Title: A brazileira de Prazins: scenas do Minho.
Author: Camilo Castelo Branco
Release date: September 4, 2022 [eBook #68905]
Language: Portuguese
Original publication: Portugal: Livraria Lélo, limitada
Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by Hathi Trust Digital Library.)
INTRODUCÇÃO
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CONCLUSÃO
P.S.
Entre as diversas molestias significativas da minha velhice, o amor aos livros antigos—a mais dispendiosa—leva-me o dinheiro que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de pilulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me illustro com os archaismos, arruino o estomago e enferrujo o cerebro em uma caturrice academica.
Constou-me aqui ha dias que a snr.ª Joaquina de Villalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adéga, e que as pipas, em vez de malhaes de pão, assentavam sobre missaes. O meu informador denomina missaes todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar á snr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só m'os deixou vêr, mas até m'os deu todos—que escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliomano. Elles, gordurosos, humidos, empoeirados, pareciam-me seductores como ao leitor delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de cold-cream, pulverisada de bismutho.
Havia sermonarios latinos, um Marco Marullo, tres rhetoricas, muitas theologias moraes, um Euclides, commentarios de versões litteraes de Tito Livio e Virgilio. Deixei tudo na benemerita podridão, tirante uma versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro Entendimento literal e constrviçam portugueza de todas as obras de Horacio, por industria de Francisco da Costa, impresso em 1639.
Disse-me a dadivosa viuva de Villalva que os livros estavam na adéga, havia mais de trinta annos, desde que seu cunhado, que estudava para padre, morrêra ethico; que o seu homem—Deus lhe falle n'alma—mandára calear o quarto onde o estudante acabára, e atirou para as lojas tudo o que era do defunto—trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto seccamente do extincto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão fagueira o ventre gravido de uma gata malteza que lhe resbunava no regaço, passando-lhe pela cara a cauda em attritos d'uma flacidez de arminho. E eu que dedico aos bichos um affecto nostalgico, uma sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho com uma meiguice antiga—a das meninas da minha mocidade que piscavam. Onde isto vai!
A snr.ª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento, offereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se chamava Velhaca—ajuntou com a satisfação de quem completa um esclarecimento interessante. Agradeci o por vindouro filho da Velhaca, fiz uma caricia no dorso crespo da mãe, que m'a recebeu familiarmente, e sahi com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que a snr.ª Joaquina, com um riso sceptico, indisciplinado, me disse serem do tempo dos Affonsinhos.—Porque o seu sogro, accrescentou, era um asno ás direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum; e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres vendiam a bula e compravam a carne; e, ajuntando á heresia um anexim de limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos peccados que entram pela bocca.
Depois informaram-me que esta viuva, bastante estragada no moral e ainda mais no physico, andára de amores illicitos com um escrivão do juiz de paz, o Barroso, um dos 7:500 do Mindello, que lêra o Bom senso do cura João Meslier, e a saturára de má philosophia, e tambem a esbulhára de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua riqueza—a Fé, o bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e contentes para os mysterios da eternidade.
Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as paginas dos dous livros, preparado para o dissabor de encontral-os mutilados, defeituosos, com folhas de menos, comidas pelas ratazanas collaboradoras roazes do gallicismo na ruina da boa linguagem quinhentista. Folheei o Entendimento literal e constrviçam até paginas 154, e aqui achei um quarto de papel almaço amarellecido, com umas linhas de lettra esbranquiçada, mas legivel e regularmente escripta. O contheudo do papel, onde se conheciam vincos de dobras, era o seguinte:
José, teu irmão, quando eu hoje sahia da Igreja, onde fui pedir a Nossa Senhora a tua vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a pedir a Deus pela tua alma. Eu já não posso chorar mais nem rezar. Agora o que peço a Deus é que me leve tambem. Se não morrer, endoudeço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao pé de ti.
Martha.
Não é preciso ser a gente extraordinariamente romantica para interessar-se, averiguar, querer noticias das duas pessoas que tem n'estas linhas uma historia qualquer, mais ou menos vulgar. Occorreu-me logo que o estudante, a quem o livro pertencera, tinha morrido na flôr dos annos. Além d'isso, na margem superior do frontespicio do volume, está escripto o nome do possuidor—José Dias de Villalva, e a carta é dirigida a um José. Conclui ser o cunhado da viuva quem recebêra a carta.
Voltei a casa da snr.ª Joaquina, muito açodado, como um anthropologista que procura um dente pre-historico, e perguntei-lhe se o seu cunhado se chamava José Dias; e se tinha alguma conversada, quando morreu.—Que sim, que o cunhado era José Dias e que morrêra pela Maria da Fonte.
—Pois elle amou a Maria da Fonte?—perguntei com ardente curiosidade historica, para esclarecer a minha patria com um episodio romanesco das suas guerras civis. Ella sorriu e respondeu:
—Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por ahi andavam os da Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papellada dos escrivães, sabe vm.cê?—Acho que foi então ou por perto. E ajuntou:—Elle gostava ahi muito d'uma moça, isso é verdade. Era a Martha...
—Martha?—disse eu com a satisfação de vêr confirmada a assignatura do bilhete.
Vm.cê conhece-a?
—Não conheço.
—É a brazileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem quinze quintas entre grandes e pequenas.
—Bem sei; mas nunca vi essa mulher.
—Não que ella nunca sae do quarto; está assim a modos de atolambada ha muito tempo. Credo! ha muitos annos que a não vejo. Dá-lhe a gota, salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa má no interior. É uma pena. Não sabe o que tem de seu. O Feliciano é o homem meus rico d'estes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e pão de milho. Elle quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem do Brazil todos os annos, vai a pé, e mette ao bolso umas côdeas de borôa e quatro maçãs para não ir á estalagem.
Interrompi com interesse de artista:
—Disse-me que ella endoudecera. Foi logo depois da morte do seu cunhado?
—Isso já me não escordo. Quando eu vim casar para aqui já meu cunhado tinha morrido. O que me lembra é dizer-me o meu defunto, que Deus tem, que o rapaz ganhou doença do peito p'rámôr d'ella. Esses casos ha muita gente que lh'os conte. Ha por ahi muito homem do seu tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Caldellas que andou com elle nos estudos e sabe todas essas trapalhadas.—E n'um tom de noticia festival:—Olhe que o gatinho nasceu esta noite; lá lh'o mando assim que estiver creado. Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?
—Faça-me o favor de lhe não cortar nada.
Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica de uma dama ingleza á nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ella, lady Jackson, escreve que lhe fazem compaixão os pobres bichanos que, sem cauda nem orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos. Excellente senhora!
Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldellas na feira de Santo Thyrso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabolar-se com elle uma indagação de curiosidades sentimentaes.
Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o padre Osorio. Parece que tambem as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve mocidade, nem as ambições que supprem os dôces affectos do coração mutilados pelo calculo ou congelados pelo temperamento. Ha trinta e dous annos que pastoreia uma das mais pobres freguezias do arcebispado. Prégou alguns annos com applauso dos entendidos e inutilidade dos peccadores. A rhetorica é a arte de fallar bem; mas os vicios são a arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.
Como prégava gratuitamente, o vigario de Caldellas era chamado por todos os mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os panegyricos dos santos mais ou menos hypotheticos, pediam-lhe que prégasse da cura milagrosa d'umas maleitas ou d'um leicenço—casos que a pobre Natureza e o periodico chamado Esculapio só de per si não poderiam explicar.
O vigario subia ao pulpito e improvisava coisas de grande engenho em linguagem muito singela. Affirmava que Deus era tão bom, tão previdente, que dera á condição enfermiça do homem forças vitaes, sobrecellentes que resistiam á destruição; e que a Natureza, grande milagre do seu Creador, só de per si era bastante para a si mesma se restaurar. Ora, um abbade rico, bacharel em theologia, que lhe ouvira estas idéas assaz naturalistas, perguntou-lhe, á puridade, se elle negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sezões e dos leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois, accrescentou:—Deus fez o supremo milagre da sciencia para centuplicar as forças á natureza enfraquecida.—O theologo enrugou scientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou:—O snr. reitor foi ferido da peste do seculo. Está iscado de Voltaire e de Alexandre Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.—O reitor de Caldellas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o pulpito.
Estas informações e o aspecto lhano, harmonico do padre, animaram-me a dizer-lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns esclarecimentos a respeito de uma carta encontrada em um livro que pertencera ao seu condiscipulo José Dias de Villalva. Recorda-se? perguntei.
—Se me recordo do meu pobre José Dias! Pois não recordo? Parece-me que ainda sinto n'este braço o peso enorme da sua face morta, e já lá vão trinta e cinco annos. É preciso ter na alma dolorosas reminiscencias para se recordar um amigo morto ha tantissimo tempo, não lhe parece? Como sabe v. que existiu esse obscuro filho de um lavrador?
Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assignatura, gesticulou affirmativamente, e, após uma breve pausa de recolhimento com as suas recordações, disse:
—Fui eu que puz esta carta entre as paginas de um livro do Dias. O meu pobre condiscipulo, quando este papel lhe foi mandado á cama, já não o podia lêr. Tinha cahido no torpor, na indifferença que, a meu vêr, é a compaixão da Providencia pelos que morrem amando e não querendo morrer. Já não via a vida nem a morte. Li esta carta; e, como elle nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente. Era um commento de Horacio que eu lia nos seus intervallos de modorra, afim de dar ao meu animo uma folga que me fortalecesse para resistir ao golpe final. Já sei pois o que você deseja. Quer saber se esta Martha está no caso de merecer a consagração romantica que Bernardin de Saint-Pierre usurpou ás dôres verdadeiras, para coroar d'uma eterna aureola a sua phantastica Virginia.
—Não vou tão longe, respondi com a modestia genial dos escriptores que immortalisam. A brazileira de Prazins não póde contar com o seu immortalisador em mim, nem me parece bastante fecundo o assumpto. Sei que temos um namoro de uma menina com um estudante, o estudante morre e a menina casa com um sujeito que tem quinze quintas. Se não ha mais do que isto...
O cura interrompeu:—Vejo que sabe quem é Martha; mas não a conhece bem. Virginia e Francesca e Julieta não são mais dignas de piedade nem de romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permitte que se abram intercadencias de luz no espirito para que a saudade rebrilhe na escuridão da demencia, é incomparavelmente mais funesto que o amor fulminante. O que é vulgar é morrer logo ou esquecer quinze dias depois. Quando eu tinha uma irmã que lia novellas, á custa de lh'as ouvir analysar com um enthusiasmo digno de melhor emprego, achei-me envolvido na litteratura de Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de fazer presente do meu santo Affonso Maria de Ligorio e da minha Theologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado que me prophetisou que minha irmã havia de morrer doudas a scismar nas patacuadas das novellas. Ella não morreu douda; mas pensava em romancear a historia de Martha, porque dizia ella que, tendo lido trezentos volumes de novellas, não encontrára caso imitante.—E, dando-me o bilhete de Martha: Este quarto de papel é o exordio de uma agonia original.
Como a exposição do reitor sahiu muito enfeitada de joias sentimentaes—detestavel especie archeologica que ninguem tolera,—farei quanto em mim couber por, uma a uma, ir mondando e refugando as flores de modo que as scenas dramaticas se exponham aridas, bravias como sêrro de montanha por onde lavrou incendio, sem deixar bonina, sequer folhinha de giesta em que a aurora imperle uma lagrima. A Aurora a chorar! de que tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra n'uma idéa a sua certidão de idade e uma reliquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os bigodes tingem-se; mas as phrases—madeixas do espirito—são refractarias ao rejuvenescimento dos vernizes.
Martha era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no espaço de vinte annos, lhe mandara tres moedas, com os seguintes encargos: á mãe 6$000 réis fortes, ás almas do Purgatorio, de Negrellos, 3$000 réis tambem fortes, que lh'os promettera quando embarcou, e o resto para elle—«5$400 réis, dizia, é que o maroto, podre de rico, me mandou em vinte annos!»
A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte, e, afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro, mestre de obras, muito endinheirado e já maduro, appareceu o José Dias, filho d'um lavrador rico de Villalva, a namoriscal-a. Este rapaz estudava latim para clerigo; mas, como era fraco, de poucas carnes e amarello, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem puxar pelas memorias. Os padres do Minho, n'aquelle tempo, não puxavam quasi nada pelas memorias; ordenavam-se tão alheios ás faculdades da alma que, sem memoria nem entendimento, e ás vezes sem vontade, eram soffriveis sacerdotes, davam poucas syllabadas no Missal e liam os psalmos do Breviario com uma grande incerteza do que queria dizer o penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão facil a ordenação—uma coisa que se fazia com uma perna ás costas, diziam certos vigarios—sem precisão absoluta de puxar pelas memorias, o Joaquim Dias quiz tirar o filho do latim que lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Fr. Roque. Este padre-mestre tinha uma irmã paralytica; sabia lêr, e prendas de costura, marcava, fizera um pavão de missanga, não desconhecia o crochet e ensinava raparigas para se distrahir.
No quinteiro do padre-mestre Roque foi que o José de Villalva se affez a reparar na Martha de Prazins, uma rapariga muito alva, magrinha, de cabello atado, muito limpa, com a sua saia de chita amarella com dois folhos, jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos escarlates, muito séria com proposito de mulher e ares muito sonsos—diziam as outras, que lhe chamavam a songuinha. Os outros estudantes, rapazolas vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de borôa nas algibeiras das vesteas de saragoça de varas, e os velhos Virgilios ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a Martha—chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão. O José Dias, arredado do grupo dos trocistas alvares, via-a passar silenciosa, indifferente aos gracejos, olhos no chão, e um grande resguardo na barra da saia quando subia a escada. Os rapazes, aquelles embriões de abbades, como a escada de pedra era ingreme e aberta do lado do quinteiro, punham-se a espreitar as pernas das alumnas da paralytica, pela maior parte raparigas entre doze e dezeseis annos, muito musculosas, com pés grandes e os tecidos repuxados e cheios pelo exercicio dos carrêtos nas safras da lavoira.
Martha ia nos quatorze quando o pai a quiz tirar da mestra. Chegára-lhe aos ouvidos que os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com a filha. Queixou-se a Fr. Roque.
O egresso, resfolegando honradas coleras e pulverisações de esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou a Martha.
—Qual foi d'estes tratantes o que implicou comtigo, cachopa?—perguntou o padre-mestre olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com as hastes oxidadas d'um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que era o José de Villalva:
—Foi este?
—Esse nunca me disse nada—respondeu com a voz tremula, toda vermelha, a rapariga.
—Foi este?
Martha não ergueu os olhos nem respondeu.
—Então, môça? qual foi dos nove? Dize lá. Tu que te queixaste é que algum embarrou por ti.
—Eu não me queixei...—murmurou a interrogada.
Verdadeiramente ella não se queixára. Foi o Zeferino, o filho do alferes da Lamella, o mestre pedreiro que andando a construir um canastro na eira do padre-mestre, observára que os estudantes rentavam á cachopa, e ageitavam-se em attitudes abrejeiradas, como de quem espreita, quando ella subia a escada.
O denunciante ao pai de Martha foi elle, o pedreiro abastado, não porque o espicaçassem n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e um justo odio ás concupiscentes espionagens dos rapazes, mas por que gostava, devéras, da môça. Elle passava já dos trinta e dois e era a primeira vez que sentia no coração as alvoradas do amor, Fr. Roque, averiguado o caso, advertiu o pedreiro que não fosse má lingua, que não andasse a difamar os seus discipulos, que se preparavam para o sacerdocio—uma coisa séria. O episodio acabaria assim menos mal, se dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdocio, mais fortes no fueiro que nas conjugações, desistissem de o moer a pauladas, uma noute, n'um pinhal. O mestre d'obras iniciou-se pelo martyrio obscuro n'um amor que principiava bastante mal. Elle nunca soube ao certo quem lhe batêra, e attribuiu a sova a émulos na arte, covardes e mysteriosos, por causa da construcção de uma egreja que elle desdenhára, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma tenda por motivos de architectura—um martyrio de artista. Invejas. Por causa da Arte padecêra o seu collega Affonso Domingues, o architecto da Batalha, e João de Castilho, o do convento de Thomar, e já tinha padecido seu mestre, o Manoel Chasco, a quem inimigos quebraram a cabeça na feira dos 21, por que elle, desfazendo na obra d'um collega, dissera que o botaréo d'um cunhal estava torto.
Passado tempo, Martha sahiu prompta da mestra. Lia a cartilha do Salamondi e o Grito das almas, decifrava menos mal umas sentenças velhas que havia na casa de Prazins, monumentos das ruinas de antigas demandas, e escrevia regularmente. A primeira carta que escreveu por pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio Feliciano. Pedia-lhe a sua benção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe ditava a carta, cheia de lastimas mendigas, mentirosas, historietas velhacas de penhoras, as grandes decimas, a ferrugem das oliveiras, o bicho da batata, o gorgulho que pegára no milho, muitas alicantinas.
—Que era a vêr se o ladrão mandava alguma coisa, dizia elle, pondo cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.
A segunda carta, que ella escreveu já sem pauta, foi a José Dias, ao estudante, que já não estudava por causa das memorias nocivas á sua saude fraca, um pelém.
N'este tempo já o Zeferino da Lamella se tinha declarado com o Simeão de Prazins, de um modo quasi original.
—Você quanto deve, ó tio Simeão?—perguntou.
—Quanto devo? Você quer pagar-me as dividas?
—Pôde ser. Você deve á Irmandade de N. Senhora de Negrellos um conto e cem mil réis; você deve de tornas a seu irmão quatrocentos. Ha-de andar lá para um conto e quinhentos, p'ra riba que não p'ra baixo.
—É isso; você sabe a minha vida melhor que eu a sua—um conto e quinhentos e pico.
—Quanto é o pico?
—Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao mercador e um réstito da vacca amarella que comprei ao Tarracha na feira dos 13.
—Você quer fazer um cambalacho?—tornou o pedreiro recuando o chapéu para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos hombros.
—Se pintar... Já sei o que você quer... Não me serve. Você quer comprar-me o lameiro da azenha—não vendo.
—Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim. Você está a fallar c'um home. Pago-lhe as dividas, você não fica a dever nada, e eu caso com a sua Martha. Póde dar os bens ao outro filho que eu não lhe quero uma de X.
—Você falla serio, ó sôr Zeferino?
—Se fallo serio?! Então você não sabe com quem é trata.
—Ora bem—entendamo'-nos—é a rapariga que você quer, a rapariga estreme, sem dote nem escriptura?
—Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.
—A rapariga é sua.
Negociára a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarracha a vacca amarella na feira dos 13. Eis um caso exquisito de aldeia que pela torpeza parece acontecido n'uma cidade culta. Conversou-se este dialogo debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem gorgeado de passaros, com uns tons de luz esverdeada, na dôce placidez crepuscular de uma tarde de agosto, entre dous homens de tamancos, arremangados, com os peitos cabelludos a negrejar d'entre os peitilhos da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na phrase. Analogas passagens, com estylo pouco melhor, tem sido dramatisadas nas salas, entre homens da melhor polpa e casca social—uns que mandaram ensinar ás filhas os verbos francezes e são assignantes do Journal des Dames que marca ás meninas a balisa até onde póde chegar o arrojo da lingua franceza e os seus mais avançados destinos. Da outra parte, homens ricos, de figado engorgitado, fatigados, sedentos de senhoras finas que ponham no luxo das suas salas os tons vivos da carne constellada de diamantes. É o epilogo de vinte annos de lavra dura, o substratum da compra de negras a milhares:—comprar uma branca, das que o amor pobre e o talento esteril não podem negociar. O contracto feito em Prazins—eis a differença—por parte do pedreiro era um heroismo: dava o seu dinheiro por aquella mulher; daria mais depressa o seu sangue. Era uma paixão das que não pegam com os dentes anavalhados em corações civilisados, quasi desfeitos. Ora, os pedreiros que vem d'além-mar, e se vestiram no Pool ou no Keil, não amam nem compram assim. Fazem o dote economico, comezinho á esposa. Compram uma machina de propagação, condicionalmente. Se, extincto o comprador, a machina, não deteriorada, tiver pretendente, o substituto que a compre. O defunto prefere que a sua viuva, adelgaçada e espiritualisada por jejuns, lhe converse com a alma.
Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava a liquidar para vir, emfim, descançar de vez,—que já tinha para os feijões. Recommendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se ainda houvesse conventos á venda, os fosse apalavrando até elle chegar.
—Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos!—exclamou o Simeão, e foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trêpa de Santo Thyrso e ao ex-capitão mór de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do mosteiro dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado gordo—a rhetorica viva do silencio mais facundo que a lingua, d'uma grande pacificação somnolenta—perguntou-lhe se queria vender as quintas dos frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda com espirito e um pouco de atheismo, respondeu-lhe que não vendia para não transmittir ao comprador a excommunhão que arranjára comprando bens das ordens religiosas. Mas o Simeão, em materia e raios do Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franklin. Continuava a perguntar a toda a gente se sabiam de conventos á venda, ou quintas ahi para quarenta mil cruzados.
O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o negocio fechado em um conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador para se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de abstracção palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:
—Home, o caso mudou muito de figura. Então você pelos modos ainda não sabe que vem ahi o meu irmão de Pernambuco comprar quintas e conventos?
E começou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de coiro em que tinha recibos da decima, um aviso da junta de parochia para pagar a congrua, uma conta de azeviche contra maus olhados, uma oração manuscripta contra as maleitas, um officio antigo que o nomeava regedor, de que fôra demittido pelos Cabraes, uma velha resalva de recrutamento, uns versos que elle recitara no natal, em um Auto do nascimento do Menino, onde elle fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa Barbara, muito cebaceo, com um lustro azulado de graxa e a carta do Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão de pingue.
—Você ainda não ouviu fallar d'esta carta!?—perguntou com sobranceria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar.—Não se falla n'outra causa. Toda a gente sabe que vem ahi do Brazil o meu Feliciano para comprar quintas.
—Já me constou—disse o pedreiro,—mas você roe a corda á conta d'isso, acho eu...—E como o lavrador hesitasse:—O negocio da rapariga está feito ou não está feito? Os homens conhecem-se pela palavra e os bois pelos cornos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.
O Simeão mascava, torcia-se, mettia com dois dedos a carta estafada na carteira e resmungava:
—Você, emfim, isto é um modo de fallar, como o outro que diz; você bem entende que ... sim...
—O que eu entendo physicamente fallando é que você não me dá a rapariga.
—Deixe vêr, deixe vêr o que diz o meu irmão—tartamudeava.
—Sabe você que mais?—volveu iracundo o architecto dando com o ôlho do machado n'um canhoto.—Você é de má casta. Não tem palavra nem vergonha n'essa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da Serra Negra, e basta... Não lhe digo mais nada...—Allusão pungente a um tio do Simeão, o Bernabé, capitão das maltas de salteadores que infestaram em 1835 aquella serra.
—Veja lá como falla...—interrompeu o lavrador ferido na sua linhagem.—Você não me deite a perder...
E o outro, n'um impeto de consciencia robusta:
—Você é um safado. É o que lh'eu digo. Não guarda palavra em contracto que faça. Eu já devia conhecêl-o. Faz para as matanças seis annos que você justou comigo uma porca por quatro moedas e foi depois vendel-a ao Antonio do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu alma de cantaro?—E n'uma irritação crescente:—Se você não fosse um velho, dava-lhe com este machado na caveira.—É muito esbandalhado nos gestos, com sarcasmo:—Guarde a filha que eu hei de achar mulher muito melhor que ella pelo preço, ouviu você? que leve o diabo a burra e mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De você não póde sahir cousa boa; e mais da mãe que ella teve, que já lá está a dar contas...
E o lavrador com extremada prudencia e na pacatez de um grande espirito de ordem e paz:
—Você não tem que desfazer na minha filha, ouviu?
—Ouvi, que não sou mouco. Ainda hontem a topei na bouça do Reguengo de palestra com o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A songuinha, que não olha direita p'ra um home, que anda alli esmadrigada de cabeça ao lado, lá estava de mão na ilharga a dar treta ao estudante, aquelle páo de encher tripas, que ha-de ser mesmo um padre d'aquella casta! Olhe se elle lh'a quer para casar... Pois não quizeste?—e arregaçava a palpebra do olho esquerdo mostrando o interior inflammado com uns pontos amarellos, purulentos, indicativos de insufficiente lavagem, um tregeito de garotice.—E continuava:—Quem lhe déra dois pontapés, n'elle a mais n'ella!—e muito rubro de colera dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas dos castanheiros, e mettia grande terror no animo do Simeão quando faiscava lume nos calhaos com a percussão do machado.
Esta situação promettia acabar pela fuga prudente do pai de Martha, se o estudante de Villalva não assomasse ao fundo do castanhal com uma matilha de coelheiras que ladravam a um porco muito erriçado, que as esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O caçador chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a Martha o ouvisse.
Elle não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e deixaram o porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe tinham. O Zeferino, n'outra occasião, segundo o seu costume, desprezaria a arremettida da matilha; mas, n'aquella conjunctura de odio ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo com as mãos cabelludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços provocadores. José Dias chamava os cães obedientes; mas o Zeferino, muito azedo, engelhando na cara uns tregeitos de basofia, dizia sarcastico:
—Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chega faço-lhe saltar os miolos á cara de você.
Que se accommodasse, conciliava pacificamente o estudante—que os cães não tinham outra falla. E o pedreiro insistente, muito arrogante:—que venham para cá, e mais o dono, o caçador de borra! e dizia palavradas canalhas, muito damnado por que vira apparecer a Martha na varanda, a fazer meia com a cesta do novello no braço.
—Ó snr. Zeferino, falle bem, ponha côbro na lingua—advertiu o José Dias com uma serenidade de máo agouro—quando eu lhe ladrar então se fará com o machado para mim. Os cães ladraram-lhe, eu chamei-os, que mais quer você, homem? Siga o seu caminho.
—O meu caminho? o meu caminho é este—disse batendo com o machado na terra.—Quer você mandar-me embora d'aqui? Ora não seja tolo.
A presença da môça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina dos bebedos, e berrava:
—Se é homem, venha para cá! Você manda-me sahir d'aqui, seu pedaço d'asno?
E o estudante, já amarello:
—Eu não o mando sahir d'ahi, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com elle.
—Ó alma do diabo!—exclamou o pedreiro crescendo para o caçador.
N'isto, um dos cães, atravessado de cão de gado e cadella coelheira, que aprendêra a morder nas occasiões rezoaveis, atirou-se-lhe ao assento das calças de estopa e puxou até lhe descobrir a epiderme da nadega esquerda.
O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de leve apanhavam o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nadega direita. A restante matilha fraternisára com o outro e juntavam os focinhos num complexo de dentuças minacissimas com os olhos sanguineos cravados nos movimentos do machado. José Dias, no entanto, espancava a cainçada, e Martha não sabia se havia de descer para ajudar o pai a accommodar a bulha, ou se havia de cahir na varanda a rir-se. Ella sentia-se envergonhada do espectaculo que exhibia a calça esfarrapada; mas não havia pudor que resistisse áquillo. O pedreiro sabia que o cão lhe chegara um pouco á calça; mas, no calor da lucta, não sentira esfriar-se-lhe a pelle descoberta, nem se lembrou que andava sem ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinaria na cutis, exposta ao contacto da atmosphera, levou a mão conscienciosamente ao sitio, e achou em si aquelle specimen obsoleto do Adão primitivamente innocente. No entanto, Martha, não podendo já comsigo, entalada de riso, fugira da varanda e atirára-se de bruços sobre a cama, a rebolar-se, a espernear como se tivesse uma colica. O estudante retirou-se assobiando á matilha ainda refilada ás nadegas do homem. O Simeão coçava-se com as dez unhas e dizia velhacamente commovido:
—Mêtta-se ahi na córte da egua que eu vou-lhe buscar umas calças, seu Zeferino, ou dá-se-lhe ahi quatro pontos p'ra remediar. Dê cá as calças, e não se afflija...
O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo tão trivial, que o outro lhe replicou:
—Vá você!
E metteu-se em casa como quem receava contra-replica menos suja e mais dura.
O Zeferino era afilhado do morgado de Barrimáo, um major de cavallaria, convencionado em Evora-monte, miguelista intransigente, mas cordato. Vivia no seu escalavrado solar com um irmão egresso benedictino. Fr. Gervasio, muito cevado e inerte, continuava em casa a sua missão monastica. Era um contemplativo. Não lia senão no livro da Natureza. Se não dormia, estrumava o seu vegetalismo com muitos adubos crassos de toicinho e capoeira, com um grande farfalhar de mastigação, porque dispunha de dentadura insufficiente. Tinha outro signal ruidoso de vida—era um pigarro de catarrhal chronica, arrancado dos gorgomilos com tamanho estrupido que parecia ao longe o grito rouco de um estrangulado, no 5.° acto de um drama de costumes. A velha creada da cozinha, muito flatulenta, nunca pudéra affazer-se ás explosões d'aquella garganta escabrosa de mucos empedrados. Quando o grasnido asperrimo de pavão lhe feria os ouvidos, reboando nos concavos tectos dos salões, a mulher estremecia e raras vezes deixava de resmungar:—Que mêdo! credo! diabos leve a esgana do home, Deus me perdôe!
De dois em dois mezes appareciam em Barrimáo dous egressos de Cabeceiras de Basto, companheiros de noviciado de fr. Gervasio. Juntavam-se os tres amigos em uma intimidade de palestras saudosas. Com intercadencias mudas de poetica tristeza, commemoravam os seus conventuaes fallecidos, rezavam juntos pelos seus breviarios benedictinos; depois, a passo cadencioso, claustral, iam para a mesa com o recolhimento prescripto pela Regra do patriarcha. Ahi, pegava de puxar por elles a natureza objectiva, e dava-lhe horas de salutar esquecimento do passado irreparavel. Gorgolejavam copiosamente os vinhos engarrafados, traiçoeiros, da companhia, em que fr. Gervasio derretia a prestação; porque, de resto, a mesa do mano morgado era farta e a sua bolsa generosa para as moderadas necessidades do egresso.
O major Zeferino Bezerra de Castro não tinha grande casa; mas, como era solteiro e quinquagenario, fazia de conta que os bens lhe haviam de sobejar á vida, vendendo os allodiaes e empenhando, se necessario fosse, o morgadio, que era insignificante. Concorria com vinte moedas para as miseraveis 1000 libras que o snr. D. Miguel recebia annualmente de donativos de monarchas e dos seus partidarios portuguezes.[1] Festejava dispendiosamente os natalicios do rei, convidando a jantar os realistas notaveis da comarca; e, contando os annos da proscripção, ia calculando a patente que lhe competia quando o soberano legitimo se restaurasse. Correspondia-se com alguns camaradas, esquecidos e atrophiados nas aldeias, o general Povoas, o Bernardino, o Magessi, o Montalegre, o José Marcellino. Mas as cartas quem lh'as redigia era o mano frade, recheando-as de trechos de politica de pulpito—resultado das suas digestões morosas, contemplativas—que serviram de ornamento nas columnas do Portugal velho, periodico miguelista da época.
N'aquelle anno, por meado de 1845, espalhára-se no ambiente dos realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o snr. D. Miguel. O seu enorme partido sentia-se palpitar no anceio d'aquelles vagos anhelos que estremeciam as nações pagans ao visinhar-se o prophetisado apparecimento do Messias. Affirmam-no os Santos Padres, e os padres do Minho asseveravam o mesmo a respeito do principe proscripto. Fr. Gervasio recebia do alto da provincia cartas mysteriosas d'uns padres que parochiavam na Povoa de Lanhoso e Vieira. Era alli o foco latente do apostolado. N'aquelles estabulos de ignorancia supersticiosa é que devia apparecer, pelos modos, o presepio do novo redemptor. Citavam-se prophecias apocalypticas de frades que estavam inteiros sob as lages das claustras. Convergiam áquelle ponto missionarios de aspectos seraphicos, olhando para as estrellas como os magos e os pastores da Palestina. O frade mostrava as cartas ao irmão e dizia-lhe: «Elle ha coisa...»
—Mas muito grande!—corroborava o major com cabeçadas affirmativas muito exageradas.
—A Russia move-se, é o que é—affirmou fr. Gervasio, correlacionando a iniciativa de Lanhoso com a propaganda autocratica da Russia.
Em um d'estes dialogos, em que havia desabafos, exuberancias de jubilo, interveio o Zeferino das Lamellas, o pedreiro afilhado do major. Vinha contar o caso do Simeão de Prazins e a péga que teve com os cães do Dias de Villalva. Mostrava a calça remendada—que por pouco lhe não entravam no coiro os cães—dizia, e protestava vingar-se. O egresso pacificava-o; que deixasse lá a rapariga e mais o estudante; que se fosse preparando para desembainhar a espada de seu pai em defeza do throno e do altar. E o major:
—Estamos chegados a ellas, Zeferino.
E o pedreiro, esfregando as mãos coreaceas, que ringiam como duas lixas friccionadas:
—A elles, snr. padrinho! A espada vai-se amolar... Vou pedil-a ao velho!
O pai de Zeferino, o Gaspar das Lamellas, tinha sido alferes do 17 de linha; e, em 1834, como o perseguissem os liberaes do concelho por pancadaria e testemunhos falsos nas devassas de 28, andou foragido alguns mezes. Sequestraram-lhe os bens; e o filho que já era muito barbado e não tinha modo de vida, fez-se pedreiro. Depois, applacadas as furias dos vencedores e restabelecida a justiça, restituiram ao Zeferino as terras devastadas. O ex-alferes sahiu do seu esconderijo, e recolheu-se a casa com a espada muito cheia de verdete, dizendo que havia de laval-a no sangue dos malhados. Em 1838, dia de natal, embebedou-se despropositadamente e sahiu para a rua a dar vivas ao snr. D. Miguel. Outros piteireiros, do mesmo credo, e affectos ás velhas instituições, responderam aos vivas com um enthusiasmo homicida. O Gaspar foi buscar a espada, cingiu a banda sobre a niza de saragoça, poz a barretina com os amarellos muito oxidados, e, á frente d'um grupo de jornaleiros e garotos, caminhou para a cabeça do concelho afim de offerecer batalha campal ás auctoridades. Além da espada do caudilho, havia na jolda tres espingardas reiunas; o restante eram foices de gancho encavadas em grossas varas. Um porqueiro colossal floreava uma lamina brunida da faca de matar os cevados. A guerrilha, já engrossada por outros bebedos encontrados nas tavernas do transito, chegou â porta do morgado de Barrimáo, e a clamorosos brados elegeram-o general. Já se ouvia tocar a rebate em diversas torres, á discrição dos garotos destacados. O morgado mandou-lhes dar vinho, e que debandassem, que recolhessem a suas casas, porque iam levar grande tareia inutilmente. O egresso veio a uma janella que abria sobre o atrio, e tentou dissuadil-os do desvario que mais parecia um excesso de vinho que de patriotismo—dizia. Não fez nada. Cada vez mais picado, o alferes, faminto de vingança, bradava que estivera quinze mezes escondido, que lhe tinham estragado a sua casa, e que ia pedir contas aos Trêpas e aos Andrades de Santo Thyrso, uns malhados, cujas cabeças havia de deixar espetadas em pinheiros.
Na villa ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se que era incendio. Alguns vadios atravessaram a ponte muito açodados em direcção ás freguezias d'onde soavam as primeiras badaladas. O regedor de Villalva, o pai do José Dias, descia esbaforido do monte do Barreiro a dar parte á auctoridade. Assim que se espalhou a nova em Santo Thyrso, já se ouvia alarido de vozes. A garotagem dava vivas, e guinchava uns apupos prolongados que punham eccos nas margens tortuosas do rio Ave. Os liberaes de Santo Thyrso rodearam o administrador, armados, com os seus criados. Os negociantes com medo de saque tambem sahiram de clavinas. As familias nas janellas faziam clamores, n'uma grande desolação. N'aquella villa lembrava ainda a mortandade do tempo do cerco do Porto, e havia velhos que presencearam outra semelhante no tempo dos francezes. O regedor de Villalva dissera que o commandante da guerrilha era o morgado de Barrimáo. Esta noticia fez augmentar o pavor, porque, se o morgado, serio, prudente e bravo, acceitára o commando dos populares é porque a cousa era séria. Os homens de negocio depuzeram as armas, enfardelaram os valores e fugiram, caminho do Porto. Os proprietarios, os empregados publicos, os officiaes de justiça, alguns que haviam militado e emigrado, desceram á ponte armados em numero de oitenta. Outros seguiram vereda differente para passar o rio. A guerrilha cuja vozeada se aproximava, no trajecto de uma legua, pegou a sua febre a mais de trezentos homens. Era um domingo de festa solemne, consagrado á descida do Filho de Deus, para applacar os barbaros odios do genero humano:—uma grande alegria que passaria despercebida, se o vinho não preparasse as almas a comprehendel-a e sentil-a. Depois, muito communicativa, como se vê. Gaspar das Lamellas emborracha-se ao jantar e faz brindes ao Menino Jesus e ao snr. D. Miguel I. Pica-lhe na caneca, pungem-o saudades do rei, e sahe para o terreiro a dar-lhe vivas. Outros vinhos em ebulição respondem-lhe n'um grito de sinceridade compacta. Trava da espada, que se tingira no sangue de tres batalhas á volta do Porto; entra com elle a convicção em delirio acrisolada pela allucinação da embriaguez. E o arrojo temerario dos grandes guerreiros o que ó senão uma embriaguez de gloria, quando não é uma embriaguez de genebra? Nas guerras civis portuguezas houve ahi um bravo soldado de fortuna que, no vigor dos annos, ganhára as charlateiras de general e uma corôa de conde. Os seus camaradas, mais retardados na carreira por causa da abstinencia, diziam que elle nunca sahira victorioso de campanha onde não entrasse bebedo. Este general, ao declinar da vida, casado e abstemio, não deu uma pagina gloriosa á sua historia, presidiu sem iniciativa, militar nem politica á Junta Suprema do Porto, e fechou o cyclo das suas façanhas a parlamentar em Vieira com o padre Casimiro, o General Defensor das cinco chagas.
Também no cerebro vinolento do alferes das Lamellas rutilavam os relampagos da gloria quando, a brandir o gladio ferruginoso, descia, na vanguarda da guerrilha, o outeiro sobre jacente á Ponte de Santo Thyrso. Á entrada da ponte de páo havia taverna, com as prateleiras alinhadas de garrafas da Companhia, com rotulos.
A multidão parou, avistando gente armada que descia a calçada d'além, ao nivel da quinta do mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito caloteado d'essa vez, disse ao commandante, ao Gaspar, que não cahisse em se metter á ponte.
—Vocês vão cahir ahi n'essa ponte como tordos, o os que não cahirem tem de largar os sócos a fugir—avisava, porque sabia que os de lá eram têzos, e vinham todos armados.
O cabecilha tinha o seu vinho quasi digerido; a bravura começava a ceder ás reflexões sensatas do taverneiro; mas o seu estado maior, uns facinoras da quadrilha que tres annos antes infestara as encruzilhadas da Terra Negra e Travagem, não transigiam, e forçavam-o a beber copos de aguardente.—Que o primeiro que mostrasse os calcanhares ia malhar da ponto abaixo!—protestavam os velhos salteadores do Minho, batendo com as cronhas no balcão.
Entretanto, o administrador do concelho com dous empregados inermes atravessava a ponte. A guerrilha, estupefacta da audacia, esperava-o n'uma attitude pacifica, estupida, um retrahimento de covardia, olhando-se uns para os outros e todos para o alferes. Elle, empurrado pelos valentes, collocou-se á frente, na bocca da ponte, com a espada nua. O administrador chegou muito de passo e perguntou se estava alli o snr. morgado de Barrimáo, que desejava fallar-lhe.
—Que não estava; eu sou o chefe—disse o Gaspar.
—Logo me pareceu que um homem sério, como o morgado, não estaria á frente d'este bom povo enganado—ponderou a auctoridade.—E vocemecê quem é?—perguntou ao chefe.
—Que era o alferes das Lamellas, bem conhecido em toda a parte; que perguntasse aos malhados de Santo Thyrso, a esses ladrões que o perseguiram e lhe roubaram os seus bens.
O administrador, um bacharel, de cabelleira á Saint-Simon, era discursivo e não perdia lanço de eloquencia em casos d'um romanesco medonho. A torrente do rio rugia quebrada pelo triangulo dos pegões. Uma rica e funebre paysagem, cortada de um lado pelos cataventos que ringiam nas cristas das torres do mosteiro, e do outro pela matta verde-negra, erriçada de pinheiros gementes. Um pittoresco cheio de suggestões, d'uma palpitação cyclopica. Depois o enorme auditorio, trezentas cabeças, fluctuando com as boccas muito escancaradas n'uma bestialidade feramente spasmodica de lobos espantados por um archote acceso. O meio era demosthenico, inspirativo. Borbotou-lhe a gôlfos um palavriado discreto, aconselhando a turba a retirar-se aos seus apriscos, á honrada labutação dos seus mesteres, e a não perturbarem com demagogias a pacificação dos animos e a sacratissima inviolabilidade das instituições. Quando o funccionario fechou a parlenda, um dos mais bebedos, quer por chalaça, quer por insufficiente comprehensão dos principios politicos da auctoridade, atirou o chapéu ao ar e exclamou: «Viva o snr. D. Miguel I, rei de Portugal!»
A auctoridade ia replicar; mas a gritaria abafou-o. Elle voltou as costas á canalha, e foi-se com bons exemplos de oradores antigos. Os liberaes, logo que o viram retroceder, entraram na ponte de madeira com um sonoro estrondo de marcha cadenciada.
Capitaneava-os um escrivão de direito, dos 7500, cavalleiro da Torre e Espada, o Lobato, que pedira baixa de tenente no fim da campanha.
Outro bravo, o ex-sargento Lopes, que era guarda-chefe dos tabacos, tinha pedido vinte homens, e atravessára com elles o Ave, na revolta do rio, sem ser visto, na bateira do José Pinto Soares. Elle não podia levar a bem que aquelles patêgos se retirassem sem uma sova pela retaguarda e outra pela frente. Contava com a debandada pela ladeira das mattas, e promettia, lá do alto, escorraçal-os de modo que elles se espetassem entre dois fogos. Os seus vinte homens eram soldados com baixa, guardas do tabaco, e socios aposentados das quadrilhas de 1834—um mixto de politicos, de ladrões e martyres das enxovias.
