entrar dentro da zona dos seus paizes as terras que se iam descobrindo. Assim effectivamente o governo portuguez mostrava que não fôra platonicamente que pedira e obtivera as 370 leguas além das ilhas de Cabo-Verde. Tratou logo em seguida de explorar esse mar occidental, cujos segredos Colombo desvendára, e a viagem clandestina de Duarte Pacheco não era senão uma d’essas explorações, como foi com esses intuitos exploradores que Pedro Alvares Cabral muito de proposito se desviou do caminho que o devia conduzir directamente á India. Descoberto o Brasil, tratava D. Manuel de explicar ao rei catholico que essa terra não ficava fóra da sua zona, e tratavam os cartographos portuguezes de sanccionar essa affirmação, da mesma fórma que os cartographos hespanhoes procuravam incluir as Molucas na zona concedida ao seu paiz. Foi ainda a esse intuito que obedeceram Abreu e Serrão, enviados por Albuquerque a explorar os mares para além de Java e de Sumatra, e que nas suas audaciosas viagens não só tomaram conhecimento de um grande numero de ilhas que n’esses mares pollulavam, mas entreviram a Nova Guiné, e adivinharam a Australia. Esta ultima affirmação é feita pelo sr. Hamy, e falta-me agora o espaço e o tempo para fazer entrar no quadro d’este livro essa importante e ainda hoje obscura questão do descobrimento da Australia. Mas o que fica assente de um modo incontestavel é que a participação dos Portuguezes no descobrimento da America foi efficaz e activa. Se o seu governo hesitou perante a temeridade de Colombo, se sacrificou demasiadamente aos conselhos da fria razão no momento em que era necessario um lance de audacia e um arrojo de visionario, logo, despeitados por esse momento de fraqueza, e estimulados pelo glorioso commettimento dos visinhos, precipitaram-se com verdadeira furia para esse occidente que tinham receiado desvendar e foram tambem como Colombo em procura da Asia pelos mares poentes. Uns e outros, Gaspar Côrte-Real ao norte e Cabral ao sul, esbarraram com a mesma barreira que detivera Colombo, barreira que os despeitava, que os indignava, que teimavam em considerar como uma longa cadeia de ilhas que se desdobrava, como um cordão de sentinellas ferozes e asperas, deante da Asia resplandecente, e que era afinal bem mais fulgurante de maravilhosas riquezas do que essa Asia decrepita e estagnada no seu somno de seculos. Por entre os gelos do Norte, por entre as suppostas ilhas ao Sul, procuravam todos, Hespanhoes e Portuguezes, o caminho de Cathay e de Cipango. Quando se fatigaram de tão vãs tentativas, quando se convenceram de que era um novo mundo que tinham deante de si, barreira inquebrantavel que lhes vedava por esse lado o caminho para o Oriente, a perspicacia e a audacia e a perseverança do portuguez Magalhães conseguiram desfazer essa ultima illusão, reconstituir no espirito humano a Terra inteira na logica da sua estructura, e conquistar para a Sciencia o morgado da Humanidade. XI Conclusão Lancemos os olhos para o espaço que rapidamente percorremos. Encontramos a sciencia antiga desvelando maravilhosamente alguns dos segredos mais importantes da cosmographia, mas estacionada n’uma solução do grande problema que se lhe affigurara satisfatorio, e que era comtudo um obstaculo invencivel para todo o progresso geographico. Depois de mil conjecturas phantasistas, pode-se dizer que um grande resultado se obtivera: o reconhecimento da esphericidade da terra. Mas o orgulho humano oppunha-se invencivelmente á hypothese que désse a essa Terra, e portanto á raça pensadora que a habitava, um logar inferior no concerto do universo. O sol continuou a girar acompanhado por todo o systema planetario e por todo o mundo stellar em torno da terra immovel e soberana. Era comtudo esse um terrivel escravo, porque bastava a sua ausencia para que fenecesse a vegetação e definhasse a vida; por isso tambem era natural que nos pontos onde o seu contacto fosse mais proximo o excesso do calor produzia o effeito contrario, e désse tal intensidade á vida que a fizesse desapparecer na conflagração do abrazo. O mytho de Zeus e de Semele parecia traduzir este pensamento. Quando a terra mãe, a Terra que o deus terrivel fecundava, o queria ver de perto com todo o explendor do seu vulto, com toda a grandeza da sua omnipotencia, bastava a presença do amante para a reduzir a cinzas. Era em torno da zona média da terra que o sol descrevia o seu giro, era ahi portanto que se approximava da terra, e ahi forçosamente a vida desappareceria no incendio dos seus raios. Assim era a Sciencia que vedava o caminhar do homem. O mundo civilisado dilatava-se, graças aos esforços e á audacia dos Phenicios, mas, por mais audaciosos que fossem, considerariam uma insania suprema transpor os limites das zonas defezas. Para essas regiões que os mortaes não podiam pisar transportava a phantasia humana a residencia d’aquelles, que, libertos dos laços da vida mortal, podiam existir em condições negadas á fraca humanidade. Foi pois assim que para além do terminus da sciencia positiva, ou para o norte, ou para o sul, a imaginação collocou as regiões da bemaventurança. Veiu a edade média, em que uma sociedade barbara procurando reatar o fio da civilisação, tomou como ideal supremo da sua sabedoria a sabia antiguidade. Se Ptolomeu e os outros eram respeitados pelos seus contemporaneos como eximios sabedores, para os seus novos discipulos eram perfeitamente oraculos, e a Sciencia continuou, mais do que nunca, a deter o homem dentro dos limites consagrados. Assim como os Phenicios, fundeados por assim dizer á beira da Syria, sondaram o Mediterraneo primeiro e depois o Atlantico, o infante D. Henrique de pé no posto mais avançado da costa europeia sentiu o desejo ardentissimo de sondar o grande mysterio. Realisou-lhe a audacia dos seus navegadores o seu sonho querido, quebrou-se a barreira da zona torrida, e ampliou-se para o occidente o conhecimento do Oceano. As affirmações da sciencia antiga iam caindo uma a uma sem que os navegadores ousassem comtudo desmentil-as, senão nos pontos em que a experiencia mostrava definitivamente a sua fallibilidade. A Africa foi tomando os seus contornos verdadeiros, dobrou-se a sua ponta meridional, seguiu-se para o oriente, sem se encontrar o mar mediterraneo das Indias, a peninsula indostanica foi tambem reintegrada na sua verdadeira fórma, o Cathay da narrativa semi-legendaria de Marco Polo appareceu na figura extranha d’essa China immobilisada, apesar de rica e sabia, o Cipango transformou-se no archipelago japonez, e as ilhas