Os quatro facinoras da horda do alferes, quando viram a marcha firme e solemne dos de Santo Thyrso,—é agora, rapazes!—exclamaram, desfechando as espingardas. Os populares que as tinham, descarregaram as suas, e avançaram, ponte dentro, n'uma arremettida impetuosamente esbandalhada, de rodilhão. Uma das balas prostrára um arrieiro da primeira fila dos liberaes; havia mais alguns feridos que se amparavam gementes ás guardas da ponte. O bravo do Mindello viu cahir morto o seu homem, e, contendo a furia das fileiras n'uma disciplina rigorosa, deu a voz da descarga á primeira, e mandou abrir passagem á immediata, que sustentava o fogo em quanto a outra carregava as armas.
Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da populaça. Viam-se homens que fugiam a coxearem, atiravam-se ás ribanceiras, escabujando em arrancos de morte. Os que não tinham espingardas e ainda os que as tinham sem cartuchame, pegavam dos tamancos e galgavam socalcos, buscando o refugio dos pinhaes e carvalheiras.
O alferes sentiu um choque duro de coisa que lhe contundia as costas e lhe apertava o pescoço. Era o Retrinca de S. Thiago d'Antas, o mais feroz da sua malta, que se amparava n'elle, quando cahia varado por um pelouro. Este espectaculo trivial não aterrava o soldado de Ponte Ferreira, das Antas e da Asseiceira; mas dava-lhe as antigas pernas que o serviram n'essas gloriosas batalhas. Tinha cincoenta annos, e fugia ganhando a dianteira aos garotos do seu bando destroçado. Porém, quando elle escalava a ladeira barrenta que se precipita ao sopé do monte, desciam em saltos de bezerros mordidos por vespereiros os seus homens, n'um turbilhão, acossados pelo tiroteio da companhia do ex-sargento Lopes—uns barbaçudos que pareciam gigantes no tôpo da collina, e davam uns berros clangorosos imitantes a mugidos de bois. O dia de juizo!
O Gaspar arripiou carreira e desfilou por uma varzea alagada que ia esbeiçar com o rio. Como a banda do alferes vermelhava ao longe, e a espada a prumo no punho lhe dava uma caracterisação geitosa e provocante para alvejar as espingardas, as balas sibilavam-lhe por perto, chofrando nos pantanos. Alguns homens perseguiam-o chapinando no lameiral, porque o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «Ó rapazes, vêde se mataides aquelle diabo que é o cabecilha!» Os mais velleitos levavam-o esfalfado, cambaleando, atortemelado, quando o viram desapparecer de subito entre uma espessa moita de platanos. D'ahi a instantes, abeirando-se á ourela do rio, viram a barretina e a niza de saragoça sobre uns comoros hervecidos; e, a distancia de dez varas, aquelle bebedo immortal atravessava o rio a nado, n'uma tarde de dezembro, com a espada nos dentes, e a banda a tiracollo.
—Ó alma do diabo!—dizia o Patarro de Monte Cordova, cevando a arma com zagalotes para lhe atirar.—Vou matar aquelle pato bravo!
E o mais novo dos quatro, um imberbe que tinha pai:
—Não lhe atire, ó tio Patarro! É um velho, coitado! Não lhe vê os cabellos brancos? Aquelle homem não se deve matar. Elle vai morrer afogado antes de chegar á outra banda. Verá. Que raio de amizade elle tem á espada! Aquillo é que é!
A meio do rio, onde a veia d'agua resvalava mais impetuosa, deixou-se derivar sem esforço de natação. Mal bracejava. Depois, o Ave espraiava-se em murmurios de lago dormente, muito barrento, e deixava-se apégar. O alferes, com agua pela cinta, desatascou-se dos lamaçaes d'além; e, horas depois, repassando o Ave na Ponte da Lagoncinha, e, vencidas duas leguas de chafurdeiros e barrocas, entrava na sua casa das Lamellas, bebia um grande trago de genebra, e, floreando a espada, bradava: «Viva o snr. D. Miguel I!»
Depois, sobreveio-lhe um rheumatismo articular, e ficou tolhido.
Sete annos passados, quando todas as aldeias do Minho conclamavam D. Miguel, elle ainda vivia, mas entrevado n'um carrinho, e chorava, em impotentes arquejos do corpo paralytico, porque não podia amolar a lamina da espada nos ossos dos malhados.
Tinha-a diante dos olhos pendurada n'uma escapula com o boldrié e a banda. Ás vezes, depois de beber, punha-se a olhar para ella com os olhos envidraçados de lagrimas, e pedia que a mettessem na sua sepultura, que o enterrassem com ella. E enterraram. Espera-se que o esqueleto d'este legitimista, com as phalanges esburgadas e recurvas no punho azevrado da espada, resuscite, ao ulular da trombeta, na resurreição geral das Legitimidades. Ponto é que a Russia se môva—como dizia o frade de Barrimáo.
[1]Um historiador moderno disse que D. Miguel em 1855 recebia setenta contos annuaes de donativos. Provavelmente deu causa a esta liberalidade de cifras um lapso do snr. Joaquim Martins de Carvalho que a pag. 254-255 dos seus Apontamentos para a Historia contemporanea, transcreveu de uma carta de Lourenço Viegas o seguinte periodo:... "Os rendimentos de el-rei compõem-se das 600 libras que vem de Lisboa da commissão alimenticia, 1.000 francos mensaes que com toda a exactidão lhe manda o conde de Chambord. 5.000 francos que annualmente lhe manda o duque de Modena e 6.000 francos do imperador Fernando d'Austria, tambem annuaes, mas sem época fixa, junto a alguns extraordinarios da provincia do Minho, fazem subir a renda annual a 400.000 francos, e esta chega apenas para a despeza e economia domestica." Chegando apenas para a despeza domestica de D. Miguel, 72:000$000, quanto lhe seria necessario para as despezas de fóra? Um dos zeros do snr. Martins de Carvalho deve passar para a direita do 4, e reduzir a annuidade do principe a 7.200$000 réis ou 40.000 francos.
Do alto Minho continuavam as noticias alegremente agitadoras. O Christovão Bezerra, ex-capitão mór de Santa Martha de Bouro, escreveu ao seu parente de Barrimáo. Dizia-lhe que constava que o snr. D. Miguel estava no seu reino, e—o que mais era—muito perto d'alli. Que não se podia explicar mais pelo claro sem ter a certeza de que seu primo entendia a cifra de communicação entre os membros da ordem de S. Miguel da Ala, instituida pelo snr. D. Affonso Henriques e renovada ultimamente pelo monarcha legitimo—explicava. O major Bezerra era commendador da ordem e conhecia a cifra:—que escrevesse francamente. E, desconfiando do correio, mandou a Santa Martha de Bouro o afilhado, o filho do alferes Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a impar de soberba por tal mensagem, posto que não participasse do segrede do padrinho que era discreto, disse ao pai:
—Ou eu me engano, ou o snr. D. Miguel está por ahi, não tarda...
O alferes sentiu uma descarga electrica na columna vertebral e convulsionou-se extraordinariamente. Fazia lembrar phenomenos que se contam de movimento galvanico nos paralyticos, colhidos de improviso pelo terror ou pela exultação; mas o Gaspar, como só tinha o esophago desempedido, bebeu, com a escorrencia absorvente d'um olho-marinho, muita aguardente, e desatou a berrar o Rei-chegou.
O filho, com a discrição propria d'um agente secreto da restauração realista, zangou-se com o berreiro civico do pai e perguntou-lhe se estava bebedo. O velho enthusiasta, ferido no seu coração de vassalo e de progenitor, teve um honrado intervallo lucido, quando lhe replicou:
—Se eu não estivesse aqui tolhido, respondia-te, malandro!
Deitou o albardão á egua e partiu para terras de Bouro o Zeferino. Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas encatarrhoadas; e, dando de espora á andadeira, deixou cahir o pão ferrado ao longo da perna. «Qualquer dia, estou-te em cima!» dizia de si comsigo, ladeando a bêsta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o perdeu de vista, murmurou:—Valha-te o diabo, banaboia!
O ex-capitão mór de Santa Martha respondeu ás perguntas do primo de Barrimáo; e, como o portador se recommendou na qualidade de afilhado do fidalgo e filho d'um alferes que commandára o ataque de 1838 sobre Santo Thyrso, o Christovão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe noticias d'esse ataque a Santo Thyrso que elle não conhecia. O pedreiro contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo quando soube que elle estava entrevado, disse pungidamente: Mal empregado!—que um general romano fizera o mesmo e que o levasse ás caldas de Vizella á bomba quente.
Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe confidencias:—que D. Miguel estava perto d'alli; mas não recebia ninguem porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a acclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da algibeira da vestia uma saquita de missanga, onde tinha tres peças e sete pintos. Pôz o dinheiro com estrondo deante do Bezerra,—que o mandasse a el-rei para as suas despezas; que eu, accrescentou, ha quatro annos que lhe dou uma moeda d'oiro por anno; elle ha-de saber pelo rol quem é o Zeferino das Lamellas, por que o padre Luiz de Sousa Couto, do Porto, disse-me que el-rei conhece de nome todos os que lhe mandam dinheiro, O fidalgo recusou:—que não estava auctorisado a receber donativos, nem os julgava por em quanto necessarios, por que em poder do Dr. Candido, de Anêlhe, estavam cincoenta contos, dados pela senhora infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.
A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explicita. Contava que D. Miguel estava escondido na residencia do abbade de S. Gens de Calvos, no conselho da Povoa de Lanhoso, o reverendo Marcos Antonio de Faria Rebello.[2] Que pouquissimas pessoas o tinham visto, porque sua magestade só se mostraria aos seus amigos fieis quando entrassem pela Galliza os generaes estrangeiros que se esperavam, uns do antigo exercito carlista, outros de Inglaterra.
Esta noticia dos generaes estranhos beliscou a vaidade nacional do major Zeferino Bezerra. Parecia-lho impossivel que o principe proscripto não confiasse na pericia e lealdade do Santa Martha, do Victorino, do Povoas e Bernardino. Era uma ingratidão, dizia elle ao mano frade, que accrescentou:—e uma bestialidade. El-rei deve saber o que lhe valeram o Bourmont e o Pussieux e o Mac-Donnell, no fim da campanha. Sabes tu?—rematou o morgado—aqui anda marosca. O que tratam é de se abotoarem com os cincoenta contos da infanta D. Isabel Maria, e o primo Christovão é um asno chapado.
—Escreve-se ao Povoas e ao Bernardino—aconselhou o egresso—que digam alguma coisa.
Os militares realistas responderam que sem duvida estava a levedar alguma tentativa de restauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava devéras; que o snr. D. Miguel era esperado em Londres; mas que não estava ao reino, nem cá viria senão para se assentar de vez no seu throno usurpado.
—Deixa-te de asneiras, Zeferino—dizia o fidalgo ao afilhado com as cartas na mão—el-rei ha-de vir; mas não veio. Meu primo foi codilhado pelo abbade de Calvos, e eu vou-lhe escrever que não seja palerma, nem caia com uma de X para o alevantamento que é uma comedella.
O pedreiro, não obstante, apostava dobrado contra singelo que D. Miguel estava em Calvos, e puxava pela saquita de missanga com gestos de troquilha de burros em feira:
—Aposto! Aqui está dinheiro! O fidalgo de Quadros, o snr. tenente coronel Cerveira Lobo tambem diz que el-rei já por cá anda.
—O Cerveira Lobo! olha que borrachão!—disse o frade.
—Quem cá está é o rei dos bebedor no corpo d'elle—accrescentou o morgado.
—Mas diz que o snr. D. Miguel I gostava muito d'elle—objectou o pedreiro.—Ouvi-lh'o eu.
—Não duvido...—explicou o frade—que o snr. D. Miguel gostava de grandes patifes...
O primo Christovão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão certo estar el-rei em Calvos como era certo ter-lhe beijado a regia mão em casa do abbade, na noite sempre memoravel de 16 de abril de 1845. Que só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecêra pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois que sua magestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abbade de Calvos seu capellão-mór, que déra a mitra de Coimbra ao abbade de Priscos, e fizera chantre o padre Manoel das Agras, e a elle lhe fizera a mercê de duas commandas e o titulo de barão de Bouro, afora outras graças a diversos clerigos e leigos.
—Que te parece isto?—perguntou o morgado ao frade.
—Parece-me a notoria estupidez do primo Bezerra e mais dos padres; mas, se o homem que lá está é o D. Miguel, então o estupido é elle, e que me perdôe sua magestade fidelissima...
Escreveu-se novamente ao Povoas, ao Tavares de Fagilde e ao Pontes, um collaborador da Nação. Responderam-lhe que não havia tal D. Miguel em Calvos; mas que deixasse correr o marfim, por que era necessario uma agitação preparatoria, um simulacro, uma apalpadella...
—Quer dizer—reflexionou o frade—que o tal impostor é um Baptista, o precursor do verdadeiro Messias. Pois deixemos correr o marfim, e mais o simulacro ... que palpem,—e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o umbigo proeminente, fazia girar um dedo pollegar á volta do outro. Que o que fosse soaria, e não cahisse o mano Zeferino na estulticia de se comprometter sem que os generaes portuguezes sahissem á rua.
Na correnteza d'estas coisas, o Zeferino das Lamellas não trabalhava de pedreiro; abandonou as obras de alvenaria aos officiaes, e andava n'uma dobadoira de casa do padrinho para casa do tenente-coronel realista, o Vasco Cerveira Leite, morgado de Quadros, um homem nascido illustremente, que, desde Evora Monte, não cortára as barbas nem sahira das minas da casa-solar em Vermuim.
Como a sua paixão era inconsolavel com o destino, deu-se á distracção do alcool; e, porque tinha a consciencia da sua miseria de bebedo, fechava-se no seu quarto, onde ás vezes cahia amodorrado sobre o vomito. Imbecilisára-se. Cerveira tinha soffrido um ataque cerebral quando o brigadeiro José Urbano de Carvalho infamemente se passara com alguns esquadrões de cavallaria para o centro da divisão do duque da Terceira, na Chamusca. Elle vira o seu coronel Antonio Cardoso de Albuquerque dar vivas á carta constitucional e a D. Maria II. Achou-se arrastado, illaqueado e prisioneiro, quando procurava abrir com a espada uma sepultura honrosa. Ali se extinguira coberto do opprobrio, n'aquella hora, o bravo e leal regimento de Chaves que nunca dera um desertor para as fileiras do inimigo. O tenente-coronel, desde esse dia, foi um desgraçado incomprehendido que se embriagava para esquecer o reviramento subito da sua carreira. Depois, a corrente travada das miserias. Tinha filhos que se emborrachavam como elle, e filhas que se namoravam dos engenheiros das estradas, e andavam pelas romarias de roupinhas escarlates, com botinas de ponteira de verniz e chapéus desabados de sêda preta com borlas e plumas. Sua mãe tinha sido açafata da apostolica D. Carlota Joaquina, fizera-se mulher no Ramalhão, e gabava-se de ter sido amada do conde de Villa Flôr. Quando entrou no vasto e velho casarão de Quadros, teve hysterismos formidaveis e acordava os eccos das montanhas com gritos que punham terrores sobrenaturaes na visinhança. O Cerveira Leite poderia viver abundantemente na côrte, por que os seus rendimentos e foros eram muito importantes: é o que D. Honorata lhe pedia com lagrimas; mas elle, colerico:—que não podia encarar os malhados, e não sahiria mais de casa sem as suas divisas de tenente coronel de dragões. E, apontando-lhe para os cinco filhos:
—Sê boa mãe, trata d'essas creanças que andam ahi porcas que fazem nojo!—Tinha estas equidades em jejum.
E ella:
—Mais nojo me fazem as borracheiras de você!
E o fidalgo então disciplinava-a militarmente. Quando lhe não dava alguns pontapés, desfechava-lhe um tiroteio de palavradas de tarimba, e perguntava-lhe se tinha saudades dos bordeis do Ramalhão, aquelles pagodes reaes. D'esta procacidade esqualida, derivou a um mutismo estupido. Não lhe respondia. Fechava-se no seu quarto, contiguo á garrafeira.
D. Honorata Guião teria vinte e oito annos, quando sahiu de Lisboa para o Minho em 34. Era formosa das finas graças aristocraticas. Uma elegancia nervosa, inquieta, mordiscada de desejos como uma flôr branca muito picada das abelhas. Acceitára o major Cerveira, porque era rico e estadeava na côrte as suas librés. Tinha trinta annos, e dizia-se que aos quarenta seria general, porque D. Miguel gostava muito d'elle. Rosnava-se que o Cerveira tinha sido um dos assassinos do marquez de Loulé.
Este rapaz de côrte e da intimidade do rei e das infantas, disputado pelas damas da rainha, era aquelle ebrio encanecido que, debruçado na janella do seu quarto, fortemente fincado no peitoril de ferro da sacada, revessava ao caminho publico golfos aziumados de vinhaça, e dizia garotices de lacaio ás raparigas que passavam medrosas e o saudavam;—Guarde Deus v. s.ª, snr. fidalgo!—Tenha v. s.ª muito boas tardes, snr. morgado!—E elle, almofaçando as barbas conspurcadas de vomito:—Ó brejeira, deixa lá vêr o patriotismo; que tal é a anca? Não respondes, catraia? Olha como aquella rebola os quadris, o grande coldre!—As cachopas não respondiam; safavam-se com um grande medo, porque eram suas caseiras; mas commentavam:—Que levasse o diabo o piteireiro do fidalgo!—que a fidalga fizera bem era se pisgar com o doutor dos Pombaes.—Quer não—contrariava uma lavradeira idosa—foi má mulher que deixou assim os filhos, cinco creanças! uma desgraça! Nem as cadellas faziam isso. Os mais velhos já se emborracham, e as meninas estão quasi mulheres e ainda não foram ao confêsso nem sabem a doutrina. Que uma d'ellas, a Therezinha, já se enfeitava para o estudante das Quintans que andava por lá feito caçador, e que o morgadinho, o snr. Heitor, namorava a filha do José Alho, e até se dizia que lhe fallára em casamento. Vêde vós que desgraça, ó môças! Um menino tão rico e tão fidalgo, vi-o aqui ha tempos na taberna de Villaverde que se não lambia, a pagar vinho ao Alho e mais á croia da filha, e a comerem todos iscas de bacalháo com as mãos! Ao que eu vi chegar um senhor dos fidalgos de Quadros! Quando eu era rapariguita, aquelles senhores nunca sahiam sem os seus mochillas fardados e tinham liteiras com as armas reaes pintadas. Faziam mesmo um respeito! O snr. Rodrigo, pai d'este morgado velho, era d'isto dos governos lá de Lisboa, e quando vinha vêr as suas quintas, ó senhores, cahia ahi o poder do mundo de Braga e Guimarães a visital-o! E as fidalgas? isso então a gente, quando as via, corria logo a beijar-lhe a mão, e ellas no dia de Paschoa mandavam as cachopas lenços para a cabeça e regueifas de pão podre. Aquella casa estava sempre cheia de frades das ordens ricas...
—Isso, isso ... eu logo vi que essas fidalgas haviam de estar cheias de frades de ordens ricas—dizia o José Dias de Villalva.—Muito cheias de frades aquellas fidalgas, hein?
—Ahi vens tu com as tuas alicantinas—retrucava, pronostica e solemne, a tia Rosa de Carude.—É o que tu estudas, meu valdevinos. Agora é melhor que então, pois não foste? As fidalgas d'hoje em dia presentemente fogem c'os doutores e deixam os filhos... Isto agora é que é bom ás direitas, pois não é? No tempo antigo, valha-me Deus, as fidalgas eram umas desavergonhadas que conheciam frades e creavam os seus filhos.
—Os filhos dos frades?—perguntava o Dias.
—Cala-te ahi, bôca damnada! Olha que padre havia de sahir de ti! Ainda bem que a Martha de Prazins te fez mudar de rumo.
A fuga da Honorata Guião com o Silveira dos Pombaes não amotinara a opinião publica escandalisada. A excepção da austera Rosa de Carude, toda a gente deu razão á fidalga. O Cerveira tinha amigas da ralé, que mettia em casa—uma diversão á embriaguez, quando não exercia as duas distracções em uma promiscuidade desaforada. D. Honorata visitava-se unicamente com a D. Andreza da Silveira, da casa dos Pombaes, irmã d'um bacharel delegado em Amarante. Chorava muito com ella e pedia-lhe que perguntasse ao mano doutor se poderia separar-se por justiça, antes de se atirar a uma cisterna. D. Andreza pediu ao irmão que viesse ouvir as tristes allegações da sua desgraçada amiga.
Estava Honorata nos trinta e tres annos, quando Silveira a encontrou nos Pombaes. O delegado era um romantico. Emigrára em 28, sendo estudante, quando alguns membros da sociedade dos Divodignos padeceram o supplicio da forca pelo homicidio dos lentes. Completára a formatura em 38 e fôra despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus em que havia abencerragens e infantas christãs apaixonadas que tocavam arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castellos roqueiros. Tambem fazia prosa na Gazeta litteraria do Porto,—scenas dramaticas em que se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos negros, cravavam laminas de Toledo ás portas de Dom Fuas, e, cruzando os braços, rugiam cavernosamente: «Ah! Dom ribaldo, Dom ribaldo!» E depois, os arrepios d'uma casquinada secca, d'um estridente grasnido de gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro.
A Honorata, esposa deplorativa, dama da rainha, esbeltamente magra, d'uma elegancia de raça afinada nos salões da Bemposta, pallidez eburnea, esmaecida, airs évaporés, um sorriso nobre de ironia rebelde á desgraça, com a dupla poesia do martyrio e da belleza, ultrapassou a encarnação viva dos ideaes do bacharel. Ella tinha pejo de lhe contar os seus infortunios, a vida crapulosa do marido, a libertinagem de portas a dentro com as jornaleiras, e o abandono da educação dos filhos. Andreza é que contava tudo ao mano Adolpho na presença da martyr. Que o Cerveira se embriagava todas as tardes e tinha amasias da ultima gentalha que punham e dispunham em casa. Que os meninos eram creados brutamente; que o mais velho, o Heitor, nem lêr sabia; porque o pai tambem fazia mal o seu nome. Que tiveram um padre de dentro para os ensinar, mas que o padre, em vez de lhes dar lição, trabalhava de carpinteiro em remendar os sobrados, e quando era a hora do estudo largava a enxó e vinha em mangas de camisa, sem gravata e de socos para a sala. Que os meninos não lhe tinham respeito nenhum, por isso o Heitor, quando elle o ameaçou com a palmatoria, respondeu que lhe dava uma navalhada. O pai achou-lhe graça, e o padre foi-se embora. Depois, entrou um velho que dava escóla em Guimarães, e os quizera ensinar com muita paciencia; mas o Heitor e mais o Egas taes arrelias lhe faziam que o pobre homem fugiu. Que D. Honorata soffria aquelle flagello desde a queda da realeza, como se fosse a culpada da Victoria de D. Pedro. Era da familia dos Guiões, muito intimos do snr. D. Miguel e do conde de Basto; mas todos os seus parentes foram perseguidos, roubados, de modo que ella, ainda que quizesse fugir ao marido, não tinha em Lisboa familia que a pudesse sustentar;—que, se não fosse isso, já teria acabado o seu suplicio, e que muitas vezes pensára em se matar, mas...
—Os filhinhos...—atalhou Adolpho sentimentalmente.
—Não, snr.—acudiu a dama de Carlota Joaquina—não são os filhos. O coração de mãe só se enche do amor aos filhos quando se evapora o amor aos pais. Eu nunca amei este homem. Imposeram-me o casamento, aproveitaram-se do despeito que eu sentia pelas ingratidões d'um conde que eu amava, e casaram-me á pressa. O caracter d'este homem não peorou com a desgraça da politica; elle é o que sempre foi, com a differença de que na côrte embriagava-se com os fidalgos, no Alfeite e em Queluz, e por lá dormia. As mulheres que corrompia ou o corrompiam não eram minhas creadas nem minhas conhecidas; e, se o eram, eu apenas tinha a convicção de que elle era um devasso. Tenho cinco filhos d este homem; mas basta que eu lhe diga, snr. doutor Adolpho, que são d'elle, são os productos amaldiçoados de uma obrigação estupida—a aviltadora obrigação de ser mãe quando se é esposa.
Tinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa assim, nem se lembrava de ler achado nos romances uma razão tão philosophica e concludente da Justiça com que a mãe pôde aborrecer os filhos.
—Sentia vontade de me ajoelhar diante d'ella!—dizia Adolpho á irmã.—Que formosura e que talento, Andreza! Ó mana, eu viajei cinco annos, vi as mulheres mais encantadoras da Europa, estive no Pardo, no Bois de Boulogne, no Hyde-Park, e nunca vi mulher que tanto me penetrasse os intimos seios d'alma! Nunca, por estranha fatalidade, nunca! Como é que eu sinto aos vinte e oito annos as palpitações d'um coração que nasce? Que faisca de amor é esta que me lavra um incendio devastador das alegrias d'alma que ainda hontem me douravam a existencia?
Era o estylo hydropico de Arlincourt; mas é de crêr que exprimisse garrafalmente a singela e natural commoção que lhe fez a gentileza, a poesia elegiaca, a magestade inflexa d'aquella mulher a quem a desgraça dera uma critica moderna e revolucionaria na religião das mães.
D. Andreza, escandalisada, cortava-lhe os voadouros perguntando-lhe se a separação judicial poderia dar meios de subsistencia a Honorata. O bacharel, muito abstracto, parecia esquecido do codigo. O estado da sua alma não lhe consentia folhear a infame prosa com mão jurisperita.
—Que havia de estudar a questão; mas que lhe parecia que ella, requerendo o divorcio, apenas tinha alimentos por não ter trazido nada ao casal.—Estas phrases eram mastigadas com um tedio, um engulho, como se, depois de declamar uma Contemplação de Lamartine, tivesse de recitar dois paragraphos da lei da emphyteuse.
D. Andreza era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras, pondo sempre no alto do papel: Jesus, Maria, José. Andava nos trinta a cinco annos, muito lymphatica e um grande horror aos vicios da carne. O mano Adolpho conhecia-lhe a indole. Não podia esperar d'ella applauso, nem sequer condescendencia, e muito menos auxilio á sua affeição a mulher casada. Andreza concordava com o irmão na formosura de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamára para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhal-a e dirigil-a na separação do marido por justiça.
O doutor Adolpho absteve-se de enthusiasmos, e poz-se a estudar a questão, em conferencias com o Bento Cardoso, de Guimarães, e o Torres e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois chavões. Mas o que elle queria era córar as delongas nos Pombaes, ganhar tempo, a salvo das suspeitas da mana e do seu capellão, um realista finorio que sabia da poda, e trazia a pedra no sapato, dizia, cacarejando uma risada velhaca—e conhecia até onde podia chegar a fragilidade de um homem sem solidos principios de religião, estragado por essas nações.
D. Andreza andava assustada, porque o mano nem ia para Amarante nem dava começo ao processo. A Honorata apparecia-lhe radiosa, com um grande esmero no trajar, vestidos fóra da moda, mas elegantes, ricos, de mangas perdidas, com uns decotes que punham nos olhos do capellão luzernas exquisitas, escrupulos. Adolpho era discreto na presença da mana. Contava as suas viagens, durante a emigração, citava nomes de litteratos desconhecidos á fidalga, seus amigos intimos em Pariz; ai! Pariz!—exclamava—Se eu então me passaria pela mente que havia de vir de Pariz para Amarante!
—Elle porta-se muito serio—dizia D. Andreza ao padre Rocha. Ella é que me parece mais levantada, muito azevieira, não acha?
—Acho, acho...—confirmava o capellão.—D'aqui rebenta coisa, minha senhora; rebenta, v. ex.ª verá...
E, com effeito, estava a rebentar, na phrase explosiva do padre Rocha. O delegado tinha correspondencia diaria com Honorata, mediante uma caseira de sua mana, irmã d'uma criada do Cerveira Lobo. Cartas incendiarias escriptas durante a noite trocavam-se de manhã, quando o Adolpho sahia a respirar os balsamos das ribanceiras orvalhadas. Ás vezes, subia a encosta até á crista do monte do castello de Vermuim. D'aqui, avistava-se por sobre as selvas verdes de carvalheiras e pinhaes a vasta casaria pardacenta de Quadros, com dous torreões denticulados. No andaime de um dos torreões via-se um vulto branco, com o braço amparado em uma das ameias, e a cabeça encostada á mão como nas baladas de Baour Lormian. Era Honorata, com o binoculo assestado na fraga onde estava Adolpho, alaranjado pela primeira resplandecencia do sol nascente.
Ao cabo de duas semanas, sahiram dos dominios da bailada. Uma noite, partiram de Guimarães, caminho do Porto, dous cavallos do Gaitas, e pararam na Ponte de Brito. Um dos cavallos era arreiado com selim de senhora. Por volta da meia noite, Adolpho e Honorata, n'um passo miudo, com uma anciedade, mixto de exultação e de susto, chegaram á Ponte de Brito. Elle ajudou-a a sentar-se na sella; cavalgou, disse aos dois arrieiros o seu destino, e partiram a trote largo.
[2]Como seria de máo gosto inventar este episodio, imponho-me o dever de affirmar que estas noticias me foram transmittidas por um illustrado cavalheiro da Povoa de Lanhoso, o snr. José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade, da casa nobillissima das Argas, fallecido, com mais de oitenta annos de idade, em 1881. Comquanto a imprensa contemporanea, que eu saiba, não fallasse no pseudo—D. Miguel, as revelações do ancião de Lanhoso merecem-me e são dignas de toda a confiança.
Além d'isso, consultei o reverendo Casimiro José Vieira, tão celebrado quando dirigia com mão armada a revolução do Minho, que se chamou Maria da Fonte. Hoje, com 66 annos de idade, vive na sua casa da Alegria, no concelho de Felgueiras, ao sopé do monte de Santa Quiteria, preparando as suas Memorias, que devem esclarecer as obscuridades originaes da insurreição de duas provincias. Este padre que, aos trinta annos, foi conclamado general pelo povo, e parlamentou face a face com o conde das Antas, respondeu assim á minha consulta: Eu apenas posso dizer a v. que foi verdade ter estado o tal impostor occulto em casa do abbade, por que elle mesmo m'o disse; mas nada lhe perguntei a tal respeito, por me lembrar que elle teria vergonha de se deixar enganar, depois de lhe ter beijado a mão muitas vezes, no tempo de estudante e seminarista, quando o snr. D. Miguel esteve em Braga, a ponto de se ter tomado saliente para o mesmo snr. D. Miguel, como o mesmo abbade me contou tambem, mas por isso mesmo nada mais posso accrescentar...[3]
[3]Carta de 11 de novembro de 1882.
Seis annos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamellas andava em roda viva de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não tinha alterado sensivelmente os seus habitos. Estava muito gordo, saude de ferro—um desmentido triumphante aos follicularios que desacreditam as virtudes hygienicas, nutrientes do alcool. Os vomitorios quotidianos explicavam a depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava pelos cincoenta annos, com um arrogante aspecto marcial, de intensas barbas grisalhas,—olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As filhas não mostravam vestigios alguns de educação senhoril. Aquella Therezinha, que a Rosa de Carude denunciára, fugira para casar com o minorista das Quintans. As outras duas, muito boçaes e alavradeiradas, tinham amantes—uns engenheiros e empreiteiros do conde de Clarange Lucotte, que andava fazendo as estradas entre Braga, Porto e Guimarães. Ninguem decente as queria para casar porque, além do descredito, o pai não dava dote; e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que não eram suas filhas. Heitor e Egas, dous galhardos moços, de jaqueta de alamares de prata, faixa vermelha, e sapatos de prateleira com ilhozes amarellos, tinham eguas travadas que entravam pelas feiras n'um arranque de rópia e pimponice, que ia tudo razo. De resto, valentes e bebedos, possantes garanhões de femeaço reles, e muito esquivos a tratarem com senhoras—canhestros e bestiaes. Roubavam o milho e o vinho; vendiam, nas mattas distantes, ao desbarato, córtes de madeira e roças de matto; além d'isso tinham umas pequenas mezadas que o pai lhes dava. Ainda assim, a casa de Quadros não estava empenhada, prosperava, e era das primeiras do concelho. O luxo do fidalgo era a garrafeira. Mais nada. As filhas de Honorata quando, entre si, fallavam da mãe, chamavam-lhe «aquella desavergonhada»; os rapazes com um desapego desleixado que poderia fingir dignidade, nem se lembravam que tinham mãe. Quanto ao pai, esse antes de jantar, era taciturno, casmurro, como quem se esforça por sacudir um pesadello; e, de tarde, sumia-se para recomeçar as suas visões luminosas interceptadas pelas trevas momentaneas da razão. Não se sabe o que elle pensava da mulher.
Admittia pouca gente em sua casa e pouquissima á sua presença. Além dos caseiros que lhe pagavam as grossas rendas de Villa do Conde, de Esmoriz e S. Cosme do Valle, apenas recebia o pedreiro das Lamellas que lhe fizera os canastros e reconstruira algumas paredes desabadas. Conhecia-lhe o pai, o alferes, desde a batalha de Ponte Ferreira. Mandava-lhe botijas de genebra e massos de cigarros;—que bebesse, que se embebedasse, que os tempos não iam para outra coisa. E o alferes com vaidade de fino:
—A quem elle o vem dizer!
Ultimamente, fallavam muito da chegada do snr. D. Miguel—«o meu velho amigo,» dizia o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos ao tecto.
—Venha elle, e vêr-me-has, Zeferino, á frente dos meus dragões de Chaves:—Relampagueavam-lhe então as pupillas e fazia largos gestos marciaes, com o braço tremulo como se brandisse a espada, rompendo um quadrado; montado na phantasia, arqueava as pernas, descahia o tronco sobre um imaginario cavallo empinado e bufava com tregeitos ferozes. Era d'um ridiculo lacrymavel. O Zeferino dizia ao pai que ás vezes lhe tinha medo quando elle fazia aquellas partes.
—O vinho do Porto é o diabo!—dizia o alferes com uma grande experiencia d'essas façanhas incruentas—é o diabo!
O Zeferino, na volta de Santa Martha de Bouro, contou-lhe o que soubera em casa do capitão-mór. O tenente-coronel quiz immediatamente partir para Lanhoso; mas não tinha roupa decente para se apresentar a el-rei. As fardas estavam traçadas, podres com um bafio de rodilhas no fundo de uma arca; dos galões restava um tecido esbranquiçado com laivos verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-se-lhe nas mãos roido pelos ratos. Não tinha casaca. Desde a convenção d'Evora Monte, mandava fazer a Guimarães uns ferragoules de mescla á laia de capote de soldado para o inverno; de verão, para equilibrar o calor artificial interno com o da atmosphera, andava em ceroulas e fazia leque da fralda. Por decencia, fechava-se nos seus aposentos. Mandou chamar um alfaiate a Braga, o Cambraia da rua do Souto, para se vestir á militar e á paizana.
Entretanto o Zeferino, um pouco desanimado, contou-lhe que o seu padrinho de Barrimáo e mais o frade não acreditavam que el-rei estivesse em Calvos; que era uma comedella do dr. Candido d'Anêlhe e dos padres para apanharem cincoenta contos á D. Isabel Maria; que os generaes do snr. D. Miguel não sabiam de nada.
O Cerveira Lobo esfriou. Tambem me parece, dizia, que se o meu velho amigo D. Miguel ahi estivesse, já me tinha mandado chamar.
Mas, depois que o Bezerra de Bouro asseverou que beijára a mão d'el-rei, o pedreiro e o tenente-coronel já não podiam duvidar. Combinou o fidalgo com Zeferino que partisse elle para Lanhoso, e dissesse ao capitão-mór que o levasse a Calvos, e o abbade que participasse a el-rei que estava alli um proprio com uma carta de Vasco da Cerveira Lobo, tenente-coronel de dragões.
—Assim que el-rei ouvir o meu nome, entras logo, immediatamente, n'um prompto. Depois, põe-te de joelhos, e entrega-lhe a carta, percebeste? Tu vais e trazes-me resposta. Por estes oito dias, o mais tardar, tenho cá o fardamento. No caso que sua magestade me mande ir vou, se não, trato de chamar ás armas cinco ou seis mil homens com que posso contar.
Zeferino, para evitar questões atrasadoras, não disse nada ao padrinho nem ao pai, receando as expansões usuaes da carraspana.
O Cerveira dizia ao padre Rocha, capellão de D. Andreza:—Idéas não me faltam; mas esqueci aquillo que se chama ... sim aquillo com que se escreve, quero dizer...
—Ortographia?
—É como diz, padre Rocha, ortographia.
Era o exordio para lhe dar parte que o seu amigo e rei D. Miguel estava no concelho da Povoa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas que não se mettia n'isso; e accrescentava:—elle, o rei, aqui ha treze annos sabia tanta ortographia como eu; mas agora dizem as gazetas que elle estudou coisas e coisas e tal. Pedia, portanto, ao padre Rocha que lhe escrevesse a carta para elle a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a mão no hombro:—E ouviu, padre? Vá pensando no que quer; uma boa abbadia, S. Thiago d'Antas, hein? serve-lhe? ou antes quereria ser conego? Emfim, pense lá... Nós cá estamos ás ordens.
O padre era a fina flôr do clero realista. Sensato, intelligente e honesto. Primeiro, quando o Cerveira lhe revelou a meia-voz a chegada do seu amigo e rei D. Miguel, imaginou-o no seu estado normal de bebedeira. Depois, reparando mais nas attitudes firmes e desempeno da lingua, julgou-o sandeu, amollecimento cerebral pela alcoolisação;—por fim convenceu-se de que o pobre homem era enganado e escarnecido por alguns disfructadores. O padre tinha muita compaixão do fidalgo que a mulher e as filhas enlameavam torpemente. Elle avisára D. Andreza que, no dia em que o snr. doutor Adolpho entrasse nos Pombaes pela porta principal, elle sahiria pela porta travessa; e a fidalga levára tão a mal o proceder do irmão que pensava em fazer testamento para que os filhos d'elle e de Honorata lhe não herdassem as quintas. Sabia-se n'esse tempo que o doutor Adolpho da Silveira era juiz de direito nos Açores e tinha comsigo uma formosa amante com tres meninos.
A unica idéa com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta foi que escrevesse:—«se vossa magestade precisa de dinheiro, diga o que quer que eu até onde chegarem as minhas posses está tudo ás ordens del-rei meu senhor.»
O padre Rocha não sé esquivou a collaborar na indromina, dizia elle a D. Andreza,—porque «eu, pela resposta da carta, hei-de seguir o fio da esparrela que querem armar ao parvo do homem.»
A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pedir commentarios, explicações. Que estava uma obra profunda—dizia o fidalgo instruido em fim nas obscuresas do estylo.
E, tirando seis pintos do bolso do colete:
—Ahi tem para o seu rapé, merece-os.
O capellão não acceitou; pediu que os applicasse por sua intenção ás necessidades do snr. D. Miguel.
—É um realista ás direitas, padre, um grande realista!—E, guardando os seis pintos, abraçou-o effusivamente e offereceu-lhe um calice de 1817.
—Eu desejaria muito vêr a resposta de sua magestade—dizia o padre Rocha.
—Isso é logo que ella chegar, padre! pois então? Cá entre nós não ha segredos; e, se o amigo quizer, no caso que el-rei me mande ir, vai commigo, e póde logo vir despachado. Pois então?
—Está dito!—e o padre com um regosijo muito comico, e o calice aromatico de baixo do nariz:—Quem sabe se eu ainda serei arcebispo, ó snr. tenente-coronel!
—Ora! como dous e dous são quatro! Ha-de ser arcebispo, não tenha duvida. Isto vai tudo mudar!—E carregava-lhe forte no 1817.—Arre! estou aqui mettido ha doze annos n'estes montes, que me tem levado os diabos! Tenho 49 annos: mas este punho ainda póde com a espada! Ha-de haver pancadaria de criar bicho! Olé! Eu dizia ás vezes ao meu amigo D. Miguel quando o Sedvem, e o Matta e o Miguel Alcaide davam cacetada nos malhados que aquillo não era bonito. Pois agora, padre Rocha, hei-de dizer-lhe: «É p'ra baixo, real senhor! môcada de metter os tampos dentro a esses malhados! E acabar com elles por uma vez! uma forca em cada concelho, real senhor, muitas forcas! Ah! meu camarada Telles Jordão! tu é que a sabias toda!»
O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o calice. O padre despediu-se.
Na residencia do abbade Marcos Rebello, em S. Gens de Calvos, havia uma sala com alcova e janellas sobre uma horta arborisada. As pereiras, macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de abril. Alli, n'aquellas frigidas alturas, sopram as ventanias mordentes de Barroso, do Gerez, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das crystallisações glaciaes. Fazia frio. Na saleta caiada, muito excrementicia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereaes, no outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios, esfarpeladas no assento; nas paredes duas lytographias—o retrato de D. João VI com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquez de Pombal sentado com o decreto da expulsão dos jesuitas, apontando parlapatonamente para a barra onde alvejam pannos de navios que levam os expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros seccos de antigas catarrhaes, destacavam molduras de carvalho com dois paineis a oleo cheios de grêtas, S. Jeronymo no deserto, com uma cara afflicta, de tic doloroso, e Santo Antonio de Padua, n'um sadio en bon point, um bom sorriso ingenuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, em uma bola que os agiologos diziam ser o globo terraqueo. No centro da quadra estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria amarella com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com brazas e uma cesta de vêrga cheia de carvão. Entre as duas pequenas janellas de rotulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava estrondosamente um relogio de parede com os frisos do mostrador sem vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres brancos muito inchados e as azas abertas.
Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova que ringiu ligeiramente na couceira desengonçada, e sahiu um sujeito de mediana estatura, hombros largos, barba toda com raras cans, olhos brilhantes, pallido-trigueiro, um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta annos. Sentou-se á brazeira e preparou um cigarro, vagarosamente, que accendeu na aresta chammejante de uma braza. Com o cigarro ao canto dos labios e um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças, e poz fóra a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a mão com desagrado e fechou a janella. Vinha subindo a escada de communicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa, meias azues de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar, fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:
—Vossa magestade passou bem?
—Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.
—Estimo muito, real senhor. O snr. abbade foi chamado ás oito horas para confessar uma fregueza que está a morrer d'uma queda, e deixou dito que puzesse o almoço a vossa magestade, se elle não chegasse ás nove e meia.
—Quando quizer, Senhorinha, quando quizer, visto que o abbade deu essas ordens e quem manda aqui é elle.
Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua magestade farejava com as narinas anhelantes, n'um forte appetite. A creada voltou com toalha, guardanapo, loiça da India, talheres de prata, e uma travessa coberta. Sua magestade, muito familiar, tirou de sobre a mesa uns cadernos escriptos, cosidos com sêda escarlate, e um grande tinteiro de chumbo com pennas de pato.
—Ora vossa magestade a incommodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, real senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a...
E o real senhor:
—Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer homem.
—Credo! faz muita differença ... mesmo muita...
Ella descobriu a travessa a rir-se:
—Vossa magestade diz que gosta...
—Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a ellas que estão a dizer—comei-me.
E atirou-se ás sardinhas com uma sofreguidão pelintra.
Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua magestade gostava muito d'estas comezanas nacionaes. Já tinha comido tripas, e dizia que no exilio se lembrára muitas vezes d'esta saborosa iguaria com feijão branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abbade de Calvos sensibilisava-se até ás lagrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha de porco e a limpar as regias barbas oleosas das gorduras suinas. O terceiro prato era vitella assada. A Senhorinha trazia-lh'a no espêto, porque sua magestade gostava de ir trinchando finas talhadas, emquanto a cozinheira, de cocoras ao pé do fogareiro, conservava o espêto sobre o brazido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hospede um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietario do Douro, que estava no segredo do ditoso abbade de Calvos—capellão-mór d'el-rei e dom prior eleito de Guimarães.
A creada assistia muito jovial áquella deglutição formidavel, e dizia particularmente ao abbade:—Este senhor, pelo que come, parece que tem passado muitas fominhas! Ninguem hade crêr o que sua magestade atafulha n'aquelle bandulho!—e dizia que lhe dava vontade de chorar, lembrando-se das lazeiras que elle tinha apanhado; porque o abbade contava que lêra no Deus o quer, do visconde de Arlincourt, que o snr. D. Miguel, em Roma, não tinha ás vezes 10 réis de seu para almoçar uma chicara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade aquillo—que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassallos pelos sessenta contos anuaes que lhe offereceram da Casa do Infantado, e que elle rejeitara.
Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. S. magestade barrava-as de manteiga nacional,—preferia a manteiga do seu paiz, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão portuguez, e o pé do porco nas tripas tambem portuguezas—tudo do seu paiz. Que rei, que patriota!—meditava o abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra, esmoncando-se e aparando as lagrimas ternas no alcobaça.
No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos hespanhoes, de contrabando; desabotoava o colete, dava arrôtos, repoltreava-se na cadeira de sola um pouco desconfortavel, e vaporava grandes columnas de fumo que se espiralavam até ao tecto.
A Senhorinha veio á beira d'el-rei, e disse baixinho:
—Saberá vossa magestade que está ali o snr. Trocatles.
—O...?
—Ai! Já me esquecia ... o snr. visconde....
—Que suba.
O sujeito que entrou era o Torquato Nunes, um sargento do exercito realista, de S. Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcôva.
A cozinheira dizia em baixo á outra creada de fóra:—Ó coisa! Mal diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles!
E a outra, benzendo-se:—Não que elle, o mundo sempre dá voltas! Veja você! aquelle moinante que me pediu uma vez dois patacos p'ra cigarros, e por signal que nunca m'os pagou!
—Pois vês-ahi! Foi elle o primeiro que conheceu o snr. D. Miguel, é o que foi, a sua magestade gosta muito d'elle. Foi feliz o diabo do homem! Aquillo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho d'elle, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está conego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher d'elle já botou no domingo passado a sua saia e jaqué de panno azul.
—E que rico panno!
—Pois vês-ahi...
Entrava n'esta conjunctura o abbade, esfadigado, suarento—que levasse o diabo a freguezia, que pouco tempo havia de aturar maçadas d'aquellas, para confessar uma bebeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira da Povoa e cahira d'um valado abaixo. E elle?—perguntava—almoçou bem?
—Ora! não ha que perguntar, senhor! Aquillo, salvo seja, é como a cal d'uma azenha. É quanto lhe deitarem p'rá tripa. Coisa assim! Subiu agora p'ra lá o Nunes. Ai! já me esquecia, ó snr. abbade! Olhe que na villa já perguntaram se cá na casa estavam hospedes, porque vinham p'ra cá muitas comida. Que não vão elles pegar a desconfiar... Esta pergunta á moça traz agua no bico.
—E tu que respondeste, moça?
—Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de confesso...
—Andaste bem.
Quando o padre Marcos Rebello subia á sala, pedindo licença a meio da escada, já o rei e o visconde vinham sahindo da alcôva—um, aprumado na attitude da magestade, o outro, na do respeito, muito composto.
—Pede licença na sua casa, dom Prior?—disse el-rei.
O dom prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano apressou-se a erguel-o.
Nada de etiquetas, já lh'o disse duzias de vezes.
—Não posso nem devo proceder d'outra maneira, senhor!
—Póde e deve que o mando eu.
E o abbade, inclinando-se com os brados em cruz sobre a batina:
—Saberá vossa magestade que o snr. capitão-mór de Santa Martha, a quem vossa real magestade fez barão de Bouro...
—Bem sei ... aquelle amavel cavalheiro...
—Perfeito cavalheiro—attestou o Nunes.
—Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de vossa magestade.
El-rei leu alto:
Amigo Dom Prior de Guimarães.—Um realista do concelho de Famalicão chegou ha pouco a esta casa, afim de que eu escrevesse ao meu nobre e velho amigo para obter de S. M. licença para lhe apresentar como portador de uma carta do snr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz elle que o snr. D. Miguel fôra amigo pessoal do dito tenente-coronel, e por isso entende, e eu tambem que será muito ao real agrado do nosso rei e senhor receber a carta d'este legitimista que nos pôde ser muito util, já pelo seu nome, como tambem pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S. M. F., queira transmittir-m'as...
—Estou-me recordando—dizia o principe pausando as suas reminiscencias—Cerveira Lobo ... tenente-coronel de dragões... O Cerveira, o meu amigo Cerveira...
—Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os liberaes com a cavallaria e mais o coronel de dragões, o Albuquerque—lembrou o Nunes, o visconde Nunes—V. magestade lembra-se?
—Perfeitamente. Dom prior, queira escrever ao barão e dizer-lhe que espero anciosamente a carta do meu amigo Cerveira.
Emquanto o abbade ia ao seu quarto escrever, o hospede disse ao ouvido do outro:
—Isto corre mal...
—Porque?!
—Se o homem cá vem, o meu grande amigo...
—Recebel-o como o teu grande amigo...
—Se me falla em particularidades ...
—Elle não sabe fallar em particularidades. É uma besta, muito rico, e disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre bebedo. Nem elle cá vem, tu verás ... Eu até acho que as coisas correm perfeitamente.—Ouviam-se os passos do abbade.—Tem dinheiro, elle tem muito dinheiro, ouviste?
Entrou o abbade.
—Só duas palavras. E leu: S. Magestade recebe com muito prazer a carta do snr. tenente-coronel Cerveira Lobo.
—Muito bem,—approvou el-rei.—Hoje á noite, com todos os resguardos que urgem as cautelas.
—Um homem, o Caneta de Braga, o chapelleiro com uma carta—annunciou Senhorinha—só a entrega em mão propria ao snr. abbade.
—Que entrasse.
O rei e o visconde metteram-se á alcova, simulando receios.
Era uma carta do abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas, de Braga, offereciam de joelhos a S. M. F. e diziam que todos os seus haveres estavam as ordens d'el-rei seu senhor.
E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de sêda escarlate. E o Caneta muito pontual.
—Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo snr. abbade.
—Venha d'ahi que eu passo-lhe o recibo.
Os dois sahiram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Elles tinham ouvido fallar em recibo. O visconde Nunes, esgaziando os olhos, foi apalpar o embrulho, e muito baixinho:
—Arame! peza que tem diabo! é oiro! Começa a pingadeira! Vês?
O outro arregalou os olhos e deitou a lingua de fóra quanto lhe foi possivel. Nem parecia um rei!
As sete da noite a soirée do monarcha de Calvos compunha-se do visconde Nunes, seu secretario privado e brigadeiro de infanteria, do abbade capellão-mór de el-rei, de dois reitores, conegos despachados, e o ex-sargento-mór de Rio Caldo nomeado capitão-mór de Lanhoso. Estavam todos em pé resistindo á licença de se sentarem. A cadeira de sola estava com o principe encostada ao relogio; e, na mesa central, papeis, o tinteiro de chumbo, o Novo Principe, de Gama e Castro, a Besta esfolada e o Punhal dos corcundas, do bispo fr. Fortunato. Em cima das caixas do milho estavam em meio alqueire com feijões brancos destinados ás tripas, e dois folles vasios que a Senhorinha tencionava encher de grão para a fornada quando el-rei se recolhesse. Sobre um dos folles resbunava um gato enroscado.
Esperava-se o apresentante da carta de Vasco da Cerveira.
Ás oito horas annunciaram-se os adventicios. O barão de Bouro entrou primeiro a passo mesurado, com o peito alto, e o pescoço hirto n'uma gravata enchumaçada, preta, de cordãosinho de arame, sem laço, atacando os lobulos das orelhas, um pouco reintrante na altura dos gorgomilos. Usava oculos de oiro quadrados, e uma pêra grisalha; de resto, rapado. Envergava casaca nova de lemiste, muito refestelada, de abas compridas com ancas proeminentes, segundo a moda; de cós das calças, côr de gemma de ovo, pendiam berloques com armas, uma medalha com o retrato de D. Miguel aos vinte e dous annos, a uma peça de oiro com a mesma real effigie. No peito da camisa, entre as lapellas do collete de velludo côr de laranja, trazia pregado um punhal esmaltado, em miniatura, enygma convencional dos cavalleiros de S. Miguel da Ala, obra patriota do ourives Novaes, pai do poeta Faustino.
De pés elle, entrou o Zeferino das Lamellas, muito enfiado, n'um spasmo, sentindo-se aluir pelos joelhos. Ia de niza de panno azul com botões amarellos, calça branca espipada com joelheiras pelos atritos do alhardão. As pernas das calças chegavam apenas a meio cano das botas, que pelo tamanho dos pés dir-se-iam roubadas a um gigante.
O Bezerra dobrou o joelho, inclinando o tronco á mão esquiva de sua magestade. Por de traz d'elle, o Zeferino ajoelhára batendo com ambas as rotulas no taboado. O barão ia fallar, quando o rei, reparando no outro, disse:
—Levante-se, homem! Isto aqui não é capella.
O pedreiro teimava, achava-se bem n'aquella postura que o dispensava de procurar outra.
—Sua magestade manda-o levantar—disse o visconde Nunes.
Ergueu-se, e n'um impeto silencioso ia entregar a carta ao da cadeira, quando o capellão-mór lhe observou que as cartas se entregavam ao secretario.
O barão expoz que não pudéra resistir aos pedidos que aquelle honrado legitimista lhe fizera para o acompanhar, porque não se atrevia a entrar sósinho á presença d'el-rei, seu amo. Que era filho de um bravo alferes, o Gaspar das Lamellas, que em 1838, á frente de 300 homens, atacára a villa de Santo Thyrso, dando vivas a el-rei. Contou a façanha de atravessar o Ave a nado em janeiro, com a espada nos dentes, e que por causa d'isso entrévecera e nunca mais se levantou.
—Oh!—interjecionou compungidamente o monarcha.—Eu ignorava esse notavel ataque ... estava em Roma, sem noticias... Digno homem o meu honrado e bravo ... como se chama seu pai?
—Saberá vossa magestade que se chama Gaspar Ferreira.
E o rei:
—Visconde, escreva na lista.
O Nunes sentou-se á mesa, pedindo venia a sua magestade que ditou:
—Gaspar Ferreira, reformado em coronel de infanteria, com vencimento desde 1838. Escreva á margem: Batalha de Santo Thyrso. E voltando-se para Zeferino que ladeava para a parede:
—Diga a seu bravo pai que lhe dei a reforma em coronel, e vencerá soldo dos sete annos passados.
O Zeferino abriu a bôca para dizer o que quer que fosse.
—A carta do meu velho amigo Teixeira?—perguntou o rei ao visconde Nunes.
—Cerveira, perdôe vossa magestade, Cerveira Lobo.
—Ah! sim ... Cerveira Lobo.
Abriu, leu para si, passou a carta ao secretario, e commentando exultante:
—Um grande amigo! dos raros! um dos nossos melhores esteios! Com homens assim dedicados, o triumpho é certo. Posso dizer com o grande vate Camões:
Um dos reitores que estavam na penumbra, lá em baixo ao pé das caixas, olhou com espanto para o outro, que lhe disse á puridade, discretamente:
—Diz que elle tem estudado o diabo ... até o latim!
El-rei proseguiu:
—Vou responder por meu proprio punho ao meu nobre amigo. É digno d'esta e de maiores considerações. Visconde, escreva na lista: Vasco da Cerveira Lobo, general de cavallaria, e conde de Quadros. Depois, tirou de uma velha pasta de papellão uma folha de almasso, sentou-se a escrever—e que conversassem.
O abbade, capellão-mór, aproveitou o ensejo para servir vinho do Douro e pasteis de Guimarães, cavacas do convento dos Remedios e forminhas.
Havia mastigação de mandibulas pesadas; as forminhas eram frescas, muito torriscadas, davam rangidos n'uma trincadeira voluptuosa. Conversava-se em dous grupos. O sargento-mór de Rio Caldo contava passagens de caça no Gerez, com emphaticos arremedos, movimentados, da altaneria. Que o porco bravo viera direito a elle, e cortava matto, troncos de giestas como a sua coxa—e mostrava—; tinha apanhado de raspão a cadella, a Ligeira, raça de todos os diabos que o atacava pela orelha, e ficou aleijada para nunca mais; e elle então cahira sobre a esquerda, e trepara á fraga da Portella, e esperára o porco na clareira; e mal elle apontou, pumba! metteu-lhe tres zagalotes no quadril.
—A gente a fallar incommóda talvez el-rei...—observou o barão de Bouro.
—Podem conversar á vontade, que não me incommodam.
—Aquillo é que é cabeça!—disse baixinho, tocado, um dos conegos a outro conego.
Generalisou-se a cavaqueira. Faziam-se brindes laconicos, circumspectos, com um grande respeito, indicando-se el-rei por um simples gesto de olhos.—A virar! a virar!—Carminavam-se os conegos. O dom Prior de Guimarães suggeriu uma lembrança graciosa ao barão. Que havia dois padres Marcos, ambos priores de Guimarães. Mas o legitimo, o de S. Gens de Calvos, dizia do outro:
—Forte bebedo!
O visconde Nunes ria-se sarcasticamente; e emquanto os padres n'um crescendo palavroso, expluiam sarcasmos ao outro padre Marcos, o secretario privado curvou-se sobre o hombro de el-rei e segredou-lhe:
—Carrega-lhe!
—Ora!...
—Quanto?
—2.
—3. Anda-me. 3.
—Será muito!...
—Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.
E, em voz alta e voltado para o grupo:
—El-rei pergunta se o snr. Conde de Quadros tem familia, se tem senhora e filhos.
O Bezerra perguntou ao Zeferino.
—Que soubesse sua Magestade, disse o pedreiro, mais animado, que o fidalgo de Quadros tinha dois rapazes e tres raparigas, uma já casada; mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui ha annos atraz, tinha fugido com o doutor dos Pombaes, e nunca mais voltára.
—Desgraças!—disse o capelão-mór—desgraças! A corrupção dos tempos... Se se não acudir quanto antes a isto, não sei que volta se lhe ha-de dar.
Fez-se um silencio condolente. Todos sentiam o caso infausto.
O rei continuava a escrever, de vagar, pulindo a frase, boleando os periodos; achava difficuldades em se medir com as locuções redondas e muito adjectivadas da rethorica do padre Rocha. Animava-o, porém, a idéa de que D. Miguel não tinha fama de sabio, e que a sua carta seria mais verosimil com alguns aleijões grammaticaes.
Releu a carta, e accrescentou ás virgulas. Pediu obreia ao Munes. Acudiu o padre com uma quadrada, de certa grandeza, vermelha, cuidadosamente recortada.
O envelope ainda não tinha subido até Lanhoso. Sua magestade dobrou em quatro a folha do almaço e sobrescriptou—Ao conde de Quadros, general do Exercito real.
N'esta occasião, o Christovão Bezerra chamou de parte o Nunes, fallou-lhe em segredo, e terminou em voz alta: «se for do agrado de sua magestade.»
—Eu vou fallar a el-rei—disse Nunes com satisfatoria condescendencia.
Acercou-se do outro, com os braços pendentes, os pés juntos, um pouco inclinado, e fallou-lhe baixo.
—Sim—respondeu o monarcha.
—Está servido, snr. barão—communicou o secretario, e foi registar no livro das mercês, proferindo em voz alta: Sua magestade há por bem nomear sargento-mór das Lamellas Zeferino Ferreira, em attenção aos serviços de seu pai, o coronel Gaspar Ferreira.
—Vá agradecer a el-rei, snr. sargento-mór—disse o barão de Bouro ao pedreiro. Zeferino foi ajoelhar, querendo beijar as botas ao homem.
—Levante-se, amigo—disse o principe.—Aqui tem a resposta da carta do meu amigo Cerveira Lobo. É necessario que ninguem veja este sobrescripto. Tome sentido, que ninguem saiba a quem esta carta é dirigida. Vá com Deus, e estimarei vêl-o aqui, snr. sargento-mór, com outra carta do meu honrado amigo, emquanto não posso abraçá-lo pessoalmente. Adeus.
A côrte sahiu em recuansos, dando-se mutuos encontrões para não voltarem as costas á magestade.
A creada appareceu então esfandegada para pôr a mesa, que estava a cela prompta, e que o frango com arroz não esperava—que era preciso comêl-o logo que estava feito. Ficou para cear o Nunes. Geava sempre com el-rei e com o abbade.
O Zeferino, que tinha ali a egua e conhecia o caminho, não quiz ir pernoitar a Santa Martha de Bouro. Havia luar e sahia um rancho de romeiros para o Bom Jesus do Monte. Partiu em direcção a Braga, e ao outro dia de tarde apeava no sonoro pateo da casa de Quadros por onde entrára com a egua em grande estropeada, com a cara escandecida n'uma congestão de jubilo.
O Cerveira estava a dormir a sesta.
—Apanhou-a hoje d'aquella casta! Como um cacho!—informou um caseiro.—Mandou apparelhar a poldra castanha do snr. Egas, com os coldres das pistolas, escanchou-se na sella, com a espada desembainhada e desatou a galope por debaixo das ramadas a dar gritos: «Avança, dragões! carrega, esquadrão!» Eu estava a vêr quando o levava a breca de encontro a um esteio de pedra, que malhava abaixo da burra como um dez!... Depois o snr. Egas e mais o snr. Heitor lá o apearam como puderam, e foram-n'o pôr a dormir. Arre diabo! lá que um homem uma vez por outra apanhe um pifão, vá; mas embebedar-se todos os dias, é muito feio! E depois ninguem se entende com elle. Medra com o suor dos pobres. Um fona. Que vá para o diabo, que o carregue. Tanto se me dá como se me deu. Se me mandar embora, boas noutes. Não é capaz de perdoar um alqueire de milho a um caseiro! Tem vinte mil cruzados de renda, não gasta nem cinco, andam os filhos a vender o matto e os pinheiros, uma vergonha, porque elle, a dois homens gastadores, que tem amigas, uma a cada canto, dá cada mez vinte pintos para os dois! O homem deve ter muita somma de peças enterradas! Qualquer dia cae-lhe ahi em casa o José Pequeno da Lixa que lhe põe a faca ao peito até elle pôr ali o dinheiro á vista. Diz que quer comprar mais terras, e aqui ha dias offereceu seis contos pela quinta do Lopes de Requião. Veja você. Tem seis contos ao canto da gaveta, e ainda não deu cinco réis que são cinco réis á filha, á D. Therezinha que casou com o estudante das Quintans. Anda por lá de socas, sem meias, a fazer o serviço da cozinha. E estão ahi as outras duas, que parecem umas fadistas, nas romarias, e, quando Deus quer, topa a gente de noute por esses quinchosos esses marotos dos engenheiros e empreiteiros a saltarem paredes para se irem metter com ellas na casa do palheiro. Uma vergonha, mestre Zeferino, a vergonha das vergonhas! Eu sou um pobre; mas raios me parta, que se eu tivesse assim umas filhas... Olhe... (batia com o pé em cheio na relva) esmagava-as como quem esborracha, uma toupeira. Deus nos livre de bebedos! Deus nos livre de bebedos! Você bem sabe o que isso é, mestre Zeferino, que pelos modos lá por casa não tem pouco que aturar a seu pai que tambem as agarra muito profeitas! Olhe você como elle se tolheu quando foi, dia de natal, dar fogo aos de S. Thyrso! Aquillo só com meio almude no bucho!
—Não é tanto assim—atalhou o sargento-mór de Lamellas.—Não lhe digo que meu pai não tivesse algum graieiro na aza; mas o que elle fez não era você capaz de o fazer, tio Manoel.
—Ah! isso não, bem o póde dizer, mestre Zeferino. Nunca me emborrachei, aqui onde me vê com cincoenta annos já feitos; mas, se algum dia me emborrachar, que ninguem está livre d'isso, prego-me a dormir e não vou atirar-me ao Ave em dezembro! ágora vou, se Deus quizer. Vai-se pôr o alma do diabo a dar vivas ao D. Miguel! Qual Miguel nem qual carapuça! Se D. Miguel cá vier ha-de fazer tanto caso de seu pai como eu d'aquella bosta que ali está. O que elle devia era tratar de conservar os terrões, e fazer como você que se pôz a trabalhar e se fez pedreiro quando viu que os malhados lhe tomaram conta das terras. E d'ahi? Você hoje tem o seu par de mel cruzados, ganhados com o suor do seu rosto, e até já me disseram que você dava quinze centos ao de Prazins para lhe casar com a rapariga. É assim ou não é?
—Isso acabou—respondeu com desdem, irritado.—Agora não a queria nem que elle a dotasse com tres contos; entenda você o que lh'eu digo, tio Manoel, nem com seis contos! Você não sabe quem eu sou, mas brevemente o saberá. Pouco ha-de viver quem o não vir.
—Não sei quem você é? Ora essa... Já lhe disse que você é homem capazorio, honrado...
—Quero cá dizer outra, coisa... Você não entende... E Ouvindo abrir uma janella—lá está o fidalgo... Deixe-me lá ir.
E afastando-se do caseiro, ia dizendo comsigo:
—Que tal está o labroste! Um homem vem de fallar com el-rei, e topa com uma cavalgadura d'estas! Canalha ordinaria!...
Quando Zeferino entregou a carta com um gesto soberbo da sua intervenção entre o fidalgo e o rei, o Cerveira olhou para o sobrescripto com estranheza, e disse que a carta não era para elle; e lia: Ao conde de Quadros, general da exercito real.—Isto que diabo é?
—É isso mesmo, fidalgo; isso que ahi está vi-o eu com estes olhos escrever el-rei o snr. D. Miguel, hontem á noute, das nove para as dez. O snr. conde é vossa exccellencia mesmo, e eu sou sargento-mór das Lamellas; lá ficou o meu nome no livro e mais o de meu pai, que foi despachado coronel por el-rei.
—O teu pai?! coronel!...
—É como diz.
—Ora essa! ... coronel! caramba!—disse despeitado; parecia-lhe iniqua a promoção; mas occorreram-lhe os velhos caprichos analogos d'el-rei; as injustiças d'algumas patentes superiores desde 1828 até á convenção. E abriu a carta com moderado enthusiasmo. Parecia que a sua razão immergida, restaurada depois de duas horas bem roncadas, de papo acima, queria duvidar da authenticidade de um D. Miguel que fazia sargento-mór um pedreiro, e coronel um reles alferes que passára das milicias de Barcellos para infanteria. Achava natural e plausivel em si as charlateiras de general e a corôa de conde; mas as mercês feitas aos dous plebeus... Caramba!—Uma intermittencia de juizo. Emfim, abrira a carta e lêra para si com uma custosa interpretação, ora aproximando, ora distanciando o papel dos olhos.
A pouco e pouco, desavincou-se-lhe a fronte carregada, illuminaram-se-lhe os olhos, coava-se-lhe no sangue o suave calor do convencimento. Lia coisas que lhe evidenciavam um snr. D. Miguel authentico, o auctor da carta. Conhecia-lhe a lettra. Lembrava-se muito bem; era assim; e então a assignatura—Miguel, Rei—era tal qual. Chegou a um certo periodo que devia impressional-o mais pela mudança subita que lhe transluziu no semblante. Depois dobrou vagarosamente a carta.
O Zeferino esperava a confidencia do contheudo; mas o fidalgo, apesar da nobilitação do sargento-mór, continuava a consideral-o o pedreiro que lhe fizera os canastros e reconstruira as paredes da cozinha. Não estava assaz bebedo para confidencias.—Conta lá o que te aconteceu, Zeferino—e sentando-se, metteu o saca-rolhas á botija de Hollanda.
O Zeferino contou tudo com muita particularidade. Descreveu a figura do rei, as barbas que mettiam respeito: pausava como elle os dizeres, dando ao braço direito, com a mão aberta, um movimento compassado. Repetiu, peorados na fórma, os elogios que o snr. D. Miguel fizera ao seu amigo Cerveira; que quando estava a escrever, perguntou se o conde de Quadros tinha filhos.
O fidalgo sentia muita sêde. Misturava de meias a genebra com agua assucarada. E ao passo que lhe'sorriam as alvoradas do seu mundo phantastico, e as trevas da razão se desteciam, crescia-lhe o interesse na narrativa do pedreiro. Reperguntava pormenores já respondidos. Não havia já no seu espirito passageira sombra de duvida. Era o seu amigo D. Miguel quem estava em S. Gens de Calvos; e, se elle fizera coronel o plebeu das Lamellas e sargento-mór o pedreiro, foi decerto com a intenção de o obsequiar a elle, para lhe mostrar com que prazer recebera a sua carta.
—Sua magestade disse-me que estimava lá vêr-me com outra carta do snr. conde, emquanto não ia lá abraçal-o—esclareceu Zeferino.
—Tens de lá ir amanhã. Apparece cêdo.
—Prompto, senhor.
—Mas, se vais para casa, passa pelos Pombaes e dá parte ao padre Rocha que preciso fallar-lhe hoje á noite ou ámanhã cêdo.
O padre Rocha preferiu vir de manhã, antes dos transportes civicos do tenente-coronel. Repugnava-lhe o ebrio e professava uma sincera compaixão pelo homem.
Pouco depois do sol nado, o capellão de D. Andreza estava em Quadros com um grande interesse. Queria salvar o visinho d'uma ratoeira armada ao seu dinheiro, ou convencer-se de que realmente o principe proscripto estava no concelho da Povoa de Lanhoso.
Chegára um pouco tarde. O Cerveira Lobo já tinha matado o bicho copiosamente, um bicho muito antigo, invulneravel, que não se afogava em pouca genebra.
—Não ha duvida, padre Rocha! Cá está o homem!—exclamou o fidalgo.
—Máo!—disse comsigo o padre, quando lhe apanhou em cheio as inhalações alcoolicas do bafo.—Então é certo, snr. tenente-coronel?
—Se me quer chamar o que eu sou, amigo padre Rocha, chame-me general a conde. Veja.
—Oh! sim? muitos parabens, snr. conde, muitos parabens! Quanto folgo!—e lia o sobrescripto.
—Póde abrir e leia alto.
—Muito boa fórma de lettra, sim senhor... É do proprio punho do snr. D. Miguel?
—Leia e verá. É d'elle mesmo. Conheço a assignatura muito bem. Tal qual, sem tirar nem pôr. Vai um copito?—perguntava com a botija inclinada sobre o calice.
—Muito obrigado a v. ex.a. Tenho de dizer a missa á snr.ª D. Andreza ás dez horas.
—Leia lá então. Olhe que o nosso homem estudou. Explica-se muito soffrivelmente. Veja o padre que espiga se eu lhe mando uma carta escripta p'ráhi á tôa, hein? Bem diz a Nação que elle andava a estudar lá por fóra.
—Se dá licença, leio—interrompeu o padre com impaciencia curiosa.
—Vá lá!—e puxou a cadeira e a botija para junto do capellão.
Velho, honrado e leal amigo, Vasco da Cerveira Lobo, conde de Quadros e general dos meus exercitos. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Não podeis imaginar o grande prazer que senti quando ouvi o vosso nome e o li escripto no final da vossa mais que todas preciosissima carta.
—Hein?—interrompeu o Cerveira.
—Muito bem—e proseguiu lendo:
Muitas vezes me lembrou no desterro de onze annos o vosso nome, porque não podia esquecer o de um amigo que tão de perto conheci e tanto me acompanhou nas alegrias da minha mocidade.
—Eu não lhe disse, padre, que o rei e mais eu tinhamos feito pandegas rasgadas quando éramos rapazes?
—Sim, snr., v. ex.ª tinha-m'o dito.
—Ora ahi tem, eu nunca minto. Ah! que bambochatas!—e recordava-se com os olhos n'um spasmo entre a saudade e as iniciativas da borracheira.
—Continúo, se v. ex.ª permitte.
—Ande lá... Quem te viu e quem te vê, Cerveira Lobo!—disse com tristeza, muito abatido. Padre Rocha encarava-o com piedade, sentia ancias de abraçal-o, e dizer-lhe: «Regenere-se!»
—Ande lá. Leia, que o melhor está p'ra baixo.
Logo que cheguei a Portugal chamado por amigos de primeira ordem e fui para aqui enviado, perguntei se ainda ereis vivo. Alegraram-me com a resposta; mas delicadamente me obrigaram a não escrever a alguem, emquanto o triumpho infallivel da minha justiça dependesse de certas negociações pendentes entre as nações da Europa e o meu ministro em Inglaterra, o Ribeiro Saraiva que muito bem deveis conhecer de nome. Tendo eu sido violentamente accusado pelos meus proprios amigos de ter sacrificado os meus direitos aos meus caprichos, submetti-me ás deliberações da Junta de Lisboa e por isso vos não escrevi para vos abraçar e chamar para meu lado.
O Cerveira começou a soluçar com a cara coberta de lagrimas que destacavam no rubor da epiderme.
—Então que é isso? São lagrimas de alegria?—perguntou o padre.—Se são, deixe-as correr.
—Qual alegria! estou velho... Já não posso fazer nada a favor d'el-rei... Este pulso...—e retezava o braço. O padre assustava-se.—Ora leia para baixo, que está ahi uma passagem muito bonita.
Nunca me esqueceu nem já mais esquecerá que ereis o tenente coronel dos meus queridos dragões de Chaves; que fostes vós o commandante da carga solemne que soffreram as tropas liberaes em uma das primeiras sortidas do Porto; e que fostes traiçoeiramente arrastado pelo infame general Urbano quando com outro infame, o coronel Albuquerque, fizeram acabar deshonrosamente na Chamusca os ultimos esquadrões do Regimento de Chaves. Mas vós, honrado Cerveira, ficastes illeso da ignominia geral, porque rejeitastes o perdão e dissestes que ereis um prisioneiro de guerra, e aceitaveis as consequencias da vossa posição.
—Foi assim!—exclamou o Cerveira erguendo-se de salto. O Saldanha era meu capitão quando eu era cadete; conhecia-me. Mandou-me chamar á sua presença; que me fizesse liberal, e me entregavam a minha espada; e eu (batia duramente no peito com as mãos ambas) eu, padre, eu, aqui onde me vê, disse-lhe que levasse o diabo a espada para as profundas dos infernos; que a minha espada tinha-m'a dado o snr. D. Miguel I e que elle me daria outra, quando fosse precisa. Ficaram estarrecidos; e o patife do Saldanha, que tinha sido um realista de todos os diabos, quando era o gajo da Isabel Maria, chamou-me estupido. E eu, vai não vai, estive a mandal-o...
Disse o resto. O padre riu-se, e pediu-lhe licença para continuar a leitura, porque se chegava a hora de ir dizer a missa.
—Ande lá.
Desgraçadamente o vosso heroismo e amor á minha causa legitima não foi muito imitado. Eu perdi a corôa, mas a perda maior foi a de amigos como vós, bem poucos, mas que valem um reino.
—Torne a lêr esse bocado que é cousa muito profunda, ó padre Rocha.
Fez-se-lhe a vontade. O Rocha tambem admirava, e de si comsigo dizia que o rei tinha bom palavriado sentimental, ou que o impostor não era qualquer pedaço de asno. Continuou:
Vou responder com repugnancia e tristeza ás ultimas linhas da vossa carta em que me offereceis liberalmente recursos. Eu vivo ha doze annos dos beneficios dos meus vassalos: seria loucura fingir que não preciso que m'os prestem hoje. A demora que tem havido no meu apparecimento aos meus amigos e partidarios não m'a explicam, mas supponho que é falta de dinheiro. Sei que minha irmã, a senhora infanta D. Isabel Maria, deu cincoenta contos para começar o movimento, e esse dinheiro está em poder de um doutor Candido Rodrigues Alvares de Figueiredo e Lima, lente de Coimbra. Mas o que são cincoenta contos para sustentar uma insurreição em que ha-de haver necessidade de sustentar, de vestir e de armar cem mil homens! Vós, meu honrado amigo, que sois militar, comprehendeis que nada se póde fazer sem que os poderosos, os opulentos, cooperem com a minha boa mana a senhora D. Isabel Maria.
Dizem-me que tenho amigos muito ricos que hão-de apparecer a tempo; mas eu necessito de preparar a occasião em que elles promettem apparecer. Á primeira voz tenho a certeza de levantar 12.000 homens n'um pequeno circulo de leguas; mas não me atrevo a fazel-o, a tental-o, sem me vêr bastante provido de recursos, para não recear o peor dos inimigos que é a necessidade. Por tanto muito amado conde, meu valoroso general, acceito o vosso emprestimo; e tomarei da vossa fortuna tres contos de réis que vos recompensarei com o menos, que é o dinheiro, e com o mais, que é a minha eterna gratidão. Deus Nosso Senhor vos tenha em sua santa guarda. De S. Gens de Calvos aos 12 de maio de 1845.
Miguel, Rey.
Esta carta não confirmou nem removeu as suspeitas do padre Rocha. Quando o Cerveira lhe perguntou:—que tal? o que dizia elle?—dobrava a carta vagarosamente, encolhia os hombros e respondia:—Em fim ... não sei...
—Não sabe o quê? Lá que eu lhe levo o dinheiro isso levo. Pudéra não! Tudo o que eu tiver até á camisa do corpo. Ou se é amigo ou não se é amigo, hein? Que diz a isto, padre?
—Se quem escreveu esta carta é o snr. D. Miguel, faz v. exc.ª o que deve porque faz o que póde; mas seria bom ter a certeza...
—De que é o rei que me escreve?
—Sim ... a prudencia... Ha muito maroto por esse mundo.
—O padre está então a lêr! Cuida que eu lhe dava o meu dinheiro sem o vêr? Hei-de vêl-o com estes, e ou vil-o fallar primeiro. Mas deixe-se d'asneiras, padre Rocha! É tão certo Deus estar no céo como elle estar em Calvos.
—Bem!—atalhou o Rocha apressado, erguendo-se—quando vai v. exc.ª a Calvos?
—Hoje é terça-feira; a roupa chega de Braga na sexta, e parto no sabbado. Ora agora, vou lá mandar o Zeferino a dizer-lhe que vou beijar-lhe a mão e levar-lhe os tres contos. Se faz favor, escreva-me ahi duas linhas, só duas linhas, a dizer isto.
O padre escreveu, e sahiu muito preoccupado. Celebrou a missa a D. Andreza, e pediu-lhe licença para se ausentar por tres dias. Relatou á fidalga as suas desconfianças, o dever que se impunha de salvar o pobre idiota de alguma cilada á sua imbecilidade, e talvez de um roubo á mão armada.
—Mas quem sabe se é na verdade o D. Miguel que lhe pede o dinheiro?—reflectia D. Andreza, discreta e sensibilisada.
—É o que eu vou saber.
N'aquelle tempo, (1845) no Porto, rua de S. Sebastião n.° 1, morava o padre Luiz de Sousa Couto, paleographo da Misericordia. Representava sessenta e tantos annos, uma nutrição doentia, pesado, com os pés turgidos da gota, cheios de nodosidades. Era jovial. Tinha um sorriso lhano, conversava morosamente pausado com admiravel correcção; deixava-se interromper sem impaciencias e não interrompia nunca os desatinos, maçadas, e até as tolices de quem quer que fosse. E ouvia muitas. Este padre obscurecido na sua paleographia que lhe dava oito tostões por dia, n'aquella asquerosa alfurja chamada rua de S. Sebastião, com o aljube á esquerda e as immundicies da Pena Ventosa á direita, era o impulsor, a alma, o cerebro do gigante miguelista nas provincias do norte. A Junta de Lisboa consultava-o. Ribeiro Saraiva enviava-lhe de Londres os elementos para os seus calculos, pedia-lhe conselhos; e D. Miguel escrevia-lhe frequentemente. Dizia-se que o principe proscripto o elegera bispo ou patriarcha de Lisboa—não me recordo qual era a mitra.
A sua presença veneravel impunha sem artificio; uma grande bondade obsequiadora[4]; não proferia palavra offensiva dos seus adversarios politicos; não acceitava donativos dos seus correligionarios; vivia com severa parcimonia dos seus 800 réis havidos da Santa Casa, e morreria de penuria antes de pedir ao governo liberal a paga dos seus lavores illustrados, correctissimos de interprete de velhos e quasi indecifraveis codices.
Ao entardecer do dia 15 de maio de 1845 o padre Luiz de Sousa escrevia a sua correspondencia para Londres. Annunciou-se o padre Bernardo Rocha, perguntando a hora menos occupada para poder dar duas palavras ao reverendo dono da casa. Foi logo recebido.
—Que todas as horas eram livres para receber os amigos.
Padre Rocha principiou allegando que os seus sentimentos politicos eram bem conhecidos; que cumpria sempre as ordens que recebia do centro realista, e que facilmente daria o socego da sua vida em sacrificio das suas convicções. Que se julgava com direito a fazer uma pergunta e a exigir que lhe respondessem a verdade.
—Se a pergunta fôr feita a mim, não poderei responder d'outra maneira. Que quer saber, padre Rocha?
—Se o snr. D. Miguel está em Portugal.
—Não, snr. Ha 15 dias estava em Italia.—E abrindo uma gaveta, extrahiu de uma pasta muito ordinaria de carneira surrada com atilhos um papel que mostrou.—Aqui está uma carta assignada pelo snr. D. Miguel de Bragança, datada no l.° de maio. Quanto a isto, está satisfeito. Que mais quer saber?
—Mais nada. Agora corre-me o dever de justificar a pergunta.
—Bem sei—preveniu o padre Luiz.—Essa mesma pergunta me fez ha dias o Bezerra de Barrimáo, seu visinho, e mais de um cavalheiro de Braga, o Barata, o Manoel de Magalhães, etc. Diz-se por lá que o snr. D. Miguel está no Alto Minho, no concelho da Povoa de Lanhoso. Propalam-o certos padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos impenetraveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se não é para alarmar o governo ou lograr incautos...
—É isso mesmo: lograr incautos—interrompeu o Rocha e contou o que se estava passando com o tenente-coronel de Quadros, a carta do supposto D. Miguel e o emprestimo dos tres contos, que o fidalgo tencionava levar no proximo sabbado ao impostor.
—Seria bom evitar a perda ao tenente-coronel e o opprobrio ao partido legitimista—alvitrou o paleographo.
—Eu não o podia fazer sem a certeza de não praticar alguma imprudencia. Para isso vim consultar o reverendo Luiz de Sousa, e d'aqui irei para Braga entender-me com o governador civil.
—Faz bem. Não lh'o aconselharia, se pudessemos dar remedio mais suave á doença d'esse miseravel impostor, de quem eu sei mais algumas traficancias. Constou-me ha poucas horas, que umas beatas de Braga, abastadas, e de appellido Botelhas, tinham enviado uma importante quantia, por intermedio de um certo abbade, a um D. Miguel que está escondido em Portugal. Eu podia dar aviso d'esta ladroeira; mas tenho compaixão do abbade: não sei se elle é ladrão ou tolo. A segunda hypothese é que o salva de ser processado. Portanto, amigo padre Rocha, faz um bom serviço á humanidade e ao partido, solicitando o castigo d'esse homem que conspurca o nome d'el-rei e a honra do partido. Agora, visto que veio, vou dizer-lhe o que ha. Saraiva trata de contrahir um emprestimo e de negociar generaes que infelizmente precisamos. O Povoas está decrepito e quasi morto para a nossa fé desde Souto Redondo. As patentes superiores, pela maior parte, estão em pessoas que regulam pela intelligencia do seu amigo tenente-coronel de Quadros. Ha por ahi outros que aprenderam a tatica da covardia desde o cêrco do Porto. Mal podemos contar com elles, quando os vêmos intervir nas facções dos liberaes a fim de abrirem brecha na mesa do orçamento com as espadas postas em almoeda. No anno proximo futuro, o partido legitimista deve dar signaes de vida; se esses signaes hão-de ser como os do cadaver galvanisado que se convulsiona e recahe na sua podridão, isso não sei. O snr. D. Miguel tem de vir a Londres; e quando lhe constar, padre Rocha, que el-rei está em Inglaterra, prepare-se com a sua energia para nos dar o muito que esperamos da sua influencia e do seu affecto á legitimidade. E adeus que sahe depois d'ámanhã de Lisboa o paquete: estou escrevendo ao nosso Ribeiro Saraiva.
O secretario geral governador civil interino de Braga na ausencia do conselheiro João Elias,—uma victima burlesca de troça dos setembristas—era o Marques Murta, uma gigantesca actividade phrenetica n'um corpo mediano, fino, acepilhado aristocraticamente, com a bossa da perspicacia politica muito saliente. De resto, serviçal, agradavel, com uns requintes de delicadeza de bom tom.