do meio-dia asiatico começaram a apparecer disseminadas nos mares como as pérolas dispersas de um collar que se despedaçasse. Foi essa a obra gigante dos Portuguezes. Mas a elles tambem se devia o encontro de um novo posto de observação, de uma atalaya estimulante perdida no seio do Oceano. Como os Phenicios em Tyro, como o infante D. Henrique em Sagres, ia Colombo mais adeante sonhar mundos desconhecidos nos penhascos dos Açores. Era d’alli que via as caravelas de outros sonhadores como elle, a quem só faltava o genio e a perseverança, demandar alguma ilha mysteriosa para além do Oceano, ou os restos d’aquella mysteriosa Atlantida, que fôra um dos vagos sonhos da antiguidade. O alargamento da terra seguiu a sua ordem logica; os Phenicios chegavam de Tyro a Carthago, e desvendavam o Mediterraneo, de Carthago a Cadiz e descobriam o Atlantico, os Portuguezes de Sagres desvendavam o segredo do Oceano para o sul e chegavam ao Cabo da Boa Esperança, do Cabo da Boa Esperança quebravam o mysterio do mar oriental, e aportavam a Calicut e a Goa, e de Goa irradiavam para o sul e para o oriente as investigações finaes. De Sagres tambem, singrando para o occidente, iam poisar nos Açores; estava reservado aos Hespanhoes, guiados por Colombo, a audaciosa investigação que ia dar a America ao mundo. O que era necessario, porém, era ligar essas duas grandes emprezas. Por circumstancias verdadeiramente providenciaes foram os representantes dos dois povos ligados na mesma empreza, que ataram as fitas soltas das grandes explorações oceanicas, e esse enlace supremo foi Magalhães que o começou, foi Elcano que o concluiu. Assim nas descobertas como em todas as emprezas do espirito humano é a evolução que se manifesta. Não procede por saltos a natureza, tudo se liga e se concatena. A missão dos grandes homens está exactamente em serem os elos d’essa cadeia. As tentativas infructiferas, dispersas, quasi inconscientes dos Catalães de Jayme Ferrer, dos Normandos de Bethencourt, dos Genovezes de Vivaldi, e dos pescadores e marinheiros portuguezes que procuravam arcar com o cabo Não ou devassar o Atlantico unia-as o infante D. Henrique, dava-lhes o nó que as aproveitava, o cabo Bojador dobrava-se e os Açores e a Madeira sahiam do seio das ondas. As tentativas infructuosas tambem dos Açorianos e dos Madeirenses ligava-as a mão poderosa de Colombo, e dava assim um novo fusil á cadeia dos descobrimentos e a America apparecia. E por isso os povos quando encontram na sua historia um d’esses homens insignes, sem renegar os seus esforços collectivos, nem deixar de lhes reconhecer a importancia, saudam n’esses grandes vultos uns entes extraordinarios que souberam dar uma realidade positiva aos seus sonhos e ás suas aspirações, e foram n’esse tumultuar de pensamentos desconnexos e inconscientes, as radiosas incarnações da Consciencia da humanidade. FOOTNOTES [1] Tom. I, secção 1.ª, pag. 285. [2] Publicado por Dumont no _Corpo Diplomatico_, tom. III, parte I, pag. 200. E além d’esta as bullas de Calixto III, de 14 de maio de 1455 e de Xisto XV, de 21 de julho de 1481, e a famosa divisão dos mares entre Portugal e a Hespanha por Alexandre VI, e os tratados entre Portugal e Hespanha, em que sempre se reconheceu o direito que tinhamos á costa africana pela prioridade do descobrimento, e a deferencia com que a França sempre reconheceu o nosso direito, mandando Luiz XII restituir uma caravela portugueza vinda da Mina, tomada pelos francezes, e prohibindo Francisco I, a 28 de junho de 1532, que fossem navios francezes á costa da Guiné, em attenção aos tratados! V. Visconde de Santarem: _Recherches sur la découverte des pays situés sur la côte occidentale d’Afrique au delà du cap Bojador_ etc., § VII, pag. 67 e segg. E em 1513, publicou-se em França, um livro intitulado: _Nouveau Monde et navigations fectes dans les pays et iles auparavant inconnues_, e cujo primeiro livro se intitula _Livro da primeira navegação pelo Occeano para a terra dos Negros da baixa Ethiopia por ordem do illustre senhor infante D. Henrique, irmão de D. Duarte, rei de Portugal_. E esse livro reimprimiu-se em 1516! E note-se que Francisco I não se desinteressava na questão dos descobrimentos, e os marinheiros francezes procuravam seguir as nossas pisadas. É conhecido o famoso dito do rei de França, que queria saber qual o artigo do testamento de Adão que deixava parte do mundo aos reis de Portugal e de Hespanha. Podendo pôr embargos, era de estranhar que o não fizesse. [3] _Histoire de la première descouverte et conqueste des Canarias faite dés l’an 1402 par messire Jean de Bethencourt, escrite du temps mesme par F. Pierre Bontier et Jean Le Verrier, prestres domestiques dudit sieur de Bethencourt, conseiller du roy en la cour du parlement de Rouen_, cap. LIII, pag. 95. (Paris, 1830). [4] _Ibid._, pag. 4. [5] _Ibid._, cap. LIV. [6] _Ibid._, pag. 102. [7] Palavras de Innocencio VII, escriptas em 1406 a João de Bethencourt e citadas na relação dos capellães a pag. 197, cap. LXXXIX. [8] Este erro gravissimo deu origem a todas as falsas reivindicações francezas, apezar de ter sido completamente desfeito no proprio seculo XV. Chamava-se primeiro _Gianya_, _Gineva_ ou _Gynoya_ ou _Guiné_ á terra proxima de Marrocos, que se suppunha habitada pelos negros, e com a qual se fazia commercio. Era esta a Guiné que ficava a doze leguas das Canarias, «do outro lado da ilha de Fuerteventura», como dizem ainda os capellães de Bethencourt. Azurara, quando chama _Guiné_ á costa do Senegal descoberta pelos Portuguezes, desculpa-se de ter já chamado assim, para empregar a linguagem commum, a outro paiz onde tinham estado primeiro os Portuguezes, e que era d’este muito distante. Essa _primeira Guiné_, ou _Guiné antiga_, reclamou-lhe o senhorio o rei de Castella, D. João II, que escrevendo de Valladolid a D. Affonso V de Portugal, a 19 de abril de 1454, dizia-lhe: «Otrosi, rey muy caro, e muy amado sobrino, vos notificamos que, viniendo ciertas caravellas de ciertos nuestros subditos e naturales vecinos de las nuestras ciudades de Sevilla y Cadiz con sus mercaderias _de la tierra que llaman Guinea, que es de nuestra conquista_, e llegando cerca de la nuestra ciudad de Cadiz á una linea estando en nuestro señorio e jurisdicion, recudieron contra ellos Pallencio, vuestro capitan etc.» Esta Guiné, cuja conquista o rei de Castella dizia pertencer-lhe, fazia parte do reino da Africa, sobre a qual os reis de Castella diziam ter direito, herdado dos Godos. Quando o nome de Guiné ficou pertencendo á região que hoje o tem, quer dizer a que está para além do Cabo Bojador, os reis de Portugal tomaram sem contestação nem cedencia de Castella o titulo de _senhores de Guiné_, baseado no direito de primeiros descobridores que ninguem lhes impugnou. E a Guiné antiga perdeu essa denominação. Ahi está o segredo da confusão que deu origem ás pretenções tão absurdas dos Normandos e dos Catalães. [9] «Toscanelli distingue en outre les îles que l’on rencontrera sur la route, _que estan situadas en este viage_, par exemple l’Antilia, d’avec les îles qui sont proches de l’Inde continentale, par exemple Cipango et les îles avec les quelles trafiquent les négocians de différentes nations.»