O padre Rocha procurou-o no seu gabinete e contou-lhe os casos succedidos e a necessidade de não deferir a prisão do impostor até além do dia seguinte, porque no sabbado sahia de Quadros o Cerveira Lobo com os tres contos.
—Talvez fosse mais curial e exemplar prendêl-o depois, e entrar com os tres contos no cofre do districto, visto que o Cerveira os quer applicar ás necessidades da monarchia;—opinou o secretario sorridente.
O padre não percebeu a ironia, e entendeu que de qualquer dos modos já não podia obviar que o seu amigo fosse roubado, ou em nome de D. Miguel l.° ou de D, Maria 2.ª.
—Vá descansado — emendou a auctoridade com o seu sorriso intelligente, habitual.—Se o homem estiver em Calvos, ámanhã a esta hora ha-de estar na cadeia de Braga.
Pela meia noute d'este dia sahiu do quartel do Populo, uma escolta de infanteria 8 que chegou a S. Gens ao apontar da manhã. Era guiada por um pratico sabedor das avenidas da residencia abbacial, um socio convertido e aproveitado da quadrilha de ladrões que devastára o concelho da Povoa em 34, e saboreava agora na policia secreta uma qualquer prebenda honestamente ganha. Elle dispôz a soldadesca á volta da casa, debaixo das janellas, rente ao muro do passal, e mostrou ao sargento a porta de carro. Rompia a aurora quando a passarada do arvoredo se esvoaçou piando, alvorotada pelo estrondo das cronhadas á porta principal, e uns berros formidaveis:
—Abra! abra! se não vai dentro a porta!
O abbade saltou da cama, espreitou por uma fresta das portadas, e viu um cordão de soldados, a olharem para as janellas, e com as bayonetas nas espingardas. Correu descalço para a saia contigua á alcôva do hospede, e encontrou-o no meio da quadra, em fralda, a enfiar as calças, quasi ás escuras, com a respiração anciada.
—Que é?—regougou o homem n'uma estrangulação de susto, muito offegante.
—Tropa, senhor, tropa! Fuja depressa, que eu vou esconder vossa magestade na adega antes que arrombem a porta.
As cronhadas e as intimações ameaçadoras repetiam-se. Uma algazarra de inferno. Vozes roucas pediam machados e ferros do monte. A Senhorinha, muito esganiçada, espectorava agudos ais na cozinha; não acertava a enfiar o saioto pelo direito. Os cães de Castro-Laboreiro, muito ferozes, arremettiam ás portas com a dentuça refilada. Porcos grunhiam dando bufidos espavoridos. A moça dos recados chamava a sua Mãe Santissima e a alma da tia Jacintra do Reimundles que estava inteira na egreja. Dous criados da lavoura, estranhos ao segredo do real hospede, como estavam recrutados, cuidaram que a tropa os vinha prender; enterraram-se nos fenos do palheiro, promettendo esmolas de quartinho ao Bom Jesus do Monte e ao martyle São Trocatles, se os livrassem d'aquella. Entretanto, o outro, de chinellos de tapête, guiado pela mão do abbade até á cozinha, passou d'aqui para a adega que a creada abriu com muita subtileza. Havia lá dentro um recanto encoberto por duas pipas vasias, postas ao alto; pela convexidade das aduellas e entre as pipas e a parede, abria-se um vacuo onde cabia á vontade um homem. O abbade muito afflicto:
—Suba depressa vossa magestade que eu ajudo por cima das pipas e deixe-se escorregar p'r'ó lado de lá. Coza-se bem com a parede; se vierem revistar, não se bula, não se bula, senhor!
O homem ficou em cega escuridade. Quando resvalava com as costas pela parede, as teias d'aranha despegavam-se dos vigamentos de que pendiam, enrodilhavam-se-lhe viscosas ao nariz e aos beiços. Elle sacudia-as, cuspinhava com nojo, queria acocorar-se, mas não cabia. Ouvia rôjos de ratazanas por debaixo das pipas, e lá fóra o rodar das portas que se escancaravam com estridor.
Em cima, o sargento e tres soldados entraram e examinaram vagarosamente os quartos e recantos.
—Snr. abbade, ponha p'r'áqui o rei, disse o sargento, um farçola, o Pilula do 8,—queremos o rei e algumas botijas de genebra. A garrafeira da casa real deve ser coisa muito rica! Venha primeiro o snr. D. Miguel que lhe queremos fazer uma saude.
—O snr. está a mangar!—disse o abbade afinando pelo tom da chalaça.—Genebra, se a querem, dou-lh'a; mas a respeito de rei, só lhe posso dar o de copas, que tenho ali um.
—Pois sim, traga o rei de copas, e não será máo que ponha em guarda tambem o az do mesmo naipe.
—Dá-se-lhe já duas biqueiras n'este padreca, ó meu sargento!—propoz o 24.
—Deixa vêr se a coisa se arranja sem biqueiras. Ande lá, snr. abbade, vamos á genebra, á adega. Mêxa-se.
—A genebra está cá em cima—observou o abbade um pouco enfiado.
—Mande-a ir p'r'a baixo, que é mais fresco. Mêxa-se, mêxa-se que temos pressa. Abra a porta da adega.
—Sim, snr., abro tudo o que vocemecê quizer—resoluto, com um ar ironico de condescendencia, sem receio.—Os senhores tem coisas! Onde diabo procuram o snr. D. Miguel!—E descia, pedindo a chave á Senhorinha.
A creada demorava-se a procural-a, a fingir; e o sargento:
—Se se demora, ó santinha, vai dentro a porta! Ó 24, vai buscar um machado que eu ali vi na cozinha. Salta um machado!
—Não é preciso, camarada—acudiu o abbade.—Aqui está a chave. Eu abro. Entrem, procurem á vontade.
O sargento parou á porta a familiarisar-se com a escassa luz da adega:—Ó padre! isto aqui é que é a sala do throno? ou é o subterraneo da inquisição? Mande lá accender uma candeia, se não tem um archote.
—Ó mulher, traz d'ahi uma placa accêsa—disse o abbade Marcos, contrafazendo o seu terror.
E o homem, lá dentro atraz das pipas, tiritava como Heliogabalo na latrina, seu derradeiro refugio.
A Senhorinha entrou adiante com a placa, um luzeiro mortiço de cêbo com morrão que parecia condensar mais as trevas da lôbrega caverna.
—Arranja ahi um fachoqueiro de palha, ó 14! Que raio de placa você cá traz, mulher!
—É emquanto não péga bem a torcida—explicou a creada caminhando atraz do padre para o lado opposto ao esconderijo. Com effeito, a claridade difundia-se, mas tão de vagar que ninguem diria a velocidade que os naturalistas marcam a um raio de luz. Os soldados batiam com os nós dos dedos nos tampos das pipas que toavam o som abafado de cheias.
E o 14:—Ó meu sargento, o tanso do abbade casca lhe rijo no verdasco! Estão cheiinhas! E apontando para as duas pipas vasias do canto, o sargento perguntava se o vinho d'aquellas já lhe tinha cabido na sachristia—e dava piparotes na barriga do padre.
O abbade tinha uns sorrisos pallidos, compromettedores como uma denuncia. O 24 escutava e dizia que a modos que ouvira mexer coisa atraz das pipas!
—Ha-de ser ratos—conjecturou o abbade, tremulo, engasgado.
—Palpa com a bayoneta por traz das pipas, ó 241—disse o sargento.
Assim que o aço da bayoneta raspou na parede a Senhorinha começou a dar gritos, sentou-se a espernear, e perdeu os sentidos.
—Que diabo tem a velha?!—perguntou o Pilula.—Dão-lhe estupores, hein?
—É flato, costuma-lhe a dar—elucidou o abbade.—O 24 voltára-se a vêr a velha escabujar, e retirara a bayoneta de traz das pipas. O abbade teve um momento de esperança, cuidando que o exame estava feito:
—Tem visto, snr. sargento? Aqui não ha nada. Os senhores vieram enganados a minha casa.—E caminhou ara a porta com a luz.
—Espere ahi, seu padre! Anda-me com a bayoneta, 24. Escarafuncha-me esses ratos.
O outro soldado entrou no mesmo exame; e, apenas as bayonetas resvalaram por corpo que lhes abafava os tinidos metalicos das pontuadas, ouviu-se um grande estrupido de coisa que trepava pelas pipas. E n'isto appareceu uma cabeça com enormes barbas sobre um dos tampos.
—Oh!—bradou o Pilula!—muito bem apparecido n'esta funcção, snr. D. Miguel I! Suba p'ra cima d'esse throno e dê lá de cima um bocado de cavaco ás tropas! Mas o melhor é descer cá p'ra baixo, real senhor!
O 24, muito espantado, a olhar para a cabeça do homem:
—Parece o padre eterno, ó meu sargento!
—Com quem elle se parece é com o Remexido do Algarve,—affirmava o 14.
—Desça d'ahi que ninguem lhe faz mal, homem. Está preso á ordem do governador civil—concluiu o sargento com seriedade imponente.
—Este senhor?... não...—disse o abbade com as mãos postas.[5]
—Não seja asno!—volveu o sargento. Este homem não é D. Miguel. É um falante que o está aqui a comer a você e mais aos patólas da sua laia. Vá-lhe buscar a roupa, senão elle entra na escolta em mangas de camisa.
—Dê licença que este senhor se vá vestir ao seu quarto—supplicou o abbade.
—Sim, que se arranje com guardas á vista.—E acompanhou-os á saleta.
Quando envergava o casaco de panno piloto, o abbade disse-lhe, com um gesto, que o dinheiro das Botelhas de Braga ia nas algibeiras do paletó.
O sargento perguntou que papelada era aquella que estava sobre a mesa. Leu a primeira folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:
—Olha que grande pandego você é! Você como se chama, ó seu coisa? E leu alto:
Rol das mercês que sua magestade o snr. D. Miguel I fez em Portugal e que se descrevem n'este livro de apontamentos provisoriamente.
E na primeira pagina.
Marcos Antonio de Faria Rebello, abbade de S. Gens de Calvos, capellão-mór de el-rei e D. Prior de Guimarães. E perguntava ao abbade:—Este ratão d'este dom prior é você, hein? Parabens!
Em seguida:
Torquato Nunes Elias, visconde de S. Gens, secretario privado d'el-rei.
—Torquato Nunes! recordava o Pilula.—Eu parece-me que conheço este diabo de o vêr em Braga no Café da Açucena na Cruz de Pedra. Nunes! um pelintra. Onde está o visconde que lhe queria dar um cigarro? Emfim cá levo a papelada para Braga—e enrolava os papeis. A gente precisa conhecer os titulares novos para os respeitar e acatar, amigo D. Prior de Guimarães.
Quando a escolta se formou fóra do portão e o preso entrou ao centro, com a fronte magestosa abatida e os braços cruzados, levantou-se na residencia um choro como á sahida de um defunto muito querido. Eram a cozinheira e a outra creada, n'um arrancar de soluços, emquanto o abbade afogava os gemidos com o rosto apanhado nas mãos. O povo da aldeia, com um grande terror da tropa, espreitava de longe por entre as arvores e de traz das paredes. O Torquato Nunes Elias, acordado pela mulher que recebera a nova da prisão, saltára da cama, e correra á residencia, perguntando ao abbade se el-rei tinha levado as peças das Botelhas de Braga.
—Que sim, que levára; pudéra não levar!
—Pois então, abbade, empreste-me ahi meia moeda, que eu vou disfarçado a Braga vêr o que se passa. Estou sem vintem.
—Veja lá se o prendem, visconde—acautelou o abbade.
—O meu dever é seguir a sorte de el-rei! Onde elle morrer, morro eu!
[4]O auctor teve relações muito saudosas com este venerando sacerdote, que em 1851 residia n'um antigo casarão da rua de St. Antonio, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por intelligencia e haveres, do partido realista. N'este anno, padre Luiz de Sousa passava os seus dias rodeado de pergaminhos, immobilisado em uma poltrona, gemendo as dôres da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.
[5]São as textuaes palavras e a attitude do padre, significativas da crença entranhada na realeza do preso e da sua paixão n'aquelle lance. Parece que intentava mover á piedade a escolta, increpando-a pela profanação de pôr mãos no rei legitimo. (Informação de Ferreira de Andrade).
O Cerveira Lobo sahira, com o Zeferino, para Braga na sexta-feira de manhã. Estariam aqui até á madrugada de sabbado, e partiriam então para a Povoa de Lanhoso com os tres contos de réis repartidos em libras pelas algibeiras dos dois. Além d'um criado de velha libré, avivada de azul, de botas de prateleira e chapéu de sola, levavam bacamartes nos arções dos sellotes, todos tres. Foram descançar e jantar á hospedaria dos Dous amigos. O Cerveira vestia casaca no trinque muito lustrosa, e gravata de cambraia com laço; o peitilho postiço atado ao pescoço sahia muito rijo de gomma reles d'entre as lapellas derrubadas do collete de velludo preto. A calça de prégas, ampla, á cavallaria, afunilava-se no artelho, quebrando no peito do pé. As botas de polimento novas rangiam e as esporas amarellas no tacão, com grandes rosetas, tilintavam n'um estardalhaço de caserna. Comprara chapéu de pasta com molas que faziam saltar a copa, e enchiam como uma bexiga, que parecia pantominice das comedias, dizia o Zeferino.
Ás quatro horas o fidalgo de Quadros e mais o pedreiro sentaram-se á mesa redonda. Já constava em Braga que estava ali o Cerveira Lobo que desde 1835 não sahira da casa solar de Vermuim. Alguns primos visitaram-o; as familias legitimistas e principalmente senhoras velhas mandavam-lhe bilhetes.
Dizia ao Zeferino que o encommodavam tantas etiquetas, que estava morto por se safar, não estava para lérias: que as taes senhoras Sotto-mayores e as Peixotas e as Menezes deviam ser mais velhas que a Sé, uns estafermos. Elle segredava ao ouvido do Zeferino coisas, ratices suas em Braga, quando era rapaz.—Que fizera um destrôço nas primas, tudo pelo pó do gato. Que pagára bem o seu tributo á asneira; e casquinava com vaidade paparrêta, carregando-lhe a mão no verde. Quando entravam pelo assado, chegou um tenente do 8 a contar a um amigo, que estava á mesa, que chegára n'aquelle momento preso ao governo civil, vindo da Povoa de Lanhoso, um marôto que dizia ser D. Miguel, e ouvira dizer a um realista que o vira em Roma, havia tres annos, que se parecia bastante com elle.
O Cerveira erguera-se n'um grande espanto indiscreto a olhar para o official que o fixava com uma curiosidade ironica. Convergiram todos os olhares para o homem das barbas respeitaveis. Quedou-se momentos n'aquelle spasmo, n'um tremulo, e perguntou:
—E é com effeito o snr. D. Miguel esse homem que chegou preso?
—Elle diz que é—respondeu o tenente—Veremos o que se averigua no governo civil.
—Na falta do verdadeiro D. Sebastião, appareceram tres falsos—disse emphaticamente um professor de latim, com um sorriso pedante. O Cerveira olhou-o de esconso, e sahiu da mesa, seguido do Zeferino, muito enfiados ambos.
—Está tudo perdido!—disse dolentemente o fidalgo—El-rei preso!... E não se levanta este Minho a livral-o!... Vamos vêl-o, quero vêr se lhe posso fallar. Dentro de tres dias entro em Braga com dez mil homens e arrazo a cadeia.
Fez saltar a copa do chapéu de molas e sahiu para a rua, a bufar.
O campo de Santa Anna parecia um arraial. Aglomeravam-se ali as duas Bragas—a fiel, a caipira, pletorica de fidalgos, de grandes proprietarios, conegos, de chapelleiros e da clerezia miuda;—a liberal, muito anemica, encostada ao 8 de infanteria, toda de bachareis e empregados publicos, o Manso, o Mello Cavacão, o Motta, o Rocha Veiga, o Alves Vicente, negociantes de tendas mesquinhas, professores muito rhetoricos, o Capella, que ensinava francez, o Pereira Caldas soneteiro e polygrapho, o velho Abreu bibliothecario, lacrimoso, o Pinheiro, muito grande, philosopho sensualista, mas bom visinho, todos á volta do Mont'Alverne, um conego muito assanhado que foi, mezes depois, commandante da brigada dos Seresinos.
Cerveira Lobo impunha e dominava com as suas barbas, o trajar aceado com muito lustro, e o bater metallico, patarata das esporas. Abriram-lhe passagem, rodeavam-no cavalheiros da primeira plana, os Vasconcellos do Tanque, os Magalhães, o Freire Barata, o Cunha das Travessas, a gemma d'aquelle enorme ovo realista, chocado no seio da religião da Carlota Joaquina, do conde de Basto e do Telles Jordão. O Cerveira perguntava aos seus:—É?—uns encolhiam os hombros, outros negavam gesticulando. E elle, com intimativa:—Pois saibam que é!—O Manoel de Magalhães dizia ao ouvido do Henrique Freire:
—Deixa-o fallar, que está idiota.
O Bernardo de Barros, um fidalgo de Basto que fôra capitão de cavallaria, com um bisarro sorriso de côrte e ademanes d'uma selecção rara:—Meu tenente-coronel, el-rei, quando vier, não ha-de estar ao alcance da canalha. Descance vossencia.
Os janotas acercavam-se, disfructadores, do Cerveira. Eram o Russel, o Antonio Gaspar, os de Infias, o Bento Miguel de Maximinos, o Paiva Brandão, o D. Manoel da Prelada, o D. João da Tapada, o Antonio Luiz de Vilhena, um loiro, muito enamorado, com uma rosa-chá na lapella da casaca azul com botões amarellos.
D'ahi a pouco fez-se um torvelinho de povo á porta do governo civil. A soldadesca afastava a multidão com phrases persuasivas de cronha d'arma. Formou-se a escolta, e o preso sahiu, de rosto levantado e affoito, para a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com uma anciedade afflictiva.—Que se parecia ... e ia jurar que era elle!—quando um realista convencionado e que estava no grupo, o major de Villa Verde, disse com um desdem de achincalhação:
—Olha quem elle é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!
—Quem é? quem é?—perguntavam todos.
—É o Verissimo, foi furriel da minha companhia, andou com o Remexido, e safou-se de Messines com o pret dos guerrilhas.
O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe á orelha:
—Ouviste, ó Zeferino?
—Estou banzado!—murmurou o outro.
—Olha que espiga! 3 contos! hein?
—Raios parta o diabo!—disse o pedreiro, n'uma synthese condensada da sua incommensuravel angustia.
Minutos depois, o padre Rocha encarava de frente o Cerveira, chamava-o de parte e dizia-lhe:
—Está desenganado, meu amigo? Eu, para corresponder á confiança de V. Ex.ª, impuz-me o dever de o salvar d'um roubo de tres contos, e da vergonha de ser logrado por um impostor. O maior serviço que podemos fazer ao snr. D. Miguel é entregar á justiça um infame que se serve do seu sagrado nome para roubar os amigos do augusto principe. Snr. Cerveira, vá para sua casa; e, quando eu lhe disser que é tempo, então desembainhará a sua espada.
O Cerveira, abraçando-o:
—Honrado amigo, honrado amigo! Ainda os ha...
O Verissimo entrou na cadeia de Braga, e na madrugada do dia seguinte foi transferido para a Relação do Porto.
O nome e appellidos que elle deu no governo civil eram verdadeiros: Verissimo Borges Camêlo da Mesquita.[6]
Tinha nascido em 1806 em Alvações do Corgo, no Douro. O pai chamavam-lhe o Norberto das facadas, quando já era velho, e meirinho geral da comarca, em Villa Real. Uns diziam que a alcunha facadas lhe vinha de ter esfaqueado a mulher por ciumes; outros, de ter levado tres facadas, na Campean, quando puzera cêrco a uns salteadores que pernoitavam na estalagem d'aquella aldeia, nas vertentes do Marão. O certo é que a quadrilha tinha sovado os aguasis, e o commandante da diligencia, o meirinho geral, recolhera á villa em uma padiola.
Norberto Borges Camêlo tinha pedra de armas na casa de Alvações, uma edificação do seculo XVII. Dava-se como descendente do bispo do Algarve D. João Camêlo. Contava a origem do brazão da sua casa, concedido ao seu sexto avô Lopo Rodrigues. Habituado a contar aos Juizes de fóra e carregadores da comarca o facto provado por incontestaveis pergaminhos, era convidado muito a miudo disfructadoramente á exposição heraldica do seu escudo, que elle fazia n'uma toada monotona de quem reza.[7]
O Verissimo era Mesquita pela mãe, que não conhecera. Tambem florira da cêpa illustre dos Mesquitas de Villar de Maçada; mas o Norberto, achando-a em flagrante adulterio com um primo Pizarro, anavalhou-a mortalmente, escondeu-se, fugiu com o Junot no regimento do conde da Ega, e quando voltou, estava esquecido o caso.
Em 1827, o Verissimo estudava em Coimbra humanidades para seguir a jurisprudencia. Era bom estudante, applicado e sério. Em 28 teve uma vertigem politica. Fez-se caceteiro do partido dominante, quiz atacar na Ponte a punhal os estudantes presos no Cartaxo como salteadores assassinos. Perdeu o habito de estudar e a compostura de que fôra exemplo. Em 29, abandonou a Universidade e assentou praça em infanteria. Quando o Porto se fechou, era sargento aspirante e bravo. Em uma das primeiras sortidas dos liberaes, foi ferido em uma perna; e, apezar de côxo levemente, não quiz a baixa nem a reforma. Era um bonito homem, rosto oval, olhos de rara belleza, nariz ligeiramente aquilino. Diziam-lhe que era o vivo retrato de D. Miguel, aperfeiçoado pelo desaire de coxear.
Depois da convenção, Verissimo Borges recolheu a Alvações de Corgo, onde encontrou o pai n'um grande abatimento de tristeza e de recursos. A sua lavoira de vinho era pequena. Privado do officio e malquisto como ladrão, o representante de Lopo Rodrigues soccorria-se á beneficencia de uma irmã, a D. Agueda, viuva d'um major de milicias que morrera no ataque ao forte das Antas. O convencionado, n'aquella estreiteza de meios, quiz voltar á fileira: mas o pai negou-lhe a licença, arguindo-lhe a baixeza de sentimentos, em querer servir o usurpador, e citava-lhe as côrtes de Lamego. O Verissimo, argumentando contra estas côrtes, allegava que antes queria encontrar na casa de seu pai, em vez das velhas instituições de Lamego, os modernos presuntos da mesma cidade.
O Norberto gabava-se de que na sua geração, Camêlo liberal não havia um só, e que a sua maldição pesaria como chumbo derretido sobre a cabeça do filho que perjurasse a bandeira do throno e do altar.
A tia Agueda, a viuva do major, tinha pouco. Desde 1828 até 1833 gastara seis mil cruzados em festejar os natalicios e as victorias do snr. D. Miguel com banquetes e illuminações que duravam tres noites, n'um delirio de bombas reaes e foguetes de lagrimas, com adéga franca. Mandava cantar Te-Deum na egreja de Alvações assim que no paiz vinhateiro soava a noticia de alguma victoria do exercito fiel. Ora, os realistas, a contar por cada Te-Deum de Alvações, entravam no Porto ás quinzenas para sahirem por uma barreira e voltarem logo pela outra. D. Agueda começava a desconfiar que o Deus de Affonso Henriques voltára a casaca.
Restava-lhe pouco; mas não queria que o Verissimo se fizesse malhado. Sacrificou-se á honra da familia, levou-o para casa, deu-lhe mesa farta, e consentiu que o vadio se mantivesse regaladamente, de papo acima, tocando flauta, a tresfegar em si o resto da garrafeira. Aconselharam-na que ordenasse o sobrinho, visto que elle já tinha exames de latim e logica. O Verissimo disse que sim, que queria ser padre. Tinha-se esclarecido nos encargos do officio, observando a vida socegada e farta dos parochos. Um seu parente, o abbade de Lobrigos, tinha liteira, parelha de machos, matilha de cães e hospedes na sua residencia episcopal. Outros, com menos rendas, eram ainda invejaveis; um viver espapaçado em dôce mollêza, inoffensiva, com grande estupidez irresponsavel, um regalado epicurismo. Verissimo achou que, se não pudesse ser bom padre, havia de pertencer á maioria; e, se désse escandalo, um de mais ou de menos não perturbaria a ordem das coisas. Os seus amigos e parentes abundavam no dilemma.
D. Agueda fazia concessões á fragilidade do clero;—que seu sexto avô tambem fôra bispo e pai de sua quinta avó, por Camêlos. O parente abbade de Lobrigos, em confirmação das preclaras linhagens de coitos sacrilegos, affirmava que a serenissima casa de Bragança descendia de padres pelo pai de D. Nuno Alvares Pereira, que era prior do Crato, e pelo avô, o padre Gonçalo, que fôra arcebispo de Braga; e que os condes de Vimioso e Atalaya, e todos os Noronhas oriundos de certo arcebispo muito devasso de Lisboa, e muitas outras familias da côrte descendiam de prelados. Estas genealogias orientavam o Verissimo no futuro do sacerdocio. Queria ser abbade, resalvando tacitamente certas condições a respeito dos rebanhos e particularmente das ovelhas.
Em outubro de 1835 foi para Braga. Tinha trinta annos: sentia o cerebro moroso na digestão da theologia, andava enfastiado e triste. Acaso encontrou um camarada, sargento do mesmo regimento, o Torquato Nunes Elias, que andava a estudar para procurador de causas. Eram inseparaveis, identificaram-se n'uma intimidade de tasca e de alcouce. O Verissimo nunca mais abriu compendio nem o outro um processo. D. Agueda mandava regularmente a mezada, e perguntava-lhe quando cantaria a missa.
Em 1836 appareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, em S. Bartholomeu de Messines. Os dous ex-sargentos alvoroçaram-se com a noticia e resolveram apresentar-se ao formidavel caudilho. Verissimo pediu á tia uma quantia mais avultada para pagar as ultimas despezas do sacerdocio. A velha mandou-lhe o preço de uma vinha vendida e a sua benção. Os aventureiros partiram para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de capitães. Verissimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu heroico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia Agueda, e lhe dissesse que elle não podia largar a espada vencida emquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general Sousa Reis estava destinado a repôr o snr. D. Miguel I no throno, ou ser o ultimo a morrer em sua defeza; que elle e um seu amigo e camarada tinham sahido de Braga juramentados a morder o pó onde cahisse o seu general. Que eram já commandantes de companhias, e tinham duas carreiras abertas—uma que levava á gloria, outra á sepultura,—que tambem era uma gloria morrer pela patria.
José Joaquim, o Remexido, era um bem figurado homem de trinta e oito annos. Nascera em Estombar, estudára para clerigo no seminario de Faro, e distinguira-se em perspicacia e subtileza na percepção das theologias. O amor inutilisou-lhe o talento applicado a um pacifico e humanissimo destino. Viu uma esbelta môça de S. Bartholomeu de Messines quando ahi foi prégar um sermão, sendo minorista. As serenas visões do levita deslumbrou-lh'as a formosa algarvia. Não hesitou entre o amor da humanidade e o culto egoista da familia. Casou, e de homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas searas, e redobrou de esforços á proporção que os filhos lhe multiplicavam o amor e os cuidados.
Insensivelmente compenetrou-se da paixão politica. N'esta provincia, onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o dominio francez, a liberdade proclamada em 1820 abriu um abysmo entre duas facções que por espaço de dezoito annos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más idéas, e manifestou-se em 1823 um ardente sectario das más, perseguindo os affeiçoados á revolução do Porto. Em 1826 emigrou para Hespanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do rei absoluto. D'ahi em diante, receoso das retaliações, não teve mais uma hora de remançoso contentamento nem abriu mão da espada tão affoita quanto cruel.
Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionaria ás praias da Lagoa, em 24 de junho de 1833, Sousa Reis com alguns cumplices, foragiu-se nos reconcavos do Penedo Grande, cujas veredas montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flôr dos annos, inculpados das paixões de seu pai, fiados na generosidade dos vencedores e na propria innocencia. A vingança fez reprezalias na familia do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa, depois do roubo e do incendio da sua casa de Messines. O leão, como se ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna, precipitou-se dos penhascaes á frente da sua alcatéa, e atacou Estombar com irresistivel impeto. Estava ahi a sua familia sob a pressão das bayonetas que a vigiavam como armadilha á queda do guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir á furia de pai. Elle atirava-se ás descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os inimigos que o viram n'esse dia conservaram longo tempo a lembrança da sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem gentilissimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve e estendeu até ás fronteiras do Alemtejo os seus dominios. Moveram-se contra elle muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da guarda nacional. Elle tinha adoecido de fadigas incomportaveis, e descançava com algumas centenas de homens n'um desfiladeiro da serra, chamado a Portella da corte das velhas. Ahi o atacou uma columna de caçadores 5. O Remexido, a final, faltou-lhe a coragem de se fazer matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as bayonetas. Deu-se á prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em Faro.
O regimento em que eram capitães o Verissimo e o Nunes dispersou, e elles, claro é, fugiram á maneira dos muito discretos e bravos generaes de que rezam os fastos militares.
O pret das guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatella ridicula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas algibeiras. É o que foi, e a historia não póde dizer outra coisa. Queria talvez o major de Villa Verde, o denunciante de Braga, que elles andassem á cata das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os quatro vintens diarios e o vintem do municio!
Verissimo foi para Alvações e Nunes para S. Gens. O Norberto morreu por esse tempo d'uma congestão cerebral; alguem diz que o esganaram na cama dois malhados de Lobrigos contra os quaes elle tinha jurado em 28. D. Agueda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava empenhada; foi á praça; sobejaram uns nove centos mil réis e a casa com as armas, pagadas as dividas. O Nunes dizia-lhe da Povoa que andava por lá miseravel, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem tinha que vestir. O Verissimo chamou-o para Alvações com generosidade. Vestiu-o, e dava-lhe meios para elle poder estudar em Villa Real, com advogados miguelistas, que o estimavam muito.
A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do snr. D. Miguel das illuminações, que se parecia muito com o sobrinho.
No inverno de 1840, D. Agueda morreu de uma indigestão de castanhas, complicada com interite chronica e saudades da realeza. Deixou ao sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do snr, D. Miguel ás freiras de Santa Clara de Villa Real e mais dez moedas de ouro com a condição de lhe accenderem quatro velas de cêra no dia dos annos de sua magestade.
Verissimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo capitão-Verissimo. Deitou cavallo e mochila; jogou rijo dous annos na Feira de Santo Antonio em Villa Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já sollicitava causas na Povoa, repartia com elle dos seus proventos muito escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacavel, e as partes fugiam d'elle.
O Verissimo sahiu de Alvações, onde não possuia palmo de terra; e, como tinha boa forma de lettra, offereceu-se para amanuense a um tabellião de Alijó. Ganhava tres tostões por dia e jantar. Como era boa figura, a mulher do tabellião, uma trigueira de má casta, entrou a comparal-o com o marido que tinha os dentes muito lurados e os olhos tortos. Mas o tabellião viu as cousas pelo direito, e pôz o amanuense na rua, e a mulher em lençoes de vinho, dizia-se. Verissimo conhecia o capitão-mór de Murça, o Campos, um hebreu realista, muito abastado. Offereceu-se-lhe para escudeiro e foi acceite com bom ordenado. O capitão-mór era viuvo; mas tinha uma governanta fresca, d'uma fome de peccado irritada pela indifferença judaica do amo em materia de religião. O Verissimo tinha a fatalidade femieira do seu Sosia, do snr. D. Miguel. O capitão-mór com o seu fino ôlho de raça, lobrigou as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e impôl-o. Voltou ao Douro, e procurou o amparo d'um realista poderoso, o Antonio de Mello, de Gouvinhas, o pai do snr. Lopo Vaz, um grande ministro liberal cheio de embriões de coisas. O fidalgo de Gouvinhas nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorisava pouco; o fidalgo admittia-o ás suas palestras intimas de politica; mas um sobrinho do Mello, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o Malagueta, ganhou-lhe odio, por ciumes de uma tecedeira chibante, uma raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libania de Covas. Travaram-se de razões. O Malagueta correu sobre elle com um punhal. Verissimo acovardou-se na sua posição dependente e despediu-se.
A Libania tinha cordões e umas moedas ganhadas com o pudor diluido no suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João Camêlo, abriu uma escóla de primeiras lettras em Miragaya. Ao cabo do primeiro mez, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado, não podia com aquella bestialidade da instrucção primaria. A Libania queixou-se um dia de dôr de dentes. Foi uma inspiração. O Verissimo resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, á rua de Santo Antonio, um bom homem. Andava n'este tirocinio, quando encontrou no Tivoli, defronte da Bibliotheca, o Nunes. A Libania gostava muito de resvalar pela montanha russa, dava umas risadas argentinas, batia as palmas e queria montar os cavallos de páo que giravam no jogo da argolinha.
Quando se encontraram, o Torquato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha morrido deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dous filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brazil, trabalhar em mangas de camisa, se fosse necessario. O Verissimo respondeu-lhe que o unico favor que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe as suas miserias mais intimas; que aquella boa rapariga tinha gastado com elle quinze moedas e vendêra o seu oiro; mas, tão generosa, tão honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava resolvido a ir estabelecer-se como dentista na provincia, logo que pudésse comprar o estojo que custava 12$000 réis, e não os tinha.
—Se os não tens—disse o Torquato—minha mulher tem um cordão que pesa tres moedas; para mim não lh'o pedia; mas para ti vou buscal-o ámanhã.—E accrescentou, de excellente humor;—Deus permitta que na terra onde te estabeleceres sejam tantas as dôres de dentes que não tenhas mãos nem queixos a medir.
Sahiram alegres do Tivoli. Sentiam-se bem aquellas duas organisações esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam devéras, dous naufragos a quererem chegar um ao outro a mesma taboa de salvação. É n'estes esgotos sociaes que ainda, uma vez por outra, se encontram Pilades e Orestes.
O Verissimo morava atraz da Sé, na rua da Lada, uma casa d'um andar, muito empenada, com o peitoril de ferro de uma unica janella desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra como a bôca de um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cosida com cebolas, sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da companhia de tostão á rua Chã, e enfiou no braço uma rôsca de Vallongo que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões de ouro que frigia peixe á porta e dava arrôtos.
Cearam n'uma esturdia de rapazes, como em Braga, nove annos antes, na tasca do Catrambias, na rua do Alcaide. A Libania de Covas muito laraxenta—que levasse o diabo paixões, e mais quem com ellas medrava; que, em se acabando o dinheiro, fazia-se cruzes na bôca; mas que deixar o seu Verissimo, não o deixava nem á quinta facada.
—Nós deviamos ir todos para o Brazil—lembrou o Torquato, que tinha meditado n'um recolhimento extraordinario.
—E chelpa?—perguntou a Libania.
—Se tu quizeres, Verissimo, dentro de um mez temos um conto de réis.
—Boa!...—disse o outro.—Bem se vê que as duas garrafas deram o que podiam dar—uma fantazia de um conto de réis. Por dous tostões é barato.
—Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não estou bebedo, palavra de honra!
Libania pôz a face entre as mãos e os cotovellos na toalha suja de vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do Nunes. O Verissimo atirou com as pernas para cima da banca, accendeu um charuto de 10 réis e disse que fallasse á vontade.
—Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?
—Começas bem. Temos asneira.
—Máo! não me falles á mão.
—Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça acclamar rei, e, para evitar effusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria 2.ª os meus direitos á corôa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.
—Adeus minha vida!—retrucou o Nunes impaciente. Ámanhã conversaremos.
—Deixa fallar o homem!—interveio a Libania.—Ora diga lá, ó sê Nunes.
O Torquato expôz a sua theoria do conto de réis, desfez atritos, removeu difficuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto Minho, os dois. Libania iria para Ramalde trabalhar nos teares da Grainha que lhe dava comida, cama e doze vintens por dia. Venderiam a um adeleiro da rua Chã os trastes para o Verissimo se enroupar de panno piloto, quinzena e calças com alguma decencia, roupa branca, reforma das botas cambadas, chapéu de fêltro e um paletó de agazalho.
Na quinta-feira gorda, a Libania, com exemplar coragem, foi para Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendêl-as ao Douro, tinha visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no Porto:—Olhe, môça, quando quizer ganhar a vida honradamente lá estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençoes lavados na cama.
O Nunes e o Verissimo foram juntos até perto de Braga. Ahi, o de Calvos seguiu para casa, e o outro no sabbado gordo partiu para a Povoa de Lanhoso.
[6]Segundo as informações textuaes do já referido José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade o dialogo da auctoridade e do preso correu assim: "Sendo apresentado ao governador civil e respondendo a varias perguntas disse:
"Que era das immediações de Villa Real, em Traz-os-Montes, e um dos amnistiados em Evora Monte, na qualidade de sargento do exercito realista;
"Que n'uma sortida que fizeram os do Porto fôra ferido n'um quarto por uma bala, ficando um pouco côxo: mas que não deixára ainda assim o serviço;
"Que achando-se no ultimo carnaval no logar de S. Gens, ali tomára parte nos folguedos do povo com o abbade da freguezia, o qual o convidára no fim para sua casa;
"Que o tratára muito bem, e que, passados alguns dias, lhe disséra, depois de ceia, de uma maneira muito recolhida e sonsa: que desconfiava ter em sua casa sua magestade el-rei o snr. D. Miguel I (por que elle era em tudo um fac-simile);
"Que nem lhe negára, nem confessára, mas que, passados dias, á mesma hora, lhe repetira aquella suspeita; porém que ainda d'essa vez lhe respondêra com uma evasiva.
Auctoridade
"Que utilidade tirava em manter o abbade n'essa illusão?
Preso (cynico)
"Que a tirava toda, porque só assim podia continuar no goso da commodidade que se lhe offerecia;
"Que d'ahi por diante lhe ficara dando o tratamento de Magestade, como coisa decidida, e lhe revelára o desejo de que o elevasse á dignidade de seu capellão-mór, ao que annuira;
"Que, passados alguns dias, lhe propozera a admissão á sua presença nocturna e clandestina d'alguns ecclesiasticos e tambem seculares, consummados realistas, no que concordara;
"Que d'esse dia por diante principiaram a concorrer ali, por alta noute, um até dois por vez, pedindo-lhe todos, depois de lhe beijarem a mão, commendas, beneficios, logares civis, postos militares e até prelazias—o que elle tudo lhes concedeu de bom grado.
Auctoridade
E depois?
Preso
"Depois? que lá se aviessem, porque o seu fim era conservar aquella commoda situação, maxime quando as suas finanças estavam no maior apuro."
[7]Nota erudita. A historia, aliás exacta, que o fidalgo de Alvações contava, acha-se nos Nobiliarios, e está gravada no escudo d'esta familia. Lopo Rodrigues Camêlo foi moço da estribeira d'el-rei D. Sebastião, e muito querido de seu real amo. Viajára muito e era primoroso em pontos de cortezia. Uma vez acompanhára o rei a Coimbra; e, na passagem de S. Marcos para Tentugal, encontraram a ponte do Mondego cahida. O rei quiz passar a váo, e o estribeiro observou-lhe que o passo alli era perigoso. D. Sebastião redarguiu: "Então passai vós primeiro."—Se vossa alteza me engana,—volveu o cortezão—ditoso engano é esse.—E, mettendo-se á vala espapada de limos e lodo, submergiu-se a ponto de ficar só com a cabeça e um braço de fóra. El-rei acudiu-lhe, tomando-o pela mão, e tirando-o com valente pulso para a margem. Lopo Rodrigues, afim de que os seus descendentes lêssem este caso no marmore do seu brazão de armas, pediu a el-rei que lhe mandasse reformar o escudo em lembrança de tal successo.
E assim lhe foi debuxado o escudo: Em campo verde uma ribeira de prata ondeada. D'esta ribeira emerge um braço vestido de azul, do qual pega outro vestido de brocado com lettras de negro que dizem R E Y. Este braço real sahe da banda direita do escudo, na esquerda está uma estrella de oiro de oito raios, e no canto direito de baixo uma flôr de liz de ouro. Timbre o braço vestido de azul com a estrella nos dedos. A carta foi registada no "Livro dos Privilegios", no anno de 1574.
Marcial fez rir os romanos á custa de um genealogico esquadrinhador de tal casta, que, não tendo já humanas gerações que espanejar do lixo dos seculos, entrou a deslindar os remotos avoengos de um cavallo chamado Herpino. Passarei tambem ás caudelarias quando o brazão subir da tenda ao sport, e derivar dos especieiros esparramados ás bestas elegantes.
O Torquato, antes de entrar em casa, foi á residencia. Ia mysterioso, circumvagava uns olhares cautelosos:—se ninguem o ouviria?—perguntava ao abbade Marcos.
E o abbade, entrepondo as cangalhas nas paginas do breviario,—pôde fallar, que estou sósinho. Que é?
—D. Miguel I está em Portugal—disse, curvando-se-lhe ao ouvido, com uma voz guttural.
—Você que me diz?! Como sabe isso? Pataratas!
—Chego agora do Porto; estive com o escrivão fidalgo, o Ferreira Rangel e com o abbade Gonçalo Christovão. El-rei está n'esta provincia. Desconfia-se que é em Braga, e o José Alvo Balsemão disse-me que talvez eu o visse brevemente no nosso concelho, porque o levantamento ha-de começar por aqui.
—Que me diz você, amigo Torquato?—sacudia os braços, fazia estalar os dedos como castanholas, tinha gestos mudos de exultação extatica—que ia escrever ao abbade de Priscos, que indagasse, que apparecesse...—É preciso trabalhar, preparar os animos...
—Chiton!—acudiu o Nunes com o dedo a prumo sobre o nariz. Nada de espalhafato! Não ferva em pouca agua, abbade. Se dér á lingua, esbarronda-se o negocio. O rei só ha-de apparecer aos seus amigos quando os generaes entrarem pela Gallisa. Não falla a ninguem; não se dá a conhecer. Diz que só fallára em Lisboa com o conde de Pombeiro e com o Bobadella, e no Porto com o José Antonio, o morgado do Bom Jardim, e mais com o padre Luiz do Torrão... O abbade conhece.
—Pois não conheço? como as minhas mãos; é o vice-rei nas provincias do norte ... o nosso bom padre Luiz de Souza que pelos modos está nomeado patriarcha de Lisboa... Que pechincha, hein?
—É esse mesmo... Bem! até logo; vou vêr a mulher e os filhos a casa, que ainda lá não fui. Um abraço, amigo abbade! Parabens! A choldra vai cahir! Vida nova! D'aqui a um mez está todo esse Minho em armas, e el-rei á frente dos seus vassallos. Outro abraço, e viva el-rei!
Lagrimas jubilosas, como contas de vidro sujas, tremeluziam nas palpebras inflammadas do abbade.
—Jante comigo, Nunes, jante comigo! Vai-se abrir uma de 1815, á saude d'el-rei!
—Parece que me estoira a pelle! Não estou em mim!—Que ia vêr a mulher e que voltava já.
Na noite de sabbado para domingo de carnaval, o Verissimo pernoitou na Povoa de Lanhoso, na estalagem do Rêlhas.
Disse ao estalajadeiro que era de longe e andava a viajar pela provincia. Perguntou se por ali não se festejava o entrudo. O bodegueiro informou que na Povoa havia guerra de laranjadas e ás vezes pancadaria de senhor Deus misericordia; mas que na freguezia de Calvos havia comedias nos tres dias de entrudo, por signal que o seu filho, um barbado que ali estava, com uma cara angulosa muito alvar, fazia de namorado no Medico fingido, um entremez coisa rica, que era de um homem malhar de costas n'aquelle chão a rir—que se elle quizesse vêr as comedias, podia ir com o seu rapaz, que lhe arranjava lá uma cadeira de casa do abbade.
O scenario para a representação do Medico fingido arranjou-se na eira do Gonçalves, muito espaçosa e ageitada, porque as figuras entravam e sabiam, conforme a rubrica, do palheiro que tinha tres portas. O palco, barrado de ferro, ainda humido, estava ao abrigo de cobertas de chita alinhavadas umas nas outras, retezadas nas pontas por postes de pinho que rematavam em forquilhas para receberem uns varaes lançados transversalmente. Havia dous mastros de castanheiro descascados, afestoados de buxos, alecrim e camelias, coroados por bandeiras vermelhas esburacadas. Parte dos mastros tinha uma listra em zig-zag pintada a zargão que se ia espiralando pelo pau acima, com cercadura de cruzinhas:—era obra de Chêta, um trôlha inspirado que já tinha pintado um painel das Alminhas, onde havia almas do sexo fraco com grandes têtas lambidas por lavaredas, e um rei coroado com a bôca aberta no acto de berrar queimado, e tamanha bôca que só cedia á de um bispo mitrado, muito impertigado, com o seu baculo. O trôlha ensaiára o entremez, e não entrava, porque lhe tinha morrido o pai, havia quinze dias, contava elle a um senhor de fóra, desconhecido, que tinha vindo com o galan, o filho do estalajadeiro da Povoa.
O Verissimo foi admittido aos camarins onde estavam sentados em caixas de milho e na salgadeira, os figurantes á espera da sua vez, já vestidos. Viam-se os personagens do entremez. Mathilde, amante de Almenio, uma ingenua, a protogonista da peça, a doente namorada, que levou o pai a trazer-lhe a casa o amante, o medico fingido. Este papel fôra confiado a um latagão official de carpinteiro, com os pulsos cabelludos e os nós dos dedos com umas protuberancias callosas que pareciam castanhas piladas antigas. Nas maçãs do rosto mascarrára duas zonas de carmim, que pareciam a distancia umas chagas de mendigo de romaria aperfeiçoadas. Trajava um vestido de setim branco da fidalga velha de Rio Caldo, feito em 1824 para um baile que houve em Braga aos annos de D. João VI. O peito chato do carpinteiro ficava á altura dos quadris da fidalga, e as claviculas espipavam as hombreiras do corpête, prendendo os movimentos ao desgraçado Mathilde. Posto que a scena fosse a Casa de Astolfo, pai da doente fingida, a velhaca estava de chapéu de palhinha com enorme telha enconchada e plumas brancas muito amarellecidas do môfo. O vestido era-lhe curto, mas lucravam com isso as pernas que se deixavam vêr até cima do jarrete, cingidas de fitas cruzadas que subiam d'uns sapatos de duraque sem tacões, feitos de proposito e em concordancia com os angulos reintrantes e salientes dos pés. Era o grotesco do horror. A creada de Mathilde, a Laberca, tambem vestia de setim azul-ferrete, um pouco menos antigo, emprestimo das senhoras de S. Crau, que o assoalhavam de vez em quando para os entremezes. Não tinha chapéu nem sapatos de duraque: obedecia mais á caracterisação natural. Na cabeça usava touca de folhos com laços de fita escarlate e nos pés os butes do amo com ponteira de verniz; elle era o creado do juiz de direito substituto; gosava creditos de representar papeis de lacaia fazendo rebentar a gente.
O Verissimo fez os seus cumprimentos ás duas damas, e manteve uma seriedade verdadeiramente real. O Almenio era o filho do estalajadeiro da Povoa de Lanhoso, o Rêlhas. Calças brancas, quinzena de velludilho, bengala de castão de prata, chapéu branco de castor e oculos. Disse ao Verissimo que punha os oculos para fingir de medico. Estava a um canto o gallego, o Gonçalo, aguadeiro da casa. Como não havia em Calvos o costume rigoroso dos aguadeiros, o trôlha ensaiador vestiu-o de almocreve, com as botas refegadas, faixa branca e em mangas de camisa, com uma monteira comprada em Tuy. A cara era ao proprio, d'uma verdade typica. O Pantufo, um saloio rico que queria casar com Mathilde, e foi bigodeado pelo fingido medico, vestia a melhor andaina de fato do presidente da camara, um apaixonado pelos entremezes, que a gravidade das suas funcções impedia de representar; mas emprestava a roupa e a intelligencia dramatologica. Havia mais duas figuras, o Falsete, e o Astolfo, que se estavam vestindo lá dentro, por detraz d'um ripado, que os deixava vêr em camisa enfiando as pernas sujas nas pantalonas, emquanto o trôlha lhes rebocava de vermelhão as caras.
O Nunes atravessára a eira, e endireitára para o palheiro, quando lhe disse o Gonçalves que estava lá dentro um fidalgo de longe. Encostou-se ao batente da porta, trocou um lance de olhos com o Verissimo, e sahiu apressadamente, arranjando pelo caminho uma physionomia cheia de alvoroço, de surpreza.
Entrou pela residencia, muito esbofado:
—Ó abbade, já esteve na eira do Gonçalves?
—Não; estou a acabar de jantar, e lá vou vêr essa borracheira da comedia. Você vem aganado!
—Vinha perguntar-lhe se conhece um sujeito de fóra que lá está na eira.
—Aqui veio um rapazola da Povoa pedir-me uma cadeira ha coisa de meia hora para um fidalgo que tinha vindo com elle. Perguntei-lhe quem era o fidalgo. Diga que não sabe. Esta canalha em vendo um bigorrilhas de casaco chama-lhe fidalgo.
—Venha já d'ahi comigo... Por quem é, não se demore... Ó abbade, lembra-se de vêr el-rei em Braga ha treze annos!
—Ora se lembro!... Beijei-lhe a mão tres vezes.
—E, se o vir agora, conhece-o?...
—Parece-me que sim—o padre limpava á pressa os beiços amarellos dos ovos do arroz dôce.—Mas isso que quer dizer? Você está doido, ou temos carraspana, amigo Nunes?
—Homem! venha comigo, e depois chame-me doido ou borrachão, lá como quizer; mas não se demore que eu estou em brazas vivas.
—Ahi vou, ahi vou, não se atrigue. Vai uma pinga do chôco?
—Venha de lá isso.—Bebeu d'um trago, e pediu outro:—Agora, á saude de el-rei! á saude d'aquelle que talvez esteja bem perto de nós! a cem passos!
—Toque!—exclamou o abbade.
Pelo caminho, disse-lhe o Nunes que era preciso o maior disfarce, não olhar muito de frente para elle, e só deviam fallar-lhe, se a occasião viesse muito a geito.
—Você está a sonhar, homem!
Quando entraram á eira, já tinha começado a festa. Verissimo estava em pé, com a mão direita apoiada nas costas da cadeira. D'um e d'outro lado remexia-se a turba, muitas raparigas a rirem dos actores vestidos de mulheres, e uns rapazes com chalaças de uma graça aparvalhada, muito local, a que os do palco respondiam á lettra com manguitos, e os que faziam de mulheres batiam palmadas no trazeiro, voltando-o para o publico. Cães ladravam ás figuras; os rapazes davam-lhes pauladas e elles ganiam. As velhas mandavam calar o gentio para poderem perceber as fallas:—Canalha brava, calaide-vos ahi!—Uma balburdia que parecia um theatro de cidade de primeira ordem. O tio Gonçalves, o dono da eira, dizia que estavam todos bebedos, e voltava-se para o desconhecido, como a pedir desculpa.
—É entrudo, dizia, é entrudo, senhor!
Quando appareceu o padre na cancella da eira, houve silencio com algumas fungadellas de riso das cachopas, e recomeçou a comedia em obsequio ao abbade e á Arte ultrajada pela hilaridade bruta da plateia. Notaram alguns velhos sisudos que o forasteiro das grandes barbas se mantivera muito sério durante a troça da canalha. Assim o dizia o Gonçalves ao abbade, perguntando-lhe se conhecia aquelle senhor.
—Não conheço,—e acotovelava o Nunes, segredando-lhe com o disfarce:—Você adivinhou. É elle...
—Que me diz, abbade?
—É elle.
O Verissimo déra tres passos para accender um cigarro no de um musico que estava sentado n'um bombo.
—É elle!—repetiu o abbade.—Você não o viu coxear?
—Falle baixo, falle baixo, e não olhe muito para elle, que eu já o vi deitar-nos os olhos,—acautelou o Nunes.
—Também eu ...
Estalou n'este momento uma gargalhada geral. Verissimo tambem se riu, e deu palmas.
—Olha! olha! a dar palmas!—notou o abbade com transporte. Aquillo sensibilisou-o até ás lagrimas! O snr. D. Miguel I a dar palmas ás figuras do Medico fingido na eira do Gonçalves em S Gens de Calvos! Tocante!
A risada geral e as palmas e os apupos não eram rigorosamente uma ovação ao auctor do entremez nem aos curiosos. Eis o caso. Na scena l.ª o Astolfo pede carinhosamente á filha que côma alguma coisa. Mathilde diz que não póde, que não está em si; que lhe acuda, que lhe acuda, porque um suor frio lhe faz perder os sentidos.
O gargajola esperava ser amparado pelo outro, em harmonia com a rubrica que diz: Finge desmaio, e Astolfo a sustem nos braços. Mas ou porque se antecipasse a desmaiar, ou porque Astolfo se demorasse a amparal-a, Mathilde escorregou de costas sobre o barro ainda fresco do palco; e, no acto de se erguer debaixo dos apupos da multidão, arregaçaram-se-lhe as saias e saiotes até á cintura. Ora a Mathilde não usava calcinhas. Um escandalo.
Verissimo Borges não pôde sustentar a gravidade competente á sua pessoa. A natureza rebentou por elle fóra n'umas casquinadas convulsas que poderiam custar-lhe uma môcada, se a deflagração do riso não fosse geral.
Mathilde fugiu do palco, enfiou pelo palheiro e não voltou á scena. O ensaiador, o trôlha, sahiu ao terreiro a explicar ao publico a suspensão do entremez n'estas palavras:—Aquelle alma do diabo despiu a farpella, e diz que raios o parta, se cá tornar. Vocês póde ir á sua vida que não ha hoje treato.
Começou a debandar o auditorio em grande algazarra. Verissimo parecia esperar que o galã, o Rêlhas Junior, se despisse para se retirar. O Gonçalves perguntava-lhe:—e que tal esteve a chalaça, senhor! Má mez pr'ó homem, que se mais tivesse mais punha ó léo!—e voltando-se para o abbade que, a pedido do Nunes, guardava respeitosa distancia:—ó snr. abbade! coisa assim não consta! Eu, se me succedesse uma d'aquellas, mettia a cabeça n'um folle.
—São acasos, disse Verissimo com indulgencia.—Não se lembrou que estava vestido de senhora.
O abbade ganhou animo, abeirou-se do Gonçalves, cumprimentando o outro cerimoniosamente, e disse:
—O entremez não presta para nada. Se o homem não cahisse, ninguem se ria.—Provavelmente...—assentiu o Verissimo, correspondendo á cortezia do Torquato Nunes que parecia aproximar-se mais acanhado.—Estes casos de escorregar, accrescentou o desconhecido, acontecem nos primeiros theatros do mundo e até nas salas onde se dança; e de ordinario as senhoras que desastradamente cahem são verdadeiras senhoras. É muito peor e mais melindroso.
O abbade e o Nunes com muitos gestos affirmativos—que sim, que era muito peor, e mais melindroso, muito mais.
Derivou a conversação para as bellezas naturaes do Minho. O desconhecido sentia ter vindo no inverno, quando apenas se adivinhavam as pompas da primavera.
Principiava a choviscar. O abbade offereceu a sua casa ao forasteiro, emquanto não estiava a chuva. Verissimo acceitou por momentos, visto que não se prevenira com guarda-chuva—um traste que detestava. Os aguaceiros repetiram-se com pequenas intercadencias, varejados pelo sul; por fim, as christãs da serrania empardeceram, as nuvens rolavam pelos declives como escarceus a despenharem-se, fechou-se o horisonte sem uma nesga, e a chuva não parava. O abbade não permittiu que o hospede sahisse com tal tempo e já perto da noite.
Durante a ceia, appareceram algumas raparigas mascaradas com lençoes, abraçando a Senhorinha que servia á mesa, e dizendo em falsete pilherias ao Nunes a quem chamavam Trocatles e précurador de causas perdidas. Verissimo mostrava-se contente e dizia:
—Bom povo! excellente povo! Este Minho é o bom coração de Portugal, e os seus habitantes, segundo me consta, possuem os melhores corações do reino. Eram dignos de ser mais felizes do que são, carregados por tributos, esmagados pelo peso dos empregados publicos que são o flagello de Portugal...
O padre escutava-o com religiosa attenção; o Nunes beliscava a côxa do abbade que tomára a presidencia da mesa e puzera o hospede á sua direita.
No fim da ceia, o padre Marcos com o copo na mão, e de pé, disse que fazia uma saude ao seu hospede, porque lhe parecia que tinha a honra de beber á saude de um realista, d'um partidario de sua magestade o snr. D. Miguel 1.° que Deus guardasse! O hospede agradeceu, declarando que mesmo n'uma roda de liberaes não negaria os seus sentimentos politicos: que era realista, e como tal brindava á saude de todos os amigos do principe proscripto.
O Nunes dava canelões intelligentes e ás vezes dolorosos no abbade, que o encarava de esconso como quem diz:—percebo; não faça de mim asno; sei que estou fallando com el-rei.
A creada deu parte que estava prompta a cama;—quando Vossoria quizer—disse ella ao hospede. Verissimo sorriu-se agradavelmente:
—Que incommodo estou dando a esta excellente familia... Irei descançar, snr. abbade, e snr. Torquato ... parece-me que lhe ouvi chamar Torquato...
—Nunes Elias, um creado de vossa...—e susteve-se.
Dizia-lhe depois o abbade no quinteiro:—Você ia-se estendendo, Nunes! Esteve por um triz a dizer, um criado de vossa magestade, não esteve?
—Por um triz, abbade, que me estendia! Tal é a certeza de que está el-rei n'esta casa!—E com transporte olhando para as janellas:—Onde está pernoitando o snr. D. Miguel l.°! o rei amado dos portuguezes, na pobre residencia de S. Gens de Calvos! Isto parece um sonho!
A segunda-feira de entrudo foi um chover desabalado. Não houve entremez nem se via viva alma no cruzeiro. O abbade não consentiu que o hospede se retirasse; e, aconselhado por Nunes, mandou á Povoa buscar a bagagem. Era um bahú de lata amolgado na tampa com um cadeado roído de ferrugem. O legitimista ainda não tinha dado nome algum, nem os outros ousavam abrir ensejo a que elle tivesse de o inventar. Seria indelicadeza obrigal-o a mentir. Além de que, o padre Marcos, tratando-o sempre por senhor,—o senhor isto, o senhor aquillo—entendia que se aproximava do tratamento que se deve aos reis, e ao mesmo tempo ia insinuando ao real hospede que já o conhecia.—Bom é que elle se vá persuadindo que não somos patêgos—dizia o abbade ao Nunes.—Sim, bom é que se persuada ... você percebe... E piscava com esperteza.
—Ora, se percebo! O abbade tem andado com uma cabula muito fina. Eu é que me custa a ter mão em mim. A minha vontade era deitar-me de joelhos aos pés d'elle, e dizer-lhe: «Real senhor, nada de disfarces! Aqui estão dois vassallos de vossa magestade que lhe offerecem o seu sangue!»
—Deixe estar, acommodava o padre, deixe estar, Nunes... As coisas não vão assim... Quando fôr tempo, eu lh'o direi... Nada de espantar a caça.
O Verissimo pediu ao abbade algum livro para se entreter, e não o obrigar a atural-o. O padre levou-o ao seu quarto onde havia uma estante de pinho com tres lotes de livros. Mostrou-lhe o Punhal dos Corcundas, a Defesa de Portugal do padre Alvito Buela, a Besta esfolada, os Burros, e o Novo Principe. O Verissimo levou-os para o seu quarto, excepto os Burros; disse que não gostava de poesia. Fallou com louvor do padre José Agostinho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura—columnas do altar e do throno, que tinham deixado dois vacuos impreenchiveis na phalange realista. Perguntou-lhe o abbade se os tinha conhecido pessoalmente.—Que sim, como as suas mãos... E sorria, como o principe proscripto, se lhe fizessem semelhante pergunta.
—Que prazer teria o padre José Agostinho, se hoje vivesse e pudesse vêr el-rei!...—meditou o abbade com a sua grande perspicacia observadora.
—Decerto...—concordava o Verissimo indolentemente.—Mas quem tem agora esperanças de vêr D. Miguel em Portugal?
—Eu, senhor, eu!—respondeu o padre batendo na arca do peito com as mãos ambas—Eu!
O Verissimo folheava o Punhal dos Corcundas, e parecia não perceber a vehemencia do padre.
—Bons desejos, bons desejos do caro abbade...
—E de quasi toda a nação portugueza, senhor! D. Miguel l.° nunca deixou de reinar nos corações do seu povo. Eu tenho na minha alma o retrato d'elle desde que o vi ha treze annos em Braga e lhe beijei as suas reaes mãos!—Escandecia-se o enthusiasmo, punha as mãos, chammejavam-lhe nos olhos reflexos do fogo interno; e o Verissimo continuava a folhear o Punhal dos Corcundas.
—Então viu-o, abbade?
—Sim, meu senhor, vi-o com estes olhos, toquei-lhe com estas mãos.
—Ainda se recorda das suas feições?
—Perfeitamente.
—Ah! se o visse hoje, decerto o não conhecia... Está muito acabado...
—Conhecia, conhecia...
O abbade sentiu um raio de dramatisação que o vibrou todo. Eriçaram-se-lhe os cabellos, e coou-lhe pela espinha uma faisca electrica. Fez um passo atraz, e quando o Verissimo repetiu: «Era impossivel conhecêl-o» o padre pôz um joelho em terra, estendeu o braço direito, e com o dedo indicador em riste, exclamou:
—Eil-o! eil-o!
—Ó abbade! o snr. está allucinado! Por quem é, levante-se! Eu não sou quem pensa!
—Estou como devo estar deante do meu rei!—teimou o abbade, com os dous joelhos no sobrado.
—Levante-se que vem gente!—dizia o outro, ouvindo passos na escada.
Era o Nunes.
—Entre, amigo!—disse o abbade, respondendo ao visinho que pedia licença.
Torquato encontrou o abbade de Joelhos e o Verissimo esforçando-se por levantal-o.
—Ajoelhe a meu lado, Nunes! que eu estou aos pés d'el-rei!—exclamou o padre.
E o outro, ajoelhando:
—Eu já o sabia, real senhor!
Foi assim que se inaugurou a côrte de D. Miguel I em S. Gens de Calvos, segunda-feira de entrudo de 1845, ás 3 horas da tarde.
Depois, bem sabem, senhores, como aquelle padre Rocha despenhou abruptamente o desfecho da farça, cuidando que vingava a moral e punia com degredo o scelerado que infamava o sacratissimo nome de el-rei D. Miguel. No transito para a Relação, a meia legua, na estrada do Porto, o Verissimo com delicadas maneiras e o seu aspecto veneravel, obteve que o sargento da escolta lhe permittisse alugar a mula de um almocreve que seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze praças do 8, entrou ao cahir da tarde em Famalicão.
O Torres de Castellões, o administrador, legitimista no fundo, bom lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permittiu-lhe que ceasse com um amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pylades das horas certas e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das phantasias do outro, considerava-se perdido.—Pobre Libania!—deplorava, quando ella souber que eu estou na Relação!
Como tinha alguma pratica do fôro criminal, o Nunes consolava-o: que não havia materia para pronuncia; e, quando fôsse pronunciado, a Relação o despronunciaria. Eu é que vou ser o teu procurador, se me não prenderem—accrescentava muito confiado na lei e na sua actividade.—Quanto á phantasia do conto de réis, já não falta tudo, porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia ou dois, tinhas n'esta santa hora 3:750$000 réis.
—Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de degredo—atalhou o Verissimo, n'aquella estranha situação, nunca experimentada, de ouvir os passos da sentinella rentes com a grade do seu quarto.
Ás oito da noite, fechára-se a porta da cadeia, e Nunes sahira triste, com um pungitivo arrependimento de metter o amigo n'aquella rascada.
Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do governo civil do Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na bayoneta do sargento. Quando sahia do governo civil, já Libania e o Nunes, que se antecipára a procural-a em Ramalde, o esperavam. A Libania era uma forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou-o com um semblante acceso de coragem, um sorriso affoito, e disse-lhe muito animosa: Alma até Almeida e d'Almeida p'ra diente alma sempre!
Verissimo occupou o quarto de malta n.° 2, com uma rasgada janella sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, d'onde tinha sahido o Gravito para a forca—elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso alisar da porta as iniciaes de alguns padecentes com a data de 1829.
A Libania e mais o Torquato pernoitaram na estalagem do Cantinho na rua do Loureiro e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias já o Nunes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas a pronuncia chegou ao oitavo dia da comarca da Povoa. O preso aggravou para a Relação. Era juiz relator do aggravo o conselheiro Fortunato Leite, natural do Douro, que, quinze annos antes, no reinado de D. Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devêra a fineza rara de o avisar na vespera do dia em que lhe havia de cercar a casa por ordem do facinoroso corregedor de Villa Real, o Albano que os liberaes mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o processo, os appellidos do preso, a naturalidade, os pormenores, suggeriram-lhe memorias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão extraordinariamente pela amizade do meirinho geral. Informou-se e evidenciou que o Norberto Borges, de Alvações de Corgo, era o pai do preso. Estava pois salvo o filho do seu bemfeitor, sem grande violencia á justiça, porque a pronuncia fôra precipitada, irregular, as testemunhas citadas—os padres suspeitos de frequentarem a residencia de Calvos—nada depozeram que provasse projectos revolucionarios do aggravante.
E lavrou o accordão muito rocheado de grypho:—Que aggravado era o aggravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronuncia de primeira instancia haviam sido desprezadas as formalidades mais curiaes, pois que nenhuma testemunha depozéra que o aggravante se inculcasse D. Miguel para perturbar a ordem constituida, chamando o povo á revolta; e das respostas do aggravante no interrogatorio a que procedeu a auctoridade administrativa constava que o preso quasi que fôra obrigado por um clerigo estupido e esturrado miguelista a deixar-se chamar D. Miguel l.°; mas não constava nem se provava que o aggravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir valores aos seus estupidos cortezãos; o que decerto praticaria um gamenho decidido a fingir-se D. Miguel para os espoliar. Que a pronuncia fôra iniqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que nada se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra por hypotheses e indicios, fundada em um rei de individuos alarves a quem o supposto monarcha fazia mercês de commendas, de titulos, de patentes e até de mitras, sem que d'ahi resultasse alvoroto nem leve perturbação na ordem publica, nem mesmamente damno para os mencionados burros que pediam as mercês, e que deviam ser pronunciados em primeira instancia, se a côrte de S. Gens de Calvos, não fosse uma farça de entrudo.
E, dilatando-se philosophicamente e chistoso, o juiz relator, addicionava, aconselhando, que seria bom e proveitoso que nas terras selvaticas do Minho se espalhassem muitos Migueis d'aquella casta e feitio até que os novos Sebastianistas se convencessem de que somente assim poderiam arranjar um Miguel que lhes désse commendas, titulos, postos militares e prelazias.
Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito do final do accordão, e, sorvidas as pitadas sibillantes, assignaram por unanimidade.
Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira instancia, Verissimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escriptorio do carcereiro Mello para se despedir, encontrou a Libania de Covas desmaiada de jubilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz, deixou-se ser mulher—chorou; e quando lhe cumpria dar animo ao preso, no pateo do governo civil, riu-se com a valentia dos homens extraordinarios.
O conselheiro Leite recommendou ao Nunes procurador que lhe mandasse a casa o Verissimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso, com maneiras submissas, mas dignas d'um Borges Camêlo infeliz.
O desembargador explicou-lhe que o chamára para lhe fazer conhecer a divida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas. Improperou-lhe serenamente o seu delicto; estygmatisou a acção de permittir que o julgassem D. Miguel; fallou acerbamente contra este tyranno parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades, mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirára, despronunciando-o. O Verissimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro lhe dava—que, se um dia necessitasse, lh'os pediria. E o Fortunato Leite, a rir:
—Então as bêstas dos abbades sempre cahiram? Fez você muito bem. Devia esfolar essas cavalgaduras!
O Verissimo recuava muito agradecido.
O conselheiro Fortunato exerceu uma energica influencia vitalisadora na nova encerebração de Verissimo Borges e bastante na do Torquato Nunes Elias.
Por medeação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de solicitador de causas nos auditorios do Porto. Ganhou boas relações. Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a mulher e os dois filhos. Alugaram casa na rua de Traz as duas familias. Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das Botelhas, de meias com os salarios de procurador. O Verissimo frequentava á noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em quando, ia ao café da rua de Santo Antonio ouvir os demagogos dos manos Passos, que o festejava e catequisavam. Dava-se com os Navarros, com o Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros. Elle, sobpondo ao reconhecimento os escrupulos de espião, contava ao conselheiro Leite, cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubs, as lojas de carbonarios, as tramoias arranjadas em Braga pelo barão do Casal, muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos José, com o Faria Guimarães, com o medico Resende, com o Damasio, com o Alves Martins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia com as conspirações da viella da Neta—aquelle baluarte da Liberdade que demorava paredes-meias com os escombros do Deboche, não griphado, muito á franceza;—tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo d'uma loja de modas, d'um café e d'uma taberna,—o vitalismo soez e chato da decadencia.
Verissimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensaes, mesquinha paga dos serviços que fazia á ordem, á tranquillidade civica da rua das Flores e das Congostas.
Na contra-revolução de 9 de outubro de 46, quando foi preso o duque, José Passos encontrou o Verissimo na Praça Nova, chamou-lhe patriota, pôz-lhe a mão no hombro, sacudiu-o pelas lapellas, e disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, por que o duque estava a desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Villar, n'um restrugir de tempestade, quando o Verissimo e o Nunes procuraram o conselheiro Fortunato que tiritava de mêdo com as suas enxundias espapadas entre as filhas, n'uma consternação. Disseram-lhe que se iam armar para se constituirem sentinellas da segurança do seu bemfeitor. O conselheiro abraçou-os muito commovido, n'uma excitação apopletica.
Depois formaram-se os batalhões nacionaes. Verissimo e Torquato foram promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da refrega de Valpassos tinham comprehendido intelligentemente que a retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza precursora de uma derrota. Conheciam o perfido espirito do 15 e do 3 de infanteria,—previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois tenentes, sem enthusiasmo, com a prudencia dos quarenta annos apalpados pelos revezes de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os batalhões de linha se passassem para as forças reaes. Travou-se o encontro de Valpassos. Com os dois regimentos que n'um turbilhão e a gritos de Viva a Rainha se abraçaram ás vanguardas do Casal, tambem elles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando vivas á Carta Constitucional. Eram a obra da prudencia e do conselheiro Fortunato Leite.
Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois tenentes apresentados pediram venia ao general para servirem na columna do visconde de Vinhaes;—que tinham repugnancia de pelejar cara a cara com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José Vieira e do padre José da Lage. A vergonha impunha-lhes o dever de dourar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas ruas de Braga o Christovão Bezerra, de Bouro e o abbade de Calvos e o padre Manoel das Agras. Não poderiam vêr sem magua a soldadesca a dar saque aos dinheiros das snr.ªs Botelhas.
Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da comitiva de Mac-Donald, desde Villa Real até Sabroso; mas não desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhaes os admittiu ao seu quartel-general, e os cadaveres que encontraram pela serra do Mezio até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escossez, eram façanhas das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de sangue n'esta lucta fratricida. Um triumpho a sêcco.
Concluida a guerra civil pelo convenio de Gramido, depositaram as armas e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhaes, o Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torquato, o centro cabralista recommendou-os á consideração magnanima de sua magestade. O Nunes, como sabia do fôro, foi despachado escrivão de direito para a Estremadura. Verissimo Borges obteve uma fiscalisação rendosa dos tabacos e sabão em Traz-os-Montes: depois foi transferido, com vantagem, para a alfandega de Vianna do Minho; e por ultimo para uma direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia ha poucos annos, porque um jornal da localidade, debaixo de um symbolo funebre—um anjo curvado e deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um chorão—publicava:
Verissimo Borges Camêlo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e respeitaveis amigos que foi Deus servido chamar á sua divina presença, hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libania de Covas Borges da Mesquita, a cujo cadaver, etc. Pelo seu profundo estado de consternação pede desculpa de cumprimentos.
O jornal, depois de uns adjectivos lugubres e velhos como a morte, accrescentava: A exc.ma snrª D. Libania, que todos choramos com seu exc.mo viuvo, era uma senhora de esmeradissima educação, pertencia á illustre familia dos Covas;—modêlo no tracto insinuante com que captivava o respeito e a amizade de todas as pessoas d'esta Ilha, que tiveram a fortuna de a conhecer. Receba s. exc.ª o snr. conselheiro-director os nossos mais sentidos pesames pela desgraça que acaba de o ferir implacavelmente.
Verissimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e d'alma.
O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os tres contos de réis, foi para as Lamellas, e entrou de noite para que o não vissem. Elle tinha-se gabado aos visinhos de que estava despachado sargento-mór e seu pai coronel reformado. Ao José Dias de Villalva e mais ao pai que era regedor, mandára-lhes dizer que elles brevemente haviam de topar com o seu homem. Da Martha de Prazins dizia trapos e farrapos. A sua paixão nao tinha outro respiradoiro. Além d'isso, nao podia esquecer-se da nadega exposta pelo cão ás descompostas gargalhadas da rapariga. Era uma vergonha chronica. E, para remate de desastres, voltava para as Lamellas, a ouvir as rabugices do pai que lhe chamava cavalgadura—que se deixasse de politica e fosse fazer paredes, que é o que elle sabia.
Constava-lhe de mais a mais que o José Dias, o estudante, estava sempre em Prazins, e tinha ido com Martha e mais o Simeão ao fogo preso da romaria de S. Thiago da cruz. Viram-os todos tres a tomar café de madrugada n'uma barraca, a cochicharem os dois muito aconchegados, em quanto o velho tosquenejava a dormitar.
O pai de José Dias, o Joaquim de Villalva, era um lavrador de primeira ordem. Lavrava quarenta carros de milho e centeio, uma pipa de azeite, dez de vinho, muita castanha, tinha tres juntas de bois chibantes e poldros de creação. O José, meeiro no casal, a não se ordenar, era um dos primeiros casamentos do concelho.
O rapaz amava castamente a Martha com a pudicicia do primeiro amor. Ella tinha uma formosura meiga, delicada e supplicante. Parecia pedir que a não immolassem a uma paixão sensual; mas, se o seu amado o exigisse, a victima coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansamente para o sacrificio. Tinha extasis a contemplar-lhe os cabellos loiros e a pallida face doentia; deixava-se beijar com a impassibilidade de uma santa de jaspe—um quadro paradisiaco sem fructas nem cobras.
O José não necessitava pedil-a ao pai na incerteza de uma recusa. Disse-lhe que ella havia de ser a sua esposa: a creança contou ao pai as palavras do amado e o Simeão:—Ora venha de lá esse abraço, amigo e sê Zé!—e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a sua filha como se quer.
Mas os paes do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo, que a môça de Prazins não era fôrma de seu pé. A mãe principalmente protestava que, emquanto ella fosse viva, a tal filha da Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o diabo, e Deus lhe perdoasse, se peccava. Justificava-se dizendo que a Martha era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao homem, pintava a manta nas romarias, andára muito fallada com um frade de Santo Thyrso, e um dia pegára a dar gritos na egreja; toda a gente disse que ella tinha o demonio no corpo, e afinal morrêra douda, atirando-se ao rio Ave.
E constava-lhe que o avô d'ella tambem não era escorreito, e quando já tinha sessenta annos mandára fazer uma sobrepeliz, abrira corda, e onde houvesse um defunto lá ia com um ripanso á egreja e punha-se a cantar como os padres. A tia Maria de Villalva tinha inconscientemente este horror moderno, scientifico da hereditariedade; mas o que mais a impulsionava na sua resistencia aos rogos do filho era ter sido má mulher a mãe de Martha. De má arvore mim fructo—era toda a sua philosophia que se encontra diluida modernamente nas explorações physio-psychologicas do Janet, do Maudsley e no determinismo.
O Joaquim de Villalva, muito instado pelo filho e pelo padre Osorio, o de Caldellas, promettia fazer o que a sua companheira fizesse: mas dizia-lhe a ella em particular:—Tu aguenta-te, Maria; nunca digas que sim, ouviste? E ella:—Deixa-me cá, homem! Vem barrados. Credo!
A tia Maria era muito rezadeira, erguia-se de noite para não perder a sua missinha no verão ao romper do dia, e garganteava com uma melopêa fanhosa a via-sacra na quaresma, á volta da egreja; presenteava os santos dos altares com os mimos da sua lavoira que se leiloavam ao domingo no adro, dava cama e mesa unctuosa aos missionarias, confessava-se todos os mezes, e sentia pelas suas visinhas menos beatas o ineffavel prazer de affirmar que haviam de cahir vestidas e calçadas no inferno. O filho penetrou-se d'uma idéa trivial a respeito de sua mãe:—Que os sentimentos religiosos a levariam a dar o consentimento, se Martha commettesse um d'esses peccados que se remedeiam com o matrimonio. O padre Osorio dizia-lhe que a intenção era honesta, mas o expediente mau. Não lhe citou theologos nem preceitos de origem divina. Argumentou-lhe com a hypothese da pertinaz resistencia da mãe. Que não esperava nada da sua religião,—um habito de tregeitos de mãos e de beiços, o automatismo idolatra dos selvagens da America que davam guinchos mechanicos, prostrando-se por terra, quando ouviram a primeira missa; que a religião das aldeias, sobre a dos indianos da catechese dos jesuitas, as vantagens que tinha era a hypocrisia em uns, e o fanatismo em outros, quando não se ajuntavam ambas as coisas nos mesmos fieis. O padre Osorio parochiava e conhecia o seu rebanho, joeirando-o pelos crivos do confessionario. Não conhecia menos a tia Maria de Villalva. Affirmava que a fragilidade de Martha seria para a velha mais um motivo de odio e desprezo; por que, na sua cartilha e nos dictames dos seus directores espirituaes, não se lia nem ouvia que a mãe devia encobrir a deshonra de uma rapariga casando-a com o seu filho, seductor d'ella.
As reflexões do vigario de Caldellas eram optimas mas extemporaneas.
Um official de pedreiro de Prazins, que trabalhava com o mestre Zeferino, contou-lhe que uma noite se enganara com o luar, e, cuidando que era dia nado, se levantára para ir para a obra; mas que ao passar por diante da casa do Simeão ouvira duas horas no relogio, e vira luz pelas frestas de uma janella. Que se puzera á coca debaixo de um carvalho, a desconfiar que a luz áquella hora não era coisa boa, e estivera, vai não vai, ó pernas p'ra que te quero, lembrando-se se seria bruxedo ou alma penada, por que se dizia que a Genoveva do Simeão, a que se deitara ao rio, não podia entrar no purgatorio, e morrera com o diabo no corpo, salvo seja. Estava n'isto quando a luz se sumiu, e se coou pelas frestas d'outra janella, e logo depois n'outra mais baixa, onde um homem podia chegar, com o cabo d'um machado. N'isto apagou-se a luz e abriu-se a janella de portadas sem vidros. Dava-lhe a chapada do luar;—era como se fosse dia. O pedreiro, muito no escuro da ramaria do carvalho, viu apontar uma cabeça e depois meio corpo de homem que se pôz ás cavalleiras do peitoril da janella, quedou-se a olhar e a escutar a um lado e outro; depois desmontou-se muito devagarinho, sem tugir nem mugir, pendurou-se no peitoril e deixou-se cahir, ficando em pé. A janella fechou-se, e o José Dias, que o operario conheceu como se o visse ao meio dia, metteu-se ao caminho de Villalva, por signal que levava sapatos de borracha que brilhavam ao luar como um espelho.
O oratoriano Manoel Bernardes, como é notorio, escreveu um livro edificante, muito piedoso, chamado Armas da Castidade. O mystico filho de S. Philippe Nery, com duas palavras sãs, d'um realismo seraphico, cabalmente explicou a situação d'outro José Dias a respeito d'outra Martha. Conhecia-lhe o leito, dizia elle. É o mais que se póde dizer sem escandalisar ninguem. Conhecia-lhe o leito.
Mas o Zeferino é que sentiu em cheio no peito amante a facada do escandalo. O official viu-o sentar-se sobre uma padieira que estava esquadriando, e, com o rosto entre as mãos, desfazer-se em pranto. Elle tinha amado aquella rapariga desde que a vira aos treze annos. Trabalhára e roubára como gallego para a poder comprar ao pai por um conto e quinhentos e pico. Metteu-se na politica; fez-se sargento-mór a vêr se se levantava a uma altura em que a Martha o achasse digno d'ella e superior ao estudante. Desabadas as esperanças com a prisão do patife de Calvos, scismava ainda em voltar de novo ao campo quando viesse o D. Miguel authentico, porque o tenente-coronel de Quadros lhe dizia que el-rei chegava a Portugal na primavera do anno seguinte—affirmava-lh'o o padre Rocha para o consolar juntamente com as bebedeiras quotidianas. Tudo acabado, perdido, como se lhe morresse a Eva do seu paraizo! E por isso o pedreiro chorava como os grandes poetas trahidos, como Camões, como Tasso, como Alfred de Musset. As lagrimas na cara tostada d'aquelle operario tinham o travo das que a poesia crystallisou no pantheon dos martyres do amor.
Depois, levantou-se, limpou as faces á manga da camisa, pegou da esquadria e continuou a trabalhar, assobiando a musica triste d'uma cantiga d'esse tempo:
Estes assobios eram o silvo da serpente da vingança; mas o seu rancor não punha a pontaria em Martha. Se deixava de cinzelar a pedra, e fitava os olhos extaticos n'um immenso vacuo, via passar lucilante a imagem da pequena, pura, angelical como a vira aos treze annos. Um grande romantico—uma explosão de ideaes que florejavam d'aquelle pedreiro como um canteiro de boninas nos musgos de um penhascal. Havia d'estas transigencias com os anjos despenhados. Dir-se-ia que elle tinha lido as Confissões de um filho do seculo, aquella torrente de lagrimas ignobeis que lava os pés de uma dissoluta illustrada.
Elle, desde essa hora funesta, pensou em matar o José Dias; mas, nas ricas protuberancias osseas do seu grande craneo, a bossa do homicidio era muito rudimentar. Tinha tido varias occasiões de poder-se gabar d'essa perfeição. Haviam-lhe batido dois estudantes a um pinhal, por causa das denuncias ao padre mestre Roque; e, quando o cão do Dias lhe rasgou a calça n'um sitio melindroso, o Zeferino desconfiou que, se fosse capaz de matar um homem, deveria ter atirado com o machado á cabeça do caçador. Elle queria espesinhar o cadaver de José Dias, espostejal-o, trincal-o, mascal-o, esmoêl-o, devoral-o, mas á maneira dos devoristas incolumes que compram um porco já morto na Ribeira Velha, e o esquartejam com um grande regosijo anthropophago, com as mãos ensopadas nas banhas da victima.
O pedreiro denunciante ia contando em segredo a toda a gente a descoberta que fizera n'aquella noite em que se enganára com o luar. A Martha estava desacreditada na freguezia; as mulheres que sachavam os milharaes faziam commentarios perpetuos ao texto do pedreiro, recordavam as façanhas da Genoveva, contadas pelas velhas, e as mais antigas diziam que a Brigida Gallinheira, avó da Martha, já tinha dado o exemplo á filha.—Uma geração de maratonas do alto, dizia a tia Rosa de Carude, cuspindo no chão, e pondo a soca em cima. Riam-se do Zeferino que andava como a cobra que perdeu a peçonha, muito escamado; que lhe tinham sahido dois casamentos com boas lavradeiras, e elle diz que havia de ir morrer solteiro ás Pedras Negras, depois de matar um homem; e houve quem affirmasse que o vira com um bacamarte debaixo dos carvalhos, por essa noite fóra, defronte da casa do Simeão. Uma calumnia.
Avisaram a mãe do José Dias da espera do pedreiro, e ella fez dormir o filho era uma trapeira que não tinha janella por onde saltasse, e fechava-o de noite por fóra, rogando pragas á serêsma de Prazins:—Que um raio a partisse e o diabo a levasse para as profundas do abysmo! Depois ia rezar a corôa com os creados, e rogava a Deus pelos que andavam sobre as aguas do mar e pelas almas de todos os seus parentes e visinhos, com uma intonação chorada que fazia devoção.