—Humboldt.—_Histoire de la géographie du nouveau continent_, tom. I, sec. 1.ª, pag. 228. [10] Ácerca das tres Indias, e das differentes denominações com que apparecem na edade média, veja-se sobretudo o magnifico _Essai sur l’histoire de la cosmographie et de la cartographie pendant le moyen-âge_, etc., pelo visconde de Santarem, tom. I, pag. 136, 251, 182, 394, tom. II, pag. XXXVIII, 189, 223, tom. III, pag. 28, 420, 346, 371, 161, 199, 217, 274, 161, 240, 442, 360, 370, 195. (Paris, 1849). Os nomes das differentes Indias são variadissimos, Barbara, Deserta, Primeira, Segunda e Terceiro, Magna e Parva, Superior, Inferior e Exterior, Intra Gangem, Ultima, Arenosa, etc. Sabendo-se o que eram estas differentes Indias, como abrangiam a Tartaria, a Arabia, a China, e até a Ethiopia, espantar-se-ha menos o leitor de que os Portuguezes procurassem na Africa o _Prestes João das Indias_. Essa lenda tambem mudou de local como o nome de Guiné e a designação de Ethiopia, mas pode-se dizer que nunca saíu de alguma d’essas Indias. [11] Gosselin _Recherches sur la géographie systématique des anciens_, tom. I, pag. 140. É firmando-se na auctoridade de Herodoto que este sabio affirma que o grande Oasis do Egypto tinha outr’ora o nome de _ilha dos Bemaventurados_. [12] O mappa-mundi de 1417, conservado no palacio Pitti, por exemplo, indica duas Taprobanas, Ceylão e Sumatra. Quando não era Sumatra exclusivamente Taprobana, era a uma das duas ilhas que esse nome se dava. D. João de Castro no prologo do seu _Roteiro de Lisboa a Goa_, quando falla a El-Rei de Portugal nos dominios que tem, diz: «como Taprobana que os antigos criam ser outro mundo nouo, reconhece seu alto nome e lhe paga pareas» e accrescenta em nota: «_Taprobana é agora chamada Samatra_» a pag. 14. A essa Taprobana tambem se refere evidentemente Camões no seu famoso verso: _Passaram inda além da Taprobana_ Tendo no tempo de Camões chegado os Portuguezes já ao Japão, era bem natural que, havendo a Taprobana-Ceylão e a Taprobana-Sumatra a esta ultima se referisse o grande poeta indicando o limite ultrapassado pelos Portuguezes. O famoso mappa da cathedral do Hereford colloca a Taprobana defronte do golpho Arabico. Prisciano no seu poema geographico põe a Taprobana no mar oriental juntamente com a ilha phantastica do Ouro. No tratado _De moribus brachmanorum_ que se attribue a S.ᵗᵒ Ambrosio citado por Klaproth na sua _Lettre sur la boussole_, pag. 53, põe-se a Taprobana em Ceylão, ilha que tem magnetes que attrahem os navios que teem pregos de ferro e não os deixa mover. N’alguns mappas da edade média põe-se a Taprobana deante da bocca do Ganges. [13] A _Aurea Chersoneso_ de Ptolomeu e de Marino de Tyro corresponde sem duvida á peninsula de Malaca, mas o mappa de La Salle por exemplo colloca a _Aurea Chersoneso_ no Indostão. [14] _Mémoire sur le pays d’Ophir, oú les flottes de Salomon alloient chercher de l’or_, nas _Mémoires de littérature de l’Académie royale des inscriptions et belles-lettres_, tom. XXX, pag. 83 a 93, (Paris, 1764). Este paiz de Ophir tem uma terrivel parecença com as ilhas de Chryse e de Argyra, e do Sol e dos Homens e das Mulheres que apparecem nos mappas conjecturaes. N’alguns mappas Ophir tambem apparece como ilha. Querer determinal-o não será querer tomar muito ao pé da letra as indicações vagas da Biblia? [15] A idéa adoptada na edade média, que vinha da antiguidade e que durou até ao seculo XVI, é a das duas Ethiopias de Homero, a que fica entre os dois Nilos, e a que se liga com os Mauritanos. S. João Damasceno, dividindo os habitantes da terra segundo as areas dos ventos, dizia: «Ad Africum Ethiopes et occidentales Mauri, ad Favonium Herculis columnæ, etc.» _De fide orthodoxa_, tom. I, pag. 69. _Apud_ Visconde de Santarem _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., tom. I, pag. 32. Assim é corrente que a baixa Ethiopia começa para os escriptores medievaes nas proximidades da Mauritania, quer dizer, pega com a Guiné primitiva, com a Guiné de Bethencourt. O titulo dos reis de Portugal mostra bem que Ethiopia quer dizer simplesmente _Africa_. Assim diz o titulo: Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’além-mar em Africa... (Este Algarve na Africa era Ceuta e Tanger, etc.) senhor de Guiné (no sentido que esta palavra tomou depois dos descobrimentos) da conquista navegação e commercio da _Ethiopia_ (Africa meridional e oriental) Arabia, Persia e _India_ (tambem na significação da meia-edade, abrangendo a Asia Oriental). É curioso que um escriptor moderno, de grande merecimento, transcrevendo um trecho de um escriptor já do seculo XVII, em que se diz que um navio que ia para a Ethiopia foi levado pelas correntes para o Brazil, com isso muito se espanta. Não se lembra que a região da Ethiopia comprehendia até a Africa occidental que ficava para além da Guiné. [16] Na primeira viagem, Colombo, chegando a Cuba, disse: _Es cierto que esta es la Tierra-Firme_, Diario de 1 de novembro. Na segunda viagem confirmou essa opinião, e fel-a jurar solemnemente pelos marinheiros a 12 de junho de 1494. Humboldt _Histoire de la géographie du Nouveau Continent_, tom. I, pag. 310, _nota_. [17] Vejam-se no principio do segundo volume do magnifico livro de Humboldt as indicações relativas aos mappas d’esse tempo que separavam umas das outras as diversas porções da America. [18] No seu tratado publicado em latim na edição Reich com o titulo _De facie in orbe Lunæ_, tom. IX, pag. 923. [19] Sobre as differentes theorias relativas á fórma da terra veja-se o _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., tom. I, pag. 14, 223, 410, tom. II, pag. XV, XVII, 32, 252, 258, 10, LIX a LXI, 18, 26, 35, 94, 107, 215, etc., etc., tom. III, pag. 81, 102, 212, 223, 460, 499, etc. [20] Santo Agostinho, S. João Chrysostomo, Lactancio, preconisaram a theoria da _terra quadrada_ declarando-a conforme com o Evangelho, os mappas medievaes como o de Cosmas Indicopleustas do seculo VI, Gervais de Tilbury do seculo XIII, Nicolau d’Oresme do seculo XIV, Guilherme Fillastre do seculo XV. Umas vezes inscreviam-n’a no circulo formado pelos mares, outras vezes pelo contrario, a terra em si é redonda, mas a figura que está inscripta é quadrada. [21] Note-se bem que este é que é o systema de Ptolomeu, o que predominava, apesar de tudo, nos espiritos mais esclarecidos. Pedro agora vae refutal-o, substituindo-lhe uma outra theoria scientifica, menos em desaccordo com as affirmações orthodoxas. [22] _Petri Alphonsi Judeo Christiani Dialogi_, p. 15, apud. Visconde de Santarem, _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., tom. III, pag. 320 a 324. [23] «Se as extremidades da Ethiopia nos offerecem figuras extranhas de homens e de animaes, pouco nos devemos espantar: é o effeito do excessivo calor que alli reina, porque a acção do fogo é maravilhosamente propria para fazer tomar ás partes exteriores de todos os corpos uma infinidade de configurações diversas.» (Plinio, _Historia Natural_, tom. V, cap. XXX.) [24] Macrobio, _In somnium Scipionis_, tom. II, cap. IX. [25] Orosio, _Ormesta mundi_. [26] Santo Isidoro de Sevilha, _De Lybia_. [27] Bedo, _De Elementis Philosophiæ_, tom. IV, pag. 225.—«... _Pars enim illius torridæ parti aeris subjecta, ex fervore solis torrida est et inhabitabilis_, etc.» [28] S. Virgilio, bispo de Saltzburgo. Veja-se a este respeito a _Historia litteraria de França_, tom. IX, p. 156. [29] Raban Mauro de Moguncia, _De Universo_. [30] Alberti Magni Germani, _Philosoph. principii, Liber cosmographicus de natura locorum_, fl. 14_b_ e 23_a_. [31] Roger Bacon, _Opus majus_, pag. 183. [32] _Conciliator differentiarum philosophorum_, Diff. LXVII. [33] _De Universo_, liv. XII, cap. IV, pag. 172. [34] _Speculum naturale_, part. 1.ª, liv. IV, cap. XVII. [35] _De mirabilibus Indiæ._ [36] «Et dien (disent) que illec sont antipodes, c’est-à-dire, gens qui ont leurs pieds contre nos et pour ce qu’ils sont á l’opposite partie de la terre, aussi comme s’ils fussent subz nous et nous soubz eulx. Ceste opinion n’est pas á tenir, et n’est pas bien concordable á notre foy. _Car la loy de Jésus Christ a esté preschié par toute la terre habitable; et selon ceste opinion, telles gens n’en auraient oncques ouij parler, ne pourroient estre subgés à l’église de Rome. Pour ce, reprenne saint Augustin ceste erreur ou ceste opinion_, _lib._ XVI _«De Civitate Dei»_ Nicolau d’Oresme, cosmographo francez do seculo XIV, preceptor do rei Carlos V, _le Sage_.—Manuscripto cosmographico existente na Bibliotheca Nacional de Paris, com o numero 7487, _apud_. Visconde de Santarem, _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., tom. I, p. 142. [37] Quoniam nullo modo scriptura ista mentitur, quæ narratis præteritis facit fidem eo quod ejus predicta complentur; nimisque absurdum est, ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem, Oceani immensitate trajecta navigure ac pervenire potuisse, _ut etiam illic ex uno primo homine genus institueretur humanum_. Lactancio _Divinarum institutionum_, liv. III, cap. IX. [38] Qua propter inter illos tunc hominum populos qui per septuaginta duos gentes, et totidem linguas colliguntur, fuisse divisi, quæramus, si possimus invenire, illam in terris peregrinantem civitatem Dei, quæ ad diluvium arcamque perducta est, at que in filiis Noe per eorum benedictiones perseverare monstretur, maxime in maximo qui est appellatus Sem, quando quidem Japhet ita benedictus est, ut in ejusdem fratris sui domibus habitaret.—_Ibid._ [39] Cosmas Indicopleustas, _Topographia Christã_. [40] _Ibid._ [41] Cosmas, Santo Isidoro de Sevilha, Anonymo de Ravenna, Raban Mauro, Honoré d’Autun, Hugo de Saint-Victor, Vicente de Beauvais, Brunetto Latini, Joinville. A noticia do famoso chronista de S. Luiz a respeito do Nilo, transcripta pelo visconde de Santarem no _Essai_, etc., tom. I, pag. 112, nota 3, não deixa de ser curiosa: «Ici il convient de parler du fleuve qui passe par le pais d’Egypte, et vient du Paradis Terrestre... Quant celui fleuve entre en Egypte il y a gens tous experts et accoustumez, comme vous diriez les pêcheurs des rivières de ce pays-cy qui au soir jettent leurs reyz au fleuve et es rivières; et au matin souvent y trouvent et prennent les espiceries qu’on veut en ces parties de par de ça (dans l’Europe) bien chierement et au pois, comme canelle, gingembre, rubarbe, girofle, lignum, aloes et plusieurs bonnes chouses. Et dit—on pais que ces chouses—lá viennent du Paradis terrestre et que le vent les abat des bonnes arbres, qui sont en Paradis terrestre.» [42] «Para elle (Colombo) o Paraizo Terrestre correspondia ao castello de Kang—diz dos Persas, e devia achar-se n’um logar elevado e inaccessivel.»—Reinaud _Géographie d’Aboulféda_, tom. I, pag. 252. «A corrente do Orenoque é tão forte que Diogo de Lepe reconheceu por meio de um _escalfador_ que só se abria no fundo das aguas, no mar defronte da foz de Orenoque, que, n’uma profundidade de oito braças e meia, só as duas primeiras braças do fundo eram de agua salgada, e as outras de agua doce».—Humboldt, _Histoire de la géographie_, etc., t. I, pag. 314. [43] Lemos n’um manuscripto cosmographico datando d’essa epocha (seculo VII) «_que a terra é da forma de um cone ou de um pião_, de forma que a sua superficie vai, segundo esse systema, elevando-se do sul para o norte.» Visconde de Santarem, _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., tom. II.—_Int._ pag. LX. A fórma ovoide era-lhe attribuida pelo philosopho grego Thalés, seguido por alguns geographos da edade média. Posidonius dava-lhe a fórma de uma funda, como Prisciano tambem. [44] N’uma carta de 1498, publicada por Navarrete, tom. I, pag. 256, compara Colombo a terra com uma pera dividida ao meio, sendo uma parte redonda, e a outra terminada em cone. Esta carta vem tambem nas _Select letters of Christopher Columbus_, publicadas por Major, pag. 130. (Londres, 1847). [45] Os geographos arabes consideravam Gog e Magog como filhos de Japhet, devemos accrescentar que era esta a doutrina mais seguida. [46] É interessante o que diz ácerca d’estes povos o sur Vivien de Saint Martin nas suas _Recherches sur les populations primitives et les plus anciennes traditions du Caucase_, pag. 40 a 47. (Paris, 1847). M. de Sacy considera a muralha de Alexandre como sendo a noção vaga da muralha da China. [47] Ha poucos annos ainda se publicou, em Hespanha, um livro do sr. Junquera _Origen de los americanos_, em que se sustenta essa doutrina. N’ella se baseia um dos romances, e dos menos bons, _Oak openings_ do grande romancista americano Fennimore Cooper. [48] Mela, III, c. VII.