O José Dias vivia amargurado. Tinha sido creado n'um grande respeito aos paes, e sentia-se inhabil para lhes reagir. A doença de peito que principiava a desvigorisar-lhe o corpo, implicava-lhe com a atonia da alma. Sentia o egoismo indolente dos enfermos minados pela consumpção lenta. Invejava a robustez do irmão, um trabalhador forte que dormia dez horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao tanque e pensar o gado com uma grande alegria, de assobios remedando as requintas das chulas. Passava muitas horas com o seu confidente, o padre Osorio. Pedia-lhe conselhos—que arranjasse modo de elle poder casar com a Martha.—Que eu, dizia com desalento, não vou longe; mas queria remediar o mal que fiz.
A Martha escrevia-lhe para Caldellas, porque a tia Maria de Villalva, uma vez que lá viu um garoto com carta para o filho, deu sobre elle com um engaço, que por pouco o não apanha pela cabeça com os dentes do instrumento. As cartas eram desconfianças, receio do abandono, lagrimas. O pai não a mortificava. Pelo contrario, dizia-lhe a miudo:—Se o Zé de Villalva não casar comtigo, talvez seja a tua fortuna, por que póde ser que teu tio adregue de gostar de ti, e mais mez menos mez elle rebenta por essa porta dentro rico como um porco. O brazileiro da Rita Chasca que chegou agora diz que elle tem quatrocentos contos fortes, p'ra riba, que não p'ra baixo.—A Martha escondia-se a chorar; e, ás vezes, lembrava-se do fim da mãe—o suicidio; e punha-se a olhar para o Ave e a escutar o rugido cavo de uma levada que parecia trazer-lhe os gemidos agonisantes de muitos afogados.
O Dias fallava-lhe na sua doença, no desfallecimento de forças que já o não deixavam caçar, da tristeza que o consumia, do desamor com que a familia o via padecer, do odio que começava a ter á mãe, e das saudades dilacerantes que sentia pela sua querida Martha.—Que o seu amigo padre Osorio trabalhava para obter o consentimento do pai; mas que, se o não obtivesse, estava resolvido a fugir com ella, mesmo sem recursos, ou com os poucos que o seu amigo lhe podia emprestar.
De tempo a tempo ia vêl-a de dia; mas a mãe trazia-o muito espreitado, e ralava-o:—que a tal croia havia de dar cabo d'elle. O cirurgião tinha-lhe dito delicadamente que o José abusava do 6.°. Ella, como sabia os mandamentos de cór e salteados, entendeu logo, e dizia a toda a gente que o seu Zé andava assim um pilharengo por causa do 6.°. Era o resultado de saber a doutrina christã esta decencia no explicar-se por numeros. As visinhas entendiam-na e diziam-lhe que o José andava forgado, que lhe mettesse uma enxada nas unhas e o puzesse a roçar matto oito dias, que elle perdia o cio.
Decorreram alguns mezes. Com a primavera a saude de José Dias pareceu restaurar-se. Elle attribuiu as suas melhoras ao contentamento. O pai, que era regedor, a pedido do governador civil que o mandou chamar a Braga, por intervenção do padre Osorio, dava o consentimento; mas a mãe recalcitrava. Esperava-se, porém, a vinda dos missionarios a Requião, para a reduzirem ao dever de catholica. O vigario de Caldellas já tinha prevenido um egresso do Varatojo, fr. João de Borba da Montanha, das terras de Celorico de Basto, d'uma força prodigiosa em emprezas mais difficeis.
Martha recobrava alegres esperanças, e o Zeferino das Lamellas digeria a sua dôr, assobiando a musica da melancolica bailada:
Para seu desafôgo, ia a miudo a Quadros saber quando chegaria o snr. D. Miguel. O Cerveira estava relacionado com os setembristas. Formára-se a juncção dos dois partidos hostis aos Cabraes, aproximados pelas eleições sanguinarias de 1845. O tenente-coronel reunia espingardas em Quadros e dava dinheiro para o fabrico de cartuchame no concelho da Povoa de Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O padre Rocha communicava-lhe as noticias enviadas de Londres pelo Saraiva, e conseguiu que elle fosse ao Porto receber o gráo de commendador da ordem de S. Miguel da Ala a casa do João d'Albuquerque, da Insua, que representava nas provincias do norte o Grão-Mestrado. O Zeferino sentia momentos de jubilo de tigre que se agacha a medir o salto á presa. Tinha um riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe que estava a mastigar os ligados do José Dias.
Em março d'aquelle anno, 1846, os setembristas de Braga fomentaram os motins populares do concelho de Lanhoso. Na Inglaterra, na camara dos communs, lord Bentinck explicou tragicamente, em phrases pomposas, a origem d'essa revolução, que um desdem indigena chamou «rebellião da canalha». Elle disse que os Cabraes mandaram construir cemiterios; mas não os muraram; de modo que entravam n'elles cães, gatos e porcos bravos em tamanha quantidade que chegaram a desenterrar os cadaveres.[8] As nações e os naturalistas deviam formar uma idéa assaz agigantada do tamanho dos gatos portuguezes que desenterravam cadaveres, e das boas avenças dos nossos cães com os referidos gatos na obra da exhumação dos mortos, e não menos se espantariam da familiaridade dos javalis que vinham do Gerez collaborar com os cães e gatos n'aquella mineração das carnes podres das terras de Lanhoso. A origem pois da insurreição nacional de 1846 está definida nos fastos da Europa revolucionaria. Foi uma reacção, uma batalha social á canzoada e gataria confederadas com o focinho profanador de porco montez. E d'ahi procedeu escreverem os jornalistas da Allemanha, um paiz sério, que a revolução do Minho era o «typo da legalidade». Os cadaveres servidos nos banquetes illegaes e nocturnos dos javalis, com a convivencia de gatarrões a rosnarem com o lombo erriçado, e molossos de colmilhos ensanguentados foi caso que impressionou grandemente as raças tudescas, por ser um acto prohibido pela Carta Constitucional. Quer fossem os setembristas de Braga, quer a alcateia das feras colligadas, o certo é que a insurreição do Alto Minho talou esta provincia e a transmontana, devastando as papeletas impressas e os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos gatos e seus cumplices fez soffrer ao capital do paiz uma diminuição de 77 milhões e meio de cruzados, segundo o calculo do ministro da fazenda Franzini, muito retrógrado, mas um genio no algarismo.
O Zeferino das Lamellas, ás primeiras commoções do vulcão popular, nos arredores de Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu repicar a rebate em Ronfe, cheio de ciumes como o sineiro de Notre-Dame, agarrou-se á corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de tres freguezias, e pegou a dar morras aos Cabraes com applauso universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este expediente estatistico com canastro:—que os Cabraes e os seus empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal á Inglaterra; que esses roes estavam nos cartorios das administrações e em casa dos regedores; que era preciso queimar-as papelêtas e matar os cabralistas.
Em seguida, invadiram a administração de Santo Thyrso, quebraram as vidraças dos cartistas fugitivos e queimaram os impressos e quantos papeis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão. Zeferino nomeára-se chefre da gentalha embriagada nas adegas arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se prendessem os regedores que topassem. Dizia que o Joaquim de Villalva, nas eleições do anno anterior, muito socadas, cascára no povo e mais os cabos, na assembleia de Landim, cacetada brava. A bebedeira dos ouvintes dera á perfida aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto historico. O plano de Zeferino era abrir opportunidade a que José Dias fosse assassinado ou, pelo menos, preso e degredado como cabralista.
Villalva ficava-lhes a geito, no caminho de Famalicão. O amante de Martha ouvira grande alarido e vira ao longe a multidão que galgava um outeiro turbulentamente. Via-se desfraldado no ar, em oscillações largas, o panno escarlate de uma bandeira: era um pedaço do Velho estandarte que servia nas procissões de Santa Maria d'Abbade. José pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não—que nunca tinha feito mal a ninguem, nem sequer prendêra um refractario: que o mais que podiam fazer era tirar-lhe o governo.
José Dias tinha mêdo ás covardes ameaças do Zeferino; diziam-lhe que o pedreiro jurára matal-o, e já constava que era elle o chefe da guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos na comarca. A mãe empurrava-o pela porta fóra—que fugisse para Caldellas; que não fosse o diabo armar-lhe alguma trempe por causa da Martha, da tal bebedinha que não dera cavaco ao pedreiro. Elle deitou o sellote á egua e fugiu a galope; mas o regedor, com a sua consciencia illibada, esperou os revoltosos com o Zeferino á frente, brandindo a espada do pai, que não se desembainhára desde o ataque a Santo Thyrso.
—Está você preso por cabralista!—intimou o pedreiro, deitando-lhe a mão á lapella da véstia; e voltado para a turba:—Rapazes, cercaide a casa; tudo que estiver, preso!
—Os meus filhos sahiram; mas entrem, busquem á vontade disse o regedor; e, olhando para o pedreiro, ironicamente:—Ah seu Zeferino, seu Zeferino, você não veio aqui p'ra me prender a mim... É outra historia que você lá sabe. Isto de mulheres são os nossos peccados, mestre Zeferino...
—Não me cante!—bradou o das Lamellas com furiosos arremêssos.—Está preso, e mexa-se já para a cadeia.
—Você não pôde prender-me, mestre Zeferino—contrariou a auctoridade dentro da lei—Vá buscar primeiro uma ordem do meu administrador ou do governador civil.
—Já não ha governador civil!—explicou o caudilho—Agora são outros governos, seu asno! Quem reina é o snr. D. Miguel l.° E você não me esteja ahi a fanfar, que eu já o não enxergo. Ande lá p'ra cadeia com dez milhões de diabos!
O regedor entrou em Villa Nova de Famalicão na onda de alguns milhares de homens e rapazes que davam vivas a D. Miguel, ás leis novas, á santa religião e morras aos cabralistas. Quando queimavam os papeis, um brazileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao commandante que não convinha por emquanto aclamar D. Miguel; que dessem morras ao governo e vivas á religião. N'esta barafunda, o regedor preso entre meia duzia de jornaleiros que discutiam as leis velhas e as novas na taverna do Folipo, comprehendera um acêno do taverneiro e fugira pelos quintaes. Metteu-se ao caminho de Braga, onde estava o general conde das Antas. O José Dias, receando que o perseguissem em Caldellas, refugiara-se também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos commandado pelo conego Mont'Alverne.
N'este meio tempo, chegou da America o Feliciano Rodrigues Prazins, tio de Martha. Demorou-se poucos dias. Ganhára medo que o roubassem as guerrilhas. Foi para o Porto pôr em segurança as suas lettras e voltou quando a queda dos Cabraes garantia o socego dos capitalistas. Na volta a Prazins, olhou mais attentamente para a sobrinha, deu-lhe alguns cordões, e disse ao irmão que não se lhe dava de casar com ella. O Simeão affirmou logo com um descaramento perdoavel:—que não se fosse sem resposta o mano que a moça dava o cavaco por elle.
Feliciano tinha quarenta e sete annos. Não se parecia com a maioria dos nossos patricios que regressam do Brazil com uma opulencia de fórmas almofadadas de carnes sucadas. Era magro esqueleticamente, um organismo de poeta sugado pelos vampiros do spleen. Dizia, porém, que tinha febras de aço e nunca tomára remedios de botica. Muito myope, usava de monoculo redondo n'um aro de bufalo barato. Como era economico até á miseria, dizia-se em Pernambuco que o Feliciano usava um vidro só para não comprar dous; e que, se pudésse, venderia um olho como coisa inutil. Com a economia e o trabalho bem propiciado em trinta annos arredondára trezentos contos. Chegára aos quarenta e sete, ao outono da vida, sem ter amado. Nunca se conspurcára nos latibulos da Venus vagabunda. A sua virgindade era admirada e notoria; depunham a favor d'ella os seus caixeiros, os feitores e—o que mais é—as suas escravas. Os seus patricios devassos chamavam-lhe o Feliciano Pudicicio. Elle não se envergonhava de confessar a sua castidade ao parocho de Caldellas. Tinha vivido como um dessexuado;—que trabalhava muito nos seus armazens, que dormia poucas horas, e não dava folga ao corpo nem péga aos vicios. Originalissimo. Que lhe sahiram casamentos ricos; mas que elle para ser rico não tinha precisão de mulher; que vira algumas meninas pobres a namoral-o; mas que desconfiára que lhe namorassem o seu dinheiro. Não tinha queda para o sexo que elle dizia seixo. N'uma palavra, estava virgem. Elle podia dizer como Hamlet: Não me deleitam os homem não tão pouco as mulheres.
A sobrinha reformára aquella natureza aleijada. Talvez o desdem com que Martha o tratava na crise da sua paixão, fosse grande parte no amor do brazileiro. Além d'isto, a môça, muito parecida com elle na delgadeza das fórmas, tinha encantos que dispensavam a esquivança para se fazer amar de um homem de quarenta e sete annos—intacto de mais a mais. O presente que lhe fez de uma meada de cordões de ouro significava uma desordem, pelo menos interina, na sua condição sovina. Martha acceitou a dadiva sem enthusiasmo nem alegria. Lembrava-se que o pai a prevenira da possibilidade de ser mulher de seu tio, se adregasse gostar d'ella. Quando o tio lhe deu os cordões, teve-lhe uma nausea, um quasi odio, suspeitando-lhe os projectos; e quando elle fugiu para o Porto, com medo ás guerrilhas, sentiu ella uma satisfação incomparavel. Entretanto, apezar das más informações do brazileiro da Rita Chasca, o Feliciano sentia filtrar-se-lhe nas cellulas impollutas do coração o veneno dôce de uma paixão cheia de condescendencias, pouco superciliosa em pontos de honra, como quem pensa que no thalamo conjugal não se faz mister a virgindade em duplicado. Mas não era assim que elle pensava. Ninguem lhe desdourára a honra da sobrinha, nem o derriço com o José Dias fazia implicancia á sua honestidade. Elle não tinha os rudimentos de malicia necessaria para desconfiar que uma menina de dezeseis annos, creada nos seios da Natureza immaculada de uma aldeia do Minho, pudesse abrir de noite uma janella, debruçar-se no peitoril e ajudar a subir um homem. O official do pedreiro é que sabia casos, anomalias, desde aquella noite em que o luar o enganou.
Martha ouvira aterrada a noticia que o pai lhe deu da vontade do tio. Irritou-se. Tinha sido creada com muito mimo, sem mãe, voluntariosa, e com uns ares senhoris que desauctorisavam o respeito que o pai, rustico lavrador, não sabia incutir. Em vez de chorar como as filhas desgraçadas e humildes, respondeu desabridamente que não casava com o tio; que o desenganasse, se quizesse; e, se não quizesse, ella o desenganaria. A terrivel nota golpeára-lhe o coração cheio de saudades de José Dias que lhe escrevêra de Braga, por intervenção do padre Osorio, dando-lhe coragem e esperança no casamento logo que cessasse a guerra. Foi esse alento que a revoltou contra o pai quando elle instava com ella a casar com o tio, que era talvez, dizia, o homem mais rico de Portugal, abaixo do rei. Martha replicava com tregeitos de tedio desdenhoso; e, exaltada pela boçal insistencia do pai, protestava, se a apoquentassem, atirar-se ao rio como sua mãe.
O Simeão perdeu a vontade de comer; andava atordoado n'uma tristeza estupida a dar uns ais pela casa que pareciam mugidos de bezerro perdido na serra. A pequena já não queria ir á mesa, mettia-se na cama e fingia-se doente para não encontrar o tio Feliciano.
José Dias e o pai permaneciam em Braga, por que em differentes pontos da provincia continuavam as agitações miguelistas; o novo ministerio não tinha força, e o Zeferino das Lamellas nunca depozera as armas. Os seresinos faziam excursões e batiam os realistas ou prendiam os agitadores. José Dias, em uma d'essas sortidas a Villa-Verde, a pé e com pouca saude, ganhára uma bronchite que o teve de cama largo tempo. Quando se levantou, n'uma apparente convalescença, a tisica tuberculosa recrudescia pessimamente caracterisada. O padre Osorio fôra visital-o, ouvira o medico e sabia que o seu amigo estava perdido. Fallou ao pai, em particular, no estado do filho. Lembrou-lhe a sua promessa de consentir no casamento com a pobre Martha, que se perdêra confiada nos compromissos do José. O lavrador mostrou não perceber a conveniencia de Martha em casar, se o seu filho tinha de morrer cêdo.—Que a viuva, dizia, nada ganhava com isso, porque os herdeiros de José eram seus pais. Não comprehendeu a questão por outra face. Mas, apertado pela palavra que déra, repetiu que elle pela sua parte concedia a licença, se a mãe a désse; e justificava-se d'este respeito á mulher, allegando que a casa de Villalva era toda da sua companheira, e o que elle levára para o casal não valia dois caracoes.—Emfim, concluia, se o rapaz arrijar, casa querendo a mãe; mas, emquanto elle assim estiver, faça favor de lhe não fallar na rapariga... Bem lhe basta o seu mal... E um homem que está doente devéras não deve pensar em mulheres, é na salvação da sua alma. Eu penso assim, amigo padre Osorio.
—O vigario aprende o padre-nosso, dizia o de Caldellas.
Entretanto, o doente, muito animado, não sentia aquelles desalentos e presagios de morte que mezes antes o affligiam. Habituára-se ao soffrimento; já não tinha memoria das perfeitas delicias da saude. Quando espectorava sem violencia, e a dyspnea cedia aos xaropes e ao pez de Borgonha julgava-se em uma quasi completa restauração. Escrevia ao Osorio e a Martha com muita alegria e devotos agradecimentos a Deus e a Maria Santissima com quem se apegára fervorosamente desde que padecia, e tambem com o oleo de figado de bacalháo.
A repugnancia de Martha, face a face do tio Feliciano, seria um affrontoso desengano para o millionario, se não interviesse o implacavel e engenhoso ciume do Zeferino. Este chefe de guerrilha em armisticio soube que o brazileiro queria casar com a sobrinha e que o José Dias estava em Braga muito acabado, a dar á casca. O pedreiro chamou os bravos da sua jolda e fez-lhes saber que o brazileiro de Prazins pedira para Famalicão um regimento da divisão do Antas para deitar cêrco ás casas dos realistas, e sujeitára-se a sustentar o regimento á sua custa. Resolveram atacar o Feliciano, prendel-o como cabralista, e fazel-o pôr á má cara o dinheiro que havia de dar á tropa. Um dos da malta, visinho do brazileiro, o Metro, tinha-o convidado para padrinho de um filho. Procurou-o ás escondidas e avisou-o que se escondesse. Feliciano fugiu para o Porto a toda a pressa. Queria que a sobrinha tambem fosse. Escrevia-lhe que, se quizesse ir, compraria casa no Porto. Martha respondia que estava muito doente, que não podia sahir da cama. O pai chegava a descompôl-a:—Que não tinha molestia nenhuma, que era por causa do Zé Dias; mas que perdesse d'ahi a idéa por que estivera com o doutor Pedrosa, de Santo Thyrso, que o vira em Braga, e lhe dissera que o Dias estava ethego e mais mez menos mez esticava a canella.
Martha respondia com serenidade de alma forte, e escorada n'uma resolução suicida:—Se não casar com elle n'este mundo, casarei no outro.
—Que te leve o diabo!—resmungava o Simeão, riçando phreneticamente as suissas. Depois voltava manso e velhaco á beira do leito:—Olha, menina, teu tio está velho e esmagriçado. Aquillo não póde ir longe. Tu ficas p'r'ahi podre de rica, e podes casar depois com um fidalgo, se quizeres...
—Valha-me nossa Senhora!—murmurava Martha, pondo os olhos na litographia da Mãe de Jesus traspassada das sete espadas.—Quem me dera morrer.
A tisica do José Dias com as frialdades humidas de novembro entrou no segundo periodo. Recrudesceram as dôres de peito e a dyspnea, com accessos febris nocturnos. Expectoração esverdeada com istrias amarellas, e extrema magreza com repugnancia a todo o alimento. Pela auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do fervor cavernoso. Os medicos disseram ao pai que o tirasse de Braga, das incommodidades da estalagem, e o levasse para casa onde lhe seria mais suave a morte na sua cama com a assistencia da familia. Foi para Villalva transportado n'uma liteira, e dizia ao pai que se sentia melhor, que respirava mais desafogado; e que, se ha mais tempo tivessem sahido de Braga, já elle estaria rijo.
A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão desfigurado, fez um berreiro descommunal, e não teve mão em si que não rogasse pragas á Martha, que lhe matára o seu querido filhinho. As visinhas concordavam:—que diabos levasse a mulher que o tolhêra!
O doente affligia-se, chorava como creança, e pedia ao pai que o deixasse ir para Caldellas, para casa do seu amigo; que não podia vêr a mãe; que lh'a tirasse de diante dos olhos; e que, se elle tivesse de morrer, que lh'a não deixassem ir á beira da sua cama. E fazia tregeitos furiosos, com os olhos a estalar das orbitas escavadas, incendido pela febre.
Chegou o padre Osorio, e o doente applacou-se sob as consolações calmantes do seu santo amigo. Deitou-se, com promessa de ir no dia seguinte para Caldellas; mas nunca mais se levantou, nem fez inuteis esforços.
Osorio não o desamparou. Ia á sua egreja dizer a missa dominical e voltava para Villalva com as respostas de Martha aos bilhetes que José lhe escrevia—poucas linhas em que ainda por vezes lampejavam alegres esperanças.
Toda a influencia de Osorio não conseguiu que o enfermo recebesse a mãe no seu quarto. Não lhe podia perdoar o odio que ella tinha a Martha; e bradava que a fazia responsavel perante Deus da deshonra da desgraçada menina. A velha escutava estes tremendos emprazamentos para a eternidade, e dizia de si comsigo, a beata:—bem me fio eu n'isso.
Por fim já não podia escrever, nem levantar a cabeça no travesseiro; mas perguntava ao Osorio se tinha noticias de Martha; que pedisse ao irmão que fosse lá, e lhe dissesse que elle estava mais doente, e não podia escrever.
Um d'esses recados motivou o bilhete que se copiou na Introducção d'este livro, e que o moribundo já não pôde lêr. Desde que a mãe lhe metteu á força dentro do quarto o vigario com a extrema-uncção, um homem de opa com a campainha, outro com a agua-benta na caldeirinha, mais dous com tochas, e outros com a sua devota curiosidade, o moribundo cahiu na modorra comatosa, e apenas, com longos espaços, tinha uns accessos sibilantes de ligeira tosse sêcca. Abria então os olhos que fitava no rosto de Osorio, e ás vezes circumvagava-os espavoridos como em busca da visão espectral da mãe que o vigario de Caldellas cuidadosamente e com doloroso constrangimento defendia de entrar á alcôva.
Em Prazins ouvia-se dobrar a defunto em Villalva. Martha perguntou ao pai quem tinha morrido.
Elle respondeu serenamente:—Dizem que foi o Dias que está com Deus. Reza-lhe por alma que é o que elle precisa agora.—Martha deu um grande grito, e com as mãos na cabeça, a correr, deitou a fugir pelos campos. Ella sabia onde era o remanso fundo do rio Ave em que a mãe se suicidára. O pai correu atraz d'ella, a gritar, que lhe acudissem. Fóra d'aldeia, andava uma roça de matto, com muitos jornaleiros que correram todos atraz de Martha, e a levavam quasi apanhada quando ella cahiu, a estrebuchar, em convulsões. Conduziram-na para casa com os sentidos perdidos, e puzeram mulheres a vigial-a na cama. Esta nova chegou a Caldellas. D. Thereza, a irmã do padre Osorio, foi com o irmão a Prazins, e convenceram o Simeão a deixar ir a filha para a companhia d'elles algum tempo.
Martha chorava muito, abraçando-se no amigo de José Dias; e elle, quando o lavrador com impertinencia dizia á filha «está bom, está bom», observava-lhe com azedumes:—Deixe-a chorar, deixe-a chorar!—E voltando-se para a irmã:—A estupidez é cruel!
[8]Carta dirigida ao cavalheiro José Hume. Versão de Antonio Pereira dos Reis, 1847, pag. 99.
O Simeão de Prazins tinha sido antigamente regedor um anno; depois, cahido o ministerio e o governador civil que o nomeara, voltou ao poder o Joaquim de Villalva, cartista puritano, com a restauração da Carta. Duas restaurações boas. O Simeão lembrava-se com saudades da sua importancia no anno em que governára a freguezia—o respeito dos rapazes recrutados, as considerações dos taverneiros, que davam jôgo em casa, das raparigas solteiras que andavam gravidas, a auctoridade do seu funccionalismo na junta de parochia, etc. Ora, como o Joaquim de Villalva, desgostoso e doente com a morte do filho, pedira a demissão, o administrador nomeou a regedoria no de Prazins. O brasileiro achou que era bom ter de casa a auctoridade para maior segurança dos seus cabedaes e pessoa. Foi uma desgraça.
Depois do convenio de Gramido, Zeferino recolhêra ás Lamellas com alguns dos seus primitivos legionarios. Elle tinha passado trances amargos. Ajuntára-se ao aventureiro Reinaldo Mac-Donell, em Guimarães, quando o escossez descia do Marco de Canavezes para Braga; esteve nas barricadas da Cruz da Pedra quando o barão do Casal espatifou a resistencia d'aquelles desgraçados illudidos pelo caudilho estrangeiro; foi dos primeiros a fugir por Carvalho d'Este, a comprehender a inutilidade da defeza, e por montes e valles deu comsigo em Porto d'Ave, e d'aqui foi para Guimarães onde se aquartellaram o Mac-Donell com o seu estado-maior. Logo que chegou foi procurar o tenente-coronel Cerveira Lobo, que fazia parte do cortejo do general. Mandaram-o ao palacete do visconde da Azenha, onde o escossez se tinha aquartellado com o seu estado-maior. O Cerveira Lobo estava a beberricar cognac velho copiosamente sobre uma ceia farta, comida sem sobresaltos. Á mesa, onde faiscavam os crystaes dos licores, avultavam, scintillando os metaes das suas fardas, o quartel-mestre general Victorino Tavares, de Fagilde, José Maria de Abreu, ajudante de ordens, o morgado de Pé de Moura, o Cerveira Lobo e o Sebastião de Castro, do Covo, commandante do batalhão de voluntarios realistas de Oliveira de Azemeis, que arredondava 42 praças, e seu irmão Antonio Carlos de Castro, ajudante de ordens do general,—dois homens gentilmente valorosos;—o coronel Abreu Freire, morgado d'Avança, e o Bandeira de Estarreja que é hoje padre.
A noite era de 27 de dezembro de 1846, muito fria. Bebia-se forte. A garrafeira da casa do Arco era um calorifico. O Mac-Donell, muito rubro, n'aquella bebedeira chronica que lhe assistiu na vida e na morte, esmoía a ceia passeando n'um vasto salão, de braço dado com uma formosa senhora da casa, D. Emilia Correia Leite d'Almada. Dir-se-ia que o bravo septuagenario tinha vencido uma batalha decisiva, e procurava matizar com flores de Cupido os seus louros de Mavorte. E o Cerveira Lobo bebia e relatava proezas dos seus saudosos dragões de Chaves com gestos bellicos e as pernas desviadas como se apertasse nas côxas a sella de um cavallo empinado no fragor da peleja. N'isto entrou um camarada, ás 11 da noite, a chamar apressadamente o quartel-mestre general, que o procurava com muita urgencia um capitão de atiradores do batalhão do Populo.
O Victorino de Fagilde encontrou na sala de espera o capitão Pinho Leal,[9] um robusto e jovialissimo rapaz, de trinta annos, com uma fé politica, antipoda da sua forte intelligencia—uma especie de poeta medieval, com um grande amor romantico ás cathedraes e ás instituições obsoletas e extinctas. Elle tinha muitos d'estes camaradas visionarios e respeitaveis na sua phalange da Madre-Silva...
—Que ha?—perguntou o quartel-mestre general.
—Ha que estamos cercados pelos Cabraes. Os nossos piquetes de Santa Luzia e do Castello já foram atacados, e ouve-se fogo de fuzil em outros pontos. Veja lá o que quer que eu faça.
O Victorino ficou passado de terror, e levou o capitão á sala em que o Mac-Donell passeava pelo braço de D. Emilia Azenha, e o visconde, o hospedeiro fidalgo palestrava com numerosos hospedes, conegos, abbades, capitães-móres, antigos magistrados. Pinho Leal repetiu ao escossez o que dissera ao seu quartel-mestre. «O alma do diabo—escreve o snr. Pinho Leal ficou com a mesma cara imperturbavel, e disse-me: Isso não vale nada. Tenho tudo prevenido. Mande recolher a gente a quarteis.» Mas a dama assustada desprendeu-se do braço do general, e foi preparar os bahus para a fuga; e os do estado-maior compelliram o general a fugir tambem. Era uma hora da noite quando o exercito realista abandonou Guimarães e entrou na estrada de Amarante.
Pinho Leal inventára o ataque dos cabralistas para salvar-se a si e aos outros da carniçaria inevitavel; porque, ao romper a manhã do dia seguinte, entraram em Guimarães seiscentos soldados do Casal ainda embriagados da sangoeira de Braga. Reproduzem-se textualmente no seu estylo militarmente pittoresco os veracissimos esclarecimentos de Pinho Leal: ...«A bêsta do escossez continuava na sua panria sem se importar da guerra para nada, e o mesmo faziam os da sua «côrte». Eu, vendo que de um momento para outro, podiamos ser surpreendidos e trucidados pelos Cabraes, aproveitando a circumstancia de estar «superior do dia» e tendo na casa da camara um «supporte» de cem homens, commandados pelo alferes José Maria (o morgado do Triste) dei-lhe a ele somente parte do que ia pôr em execução. Escolhi da gente do «supporte» um sargento e quatro soldados da mesma companhia, de todo o segredo e confiança. Sahi com eles por um bêcco e fui com eles pela frente dar uma descarga no nosso piquete de Santa Luzia, e outra no piquete do Castello. Ao mesmo tempo, não sei quem é que estava num monte ao norte de Guimarães que deu uns poucos de tiros que muito ajudaram o meu plano. O «Triste» em vista da nossa previa combinação, mandou tocar a reunir e formou o supporte debaixo dos Arcos da Camara. Eu e os meus cinco homens viemos surrateiramente mettermo-nos na villa. Fui «passar revista ao supporte» a tempo em que já na Praça da Oliveira estava muita gente armada.»[10]
E d'ali, Pinho Leal foi á casa do Arco, afim de salvar aquelles homens que se ensopavam em bebidas de guerra numa pacificação de idiotas, e retardar alguns dias a benemerita morte do general escossez assalariado por Guizot com credenciais de Costa Cabral.
O Cerveira Lobo, quando soube que a força marchava á uma hora d'aquella noite frigidissima, encarregou o Zeferino de lhe comprar uma botija de genebra da fina, Fockink legitima. Tinha um frasco empalhado que punha a tiracollo nas marchas nocturnas. Encheu-o com ajuda do pedreiro. O tenente-coronel, n'um grande desequilibrio, não acertava a despejar a botija no frasco. O Zeferino dizia depois que o vira tão borracho que logo desconfiou que malhava abaixo do cavallo. O Cerveira affirmava que se sentia com os seus trinta annos; que andara a trote largo do seu cavallo treze leguas e não estava cançado. O Zeferino perguntou-lhe se o Casal os apanharia ainda de noite; se estaria tudo acabado com outra mastigada como a de Braga. Cerveira respondeu iracundo que o general era um asno, e que elle estava resolvido e mais o Victorino a matal-o como traidor ao snr. D. Miguel I.
Moveu-se o exercito em direitura á Lixa. O Cerveira ia no grupo do quartel-general. Mac-Donell, de vez em quando, regougava monossilabos em hespanhol ao quartel-mestre. O Cerveira retardava-se ás vezes um pouco e emborcava o candil, grogolejando e despegando pigarros teimosos. O Victorino notava-lhe que elle bebia de mais—que o calor da genebra não se espalhava pelo corpo, mas sim concentrava-se na cabeça—que era um perigo. O Cerveira dizia que estava affeito; mas queixava-se de dôres nas fontes e zunidos nas orelhas; que não se podia lamber com somno, e que dava cinco mil cruzados por estar na sua cama. E abaixando a voz tartamuda:—Este ladrão d'este inglez metto-lhe a espada até aos copos! Palavra d'honra que o mato ámanhã!
O Victorino deu tento de que o tenente-coronel gaguejava; mas attribuiu á embriaguez o embaraço na falla. Entrou a queixar-se o Cerveira de que estava tonto da cabeça, que se queria apear, por que não podia agarrar as redeas; e chamava com anciedade o Zeferino que vinha muito á retaguarda. O quartel-mestre general chamou um ajudante de ordens, e pediu-lhe que o ajudasse a apear o tenente-coronel. Cerveira Lobo dobrava o tronco ao longo do pescoço do cavallo que estranhava o peso e o sacudia, sentindo-se livre da pressão do freio.
O apopletico ia resvalar, quando os dois officiaes o ampararam nos braços, n'uma syncope. Um d'elles accende um palito phosphorico no lume do charuto, e disse que o tenente-coronel tinha o rosto inchado e muito vermelho. Chamavam-o, sacudiam-no; não dava signal de vida; nem um ronquido estertoroso. Inclinaram-o sobre um combro de matto molhado; não lhe acharam pulso; a bôca entortára-se, e os olhos muito abertos com umas istrias sanguineas. Estava morto, fulminado pela apoplexia alcoolica.
A respeito d'este desastroso remate do ebrio illustre, escrevo Pinho Leal: N'esta retirada pelas duas ou tres horas da noite, morreu em marcha com uma apoplexia fulminante o P...[11] Coitado! quando me lembra isto ainda tenho cá meus remorsos de consciencia. Quem sabe se seria eu a causa da morte d'aquelle pobre diabo? Consola-me porém a certeza de que—mesma que eu fosse a causa indirecta da morte do fidalgote, poupei muitas vidas de gente moça (e a minha que era o principal para mim); e o morto já poucos annos podia durar, pois estava no calçado velho.[12]
Zeferino e alguns homens da comitiva do Cerveira passaram o restante da noite á beira do cadaver do fidalgo de Quadros. Á claridade fusca da manhã invernosa viram-lhe o semblante que mettia pavor. Quizeram cerrar-lhe as palpebras que resistiam á distensão, coriaceas, n'um retezamento orgastico. A maxilla inferior parecia deslocada e torta, repuxando a commissura direita dos labios n'um esgar de escarneo ou de angustia dilacerante. A côr do rosto era agora d'uma amarellidão de barro, molhado pelo orvalho que se filtrára atravez do lenço com que lh'o cobriram. Tinha os dedos aduncos, inflexiveis e uma das mãos afincada como garra nas correias da pasta.
O Zeferino disse que o seu tenente-coronel devia trazer um cinturão com dinheiro em ouro; mas ninguem ousou desabotoar a farda do morto defendido pelo sagrado terror da morte. Apenas uma das sentinellas, intanguidas de frio, votou que se bebesse o resto da genebra. Assim que foi dia claro, o Zeferino desceu á egreja proxima, a Margaride, avisar o parocho que tinha morrido na estrada um fidalgo do exercito do snr. D. Miguel. O padre, estremunhado e liberal, respondeu que não era coveiro; que se dirigisse ao regedor. A auctoridade, sem as delongas dos processos legaes, depositou o cinturão com as peças na mão do administrador, e mandou abrir uma cova no adro da egreja, onde o baldearam com um responso economico. Passavam jornaleiros para as roças. Punham as enxadas no chão e encostavam ás mãos callosas as caras contemplativas. O regedor contava que lhe acharam mais de um conto de réis em ouro.
—Toma!—disse um dos jornaleiros—um conto de réis! E inclinando-se á orelha d'outro jornaleiro:—Ó Tonio, se temos ido mais cedo para o monte ... e topamos o morto...
—Que pechincha!...
Restos de virtudes antigas. Estavam a fazer um idyllio em prosa.
O Zeferino acompanhou a guerrilha até que mataram o general em Traz-os-Montes os soldados do Vinhaes; depois passou com alguns chefes realistas para a Junta do Porto; e, acabada a lucta, foi para casa e entregou a espada ao pai, que o recebeu com estas caricias:—Eu sempre te disse que eras uma cavalgadura! Que te não fiasses no bebado de Quadros; que não sahisses a campo sem lá vêr o morgado de Barrimáo. Agora, pedaço d'asno, torna a começar com as paredes, e tem cuidado que te não deitem a unha. Lembra-te que prendeste o regedor de Villalva, e quizeste agarrar o brazileiro de Prazins que tem agora de mais a mais o irmão regedor. Olha se te lembras... A mãe do José Dias anda por ahi a berrar que a Martha e mais tu lhe mataste o filho. Lume no olho, homem, lume no olho!
—Se alguem embarrar por mim, dou-lhe cabo da casta!—protestava o pedreiro cortando com o braço e punho fechado punhadas aereas.—Se me matarem ... até lh'o agradeço!—E com desalento: Sou o maior infeliz e desgraçado que cobre a rosa do sol! Veja você: ha tres annos que não tenho uma migalha de estifação, c'um raio de diabos! Isto acaba mal, digo-lh'o eu! Você verá, sôr pai, que ou me matam ou eu acabo n'uma forca pr'ámor d'aquella rapariga que foi o diabo que m'appareceu, e não me passa d'aqui!—e apertava o gorgomilo nodoso entre dois dedos como quem apanha uma pulga.
Os administradores de concelho receberam ordem de recolherem as espingardas reiunas que se encontrassem nas aldeias, em poder do povo. Para as cabeças dos districtos ramificaram-se destacamentos afim de coadjuvarem a auctoridade. Simeão de Prazins, como regedor, foi chamado a Famalicão e incumbido de dirigir a diligencia militar que devia dar um assalto a Lamellas, a casa do Zeferino, onde se haviam denunciado as espingardas com que alguns miguelistas se tinham recolhido, contra as condições estipuladas no protocolo de Gramido. O regedor comprehendeu o perigo da empreza; pediu que o demittissem; mas a auctoridade impoz-lhe com azedume o cumprimento dos seus deveres, e negou-lhe a demissão.
Quando o Zeferino, succumbido á carga dos revezes, indifferente á vida e á morte, se chamava infeliz e desgraçado, o destino implacavel preparava-lhe novo desastre. Elle, ao romper da manhã, depois de uma insomnia febril, sonhava que era sargento-mór das Lamellas e assistia á formatura do regimento de milicias de Barcellos debaixo do solar de D. Maria Pinheiro. Na janella gothica do velho edificio da época de D. Affonso IV estava D. Miguel I assistindo ao desfilar do seu exercito vencedor, em que havia muitas musicas marciaes, de fulgurantes trompas, tocando o Rei-chegou: e o abbade de Calvos, dentro de um carroção e vestido de pontifical, borrifava o povo com hyssopadas de agua-benta, cantando o Bemdito. As tropas estendiam-se até Barcellinhos, e pelo Cavado abaixo velejavam muitos barquinhos embandeirados de galhardetes com as bandas musicaes de S. Thiago d'Antas e de Ruivães tocando a Cana-verde e Agua leva o regadinho. Em um d'esses bergantins com pavilhão de colchas vermelhas vinha sentada a irmã do padre Roque, mestre de latim, com os seus oculos, a fazer meia; e ao lado d'ella, vestida de setim branco e borzeguins vermelhos dourados, com os cabellos soltos, vestida como os anjos da procissão da Senhora da Burrinha em Braga, a Martha de Prazins. Elle estava na ponte, absorto na visão da noiva que chegava pelo Cavado para se casar quando um visinho lhe bateu com o cabo da sachola na janella tres pancadas. Saltou da cama atordoado.
—Que fugisse pelo quintal que já estavam soldados a entrar nas Lamellas com o regedor.
Zeferino ganhou de prompto os desvios d'um pinhal, e por detraz d'um socalco enxergou o Simeão ao lado do sargento da escolta parar em frente da sua casa e apontar para as janellas. Ouviu bater estrondosas cronhadas no portal, e viu alguns soldados invadirem depois o quintal, e entrarem pela porta da cozinha que ficara aberta. Depois avistou a escolta a retirar-se com dous homens carregados de armas.
O velho alferes, entrevado, estava muito afflicto quando o filho entrou. O sargento quizera levar-lhe a sua espada; e compadecera-se d'elle quando o vira a chorar e a dizer-lhe que era um alferes do antigo exercito, e que o deixasse morrer ao lado da sua espada, já que elle não podia defendel-a porque estava tolhido.
O Zeferino perguntou pacificamente:
—E o Simeão que dizia?
—Não dizia nada. Eu é que lhe disse... Arrieiros somos, na estrada andamos, visinho Simeão.
O pedreiro quedou-se longo tempo sentado com as mãos afincadas na cabeça: olhava para o canto em que tivera duas duzias de espingardas compradas pelo Cerveira Leite, e dizia com resignação contrafeita:
—Ellas assim com'ássim já não serviam de nada... A guerra acabou ... Que leve o diabo tudo...—E, passados alguns segundos de recolhida angustia:—Veja você, sôr pai! O Simeão dá-me a filha, depois diz que m'a não dá; isto não se fazia a um homem que põe navalha na cara... Eu levava a minha vida muito direita, estava muito bem, você bem sabe; deitei-me a trabalhar quanto podia; e vai depois, por causa da minha paixão, fiquei areado do juizo, deixei a arte, andei por esse mundo a gastar á minha custa, ao frio e ao calor, em términos de me levar o diabo com uma bala; e vai agora o Simeão entra-me pela porta dentro, leva-me as armas, e, se me pilha, mettia-me uma baioneta no corpo...
—Homem—atalhou o pai com juizo—não fosses tu lá a Prazins embirrar com o brazileiro...
—Eu tenho a minha paixão—objectou o filho com transporte—tinha cá dentro do peito esta navalha de ponta espetada; e elle ... que mal lhe fiz eu p'ra me querer mal?... Sabe você que mais?... Assim com'ássim, estou perdido...
Sahiu arrebatadamente e foi para o Monte Cordova conversar com o Patarro, um velho scelerado que se batêra em Braga com a cavallaria do Casal e pudéra salvar-se com o sacrificio de tres dedos e do nariz acutilados.