—Solino diz que a terra d’essa ilha está sempre vermelha.—Plinio colloca-a perto da Taprobana.—_Hist. Nat_. VI, 22. [49] «Colloquei, diz Toscanelli na carta que escreveu a Colombo e referindo-se ao mappa que mandou ao rei de Portugal, defronte (das costas da Irlanda e da Africa) direito a oeste o principio das Indias com as ilhas e os logares a que poderia abordar.» [50] Todas estas lendas irlandezas, em abreviada exposição, se podem ver no excellente livro de mr. de Villemarqué _La Légende Celtique_, especialmente na _Introducção e na Lenda de S. Patricio_. [51] Os cavalleiros portuguezes estavam no exercito do duque de Borgonha, que defendia Arras, e foram ao combate commandados pelo sire de Cottebrune; os seus adversarios, pertencentes ao exercito de Carlos VI, eram commandados pelo bastardo de Bourbon. Veja-se a nossa _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 267, nota (2.ª edição). [52] _Historia da Universidade_, tom. I, cap. III, pag. 137. (Lisboa, 1892.) A discordancia em que estamos n’este ponto com o illustre professor não nos impede de reconhecermos que o seu livro é monumental. O erudito, a cuja opinião elle se encosta, é João Teixeira Soares, aliás um açoriano benemerito, mas um dos taes que se deixam arrastar pelo prazer de demolir uma gloria consagrada. [53] Veja-se o retrato de Napoleão traçado primorosamente por Taine nas suas admiraveis _Origines de la France contemporaine_. [54] _Os filhos de D. João I_, cap. III, _A villa do infante_, pag. 59 e segg. [55] Humboldt, _Histoire de la géographie du nouveau continent_, tom. I, pag. 334 e segg. [56] Apud Visconde de Santarem, _Recherches sur la découverte_, etc., pag. 113 e 114. [57] Citado por Humboldt na _Histoire de la géographie du nouveau continent_, tom. I, pag. 246. [58] No _Boletim da Sociedade de Geographia_ de Madrid do anno corrente. [59] «Mais avant les Portugais aucune nation de l’Europe ne semble être allée au délà de l’Équateur». (_Histoire de la géographie_, etc., tom. I, pag. 290). [60] «L’horizon géographique s’agrandit peu à peu de la Mer Égée au méridien des Syrtes, de là aux Colonnes d’Hercule et hors du détroit avec Hannon vers le sud, avec Pythéas vers le nord». (_Hist. de la géogr._, tom. I, pag. 32). O horizonte ampliado por Pythéas nunca mais se restringiu, porque é que havia de acontecer o contrario ao horizonte ampliado por Hannon, se este viajante tivesse ido mais longe do que a costa de Marrocos? [61] Ha bullas de Eugenio IV, de Nicolau V, de Martinho V, de Calixto III, de Xisto IV. A bulla de Calixto III, confirmando as de Martinho V e Nicolau V, declara que o descobrimento das terras de Africa Occidental o não possam fazer senão os reis de Portugal. A bulla está no Archivo Real da Torre do Tombo no _Livro dos Mestrados_, fl. 151 e 168. Veja-se a minha _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 248, nota 1, (2.ª edição). A bulla de Nicolau V, que já citámos, de 8 de janeiro de 1454, concedia a el-rei de Portugal, ao infante D. Henrique e a todos os reis de Portugal, seus successores, todas as conquistas de Africa _com as ilhas nos mares adjacentes_ desde o cabo de Bojador e de Não e de toda a Guiné com toda a sua costa meridional. (Arch. Real da Torre do Tombo, maç. 7 de bullas, n.º 29, e maç. 33, n.º 14). Por isso, D. João II, quando fallou a Christovão Colombo a 9 de março de 1493, lhe disse, que se regosijava tanto mais com a sua conquista, quanto tudo quanto elle descobrira pertencia de direito a Portugal. Humboldt, _Histoire de la géographie du Nouveau-Continent_, tom. I, sec. 1.ª, Nota E, pag. 331. E effectivamente por algum tempo se discutiu se os descobrimentos de Christovão Colombo eram ou não de _ilhas nos mares adjacentes_ á costa africana. E não acham curioso que, se Francezes ou Hespanhoes ou Italianos, antes de nós, tivessem passado para deante do Bojador, acceitassem e reconhecessem e fizessem respeitar por leis e decretos o direito que nós tinhamos de não consentir que se fizessem descobrimentos n’esses mares, ou, no caso de se fazerem, o direito que tinhamos ao menos, á posse d’essas terras descobertas!! A proposito d’esse cavalleiro allemão Balthazar, que acompanhou Antão Gonçalves, diz o auctor d’este livro: «Antão Gonçalves voltou a Portugal com os negros, e Balthazar o cavalleiro allemão que o acompanhava tornou para a sua terra, onde foi naturalmente a maravilha de todos os que o escutavam, e um novo Sindbad para os pasmados Germanos. A narração das tempestades, dos perigos, dos estranhos costumes dos Azenegues devia occupar bastantes serões de inverno nos velhos castellos allemães junto da vasta lareira, emquanto gemesse lá fóra o vento e cahisse a neve cobrindo de alvo manto o solo endurecido.» _Hist. de Portugal_, tom. III, pag. 252 (2.ª edição). [62] _Olympiada II_, 127. [63] Como se pode ver no 1.º mappa do Atlas do visconde de Santarem, que é exactamente o mappa catalão de 1375. [64] _Habet_, diz o manuscripto de Genova, _latitudinem unius legue et fundum pro majore navi mundi_. [65] _La plage de sable, qui, comme on l’a dit, forme presque entiérement l’embouchure du Rio d’Ouro ne permet pas de penser que ce lieu puisse recevoir des bâtiments du plus faible tirant d’eau, il ne peut probablement admettre que des canots._ Roussin _Mémoire sur la navigation aux côtes occidentales de l’Afrique_, pag. 96. [66] Observação já feita pelo visconde de Santarem nas suas notas á edição da _Chronica de Guiné_ de Azurara. Veja-se tambem o magnifico capitulo da _Vida do principe Henrique_ do illustre escriptor Richard Major, capitulo intitulado _The slave trade_. [67] Este commentario vem publicado na collecção de Ramusio. [68] O sabio francez Letronne n’uma memoria publicada no _Journal des Savants_ de agosto de 1831, diz o seguinte: «L’hypothése d’un prolongement indéfini de la côte occidentale d’Afrique, à partir d’une latitude voisine de l’Équateur, était fondée sur la direction de la côte d’Afrique depuis la rivière de Nun jusqu’au cap Bojador _que l’expédition d’Hannon n’avait pas dépassée_.» [69] «Ha ainda um personagem duvidoso, diz Renan, este _presbyter Johannes_, especie de socio do Apostolo, que perturba como um espectro toda a historia da Egreja de Epheso e causa aos criticos bastantes embaraços.» _L’Antechrist_, pag. XXIII, trad. do sr. Theophilo Braga, que cita este trecho nas _Lendas Christãs_, cap. V, _As lendas do primado da Egreja_, pag. 213 (Porto, 1892). Este livro do sr. Theophilo Braga é na verdade excellente e foi-me de um grande auxilio n’este estudo ácerca das viagens da lenda do Prestes João. A não ser o livro de Marco Polo e os artigos do illustre sinologo Pauthier, que consultámos directamente, as fontes que citamos são as que o sr. Theophilo Braga aproveitára e indicára. Folgamos de prestar esta homenagem ao nosso illustre confrade, porque, apesar de estarmos muito em desaccordo com alguns dos pontos de vista d’este seu novo livro, não deixamos de reconhecer que é mais uma prova do muito talento e da muita erudição do seu auctor. [70] Esta carta vem publicada na _Cosmographie et histoire naturelle fantastique du moyen-âge de Ferdinand Denis_. [71] Por 1122, no pontificado de Calixto. [72] Ainda na ultima concordata celebrada entre Portugal e a côrte de Roma ácerca do padroado da India tiveram de ser resalvados os direitos christãos do rito syriaco. [73] Theophilo Braga, _Lendas Christãs_, pag. 227. [74] Veja-se a _Nota explicativa do symbolo da arvore do sol e da arvore da lua_, escripta pelo sr. Felix Lajard, e communicada ao visconde de Santarem que a publicou no fim do III volume do seu _Essai sur l’histoire de la cosmographie_, etc., pag. 506. [75] Rosweid, _Vitæ Patrum_.—_Vita S. Macari Romani servi Dei qui niventus est juxta Paradisum._ Andrea Bianco no seu famoso mappa de 1436 põe o Paraizo n’uma peninsula, e junto do Paraizo um grande edificio com esta designação: _Ospitium Macari_. [76] G. Pauthier _Le pays de Tanduc et les descendants du Prêtre Jehan_.—_Revue de l’Orient, de l’Algérie et des Colonies_, tom. XIII, pag. 287. (Paris, 1861). Publica primeiro o capitulo LXXIII, da Relação de Marco Polo, que se intitula: _Cy devise de la province de Tanduc, et des descendants du Prestre Jehan_, a que se segue depois o commentario. [77] Ainda não tinham passado os portuguezes do Cabo Branco, estava-se apenas no anno de 1441 e já o infante encarregava Antão Gonçalves de saber alguma coisa ácerca de Prestes João. [78] Um distincto escriptor francez, Eyriés, que escreveu a biographia de João Fernandes na _Biographie Universelle_, diz que elle fôra o primeiro Europeu que penetrára no interior da Africa e que as particularidades da relação que elle trouxera apresentavam uma grande analogia com as da relação de Mungo-Park. A respeito dos serviços prestados á botanica pelos Portuguezes vejam-se os estudos de primeira ordem do sr. conde de Ficalho, _Plantas uteis da Africa Portugueza_, (Lisboa, 1884), a _Flora dos Lusiadas_, (Lisboa, 1880), a _Memoria sobre a Malagueta_, (Lisboa, 1878). A respeito dos nossos serviços á ornithologia, vejam-se as interessantissimas communicações feitas pelo notavel sabio portuguez o sr. Bocage a Andrade Corvo, e por elle publicadas nas notas á sua edição do _Roteiro de D. João de Castro_. [79] Alvaro de Freitas ia na expedição commandada por Lançarote, almoxarife em Lagos, e n’um momento de enthusiasmo declarou que estava prompto a seguir o seu chefe até ao Paraizo Terreal. V. a minha _Hist. de Portugal_, tom. III, pag. 271. [80] Tristão Vaz Teixeira, foi na grande expedição de 1445, de que fazia parte Soeiro da Costa. Alvaro Fernandes tornou-se celebre sobretudo pelo descobrimento da Serra Leôa. [81] Alvaro Fernandes, por exemplo, foi de uma vez do Cabo Verde á Serra Leôa, e depois Cadamosto e outros exploraram cuidadosamente a costa intermedia, fazendo então viagem como se faz, quando se quer estudar uma costa. «A nossa navegação diz o viajante italiano, sempre foi de dia, lançando ancora todas as tardes ao sol posto com dez ou doze braças de agua.» _Navegações de Cadamosto (traducção portugueza)_ pag. 51. [82] _Histoire de la géographie_, etc., tom. II, pag. 56 e 57. [83] _Os Côrte-Reaes_, pag. 61. (Ponta-Delgada, 1883). [84] _Ibid._, pag. 57. [85] Veja-se Herrera, _Historia general de los hechos castellanos en las islas y tierra firme del mar oceano_, tom. I, cap. II e III, pag. 4 a 6. (Madrid, 1601). [86] Veja-se Herrera, _Historia general de los hechos castellanos en las islas y tierra firme del mar oceano_, tom. I, cap. II e III, pag. 4 a 6. (Madrid, 1601). [87] Publicado no _Archivo dos Açores_, tom. I, pag. 24. [88] Publicado no _Archivo dos Açores_, tom. I, pag. 22. [89] Publicado pelo sr. Ernesto do Canto, nos _Côrtes-Reaes_, pag. 62. [90] Publicado pelo sr. Ernesto do Canto, nos _Côrte-Reaes_, pag. 63. [91] É o proprio Humboldt, que, referindo-se ás epochas do encontro das ilhas diz: «Ces époques sont, pour l’écueil des Formigas, 1431; pour l’île Santa Maria, 1432; pour San Miguel 1444; pour Terceira, San Jorge et Fayal, 1449; pour Graciosa, 1453. La découverte des îles les plus occidentales, Flores et Corvo, paraît antérieure à 1449, mais cette date est moins précise». _Hist. de la géographie_, etc., tom. II, pag. 105. [92] _Os Côrtes-Reaes_, pag. 61. [93] Assim de João Vaz Côrte Real não hesito em referir que se dizia que foi elle quem descobrira a ilha Terceira e a de S. Jorge e que por isso recebera a capitania das duas ilhas (!) Cabo Verde e o Brazil (!!). Tambem a respeito da força de João Vaz conta com a maior seriedade, e como facto authentico, uma d’estas lendas que atravessam os seculos, com as suas variantes, ácerca de homens famosos pela sua força muscular. Assim diz, que, estando João Vaz Côrte Real no Algarve a passeiar na sua quinta, veiu visital-o um castelhano muito forçoso, que tranquillamente, passando n’uma alameda de marmeleiros, os foi arrancando de um e de outro lado, pondo-lhes as raizes ao sol, João Vaz não fez a mais leve observação, mas apanhando os marmellos, apertou-os na mão e esmagou-os completamente não lhe ficando na mão senão o bagaço. É uma variante da historia do ferrador, um Mauricio de Sarce ou um D. Pedro II de Portugal. O rei ou o principe partia com a maior facilidade cada ferradura que o ferrador lhe apresentava, dizendo-lhe que não era boa, e o ferrador calado. Quando o alto personagem, pagando generosamente a sua ostentação de força, deu uma moeda de ouro ao ferrador, este partiu-a dizendo que não era boa. Como se vê, é o conto popular sempre com a mesma forma, repetida por um escriptor crendeiro, cujo testemunho tem comtudo servido para que escriptores serios percam o seu tempo com umas das suas lendas! [94] _Os Côrte-Reaes_, pag. 36. [95] _Ibid._, pag. 35. [96] _Os Côrte-Reaes_, pag. 19. [97] Arch. Nac. da Torre do Tombo, liv. 49 de D. João III, fl. 243, verso. Transcripto