Na semana seguinte, quarta-feira, era o mercado de Famalicão. O regedor tinha comprado duas juntas de bois para o caseiro da Retorta, uma quinta solarenga, torreada, com o brazão dos Brandões, que o brazileiro comprára a um fidalgo de Afife. O negocio deitára a tarde. Simeão sahira ao desfazer da feira com o caseiro da Retorta e mais dous lavradores d'outra freguezia que montavam eguas andadeiras de muitos brios. O Simeão cavalgava a sua velha russa, d'uma pachorra mansa, invulneravel á espora. Recebia as chibatadas encolhendo os quadris e andando para traz. Ella não podia manifestar de um modo mais sensivel a sua repugnancia pelas pressas. O dono gabava-se de só ter cahido juntamente com ella poucas vezes. Sahiram da feira conversando a respeito de Martha. Constava aos outros que ella se quizera matar á conta do José Dias. O Simeão achava que sim, que ella quizera atirar-se ao rio; mas que estava quasi boa em Caldellas; que o vigario e mais a irmã lhe tinham dado um geito ao miôlo; e logo que ella estivesse fina, casava com o tio.
—E elle quél-a? — perguntou o Bento de Penso.
—Pois então!... Tomára-a elle já.
—Emfim—tornou o Bento—você ha-de perdoar que eu lhe diga o que tenho cá no sentido. O povo diz que o Dias entrava lá de noute. Eu não vi, mas é o que diz o povo. Ora um home sempre se atriga de casar com mulher de maus cretos. O seu brazileiro pelos modos é de bô comer...
—Tem bô estomago, é o que é—confirmou o Belchior da Rechousa.
O Simeão não estranhava estas franquezas muito triviaes nas aldeias ainda immaculadas do resguardo das conveniencias; mas defendia a honra da filha, attribuindo ao Zeferino as calumnias que espalhava para se vingar.
—Emfim—disse o Belchior—você tinha-lh'a dado por quinze centos. É o que diz o povo, e palavra d'home não torna a traz.
—Isso cá da minha parte foi chalaça...—defendia-se o Simeão, quando tres homens, mascarados com lenços, fincando as argolas dos paus no caminho, saltaram de uma ribanceira, á frente das tres eguas que caminhavam a passo. Um dos tres jogou uma paulada á cabeça do Simeão e derrubou-o.
Os dois lavradores das eguas travadas deram de calcanhares e pareciam dois duendes de comedia magica vistos á luz crepuscular. O caseiro abandonou as sôgas dos bois, galgou paredes e searas em desapoderada fuga até Famalicão, e á entrada da villa gritou—aqui d'el-rei ladrões! Contou o successo ao povo alvorotado, acudiu a auctoridade, encheu-se a estrada de gente em cata de Simeão e da malta dos ladrões. Acharam-o prostrado, de costas, arquejando, com a cara empastada de sangue que borbotava empoçando-se dos dois lados da cabeça. A egua rilhava entre os dentes e o freio umas vergonteas tenras de tojo, e de vez em quando tossia a sua pulmoeira com os ilhaes enfolipados. O Futrica, um ferrador da Terra Negra, examinou a cabeça do ferido, e disse que tinha o miôlo á vista; não podia durar muito, que lhe dessem a santa uncção. Pediu-se uma padiola ao lavrador mais proximo e levaram-o para Prazins promettendo duas de doze a dous jornaleiros. O caseiro montou a egua para ir a Santo Thyrso chamar o Baptista, o cirurgião da casa; mas a burra estranhando as esporas dos tamancos, levantou-se com o cavalleiro, deixou-se cahir sobre os jarretes trazeiros, voltou-se de lado como quem se ageita para dormir: foi necessario levantal-a. O povo dava risadas estridentes quando o caseiro puxava debaixo do ventre da egua a perna entalada, muito cabelluda; e alli perto estava a padiola com um velho gemente, agonisante, a pedir a confissão.
Assim que a padiola entrou em Prazins, foi aviso á Martha que o pai estava a morrer com pancadas que lhe deram os ladrões de estrada. D. Thereza e o prior acompanharam-a. Quando chegaram, sahia o parocho de o confessar e tocava o sino ao viatico. Havia uma agitação de angustiosa curiosidade no povo que confluia á egreja chamado pelo signal. Dizia-se que eram ladrões que sahiram ao lavrador em S. Thiago d'Antas; havia opiniões mais individualistas: segredava-se o nome do pedreiro; um pastor de cabras dizia que vira passar de madrugada para as Lamellas o Patarro de Monte Cordova e mais outro mal encarado; mas todos é uma diziam que não tinham visto nada, nem queriam saber de desgraças, com medo á malta do Zeferino.
O Simeão estava ainda com a face arregoada de sangue, vestido sobre a cama, resfolegando com muita anciedade, gemendo com dôres, e a cabeça um pouco elevada sobre um magro travesseiro muito comprido dobrado em tres pelo vigario. Esperava-se o cirurgião. A filha teve um desmaio quando viu a cara ensanguentada do pai, á luz mortiça de uma vela de cebo n'uma placa de lata. D. Thereza com a Martha nos braços, disse ao irmão:—Que miseria de casa! Pede luzes e agua para se lavar aquelle sangue.—E, assim que Martha voltou a si, levou-a para o seu quarto,—que a viria chamar quando o pai a pudésse vêr. Queria retiral-a do espectaculo dos paroxismos.
Quando chegou a extrema-uncção com o prestito clamoroso do Bemdito e o tilintar espacejado da campainha, Martha carpia-se em altos gritos, e pedia que a deixassem despedir-se de seu pai.
Ella tinha ouvido dizer a uma das visinhas que lhe invadiram a alcôva:—quem lhe bateu, ó mulheres, não foi outro senão o Zeferino das Lamellas. Juro que não foi outro.—Esta affirmativa cravou-lhe no coração o remorso de ser ella a causa da morte do pai. Queria ir pedir-lhe perdão; rogava á sua amiga que pelas chagas de Christo a deixasse ir ajoelhar-se á beira de seu desgraçado pai. D. Thereza conteve-a, receando novo ataque de loucura; que esperasse que se fizesse o curativo; que o cirurgião não queria no quarto senão o barbeiro que lhe estava a rapar a cabeça.
Pouco depois chegava o tio Feliciano da quinta da Retorta, onde residia assistindo ás obras. Vinha aterrado. Disse ao Osorio que já estava arrependido de comprar a quinta; que Portugal era uma ladroeira e um bando de faccinoras; que se ia embora muito breve. E, entrando no quarto onde a sobrinha chorava, disse-lhe consternadamente que, se morresse o pai, fizesse de conta que tinha em seu tio um segundo pai.
O cirurgião sahiu desconfiado do ferimento. Uma das pauladas despegara um pedaço de tegumento, deixando descoberto o craneo que o ferrador da Terra Negra chamára o miôlo. A hemorrhagia era grande, e havia receio de commoção cerebral. O facultativo, depois de o sangrar, mandou-lhe pôr pannos molhados na cabeça, de quarto em quarto de hora. Martha e Thereza não abandonaram um momento o catre do enfermo; o padre Osorio passou a noite na saleta attendendo o brazileiro que lhe fallava muito na sobrinha, na paixão que ella tivera pelo José Dias, e não lh'o levava a mal, pelo contrario.
Ahi pela madrugada o ferido sentiu-se muito angustiado, tinha estremecimentos, dizia disparates; queria arrancar os pachos da cabeça, bracejava, e puxava para o peito a face da filha lavada em lagrimas. O padre acudiu e mais o Feliciano; receavam que elle estivesse agonisando. Depois aquella agitação esmoreceu n'um dormitar sobresaltado, com a cabeça no regaço de Martha que brandamente lhe compunha o pacho na ferida. Quando espertou da modorra conheceu a filha, e repelliu-a. Fallou no pedreiro que o matára, e recahiu no estado comatoso. O padre Osorio attribuia aquella somnolencia a derramamento de sangue no craneo, um symptoma de morte provavel. O cirurgião veio de madrugada, mandou-lhe deitar sanguesugas atraz das orelhas, e disse ao vigario do Caldellas que estava mal encarado o negocio; que aquelle diabo de somno lhe parecia de máo agouro. Que ia vêr uns doentes e voltava logo.
Martha fazia muitas promessas á Senhora da Saude; dez voltas de joelhos ao redor da sua capella, um resplendor de prata, jejuar a pão e agua seis mezes a fio, não comer carne durante um anno, ir descalça á romaria da milagrosa Senhora. Com estas promessas sentia-se menos opprimida do seu remorso; o pai estava ali a morrer por causa d'ella, e a Maria de Villalva já dizia tambem que fôra ella a causa da morte do seu filho. Uma desgraçada, que vinha assim a causar a morte do noivo e do pai.
O ferido teve uma intermittencia de repousada vigilia. Olhou para a filha, e disse-lhe que morria, que a deixava sem pai nem mãe. O Feliciano acudiu:
—Isso não lhe dê cuidado, mano Simeão. Nada lhe ha-de faltar. É minha sobrinha; não tenho mais ninguem n'este mundo.
—Eu morria contente—balbuciou o Simeão lacrimoso—se ella fosse sua mulher...
Fez-se um silencio exquisito. Martha abaixou os olhos; a D. Thereza olhou para o irmão a vêr o que elle dizia; o padre Osorio olhava para o brazileiro a vêr como se expressavam as suas idéas; o Feliciano esperava que os outros dissessem alguma coisa. E então o pai de Martha, aconchegando-a de si, com muita ternura:
—Casas com o teu tio, minha filha? É o ultimo pedido que te faço...
Martha fez um gesto affirmativo, e cahiu de joelhos, curvada sobre o leito, a soluçar; depois, deu um grito e escorregou para o chão, em convulsões, com o rosto muito escarlate e a bocca a espumar. D. Thereza e o irmão conduziram-a ao seu quarto. Deitaram-a já socegada, mas n'uma rigidez insensivel, com a bocca ligeiramente torta.
O cirurgião chegava n'esta conjunctura e disse que a rapariga herdára a molestia da mãe, que eram ataques epilepticos; e ao tio Feliciano disse-lhe particularmente que o peior da herança não era a epilepsia; era a demencia que levou a mãe ao suicidio. Que a rapariga era fraca, e tinha sido creada com umas mimalhices de menina da cidade, que estragam o corpo e a alma; que era preciso ter muito cuidado com ella, não a affligir, distrahil-a, casal-a, emfim, que seria bom casal-a, e dar-lhe vinagre a cheirar, quando viesse outro ataque, e ter cuidado que ella não apanhasse a lingua entre os dentes; que lhe mettessem um panno entre os dois queixos, quando lhe désse outro ataque.
—Elle disse que o melhor era casar-se—lembrou o Feliciano ao padre Osorio.
[9]Era o meu actual e pregado amigo Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, auctor do "Portugal antigo e moderno".
[10]Carta de 10 de junho de 1877.
[11]Quando Pinho Leal publicar as suas Memorias, então se saberá o verdadeiro nome do morto.
[12]Carta citada.
Relatava o vigario de Caldellas:
—O cerebro do Simeão, se era refractario aos golpes da dignidade, não era mais sensivel ás commoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto á cabeça: nem honra nem predisposições inflammatorias. Cicatrisou a ferida; começou a comer gallinhas com a fome de um cannibal e com o prazer carnivoro d'uma raposa. Dera tacitamente Martha o consentimento de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e, se minha irmã lhe tocava n'esse assumpto, dizia: «Façam de mim o que quizerem... Para o que eu hei-de viver ... tanto' me faz...» Quanto ao casamento, proseguiu o padre Osorio, eu scismava se a primeira noite nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, arrependimentos, choradeiras, divorcio, vergonhas, coisas; mas occorria-me que Feliciano me confessára repetidamente que sahira da sua aldeia aos doze annos e tornára casto e puro como sahira. E eu então, attendendo a que a castidade, além de ser em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas ignorancias anatomicas, e umas inconscientes condescendencias com as impurezas alheias, descançava, tranquillisava o meu espirito escrupuloso. Uma falsa comprehensão da honra alheia ás vezes me aconselhava que mandasse o brazileiro conversar sobre o assumpto com o operario que o luar enganára em certa noite; mas a honra, como a consciencia, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são condições da alma tão variaveis como a materia exposta ás mudanças climatericas. Ora as condições mentaes e moraes de Feliciano Prazins eram as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que direito ia eu estragar aquelle excellente organismo?
Até aqui o padre Osorio com a sua grande pratica ethnologica dos usos e costumes dos maridos sertanejos do Minho.
O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim como curára em silencio o coração, golpeado pelas deslealdades da defunta Genoveva, do mesmo modo se acommodára com os estragos soffridos nos tegumentos da cabeça. Dizia-lhe o administrador que querelasse contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam prova. Não quiz.—Depois é que me dão cabo do canastro;—dizia com um dom prophetico, e circumspecção admiravel em um homem sem instrucção primaria.
No entanto, Zeferino debatia-se n'um azedume de desesperado, muito má lingua, insano de paixão, a degenerar para faccinora em theorias de escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vicio do pai com sêdes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia allivios, consolações ineffaveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de duas caras que comprára no tempo em que amealhára dez mil cruzados com dez annos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de Famalicão a Landim, perto das Lamellas, jogadores professos, armar a forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pêgo. Depois das perdas, quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira, embriagava-se de novo, e n'essas allucinações ia a Prazins, de clavina ao hombro, com o Tagarro de Monte Cordova, e fallava alto, com petulancia, para que Martha o ouvisse. O brazileiro e o Simeão tinham-lhe medo e não abriam as janellas depois do sol-posto.
Espalhou-se então a noticia de que o brazileiro ia effectivamente casar com a sobrinha.
O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anonyma, que era um traslado augmentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da janella. E por fim ameaçava-o—que se casasse com a Martha, não a havia de gosar muito tempo. O Feliciano mostrou a carta ao irmão. Concordaram que era o pedreiro com a sua paixão, damnado de raiva. O brazileiro entrou a scismar que o scelerado era capaz de levar a vingança ao cabo—bater-lhe, matal-o. Os tiros desfechados á sua honra de marido de Martha resvalavam-lhe na coiraça da consciencia: «eu sei o que faço» dizia elle; mas a idéa de um tiro ao seu physico, inquietava-o devéras. «É preciso dar cabo d'este ladrão» dizia o brazileiro ao mano, n'um grande mysterio.
Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de olhos estrabicos, d'alcunha o Alma-negra, um que o tinha avisado, quando a malta da patuleia tencionava agarral-o. O Melro rompera relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hyperbolicamente ao seu compadre que o Zeferino, quando andára na patuleia, era ladrão como rato.
O Melro era má bisca. Estivera tres annos na Relação como cumplice em um homicidio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher e quatro filhos, e não cessava de pedir emprestimos ao compadre desde que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse em segredo que quem lhe batêra fôra o Zeferino, com as costas guardadas por dois pimpões do Monte Cordova. E accrescentou:—Elle bem sabe a quem as faz. Havia de ser commigo eu com pessoa que me doesse...
O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o compadre. Disse-lhe que ia vêr a quinta da Commenda que se vendia; que lh'a fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de uma casa com tres janellas e um quintal espaçoso.
—É aqui, disse o Melro.
O brazileiro poz o monoculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro tachas: Domingo, ás 10 da manhã, depois da missa, vai á praça a quem mais dér sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa, dizima a Deus, para partilhas. O Feliciano leu, retirou-se apressado para que o não vissem, murmurando quaesquer palavras a que o compadre Melro respondeu:
—Vossoria então está a lêr! Tão certo tivesse eu o céo como tenho a casa...
Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos freguezes da taverna que o seu compadre ia comprar a quinta da Commenda, e que estivera a lêr o escripto da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez a comprasse para a dar a um afilhado ...
—Ao teu pequeno?!—perguntavam.
—Pois a quem ha-de ser! Aquillo é que é um homem ás direitas!
—Elle não sabe o que tem de seu. Tanto lhe monta dar-te a casa como a mim pagar-te um quarteirão d'aguardente—encareceu um pedreiro.—Anda agora a trabalhar no palacio da Retorta. Que riqueza! Parece um mosteiro. Pelos modos vai para lá viver logo que case com a Martha. Lá o mestre Zeferino rebenta que o leva os diabos! Isso diz que dá cada arranco...
—O Zeferino, a fallar a verdade, tem razão—disse o Melro.—O Simeão tinha-lh'a promettido. Gente sem palavra que a leve o diabo! Eu, se fosse commigo... Mas, emfim, é irmão do meu compadre ... não devo dizer nada. Que se governem.
O Melro, ás 8 da noite, quando os freguezes desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse á mulher:—A casa do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...
—Credo!—exclamou a mulher com as mãos na cabeça.—Nossa Senhora nos acuda!
—Leva rumor!—e punha o dedo no nariz.
—Ó Joaquim, ó marido da minha alma, alembra-te dos tres annos que penaste na cadeia! Olha para aquelles quatro filhos!...
—Já te disse que me não cantes—e relançava-lhe o seu formidavel olhar vêsgo incendido com os lampejos da candeia em que afogueava o cachimbo de páo. Depois, foi tirar d'entre a cama de bancos e a parede uma velha clavina. Sentou-se á lareira e disse á mulher que tivesse mão na candeia. Enroscou o sacatrapo na ponta da vareta de ferro e descarregou a arma, tirando primeiro a bucha de musgo, e depois, voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.
—Ó Joaquim, vê lá o que vaes fazer!—insistia a mulher, limpando os olhos com a estopa da camisa. E elle, assobiando o hymno da Maria da Fonte, despejava a polvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e elle cantando n'uma surdina rouca:
—Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.
E o Melro n'uma distracção lyrica:
Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um fremito aspero impedido pelas escorias nitrosas. Pediu á mulher umas febras d'algodão em rama, enroscou-as n'uma agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do cano.—Está suja—disse elle—dá cá um todo—nada de aguardente.
—Joaquim, vamo-n'os deitar, pelas almas. Não te desgraces!
—Traz aguardente e cala-te, já t'o disse, mulher, com dez diabos!—E poz-se a assobiar a Luizinha. Enroscou algodão embebido em aguardente no sacatrapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até sahirem brancas e seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou novamente e o ar sahia sem estorvo pelo ouvido com um sibillo egual. Parecia satisfeito, e cantarolava, mezza voce:
Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes, acompanhando o movimento com o dedo pollegar, para certificar-se de que o desarmador, a caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente. Levantou o fusil de aço que fez um som rijo na mola e friccionou-o com polvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou a aresta da pederneira que faiscava.
—Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem!—soluçava a mulher.
E elle, zangado com as lastimas da mulher, com expansão raivosa, n'um sfogato:
—Vai á loja atraz da ceira dos figos e traz o masso dos cartuchos e uma cabacinha de polvora de escorvar que está ao canto.
A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus de Braga, e ás almas santas bemditas. Elle encarou-a de esconso, e regougou:—Máo! ... máo!...
Carregou a clavina com a polvora de um cartucho; bateu com a cronha no sobrado, e deu algumas palmadas na recamara para fazer descer a polvora ao ouvido. Fez duas buxas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta ligeiramente, uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.
Depois, pegou da clavina pela guarda-matta, e poz-se a fazer pontarias vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao ponto.
A mulher fôra sentar-se no sobrado, á beira da enxerga de tres filhos a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procural-a. O Alma negra fôra dentro beber uns tragos de aguardente, voltou enroupado n'um capote de militar, despojo das batalhas da Maria da Fonte.—Ora agora—disse elle—ouvistes? porta da cozinha e a cancella da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.
—Vai com Nossa Senhora—disse a mulher—e poz-se de joelhos a uma estampa do Bom Jesus a rezar muitos Padre-nossos, a fio.
Era uma noite de fevereiro, de nevoa cerrada, um céo de carvão pulverisado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma estrella. Não se agitava um galho de arvore nua movido pelo ar nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e immota das catacumbas. Ás vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras a fuga rapida das hardas, dos toirões e das raposas que se avisinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio da coruja no campanario distante punham arrepios de medo na espinha d'aquelle homem que ia matar outro—chamal-o á janella e varal-o á traição com uma bala.—Era o traçado.
—Que raio de escuro!—dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.
Em noites assim, o universo seria o immenso vacuo precedente ao Fiat genesiaco, se os viandantes não esbarrassem com as arvores e não escorregassem nos silvêdos das ribanceiras. O noctivago sente na sua individualidade, nos seus callos e no seu nariz, a doce impressão pantheista das arvores e dos calháos. Que este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanço que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os scelerados das aldeias que larapeam o presunto do visinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas civicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das arvores que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mephisto a quem venderam a alma pelo preço da consciencia eleitoral, ou mais barata, chegam incolumes ao delicto, passando illesos como o lobo e o javali por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos n'uma agonia patibular.
O Melro, como o porco montez e o lobo cerval, embrenhára-se por pinhaes e carvalheiras; ás vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas, rugia o rio Pelle nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões. Lamellas era da parte d'além. Mas o rio, de monte a monte, rugia intransitavel nas pequenas pontes. Foi á de Landim, uma aldeia engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das familias distinctas que jogavam a bisca em ricos saráos do faubourg Saint-Honoré, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.
Havia também um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco. Tinha dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.
O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro. Era elle quem reclamava um quartinho que puzéra de porta, e o banqueiro recolhêra com as paradas que estavam dentro, quando tirou a contraria de cara.
—Que não admittia ladroeiras!
E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito de ladroeiras; que todos os que estavam d'aquella porta para dentro eram cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros; que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem queria roubar que fosse para a Terra Negra.
A allusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela forca. Travou-se a lucta a sôco e páo; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas mollas; o Tagarro de Monte Cordova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois galhos do baralho com um murro herculeo, phenomenal. O taberneiro abriu a porta para escoar o turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como n'um antro de caverna. Um, porém, dos que estavam, não sahiu; encostára-se ao mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e, vergando sobre os joelhos, n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços, quando o taberneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o Zeferino.
Quando, á meia noute, o Alma-negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado d'ella estavam duas filhas a rezar tambem, a tiritar, embrulhadas em uma manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.
O Melro mandou deitar as filhas, e foi á loja contar á mulher, livida e tremula, como o Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego nem estopa. Ella poz as mãos com transporte e disse que fôra milagre do Bom Jesus; que estivera tres horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido objectava contra o milagre—que o compadre não lhe dava a casa, visto que não fôra elle quem vindimára o Zeferino; e a mulher—que levasse o demo a casa; que elles tinham vivido até então na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.
Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:
—Emfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os outros não matam elle, hein?
Celebrou-se o casamento na capella da quinta da Retorta. Foi o vigario de Caldellas o ministro do sacramento, D. Thereza madrinha, e o padrinho veio do Porto, o barão do Rabaçal, um gordo, casado com as brancas carnes velludosas da filha do Eusebio Macario. O padrinho, muito faceiro, dizia ao Feliciano:—Mi pérdoe, amigo Prázins, você si casa com minina mágrita, muito sêcca di encontros. A mi mi dá na tineta para gostar das redondinhas, hein? É a minha philosophia. A mulher si quer roliça, de manêras que a gente ache nos braços ella.
O devasso fazia córar o casto noivo. A Martha, á sobremesa, não lhe percebia umas graçolas obrigatorias em bodas canalhas, que faziam nauseas á aristocratica D. Thereza, muito pontilhosa em não admittir equivocos. O vigario achava no barão a salôbra brutalidade que faz nos intelligentes a cocega do riso que o Cervantes, o Rabelais, o Swift e o portuguez snr. Luiz d'Araujo nem sempre conseguem quando querem.
A Martha, n'uma tristeza inalteravel, desde que sahiu da egreja. Ao fim da tarde, fechou-se com D. Thereza no seu quarto, abriu o bahu, e tirou do fundo o pacotinho das cartas do José Dias, e disse-lhe:—A senhora ha-de guardal-as; e, quando eu morrer, queime-as, sim?
—E se eu morrer adiante de ti?—perguntou D. Thereza risonha.
—Diga então ao snr. padre Osorio que as queime: porque olhe—e abraçou-se n'ella a chorar, a soluçar—eu ... eu morro, ou endoudeço. Cheguei a esta desgraça; estou casada para fazer a vontade a meu pai, cuidando que elle morria; não sei como hei-de sahir d'isto senão acabando de vez ou perdendo o juizo como a minha mãe ... bem sabe como ella acabou.
D. Thereza Osorio banalmente a consolava com o vulgarismo das coisas que se dizem ao commum das meninas casadas com maridos repugnantes e ricos.—Que se havia de affazer, que tudo esquecia com o tempo. Ella, um pouco aristocrata por bastardia, não acreditava em melindres de sentimentalidade na filha do lavrador parrana e da Genoveva da vida airada. O apaixonar-se pelo Dias, um bonito rapaz d'aldeia, parecia-lhe trivial; tentar suicidar-se quando elle morreu, para uma senhora lida em novellas romanticas, era um caso ordinario e pouco significativo; porém, condescender com a vontade do pai, casando com o tio, pareceu-lhe um acto de condição plebea, a natureza reles da filha do Simeão que afinal dominava estupidamente as indecisas manifestações de uma indole artificialmente delicada.
O padre comprehendia mais humanamente Martha, dizendo á irmã:—Ella quando consentiu em casar com o tio já estava doente da molestia nervosa que a ha-de levar ao suicidio. D. Thereza, com o seu criterio um pouco adulterado pelas excentricas heroinas de Sue e Dumas, não podia entroncar aquella rapariga d'uma aldeia minhota na genealogia d'essas parisienses naufragadas em romanescas tempestades. E de mais, se Martha, como o irmão dizia, estava sob a influencia da loucura, a sua desgraça parecia-lhe uma doença e não uma tragedia, segundo as exigencias de uma senhora que tinha lido o mais selecto da bibliotheca romantica franceza desde 1835 a 1845—tudo o que ha de mais falso e tolo na litteratura da Europa. D. Thereza queria mais drama na desgraça de Martha; porque, se alguma poesia elegiaca lhe concedêra pela tentativa de matar-se, toda se resolvia em chilra prosa pelo facto de a imaginar no thalamo conjugal com o arganaz do tio.
Eram horas de deitar. O padre tinha ido para Caldellas a fim de dizer a missa de madrugada, e deixára a irmã a pedido de Martha; o barão do Rabaçal escancarava a bocca n'uns bocejos ruidosos e levantava uma perna espreguiçando-se; o noivo olhava para o mostrador do relogio collado aos olhos; e Martha, muito aconchegada de D. Thereza. queixava-se de caimbras; que lhe zuniam coisas nos ouvidos, que via faiscas no ar, e tinha muito calor na cabeça. D. Thereza dizia-lhe que se fosse deitar, que precisava de recolher-se. Martha pedia-lhe que a deixasse ir dormir ao pé d'ella, pedia-lh'o pela alma de sua mãe, pela vida de seu irmão.
A hospeda comprehendia, compadecia-se, receava o ataque epileptico, precedido sempre das faiscas e caimbras de que se queixava a noiva; mas não sabia como dirigir-se ao marido de Martha a pedir-lhe que se fosse deitar sósinho. Nos seus numerosos romances não achára um episodio d'esta especie. Interveio na critica conjunctura o Simeão, dizendo á filha:
—São horas de ir á deita. O teu marido está a cahir com somno.
Martha fixou o pai com os seus olhos esmeraldinos rutilantes de colera, n'um arremesso de cabeça erguida, e com os labios a crisparem. Era a nevrose epileptica. Seguiram-se as convulsões, o espumar da bocca, um paroxismo longo de vinte minutos. D. Thereza pediu que a ajudassem a leval-a para a sua cama, e disse com fidalga impertinencia ao Simeão que a deixassem com ella, e não lhe fallassem no marido. Simeão coçava-se com grande desgosto. O brasileiro contava ao barão que a sua sobrinha era atreita áquelles ataques; mas que o cirurgião lhe dissera que lhe haviam de passar em casando. O do Rabaçal notou que o remedio então bom era, e seria bom começal-o quanto antes. Disse mais chalaças a proposito e foi-se deitar. Feliciano ainda foi saber como estava a esposa; mas já não havia luz no quarto de D. Thereza. Reoolheu-se á cama, e continuou mais uma noite no seu leito solitario, virginalmente.
D. Thereza sentia-se mal, n'um embaraço quasi ridiculo, n'aquelle meio. Martha não a largava, parecia uma creança espavorida, agarrada ao vestido da mãe, assim que ouvia os passos do tio. Elle, muito carinhoso, com o monoculo no olho direito, a offerecer-lhe castanhas d'ovos, toicinho do céo, a pegar-lhe da mão e a fazer-lhe festas no rosto muito córado de pudor. D. Thereza discretamente deixou-os sósinhos. A Martha ficou a olhar para a porta por onde a amiga se evadira, e fazia uns gestos de quem meditava raspar-se; mas o marido tinha-a segura pelas mãos mimosas, beijando-lh'as ambas com uma sensualidade delicada, um pouco babada, mas muito commedida, estendendo os beijos quentes e humidos até aos pulsos lacteos e redondinhos. Martha, n'uma impassibilidade, não se recusava ás caricias, e pareceu mesmo inclinar um pouco o rosto quando o esposo com um bom sorriso do amor dos quinze annos lhe pediu um beijinho, que foi mais demorado do que era de esperar da sua candura e da inexperiencia de taes delicias. Estavam ambos rosados; mas o rubor de Martha era carminado de mais e nos seus olhos havia uma rutilação vaga pela extensão da grande sala. Ella via a sombra de José Dias: era o José Dias em pessoa, dizia ella depois a D. Thereza, quando recuperou os sentidos, e não sabia como a transportaram para a cama da sua amiga. Apenas se lembrava de que o tio, depois que a beijára no rosto, a levára pelo braço e entrára com ella no seu quarto, apertando-a muito ao peito, levantando-a nos braços com muita força, não a deixando fugir e suffocando-lhe os suspiros com os beijos. Não se lembrava de mais nada. E D. Thereza, quanto cabia na sua alçada, contava-lhe o resto imperfeitamente; isto é que o marido a fôra chamar ao laranjal, um pouco afflicto, dizendo que a sua esposa estava na cama sem sentidos; e pedia vinagre para lhe chegar ao nariz.
Padre Osorio veio jantar e buscar a irmã. Observou no aspecto do brazileiro uma irradiação de felicidade, o jubilo de um homem que se sentia impavidadamente completo, na integridade da sua missão phyloginia. Foi então que o padre assentou as suas theorias um pouco fluctuantes ácerca das vantagens da castidade em beneficio das impurezas alheias.
O Feliciano, quando o cirurgião chegou á tarde, contou-lhe com pouco recato de pudicicia conjugal as circumstancias, particularidades occasionadas no «fanico da sua esposa», dizia elle. O facultativo, um velho patausco, disse que não se admirava, porque a snr.ª D. Martha era muito nervosa, imperfeita ainda na sua organisação, e que as impressões desconhecidas e um pouco violentas nas constituições fracas produziam extraordinarias perturbações; mas que não se assustasse, que não era nada; que as segundas naturezas se faziam com o habito.—Banhos de mar, aconselhava, bife na grelha e vinho do Porto, quanto mais chôco melhor. O que se quer cá fóra é um rapaz; não ha como um filho para fortalecer a compleição d'uma mulher debil; um filho, quando sae do ventre da mãe, traz comsigo para fóra os máos nervos, e acabam os cheliques. Ande-me com um rapagão p'rá frente!
Na ausencia de D. Thereza, a melancolia de Martha cerrava-se de dia para dia. O governo da casa era-lhe de todo indifferente, como se fosse hospeda. O marido não a compellia a interessar-se n'esses arranjos de que, dizia o Simeão, ella nunca quizera saber em Prazins. O barão do Rabaçal mandára-lhe do Porto cozinheira e governante. Martha sahia raras vezes de uma saleta onde tinha um oratorio que trouxera de casa. Confessava-se mensalmente a frei Roque, o irmão da sua mestra, e professor do de Villalva, e demorava-se no confissionario com perguntas desvairadas a respeito da alma de José Dias, por que dizia ella ao padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e alma, e até o ouvia fallar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O frade, sem revelar o sigilo da confissão, dizia á irmã que a Martha dava em douda como a mãe.
O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, n'um dos paroxismos epilepticos, se pôz a rir para elle com os olhos espasmodicos e a chamar-lhe José, seu Josésinho. Passada a nevrose, quando ela imergia num torpor physico e mental, o marido contou-lhe o caso de lhe chamar Josésinho. Ella parecia esforçar-se muito para recordar-se, e dizia que não se lembrava de nada. Vinha o cirurgião a miudo:—que era hysterismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão, esperanças bem fundadas, segundo as confidencias do pai; mas, consultado pelo padre Osorio, o Pedrosa, um grande clinico, dizia que a brazileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali epilepsia complicada com delirio, alienação mental intermittente, um estado de inconsciencia ou consciencia anormal, e que verdadeiramente se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez intercorrente.
—Ella está gravida—observou o vigario de Caldellas.—Parece que este facto denota uma tal ou qual normalidade de consciencia, uma concepção racional dos deveres de esposa...
—Não denota nada—refutou o medico.—Faça de conta que é uma somnambula. E, como a sua demencia é funccional e não organica, não ha desorganisações physicas que a estorvem de ser mãe. O meu collega que lhe assistiu á ultima vertigem disse-me que, alguns minutos antes do ataque, ella, n'uma grande irritabilidade, lhe dissera que fugia para Villalva, que queria vêr o José Dias... O marido felizmente fôra n'essa occasião prover-se de vinagre á dispensa. Eu considero-a perdida, a menos que se lhe não dê uma prompta e completa diversão ao espirito, e nem assim se consegue senão temporariamente desherdar os desgraçados que tiveram mãe e avó como esta Martha. Eu assisti ao primeiro e ao ultimo periodo da Genoveva. Repetiram-se as vertigens, veio a decadencia gradual da razão, delirios, idéas confusas, concepção difficil, nevroses vesanicas, e por fim, suicidou-se já n'um estado de demencia epileptica, que os especialistas consideram a mais incuravel. Este me parece o itinerario da Martha, e o casal-a com o tio deixou de ser um acto immoral para ser um estupido arranjo de fortuna por lado do pai e de luxuria por parte do marido. Esta pequena tinha de vir a isto, e ha-de ir á demencia, mesmo sem drama nem paixão. Tem o cerebro defeituoso assim como podia ter a espinha vertebral rachitica. Como se faz a perda da vista? Pela paralysia dos nervos opticos; pois a perda da vista normal da alma é tambem a paralysia d'uma porção de massa encephalica. Bem sei que isto embaraça um pouco os senhores theologos-methaphysicos, mas lá se avenham: a verdade é esta.
Chegaram por este tempo, vindos das terras de Basto a Requião, os tão almejados missionarios, interrompidos no seu esteril apostolado pela revolução da Maria da Fonte. Martha ouviu a noticia com alvoroço, e disse que queria seguir os sermões,—que precisava de salvar a sua alma. O Feliciano viera um pouco estragado de Pernambuco a respeito de religião; mas respeitava as crenças alheias, e não contrariava as devoções da sobrinha. O padre Roque era de parecer que se não deixasse Martha entrar muito pela mystica; aconselhava o marido que fosse viajar com a mulher, que a tirasse d'aquella terra, porque as suas enfermidades não podiam cural-as os sermões nem as hostias. O egresso conhecia a Pharmacia do varatojano de Borba da Montanha, e sabia que a primeira receita de frei João era exorcismal-a como demoniaca.
—Dão cabo d'ella, vocês verão, dão cabo d'ella—dizia o padre-mestre.
Eram quatro os missionarios que assentaram o vestibulo do paraizo em Requião.
O padre José da Fraga ainda novo, bem composto e limpo nas suas vestes sacerdotaes, grave e semblante intelligente. Tinha-se ordenado em Brancanes com o proposito de ir propagar o christianismo na China; depois, interesses e rogos de familia determinaram-o a ficar na patria, sem abrir mão da vocação apostolica. Lêra e percebêra Raulica, Lacordaire, e imitava o segundo com bastante engenho. O padre Osorio dizia-lhe que guardasse as suas perolas para outro auditorio menos suino. E, de feito, as mulheres, quando de madrugada o viam no pulpito, aconchegavam-se umas das outras para commodamente tosquenejarem o seu somno da manhã; e os homens diziam que não o chamava Deus por aquelle caminho—que não calhava p'r'á prédega.
O padre Cosme de Tagilde, robusto, de meia idade, auctor da Escada do céo pelas escarpas do Golgotha e da Via seraphica para o reino dos Cherubins, era pregador de sentimento. Tinha sido furriel no exercito realista, e ordenára-se para herdar uns bens de uma parenta beata que tinha horror á tropa. Lêra as novellas do Prévost e Madame de Genlis, quando era furriel. Ficou-lhe d'essas leituras uma linguagem amellaçada, com interjeições tragicas, e um geito especial de tocar as mães com imagens ternas tiradas das coisas infantis. Por exemplo: E o teu filhinho, mulher, o filhinho que Deus te levou para a companhia dos anjos, quando lá do céo te vê peccar, estende para ti os seus bracinhos, e diz: Mãe, ó mãe! não peques; mãe, não peques! pelas lagrimas que por mim choraste, não caias na tentação, porque, se te perdes, se te afundas no abysmo eterno não tornarás a vêr o teu filhinho que te chama do céo, mãe, ó mãe! E infantilisava o timbre da voz, inclinava a um lado a cabeça n'um langor menineiro, estendia os braços do pulpito abaixo com as mãos abertas, alongava os beiços no geito da boquinha de criança, e muito mavioso, n'um tremulo de voz e braços: Mãe, ó mãe! E todas as que tinham perdido filhinhos desatavam n'um berreiro.
O padre Silvestre da Azenha, homem antigo, d'uma porcaria de sotaina digna dos agiologios, boa pessoa, incapaz de mentir voluntariamente, era forte na topographia do inferno e nas genealogias, usos e costumes dos diversos diabos. Affirmava que a legião d'elles se dividia em esquadras, capitaneadas por Lucifer, principe da Luxuria, por Asmodeu, Satanaz, Belzebut e outros, cada um com a pasta ministerial dos seus competentes vicios. Dava noticia de um caudilho de esquadra, chamado Behemoth, cujo empenho era bestializar os fieis—verdadeira superfluidade.—Leviathan capitaneava o esquadrão da Soberba; e o ministro e secretario de estado encarregado da pasta da Avareza chamava-se Mamona. A sciencia moderna matou este diabo, extrahiu-lhe o oleo, e pôl-o ao serviço dos intestinos dos peccadores—oleo de Mamona. Explicava o padre ás mulheres o que era a corja dos demonios incubos. Contava casos de algumas que ficaram gravidas d'esses devassos, e dizia em latim que taes demonios fecundos podiam, mesmo contra a vontade da mulher, rem habere cum ilta. E as mulheres, sem pôr mais na carta, farejavam o latim e murmuravam indignadas:—Tarrenego! Catixa! cruzes, canhoto!—e benziam-se, cuspinhando nos calcanhares umas das outras.
Fr. João de Borba da Montanha, com quanto não frequentasse o pulpito, era o vulto mais proeminente da missão. Sahira já velho do Varatojo, peito fraco, um pigarro chronico de catarrho pituitoso, com poucos dentes, por onde as palavras lhe sahiam assobiadas que nem melro nos sinceiraes de julho. Por isso o confissionario era a sua faina de prosperrimas colheitas para o céo, e os exorcismos a sua famosa gloria cheia de triumphos sobre todas as esquadras dos demonios conhecidos do seu companheiro padre Azenha. Eram ambos, de mãos dadas, o terror do inferno; um a explorar diabos no planeta, o outro a enxotal-os. Á omnipotencia d'este varatojano é que o vigario de Caldellas confiara a reducção da mãe de José Dias.
Este egresso tinha feito á sua custa a terceira edição do Peccador convertido ao caminho da verdade, obra do seu conventual varatojano frei Manuel de Deus. Vendia o livro por 720, meia-encadernação. Chamava-lhe elle o seu balde de tirar almas do profundo poço do enxofre infernal Todas as beatas se consideravam mais ou menos empoçadas, e por 720 mettiam-se no balde de frei João. Barato.
Foi este o missionario escolhido por Simeão, de harmonia com o genro. Martha lembrava-se que o seu José Dias lhe fallára n'elle com muita esperança em que desfizesse os obstaculos do casamento. Quiz confessar-se ao varatojano, e revelou para esse acto uma espectativa seraphica, grande deliberação anciosa, um sobresalto jubiloso em que parecia influir a cooperação sobrenatural do querido morto. O padre Osorio entrevia preludios de loucura nas alegres disposições com que Martha, n'um recolhimento contemplativo, desde o apontar da aurora, esperava á porta da egreja que chegassem os missionarios com o cortejo das mulheres encapuchadas, muito ramellosas, estralejando os seus tamancos ferrados na grade do adro que vedava a passagem aos porcos.
Em quanto na egreja, depois da missão, se depunha a hostia nas linguas saburrentas e gretadas das beatas—que enguliam aquella farinha triga como quem devora sevamente um Deus—cá fóra armavam-se no adro dois taboleiros, assentes em tripêças de engonços, com seus pavilhões de guarda-soes de panninho azul. Algumas mulheres de aspectos repellentes, sujas da pójeira das jornadas, com os canêllos callosos e encodeados, expunham nos taboleiros as suas mercadorias, e ao mesmo tempo injuriavam-se reciprocamente por velhas rixas invejosas á conta de subornarem freguezas com caramunhas e palavreados. No silencio do templo, ouvia-se cá de fóra:—Arre, bebeda!—Cala-te ahi, calhamaço!
A exposição bibliographica, feita nos taboleiros, além das obras em brochura e encadernadas dos missionarios, constava da Regra de S. Bento, da Missão augmentada, da Missão abreviada, das Piedosas meditações, das Horas do christão, do Mez de Maria, do Mez de Jesus e do Livro de Santa Barbara. Havia tambem Novenas, Via-sacras com estampas d'um horror sacrilego, uns Christos que pareciam manipansos do Bihé. Seguia-se a camada dos Escapularios; uns eram de N. S. do Carmo, de N. S. das Dôres, da Conceição; outros do Preciosissimo sangue de Jesus, do Coração do mesmo, da Santissima Trindade e de S. Francisco. Tinham grande sahida os Cordões do mesmo santo, e as Correias de S. Agostinho, com um botão de ôsso, a apertar na cintura,—arnez impenetravel ao diabo, por causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para ôsso muito admiraveis, quasi como as da carne, mas no sentido inverso—ella attrahindo o cão tinhoso, e elle repulsando-o. De Santo Agostinho e do Anjo da Guarda também havia Rezas enfiadas em metal, ou em cordão, simplesmente, mais baratinhas. Na especie medalheiro, grande profusão: as medalhas mais procuradas eram as do Coração de Maria, do Coração de Jesus, do Anjo da Guarda e de Santa Thereza, a 10 réis.