nos _Côrte-Reaes_, pag. 121 a 125. [98] Não ha razão seria para que a Groenlandia pertença á America e não lhe pertençam os Açores. Da Islandia, que é a ultima parte da Europa, á Groenlandia, vão 240 leguas, de Portugal a S. Miguel 247. Portanto, se os islandezes descobriram a America porque chegaram á Groenlandia, com mais razão se pode dizer que descobriram os Portuguezes a America porque chegaram aos Açores. É perfeitamente pueril estar a discutir quem foi que tocou primeiro nas terras americanas, a gloria consiste em não ter hesitado em atravessar centos e centos de leguas de mar com o fim de chegar ao Oriente pelo caminho do occidente. [99] Diz Pedro Nunes: «E perderam-lhe (_os Portuguezes_) tanto o medo (_ao mar_): que nem ha grande quentura da torrada zona: nem o descompassado frio da extrema parte do sul: com que os antigos escriptores nos ameaçavam lhes pode estorvar: «...Tirará nos muitas ignorancias: e a mostraram ser a terra mór que o mar (_o erro de Colombo_): e auer hi antipodas: que ate os Santos duvidaram: e que nam a regiam que nem por quente nem por fria se deyee de abitar.» _Tratado que o Doutor Pero Nunes, cosmographo del Rey nosso senhor fez em defensão da carta de marcar: võ o regimento da altura._ Reg. 1. (Lisboa, 1537). [100] Humboldt, _Histoire de la géographie_, etc., tom. II. Nota _H_, pag. 369. [101] Veja-se a interessante obra de Navarrete, tom. I, pag. 300. [102] Strabão, II, pag. 83, 113 e 116. Itaque, diz Strabão na formosa passagem em que prophetisa a America, compluribus verbis persuadere nititur Eratosthenes nisi Atlantici maris obstaret magnitudo, posse nos navigare in eodem parallelo, ex Hispania in Indiam per universum id quod reliquem est, demta dicta distantia (hoc est longitudinæ terræ habitatæ) quæ totius circuli trientem excedit». Strabo, liv. I, pag. 113-114. Assim, excedendo as terras habitadas a terça parte do parallelo, o mar a percorrer é um pouco inferior a ⅔ e menos de 240°, mais de 236°. A differença imaginada por Eratosthenes e Strabão e a distancia verdadeira não é grande. [103] Esta carta foi publicada pelo sr. Teixeira de Aragão na excellente _Memoria ácerca do descobrimento da America_ que escreveu para o volume consagrado pela commissão portugueza do centenario de Colombo a esta grande solemnidade. É datada de Aviz de 20 de março de 1488. Trata Christovam Colombo por nosso especial amigo. [104] _Os Côrtes-Reaes_, pag. 65, nota 123. A carta de doação a Fernão Dulmo vem publicada no mesmo volume de pag. 64 a 69. [105] «No me admiro tengais, diz-lhe Toscanelli na sua segunda carta, tan gran corazon _como toda la nacion portugueza, en que siempre ha habido hombres señalados en todas emprezas_. [106] A carta é de maio de 1505, citada por Navarrete no t. III pag. 528, e Humboldt, t. III, pag. 260. [107] Veja-se a minha _Historia de Portugal_, t. IV, pag. 272. [108] Foi Humboldt que fez notar a differença entre as duas versões da mesma bulla, _Hist. de la géographie_, etc., sec. II, t. III, pag. 52, nota. [109] A filha de Izabel a Catholica desposára o filho d’el-rei D. João II, o principe D. Affonso que morreu de uma desastrada quéda de cavallo a 13 de julho de 1491. [110] Humboldt, _Histoire de la géographie_, etc., sec. II, t. III, pag 55. [111] _Quadro elementar das relações politicas e diplomaticas de Portugal com as diversas potencias do mundo_, t. II, pag. 390 Lisboa, 1844. O tratado vem publicado _in extenso_. [112] Pedro Martyr d’Anghiers, _Oceanicas_, dec. VIII, cap. 10. [113] Foi o duque de Medina-Sidonia que se offereceu para ir com as suas caravelas em perseguição dos portuguezes, e a 2 de maio de 1493 pediam os reis catholicos ao duque que as tivesse prestes, a 12 de junho e 27 de julho affiançavam a Colombo que não havia motivo para se desconfiar do rei de Portugal, doc. n.ºs 16, 50 e 54 publicados na _Collecção de viagens e descobrimentos_, citados pelo sr. Teixeira de Aragão a pag. 18 da sua _Breve memoria sobre o descobrimento do Brazil_. [114] O trecho da _Esmeralda_ é o seguinte: «Como no terceiro anno do vosso reinado do anno de Nosso Senhor de mil quatrocentos noventa e oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte occidental, passando além do grande mar oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme com muitas grandes ilhas adjacentes a ella, que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo arctico.» _Esmeralda_ liv. 2.º, cap. I, transcripto pelo sr. Teixeira de Aragão na sua _Breve Noticia_, etc., pag. 47. D’este trecho deduz-se que Duarte Pacheco foi mandado descobrir para o occidente em 1498, o que não faz senão confirmar o que temos dito, mas não que Duarte Pacheco descobriu o Brasil. Nem elle diz que _achou e navegou_ essa terra, mas sim que essa terra _é achada e navegada_, e isto em 1505. [115] _Roteiro geral do globo_, tom. XI, sec. 1.ª, pag. 2 (Lisboa 1839). Mouches, _Les côtes du Brésil_, sec. II, pag. 8 (Paris, 1864). [116] N’uma das sessões do _Instituto Historico Geographico do Brasil_, o imperador D. Pedro II propoz como assumpto de discussão «se a descoberta do Brasil foi intencional ou devida ao acaso». Joaquim Norberto fez uma memoria interessante sustentando que a descoberta foi intencional, Machado de Oliveira fez uma memoria de uma futilidade inexcedivel e de uma grosseria imperdoavel que nem merece que d’ella nos occupemos, Gonçalves Dias sustentou com argumentos broncos, mas com vigor de estylo, mostrando-se muito talentoso e muito erudito, que a descoberta fôra occasional. Joaquim Norberto replicou e muitissimo bem. O unico argumento de algum peso que Gonçalves Dias apresentava era o da corrente equatorial que corre de léste para oeste. É esse exactamente o que o sr. Baldaque da Silva destróe technicamente e de um modo completo. [117] _Les côtes du Brésil_, pag. 115, nota _a_. [118] _Ibid._, pag. 12. [119] _Ibid._, pag. 116, nota _a_. [120] «Sahindo do dito Cabo Verde, esta terra jaz entre Oeste e Sudoeste, ventos principaes, e dista do dito Cabo Verde quatrocentas leguas». _Carta de Portugal enviada ao rei D. Manuel ácerca da viagem e successo da India_, traduzida da versão italiana pelo sr. Prospero Peragallo, e por este publicado com o texto italiano e annotado nas _Memorias da commissão portugueza do centenario de Colombo_. O trecho que citamos vem a pag. 9 _in fine_. Como se vê, estando a 400 leguas de distancia não a oeste, mas a oes-sudoeste a distancia do meridiano de Cabo Verde ao meridiano de Vera-Cruz não podia ser superior a 370 leguas. Pero Vaz de Caminha disséra-lhe: «Topamos algūus synaes de terra seendo da dita ilha (_S. Nicolau de Cabo-Verde_) segundo os pilotos diziam obra de VIᵉ LX ou LXX legoas ᵉlc (670 _ou_ 701 _leguas_)». Esta carta de Pero Vaz Caminha tem sido muitas vezes publicada. Fazemos o nosso extracto da memoria do sr. Aragão, onde vem nos documentos, pag. 66. [121] A carta do jesuita Antonio de Sá escripta em hespanhol aos jesuitas da Bahia e datada de S. Vicente, 13 de junho de 1559 diz: «Un Indio que se llama Belchior está puesto en ayunar todos los dias que manda la Iglesia, y sin yo le hablar nada, preguntóme que le hiziese saber los dias de ayuno y cual no se comia carne, diciendome que antes _que muriese Juan Ramallo que el se lo dezia y ayunaba todos los dias que la Iglesia manda_.» O estudo a que nos referimos feito pelo sr. Candido Mendes de Almeida vem publicado na _Revista trimensal do Instituto Historico Geographico do Brasil_, e n’esse periodico vem tambem as memorias de Joaquim Norberto, Gonçalves Dias e Machado de Oliveira, a que atraz nos referimos. [122] «ao qual monte alto, diz Pero Vaz de Caminha, o capitam poz o nome de monte pascoal e aa tera a tera de Vera-Cruz». Depois de ter entrado em communicação com os habitantes é que Pedro Alvares Cabral considerou a terra como uma ilha, e a denominou _ilha de Vera Cruz_. [123] Strabão XI, pag. 518. [124] Pomponio Mela, t. III, c. 5, 98. [125] _Les Corte-Real_ par mr. H. Harrisse, pag. 209. Ernesto do Canto, _Os Côrtes-Reaes_, pag. 211. [126] _Histoire de la Géographie_, etc., t. IV, pag. 263. [127] Legenda do mappa mandado fazer em Lisboa por Alberto Cantino em 1502. O sr. Ernesto do Canto transcreve-a a pag. 208 do seu livro. [128] Esta curiosa doação foi publicada em texto latino por Bidle na obra que saío anonymamente em Londres, 1831 e que se intitula _A Memoir of Sebastian Cabot with a Review of the History of Maritime Discovery, illustrated by documents from the Rols, new first published_. Abrange de pag. 312 a 320. O sr. Ernesto do Canto publica tambem o texto latino com a traducção portugueza no seu livro _Os Côrtes-Reaes_ e abrange de pag. 74 a 87. [129] E. do Canto, _Os Côrtes-Reaes_, texto italiano a pag. 45 e 46, traducção latina de Madrijuan a pag. 47 e 48. [130] São interessantissimas as indicações dadas a esse respeito pelo sr. Patterson, na sua magnifica memoria. A bahia de Fundy, diz elle, é evidentemente a Bahia Funda. Tambem nota que apparece lá o nome de Tanger, que não podia ter sido posto senão pelos portuguezes, senhores então d’essa praça, e sempre tão relacionados com ella. [131] «There are about 100 sail of Spaniards who come to take cod, who make it all wet and dry... As touching their tonnage I think it may be 5,000 or 6,000. Of Portugals there are not above fifty or sixty sail, whose tonnage may amount to 5,000, and they make all wet.» Citado pelo reverendo George Patterson na excellente memoria que publicou nas _Trans-Roy. Soc. Canada_, e que se intitula _The Portuguese in the North-East coast of America, and the first European attempt at Colonization there. A lost chapter in American History_, pag. 145. Esta memoria foi lida na _Royal Society_ a 28 de maio de 1890. [132] Esta exploração outr’ora tão importante e activa, na qual estavam empenhados capitaes e interesses tão avultados, concorrendo para ella tantas partes do nosso continente, vê-se hoje reduzida a uma duzia de navios que a entretêem apenas em dois centros de pescarias: Figueira da Foz e Lisboa.» A. A. Baldaque da Silva, _Estado actual das pescas em Portugal_, pag. 166. E diz, em nota, que a pesca do bacalhau era tão importante no tempo de D. João III e d’el-rei D. Sebastião «que foi providenciada por um regimento particular para as frotas que annualmente expediam a esta pescaria.» Emquanto á colonisação, que foi motivada exactamente pela importancia da pesca do bacalhau, foi promovida por varias pessoas de Vianna do Minho, muito interessadas n’este negocio da Terra Nova, pelas muitas relações que tinham com os Açorianos. D’esta colonisação dá conta um interessante folheto publicado ha poucos annos, mas escripto no seculo XVI, que se intitula: _Tratado das ilhas novas e descobrimento d’ellas e outras coisas feito por Francisco de Souza, feitor d’El-Rei Nosso Senhor, na capitania da cidade do Funchal da ilha da Madeira e natural da mesma ilha e assim de parte da nação portugueza que está em uma grande ilha, que n’ella foram ter no tempo da perdição das Espanhas, que ha trezentos e tantos annos em que reinou El-Rei Dom Rodrigo. Dos Portuguezes que foram de Vianna e das Ilhas dos Açores a povoar a Terra Nova do Bacalhau vae em sessenta annos, do que succedeu, o que adiante se trata. Anno do Senhor de 1570. Ponta Delgada, S. Miguel, Açores 1877._ É curiosa a mistura de lenda e de verdade que n’este titulo se encontra. Ao lado de uma colonisação perfeitamente authentica n’uma ilha certa é conhecida ainda a velha lenda da ilha das Sete Cidades colonisada pelos sete bispos, que fugiram da Peninsula com os seus fieis no tempo do rei Rodrigo! [133] «Outros chamam-lhe, diz D. Manuel, terra nova ou novo mundo». [134] Veja-se o estudo desenvolvido de Humboldt, que aliás não vê as coisas debaixo do nosso ponto de vista nas notas finaes do vol. V, da sua _Histoire de la géographie_, etc., da pag. 180 em diante. [135] _Recherches historiques, critiques et bibliographiques sur Améric Vespuce et ces voyages._—Paris, sem data. [136] Veja-se a carta de mr. Letronne a Humboldt, publicada no vol. III, da sua _Histoire de la géographie_, etc., da pag. 119 em diante. [137] Veja-se Humboldt, _Histoire de la géographie_, etc., tom. II, pag. 26 e segg. Falando do globo de João Schoner diz: «Figurou no globo o estreito no logar em que Colombo debalde o procurara.» No globo de Weimar (que tem a data de 1534) ha dois estreitos, um a 42° de latitude sul, e outro no isthmo de Panamá a 10° de latitude ao norte do Equador. [138] «Se não tivessemos achado este estreito, diz Pigafetta, o capitão-general estava disposto a ir até 75 graus para o polo antarctico onde no verão não ha noite, ou muito pouca e da mesma maneira no inverno não ha luz do dia ou ha pouquissima.» _Navegação e viagem que Fernando de Magalhães fez de Sevilha a Moluco no anno de_ 1519, pag. 61 da traducção ingleza de sir Stanley de Alderley, (Londres, 1874). *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES E OS DE COLOMBO: TENTATIVA DE COORDENAÇÃO HISTORICA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. 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