As corôas, penduradas em barbantes ou estendidas em meadas, eram diversas no tamanho e na nomenclatura: as seraphicas com sete mysterios, e cada mysterio com dez Ave-Marias; as da S. da Conceição com doze Aves e tres mysterios:—uma certa conta que os missionarios lá graduavam com a gafaria espiritual das confessadas. Havia algumas que se aguentavam com os Rosarios de quinze mysterios, e a Corôa dos nove coros dos Anjos, e a do Preciosissimo sangue e coração de Jesus. Mas o grande consumo era de contas de azeviche, refractarias aos máos olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é legitimo, senhores, logo que um inimigo nos encara a conta racha de meio a meio.
Martha, a beata, a senhora brazileira de Prazins, como lhe chamavam as regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado; mas sobre todos os devocionarios o da sua leitura dilecta era o Peccador convertido ao caminho da verdade, edição do seu confessor varatojano, fr. João de Borba da Montanha.
São impenetraveis os segredos revelados no tribunal da penitencia por Martha ao seu director espiritual. O padre Osorio, não obstante, suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciencia, solicitada por miudas averiguações do missionario, saudades, reminiscencias sensualistas, carnalidades que se lhe formalisavam no espirito dementado, emfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o padre a sua conjectura, sabendo que frei João lhe mandára lêr no Peccador convertido, tres vezes por dia, o capitulo 33, intitulado Resistencia ás tentações contra a castidade. Fortalecia esta hypothese ter dito Martha a D. Thereza que a alma de José Dias lhe apparecia em sonhos; e ás vezes, mesmo acordada, lhe parecia sentil-o na cama á sua beira; e então mordia o travesseiro para que o tio a não ouvisse chorar. Póde ser que estas revelações, communicadas ao confessor, um simplorio incapaz de destrinçar entre doença e peccado, fossem acompanhadas de particularidades sensitivas que Martha por vergonha não contava á sua amiga. É certo que a confessada do varatojano lia, declamando, deante do seu oratorio, tres vezes por dia, a Resistencia ás tentações contra a castidade.
A oração dizia assim:
Senhor amorosissimo, não vos escondais, não me deixeis sósinha, que me cerca o leão para me devorar; os seus rugidos me atormentam para que não goste as suavidades do vosso amor. Cercarei todo o mundo, subirei aos ceos, não descançarei emquanto não achar o meu amor. Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, creaturas da terra que, se encontrares o meu amado, lhe digaes que morro d'amor. E, se quereis os signaes para conhecêl-o, ouvi. O meu amado é candido e rubicundo, escolhido entre milhares; candido por divino, e rubicundo por humano, candido porque innocente, e rubicundo por chagado. Ai! doce amor, onde vos escondestes? Tende compaixão de quem vos busca. Estes signaes que de vós tenho só servem de avivar-me a saudade, são settas que me ferem; morro, desfalleço, se vos não acho.
Os cabellos da sua cabeça são como o ouro mais puro e mais precioso, são como palmitos e pretos como o corvo. Se não entendeis, filhas de Jerusalém, nem eu vo'l'o saberei explicar; o que vos digo e que os seus cabellos são fortes laços que bastam para prender a todo o mundo, bastam para abrazar tudo de amor. Ai! amado do meu coração, se as admirações do que sois abrazam a alma, que vos vê por enigmas, que será quando vos vir claramente! Os seus olhos são como pombas sobre correntes de aguas, mansos, puros, suaves, benignos, amorosos. Que magestosos, que humildes, que graves, que serenos, que doces, que suaves! Oh dulcissimo amor, já que tanto fechais os olhos para não serem vistos, ao menos não os fecheis para me não verem! As suas faces são como canteiros de flores aromaticas, sempre bellas, sempre cheirosas; passam os dias, os mezes e os annos, e os seculos, e as faces do meu amor sempre são flores, nem o sol as murcha nem o frio as corta, nem a agua as corrompe, nem o vento as desfolha; são rosas, são assucenas, são brancas e encarnadas. Oh! quem me dera uma gota da agua que as rega, um grão do calor que as vivifica; quem me dera que o jardineiro que as compõe me quizera semear umas flores no meu jardim e tomar á sua conta compôl-as e regal-as, que o meu amado gosta muito de flores. Dizei-me, aves do ar, flores do campo, peixes do mar, viventes da terra, dizei-me se sabeis onde assiste este jardineiro. Mas que digo, se este mesmo é o amado a quem busco e não mereço achar! Ó saudade ardente, ó sede matadora, ó setta penetrante, ó amor escondido! Que fareis, Senhor, que fareis, se o vosso empenho é ser amado, por que a minha ventura está em vos ter amor, como escondeis o mesmo que me havia de enamorar? Os seus labios são lirios, que distillam myrra excellente, lirios de pureza d'onde sahem palavras que inflammam no amor da mortificação. Oh! se fôra tão ditosa minha alma que recebêra alguma parte da myrra que distillam teus lirios! Oh! se foram tão felizes meus olhos que viram a engraçada côr de taes labios! Aonde estaes escondido, amado do meu coração? Não sahem por esses labios as palavras com que andais chamando pelas ruas, fortalezas e muros da cidade: «Se algum é pequenino venha para mim?» Logo, como vos escondeis d'esta pequenina pobre e necessitada que com tanto empenho vos busca? Suas mãos são como de ouro feitas ao torno e cheias de jacintos, todas perfeitas, todas preciosas; mas reparai, filhas de Jerusalém, e por aqui vos será mais facil conhecêl-o, que, no meio do ouro e jacintos, tem em cada mão um precioso rubi que a passa de uma para a outra. O seu peito e entranhas são de marfim ornadas de safiras, dando a conhecer a côr celeste da safira, a branca do marfim e sua dureza, que os seus affectos são puros, candidos, castos, virginaes, fortes, celestiaes e divinos, sinceros, compostos, solidos e constantes. Ó peito de amor, entranhas de piedade, como assim vos fechaes para quem vos ama? Aqui deve de haver mysterio! Gostaes talvez de me vêr afflicta para provar se sou amante! Quereis que me custe muito o que muito vale, porque, se o lograr a pouco custo, farei talvez pouco caso do que não tem preço. Mas aí, amado meu, que, se me não dizeis aonde passaes a sesta ao meio dia, temo que, andando vagabunda, venha a cahir nas mãos dos vossos contrarios! A sua apparencia é como a do Libano, a sua composição como a do cedro; em Judéa o monte mais formoso é o Libano, no Libano a arvore mais excellente é o cedro: assim é o meu amado entre os filhos dos homens. A sua garganta é suavissima, porque sahem por ella as vozes, as respirações do peito, que é archivo de amores e suavidades; em fim todo é formoso, todo perfeito, todo amavel. Tal é o meu amado, este é o meu amigo, filhas de Jerusalém, creaturas da terra; se o achardes, dizei-lhe que morro d'amor...
Martha dizia a oração em voz alta, em modulações cantadas, n'um arrobamento de preghiera. Aquelles dizeres, alinhavados pelo varatojano, são extractos e imitações das escandecencias erothicas do poema dramatico da Sulamita no «Cantico dos Canticos»—os trêchos mais lyricamente sensuaes da antiguidade hebraica. Elles deram o tom de todas as exaltações nevroticas, desde os extasis hystericos de Thereza de Jesus até ás allucinações da beata Maria Alacoque e da portugueza madre Maria do Céo, a cantora dos passarinhos de Villar de Frades. D'esta peçonha doce, elanguecente, vibratil e enervante, cheia de meiguices epidermicas de um corpo nú em frouxeis de arminhos, é que se fizeram uns Manuaes modernos em França por onde as adolescentes principiam a conversar com Jesus e a comprehendêl-o em linhas correctas, sob plasticas macias, a esperal-o, a desejal-o, como lh'o figuram com todas as pulsações, redondezas e flexibilidades da carne.
Martha, entre o Deus incomprehensivel e o Christo-homem, via um ser tangivel, o seu unico termo de comparação—o José Dias, esposo da sua alma e dominador dos seus nervos reaccendidos e abraseados pela saudade. Nas apostrophes a Jesus, palpitavam-lhe nitidas as curvas do amante que a ouvia de entre as nuvens, n'uma clareira azul, com a sua lividez marmorea e os anneis dos cabellos louros esparsos como nas cabeças dos cherubins. Tinha aquelle namoro no céo quando abria a pagina do livro com que o confessor lhe dissera que havia de exorcisar as tentações voluptuosas da sua alma e do seu corpo.
Frei João não se entendia já com a sua confessada. Deviam ser grandemente disparatadas as revelações de Martha para que o varatojano desconfiasse que ella estava obsessa e que as suas visões deviam ser malfeitorias de demonio incubo. Feliciano discordava da opinião do inexoravel exorcista, quando elle o interrogava sobre miudezas de alcôva. O marido contava singelamente que sua mulher passava a maior parte do dia a rezar pelo livro no oratorio; que tinha dias de comer bem e outros dias de não comer nada; que não dava palavra ás creadas, nem se mettia no governo da casa; que com elle tambem fallava pouco, e não desatremava. Que dormia bem e sempre na mesma cama com elle. Verdade era que ás vezes elle acordava e a via sentada com os olhos postos no tecto.
—Pois é isso...—atalhava o varatojano.
—É isso quê, snr. frei João?—perguntava o marido.
O confessor não podia explicar-se. O seu praxiste Brognolio, ampliado pelo padre-mestre arrabido frei José de Jesus Maria, admoestava-o a occultar de terceiras pessoas os signaes evidentes da obsessão de uma alma, sem estar devidamente apparelhado para o combate e na presença do inimigo. O apparelho, n'este caso, era a estola, a agua-benta, o latim—uma lingua familiar ao diabo. Além dos preceitos da arte, havia a inviolabilidade do segredo da confissão; e uma caridade decente aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adulteras do demonio incubo, figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigario de Caldellas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a brazileira de Prazins estava possessa, muito gravemente energumena. O padre Osorio abriu um sorriso importuno, d'estes que vem de dentro em golfos involuntarios como a nausea d'um embarcadiço enjoado. O egresso reparou no tregeito heretico da bocca do padre, e perguntou-lhe se tinha alguma duvida a pôr.
—Uma pequena duvida, snr. frei João, respondeu intemeratamente o vigario.—Não posso acceitar que o diabo, sendo filho de Deus, seja o ente perverso que faz soffrer a pobre Martha...
—O diabo, filho de Deus!—interrompeu o varatojano, levando as mãos inclavinhadas á testa. Padre Osorio, o snr. disse uma blasfemia enorme... Santo nome de Jesus! O diabo filho de Deus! Anathema!
—Anathema á logica, ao raciocinio, por tanto!—contraveio sereno e risonho o outro.
—A logica? a logica de Calvino, de Voltaire.
—Não, senhor, a logica do professor que m'a ensinou no seminario bracharense. Creador não é pai?
—É sim, e d'ahi?
—Deus é pai de todas as suas creaturas; ora o diabo é creatura de Deus; logo: Deus é pai do diabo.
—Distinguo!—contrariou o varatojano.
E o vigario, sem attender á interrupção escolastica:
—Se Deus é bom, as suas creaturas não podem ser más; ora, o demonio é máo: logo, o demonio não póde ser creatura de Deus; mas, se o diabo não é creatura de Deus, pergunto eu o mesmo que um negro da Africa perguntava ao missionario: Quem é o pai do diabo?
—Distinguo!—insistiu o varatojano apoiado nas velhas formulas da dialectica esmagadora—Deus creou os anjos; d'estes houve alguns que se rebellaram contra o seu creador, e foram precipitados do céo: são os espiritos infernaes. Alguns d'esses anjos não desceram ás trevas inferiores, e permanecem para flagello do genero humano no ar caliginoso. Aer caliginosus est quasi carcer dœmonibus usque in diem judicii, diz S. Agostinho. Deus permitte que os demonios vexem as creaturas, pelo bem que póde resultar ás creaturas d'esse vexame. É o que se colhe do Evangelho de S. João: Omnia per ipsum facta sunt. Por tanto, Deus permitte o mal? logo: este mal é bom, por que Deus é o Summo Bem. Verdade é que os males não são bens...
—Ia eu dizer...—atalhou o padre Osorio; ao que o missionario acudiu prestes e victoriosamente:
—Mas Deus tira os bens d'esses mesmos males, como diz S. Thomaz: Bonum invenire potest sine malo, sed malum non potest invenire sine bono. Logo: Deus permitte o mal como causa do bem; id est, permitte o demonio como exercitação saudavel do genero humano. Melius judicavit Deus de malis bona facere, quam mala nulla esse permittere, diz D. Agostinho: e S. Thomaz ainda é mais claro e persuasivo: «A divina sabedoria permitte que os demonios façam mal pelo bem que d'ahi resulta.» Divina sapientia pennittit aliqua mala tieri per malos Angelos propler bona quæ ex eis elicit. São doze as causas por que Deus permitte que os demonios atormentem as creaturas humanas. Primeira: para que o homem obstinado na culpa seja n'este mundo e no outro atormentado; segunda...
—Estou convencido, snr. frei João—atalhou o vigario,—vossa reverencia já esclareceu a minha duvida. É o caso que Deus permitte demonios flagellantes para depurar com elles os peccadores,—uns e outros creaturas da sua divina justiça.
—É isso mesmo.
—O espirito do máo homem—do peccador que é em si um demonio interno, depura-se pela acção de outro demonio externo, ambos creaturas do seu divino amor... Percebi. Estou convencido... Deus é como um pai que azorraga o seu filho querido a vêr se elle recebe as mortificações como caricias. Rico pai!—E accrescentou com amargura:—Ah! meu frei João, receio muito que as superstições venham a desabar o catholicismo que deve a sua existencia á victoria que alcançou sobre as mentiras da idolatria com as armas da verdade. Ego sum veritas.
Frei João ia fulminar segunda vez a argumentação do padre Osorio, quando os outros missionarios chegavam, para assistirem ao jantar de despedida em casa da brazileira.
Fechára-se a missão; os padres iam d'ali para Barcellos; mas frei João, empenhado em desendemoninhar a pobre Martha, hospedou-se na quinta da Revolta, em cuja capella celebrava missa e confessava as suas filhas espirituaes insaciaveis do pão dos anjos, que digeriam n'uma vadiagem dorminhoca, amesendadas nos adros das egrejas e nos soalheiros, catando as proprias pulgas e as vidas alheias.
Frei João andava apercebido com todos os utensilios infestos ao diabo. Resolvido a dar-lhe batalha, armou a energumena das mais provadas armas nos seus triumphos sobre o inferno. Lançou-lhe ao pescoço um santo lenho, um breve da Marca, a veronica do S. Bento, o Symbolo de Santo Athanasio, cruzinhas de Jerusalém, veronica com a cabeça de Santo Anastacio, reliquias de varios santos, umas esquirolas de ossos grudadas em farrapinhos, orações manuscriptas da lavra do varatojano, mettidas em saquinhos surrados da transpiração d'outras obsessas.
Martha devia jejuar, como preparatorio. Parece que o demonio se compraz de habitar estomagos confortados na quentura do bôlo alimenticio. O exorcista jejuava tambem conforme o preceito dos praxistas, e aconselhava ao Feliciano que jejuasse, em harmonia com o texto de Jesus que dissera pela bocca de S. Matheus que «taes diabos, sem jejum nem oração, não sahiam do corpo:» Hoc genus demoniorum in nullo potest exire nisi oratione et jejuino. O Feliciano dizia que sim, que jejuava; mas, ás escondidas do frade, comia bifes de presunto com ovos; começava a revelar idéas egoistas, um cuidado da sua alimentação e do seu repouso, certo desprezo cynico pela parte que o diabo tomára na sua familia.
Frei João de Borba da Montanha expendeu ao vigario de Caldellas os fortes symptomas que Martha apresentava de estar possessa. Eram muitos, e bastava-lhe citar os seguintes:
Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no sonho e na vigilia. E mostrava o texto: quando patiens audit quasdam voces se vocantes. Por que aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fastio. O Osorio lembrava-lhe que seriam enôjos peculiares da gravidez; mas o varatojano confundia-o com o latim. Quando quis non potuit gustare panem aut carnem. Ella digeria com muita difficuldade os alimentos. Era obra do diabo, por que o livro dizia,—bem vê—mostrava frei João ao padre Osorio: Quando quis sanus cibum digerere non potest in stomacho. Chorava e não dizia por que chorava. Diabrura com toda a certeza:—Quando lacrymas plorat et nescit quid ploret. Havia um artigo que accentuava as mais fortes presumpções da obsessão incuba de Martha. Parece que ella no confissionario se accusava de repugnancias, de concessões violentadas, de resistencias ás caricias do esposo: e talvez revelasse que a imagem de José Dias intervinha n'essas luctas da alcova. É o que se deprehende do Signal decimo terceiro que frei João mostrava com o dêdo no seu Brognolo, e vai em latim, como lá está, para que poucas pessoas possam alegar intelligencia:—Quando vir uxori et uxor viro apropinquare non potest, quia videt aliud corpus intermedium, aut sibi videtur esse.—Aqui é onde bate o ponto!—dizia frei João martellando com o dedo indicador na pagina indecente.
—Mas não será essa visão o introito de uma alienação mental?—perguntava o de Caldellas.—Não vê, padre João, que esta rapariga está abatida por uma grande amargura que prende com actos da sua vida passada? Não a vê tão cahida, tão melancolica...
—Os melancolicos são os mais vexados pelo demonio—replicou o egresso. Veja Galeno e Avicena, que aqui vem citados.—E folheou o Brognolo, até encontrar o texto triumphal.
—Aqui tem; leia, verá que a demencia póde ser obra do demonio.
O padre Osorio leu com uma grande ignorancia curiosa: Os demonios acommettem mais os melancolicos. Primeiro, porque o humor melancolico com difficuldade se tira e é de sua natureza inobediente e rebelde. Segundo, porque o humor melancolico é mais apto para gerar diversas enfermidades incuraveis, porque, se é muito enxuto, offende as membranas do cerebro e faz ao homem doudo; se offende os ventriculos causa apoplexia, e gera raivas, frenesis e odios; e estes effeitos de melancolia muitas vezes os costuma causar o demonio, etc.
—O padre Osorio está-se a rir?!—invectivou fr. João abespinhado. Sabe o snr. que mais? Eu já tinha ouvido dizer ao abbade de S. Thiago d'Antas que o snr. padre vigario de Caldellas não era muito seguro em materia de fé; que tinha um bocado de fedor heretico nas suas predicas, e que dava mais importancia á quina do que aos santos milagrosos na cura das maleitas.
—Se isso fede a heresia, então, snr. frei João, estou de todo pôdre—obtemperou Osorio, e continuou deixando impar de espantada indignação o missionario.—A respeito da enfermidade de Martha, sou a dizer-lhe que em vez de exorcismos quereria eu que lhe ministrassem banhos de chuva, calmantes, distracções; e, baldados estes recursos, que a internassem n'um hospital de alienadas, porque esta mulher é filha de uma douda, é neta de outros doudos, e pouco ha-de viver quem a não vir de todo mentecapta. Além de herege sou propheta, meu caro senhor frei João. A sua energumena tem infelizmente o demonio que raras vezes a sciencia vence—o demonio da demencia hereditaria que a não se curar com a agua em chuveiro, também se não cura com a agua benta. Seria bom que vossa reverencia, antes de pôr á prova os exorcismos, ouvisse a opinião dos medicos.
—Eu sei o que dizem os medicos—e sorria com menospreço da pobre medicina. Eu, aqui onde me vê, com os exorcismos, com este remedio que não inventei, mas que a egreja de nosso Senhor Jesus Christo me deixou, e que elle mesmo, o divino Mestre usou, como o senhor padre Osorio deve ter lido nos seus Evangelhos ... ou nega a auctoridade dos Evangelhos? Nega que Jesus Christo expulsava demonios?
—Não senhor, eu sei a historia da legião que se metteu nos porcos...
—E outras; os livros sagrados estão cheios d'esses factos a que o padre Osorio chama historias; não são historias, são factos.
—Ah! snr. frei João! Jesus Christo, a sua vida e os seus milagres não são historia? não pertencem á historia? Máo é isso então!
A polemica prolongou-se um tanto azeda; Osorio escandalisava os pios ouvidos do egresso que, pondo as mãos no peito e os olhos no céo, exclamava com S. Paulo que era necessario que houvesse escandalos. Interrompera-os o brazileiro dizendo que a sua sobrinha estava com um ataque e que lhe dera no jardim. Frei João entrou na alcôva para onde a tinham levado em braços, e o padre Osorio ficou ouvindo a revelação da governanta, que lhe dizia:
—A desgraçadinha está de todo varrida! Eu estava no tanque a passar uns lenços por agua quando ella entrou no pomar sem fazer caso de mim, como se ali não estivesse viva alma. E vae depois poz-se a cortar rosas e a dizer que eram para o seu amado José Alves, para o seu esposo José Alves. V. S.ª não me dirá quem diacho, Deus me perdôe, é este José Alves?
—E depois?
—Depois, sentou-se debaixo da ramada, esteve a chorar com o ramo das rosas muito chegado á cara e d'ahi a pouco cahiu para o lado a dar aos braços e a espernear. Eu então chamei a cozinheira e levamol-a para o quarto com os sentidos perdidos! O José Alves, quanto a mim, acho que foi derriço que ella teve em solteira. Já ouvi dizer que a casaram com o arenque do tio contra vontade... É o que tem estes casamentos...
O padre Osorio não illucidou a governante. Assim que o Feliciano lhe disse que se iam lêr os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres parochiaes, e observou-lhe:
—Não deixe mortificar muito sua sobrinha com os exorcismos, snr. Prazins. O demonio que ella tem é a doença. Faça o que lhe disse o padre mestre Roque que é um velho illustrado e virtuoso. Vá dar um giro com ella. Leve-a á capital; demore-se por lá; e, quando a vir distrahida, contente e com bom appetite, volte para sua casa.
O brazileiro disse que bem sabia que os exorcismos eram chérinolas; mas que o frade se lhe mettera em casa, e dizia que não se ia embora sem curar ella. Accrescentou que não podia agora sahir do Minho porque estava á espera que os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na batota do Porto a sua parte de alguns contos de réis, que acharam por morte do pai;—que lhe convinha muito comprar a quinta da Ermida que partia com a d'elle, e havia outro brazileiro que a trazia d'olho. Que a respeito da sobrinha tencionava leval-a a banhos do mar, e havia de comprar o Manual do Raspail, a vêr o que elle dizia da molestia, porque em Pernambuco toda a casta de doença se curava pelo Raspail, e que levasse o diabo o frade e mais a caiporice dos exorcismos.
—Que sim, que comprasse o Manual do Raspail—concordou o padre Osorio, e sahiu muito cançado—dizia elle á irmã—de lidar com as duas cavalgaduras.
Martha estava no quarto, onde tinha o seu oratorio de pau preto com frizos dourados, e dentro uma antiga esculptura em marfim d'um Christo dignamente representado na sua agonia humana. De cada lado da cruz ardia uma vela de cêra benzida. Frei João entrára de sobrepeliz e estola: seguiam-no o Feliciano com uma vela de arratel acceza, e o Simeão com a caldeirinha da agua-benta. Martha, com um pavor na vista, tremia, de pé, encostada á commoda. O exorcista sentou-se, e chamou a energumena com um gesto imperativo de cabeça. Ella aproximou-se hesitante e ajoelhou. Fr. João compoz o semblante e deu á voz uma toada lugubre em conformidade com a rubrica de Brognolo—com grave aspecto e voz horrivel, diz o demonómano. Começou por exercitar o Preceito provativo, a vêr se havia effectivamente demonio. E então bradou, fazendo estremecer Martha: In nomine Jesu Christi. Ego Joannes est minister Christi... Vinha a dizer, em vulgar, ao demonio ou aos espiritos immundos, vet vobis spiritis immundis, que, se estavam no corpo d'aquella creatura, dessem logo um signal evidente, ou vexando-a, ou movendo-lhe os humores, segundo o seu costume, pelo modo que por Deus lhe fosse permittido eo modo quod a Deo juerit permissum. Martha estava retranzida d'um sagrado horror, posto que não percebesse do latim do padre senão demonio e espiritos immundos. Nunca lhe tinham dito que ella estava endemoninhada, e á sua mentalidade faltava-lhe n'este alance a força convincente e a energia da palavra para combater o engano do seu confessor. Não tinha vigor de caracter nem rudimentos de intelligencia para reagir. Educada em melhores condições, succumbiria com a mesma vontade inerte sob a violencia do confessor. Ha condescendentes humildades mais vergonhosas sem o diagnostico da demencia que as desculpe. Ella estava de joelhos; mas, não podendo suster-se, sentou-se n'um arfar de suspiros, anciada, até que as lagrimas lhe explodiram n'uma torrente.
Frei João fez um tregeito de satisfação, um agouro de victoria, e poz-lhe o Preceito lenitivo: «Que a vexação cessasse immediatamente—impunha elle aos demonios malditos—e toda a afflicção causada por elles» et omnia afflictio a vobis causata. E atacou logo os demonios com o Preceito instructivo «que immediatamente a prostrassem na presença d'elle, se ella estava possessa» et statim coram me illam prosternatis. Martha, com effeito, estava prostrada, com a face no pavimento, estirando os braços no paroxismo epileptico, e o collo e o tronco hirtos n'uma inflexibilidade tetanica.
—Não ha que duvidar—disse o exorcista ao marido e ao pai da possessa.—Levem-na d'aqui e depois continuaremos.
Martha, passado o lethargo, disse ao tio que mal se lembrava do que passára no oratorio com o snr. frei João; mas que lhe tinha mêdo, que não queria mais confessar-se com elle.
—Cada vez mais provado que está obsessa. Já não é ella quem falla; é o demonio que me teme!—exclamou o exorcista com uma santa basofia, refutando as vacillações um pouco scepticas do brazileiro; ao passo que o Simeão asseverava que a filha tinha o demonio; porque a sua defunta mulher tambem o tinha, e se deitára ao rio porque nunca quizera que lhe fizessem as rezas.
Ao outro dia, vencidas as repugnancias de Martha, continuou o exorcista, carranqueando cada vez mais e pondo vibrações horrorosas na larynge. Deu-lhe a ella o seu Brognolo para que lêsse em voz alta os Preceitos que a creatura vexada pôde pôr ao demonio. Martha, de joelhos, diante do oratorio, leu: Demonio maldito, eu como racional creatura de Deus, redimida com o seu precioso sangue, depois que para me salvar se humanou, cheia de fé, te mando em virtude do santissimo nome de Jesus, que logo me obedeças e me atormentes levemente, ou fazendo tremer o meu corpo ou lançando-o em terra, deixando me em meu juizo.
O corpo de Martha visivelmente tremia; ella deu o livro ao exorcista com um arremesso impaciente, e murmurou soluçante:
—Deixem-me, deixem-me pelas chagas de Christo!
Frei João sorriu-se, e resmuneou á orelha do Feliciano—o maldito serve-se do nome de Christo para me afastar! Eu vou escangalhar-te, Satanaz!
E lançou mão do gladio das Objurgações. As objurgações são perguntas feitas ao diabo, á má cara, e latinamente. Dize, maldito demonio, serpente insidiosa, conheces que existe Deus? Conheces que foste creado anjo allumiado de muitas prendas, e que pela tua soberba te perdestes? Sabes que, repulso do paraiso, perdeste para sempre a graça de Deus? Pergunta-lha a final, depois de muitas injurias, se reconhece n'elle um ministro de Deus, e como ousará a não manifestar-se? Quomodo igitur poteris contra estimulum calcitrare?
O demonio não respondeu ainda; mas o frade ia apertal-o, mandando que se ajoelhassem todos. Elle então, n'uma postura seraphica, braços cruzados no peito e olhos no Christo, declamou:
Veni, sancte spiritus: reple tuorum corda fidelium, et tui amores in eis ignem accende. Pedia ao Espirito Santo que descesse a encher os corações dos seus fieis, e abrazal-os no fogo do seu amor. Depois: Dominus vobiscum.
—É de co espirituó—respondeu o Simeão, que sabia ajudar á missa.
Seguiram-se varios Oremos e deprecações, e a Ladainha de Nossa Senhora; mais outros Oremus, e a detestação da energumena, uma estirada que principiava: E tu, demonio maldito, com que auctoridade intentas possuir jamais meu corpo ou molestar-me por modo algum? Martha rejeitou o livro, e disse que não podia lêr nem estar de joelhos; que tinha vágados e que se queria ir deitar. Mas o exorcista, severo e formidavel no seu ministerio—que não, que não se ia deitar, que não lhe fugia, que se puzesse de joelhos a seus pés! Elle então, segundo a rubrica do livro director, sentou-se, cobriu-se, voz grave e horrivel, virado contra o demonio, como juiz para tal réo já convencido, aspergiu a possessa de agua-benta, ululando: Asperge me, Domine ... e recommendou aos circumstantes que apagassem duas velas, e não dessem palavra. Profundo silencio. Ouvia-se apenas o zumbido das moscas que se esvoaçavam do tecto attrahidas pelo calor da luz unica e pousavam na fronte chagada do Christo. O recinto era espaçoso e quasi em trevas. A vela, encoberta pelas curvas lateraes do oratorio, não alumiava senão o curto espaço da projecção em que Martha, retrahida n'um terror, tinha os dedos das mãos postas, chegadas aos labios, como se quizesse abafar os suspiros.
Passados minutos, o exorcista começou a conjurar e ligar o demonio em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo, tratando-o de immundo, affrontando-o bravamente com epithetos que deviam offender o mais desbragado patife. Martha fez um movimento de afflictivo desabrimento; parecia querer fugir; mas o padre prendeu-a com a estola, em harmonia com o Brognolo: Se não estiver quieta, póde-a prender com uma estola. Feitas novas e mais terriveis conjurações, o exorcista levantou-se com pavorosa solemnidade, e exclamou: Exurge, Christe! adjuva nos! Levanta-te, Christo, e auxilia-nos!
O egresso continuava as evocações ao Christo, quando Martha cahiu sem acôrdo.
—Victoria!—exclamou o exorcista—victoria!
E, mostrando ao brazileiro uma pagina do livro: ouça lá, snr. Feliciano: O signal mais certo de que o demonio obedeceu e se retirou de todo é o que a sagrada Escriptura nos expõe no capitulo IX de S. Marcos:—Deixar a creatura por terra algum tempo como morta. Isto se viu no endemoninhado surdo e mudo que Christo nosso bem curou, e do qual diz o texto: Et factus est sicut mortuus. Depois, com jubilo, limpando o suor:
—Podem leval-a, deitem-na, ponham-lhe as reliquias todas debaixo do travesseiro.
Os dois não podiam facilmente levantal-a; na rigidez, como empedernida do corpo, parecia collada ao pavimento. O brazileiro pedia ao exorcista que a amparasse por um dos braços; mas o frade, artista austero, respondeu que lhe era defêso pôr mãos nas possessas. E, de feito, Carlos Baucio, na Arte do exorcista, legisla: «que os exorcistas não ponham as mãos physicamente sobre a creatura, principalmente sendo mulher (propter periculum), pois que as mulheres nem com o signal da cruz se devem tocar—Mulieres nec signo crucis sunt tangendæ.
Martha passára a noite muito agitada, febril, com delirio; dava risadinhas muito argentinas, fallava no José Alves; sacudia a roupa com frenesi, e, quando emergia do torpôr, sentava-se no leito a olhar para o tio, com uma fixidez repellente. Feliciano não se deitára, e de madrugada disse ao irmão que fosse chamar o medico, que a Martha estava com um febrão; e que levasse o diabo o frade para as profundas do inferno e mais os exorcismos.
Já quando era dia, o brazileiro foi descançar um pouco na cama de D. Thereza, porque receava que se lhe pegasse a febre da mulher. Ás nove horas, a governante foi acordal-o, muito alvoroçada, para lhe dizer que a snr.ª D. Martha tinha sahido sósinha ao nascer do sol e que uma mulher a encontrára já perto da casa do vigario de Caldellas, a correr, que parecia uma doudinha. Fr. João recebeu tambem a nova da fuga, quando acabava de dizer missa em acção de graças pelo triumpho obtido sobre o demonio. O medico chegava ao mesmo tempo, e informado das scenas dos exorcismos, disse ao varatojano injurias que o frade não tinha dito ao diabo; chamou ao brazileiro e ao irmão corja de estupidos, e partiu para Caldellas com o Feliciano. O frade, insultado pelo medico, e pelos modos bruscos e desabridos do brazileiro, citou umas palavras de Jesus que manda sacudir o pó das sandalia no limiar da casa dos impios, e foi-se embora. Seguiram-o algumas beatas n'um alto chôro por longo espaço: e, quando elle desappareceu no cotovello da estrada, houve d'ellas que arrancavam cabellos, cheios de lendias; outras davam-se bofetadas, e as mais hystericas guinchavam uivos estridentes.
O Melro, o taverneiro, o compadre do Feliciano, quando ellas lhe passaram á porta a chorar, atraz do missionario, sahiu fóra, e disse-lhes com um racionalismo brutal:
—Ah grandes coiras!
Martha regressou com D. Thereza, alguns dias depois. O brazileiro conveio no tratamento hydropathico da esposa; e a compadecida irmã do vigario offereceu-se como enfermeira da pobre senhora que se abraçava n'ella com medo imbecil, a pedir-lhe que a não deixasse, que a defendesse do missionario.
D. Thereza assistiu ao nascimento da primeira filha de Martha. Imaginava a irmã do vigario que no espirito da mãe se havia de operar uma benigna mudança; que o amor á filha seria diversão á saudade de José Alves; mas a medicina não esperava alteração sensivel, porque era materia corrente nos tratados alienistas que um cerebro lesado não se restaura sob a impressão do amor maternal que só actua nas organisações normaes. Porém, D. Thereza não podia crer que Martha estivesse confirmadamente louca, posto que nas suas conversações em que, raras vezes, se interessava, disparatasse, affirmando que via a alma de José Alves, como quem conta um caso trivial.
Quando lhe mostraram a filha recem-nascida, contemplou-a alguns segundos; mas nem balbuciou uma palavra carinhosa, nem fez gesto algum de contentamento. A amiga dizia-lhe coisas muito meigas da filhinha, a vêr se lhe espertava o coração. Punha-lh'a nos braços, dava-lh'a a beijar. Martha cedia com tristeza e constrangimento, beijando a filha como se fôra uma creança alheia. A ama ia dizer ás creadas que a brazileira era uma cafra, que não podia vêr o anginho do céo.
Os paroxismos eram menos frequentes; mas, tres dias antes do ataque, a torvação de Martha manifestava-se com extravagancias, delirios. Fechava-se no quarto com muitos vasos de flores, que enfileirava no sobrado, como se ajardinasse um passeio. Uma vez disse a D. Thereza, á madrinha de sua filha, que arranjára aquelle caminho de rosas, porque o seu José Alves lhe dissera em Prazins que havia de fazer-lhe um jardim em Villalva quando casassem, e ella fizera aquelle jardim para passearem juntos quando elle viesse á noite. D. Thereza encarou-a com uma grande piedade, porque se convenceu então que estava perdida.
O Feliciano, quando ella se fechava no quarto, já sabia que estava a preparar-se o ataque; ia dormir n'outra cama: necessitava do seu repouso, dizia elle; tinha de erguer-se cedo para vêr o que faziam os jornaleiros, e não podia perder as noites. Como o arrependimento de se casar já o mortificava, evadia-se ás irremediaveis apoquentações, olhando egoistamente para o seu bem-estar, e lembrando-se ás vezes que, tendo uma mulher assim doente, não lhe seria muito desagradavel ficar viuvo. Não obstante, como, passado o ataque epileptico, a esposa recahia n'uma serena indolencia, n'uma impassibilidade mansa e tranquilla, o tio ia dormir com ella, tendo sempre em vista as condições do seu bem estar, as necessidades imperiosas da sua physiologia. Assim se explica a fecundidade de Martha, que deu em sete annos cinco filhos a seu marido. O medico já tinha explicado satisfatoriamente ao padre Osorio que a demencia de Martha era funccional, e as qualidades reproductoras não tinham que vêr com as anormalidades cerebraes. A Providencia não teve a bondade de fazer estereis as dementes.
Entretanto, nos tres dias precedentes ás crises epilepticas, parece que o marido lhe era repulsivo. Dava-se então a revivencia de José Alves, o seu amado sahia do sepulchro, e transportava-a nas suas azas de anjo ao paraizo de Prazins. D. Thereza, collando o ouvido á fechadura da porta, ouvia-a conversar como era dialogo, ficar silenciosa, depois d'uma interrogação, por largo espaço de tempo; vinha de mansinho á porta espreitar que a não escutassem. Dizia palavras confusas, abafadas, cariciosamente proferidas, como se tivesse os labios postos em contacto de um rosto amado. O nome de José realçava com uma nitidez jubilosa, com um timbre de meiguice infantil; e ás vezes, um grito em esforçado desespêro como se elle se lhe desatasse dos braços para lhe fugir. Um espiritista da escola de Kardec tiraria d'esta loucura um argumento a favor das Manifestações visiveis, em que o fluido, o perispirito se apresenta semi-material, com as fórmas vagas do corpo, quasi tangivel ao medium.
O Feliciano ignorava estas scenas extra-naturaes. Elle, ao sexto anno de casado, encouraçára-se n'um impenetravel egoismo de avarento, cortando fundamente por todas as despezas que em vista da sua grande fortuna se reputavam sovinarias. A medicina já o considerava lunatico, mais ou menos inficcionado da alienação da mulher. E a loucura que é se não a exaggeração do caracter? Porque o viam ás vezes atravessar os seus pinhaes, com o monoculo, gesticulando, e faltando sósinho, chamavam-lhe doudo. Errada hypothese do vulgo ignorante. Elle fazia operações arithmeticas em voz alta como os velhos poetas inspirados faziam madrigaes n'uma declamação rythmica ao ar livre e ao luar. O certo é que ninguem o apanhava em intervallo escuro para o defraudar n'um vintem. Comprou, umas após outras, todas as quintas que foram do Vasco Cerveira Lobo, de Quadros; umas á viuva, e outras aos filhos. A D. Honorata Guião, casada em segundas nupcias com o desembargador do Ultramar Adolpho da Silveira, veio á metropole assim que viuvou para se habilitar herdeira de metade do casal não vinculado do tenente-coronel. Os filhos Egas e Heitor, sabendo que sua mãe estava nos Pombaes, com o marido e filhos, tentaram escorraçal-a com ameaças e insultos, atirando-lhe tiros á janella. O magistrado fugiu com a sua familia e acompanhou com força armada os actos judiciaes. Afinal, Honorata, vendeu a sua parte, ao desbarato, ao brazileiro Prazins; e o morgado, vendido o seu patrimonio desvinculado, e mais o irmão, vergonhosamente casados, esfarrapam hoje o resto da torpe existencia na tavolagem das tavernas. As filhas salvaram-se do naufragio agarradas ás pranchas dos seus dotes. Arranjaram facilmente maridos que desempenharam os seus casaes e as sovavam de pontapés injustos e extemporaneos, quando se lembravam dos engenheiros do conde de Clarange Lucotte.
A brazileira de Prazins tem hoje cincoenta e tres annos. Os seus visinhos que contam trinta annos, nunca a viram, por que ella, desde que, em 1848, morreu D. Thereza, nunca mais sahiu do seu quarto. Já ninguem a vai escutar; mas repete as mesmas palavras do seu amor de ha quarenta annos, pede que lhe levem flores, tem as mesmas allucinações, e—o que mais é—ainda tem lagrimas, quando, nos intervallos dos delirios, entra na angustiosa convicção de que José Dias é morto. O padre Osorio ainda a procura n'esses periodos de razão bruxuleante e falla-lhe da irmã por sentir a ineffavel amargura doce de se vêr acompanhado nas lagrimas. Mas o padre diz que nunca pudéra vêr nitidamente a linha divisoria entre a razão e a insania de Martha. Depois do delirio, sobrevem a monomania hypocondriaca. A alma continua a dormir sem sonhar, sem as allucinações. N'essa segunda crise de torpor, elle e só elle é admittido ao seu quarto, depois de esperar que desça da cama ou se embrulhe n'um challe para encobrir a sordidez do corpête dos vestidos. Este challe é uma scintilla resistente de instincto feminil que raras vezes se apaga no commum das dementes, excepto no maior numero das hystericas com erothismo.
Martha tem duas filhas casadas e já mães. Ás temporadas, vestem serenamente os seus trajes domingueiros e vão para casa dos paes, onde continuam na sáfara dos campos a sua lida de solteiras. O pai educára-as na lavoira, de pé descalço; e sachola nas unhas. Trabalham nas lavras com uma grande alegria e garganteiam cantigas muito frescas. E os maridos, cheios de bom senso, já as não procuram. Quando regressam, recebem-as sem as interrogarem; porque, se as affligem, dão-lhes vágados e choram. Nos outros filhos intanguidos, escrofulosos, tristes e sem infancia predomina a diathese da imbecilidade e a falta de senso-moral que é uma especie pathologica menos estudada dos alienistas. Entre estes filhos ha um que estudou para clerigo. Passava por ser o mais escorreito. O pai achava-lhe talento. Estudou seis annos latim, em Braga, debaixo das mais rigorosas violencias á sua incapacidade; e quando Feliciano, prodigo de dinheiro para este filho, e desenganado pelo professor, o mandou buscar com tres reprovações, elle trazia em uma caixa de lata cinco mil e tantas hostias com que se prevenira para as suas consagrações de sacerdote. E o pai foi tão feliz que pôde vender as hostias com o pequeno prejuizo de dez por cento.
—Ahi tem o brazileiro de Prazins, se nunca o viu—dizia-me ha trez mezes o padre Osorio mostrando-me no mercado de Famalicão um velho escanifrado, muito escanhoado, direito, com o monoculo fixo, vestido de cotim, com um guarda-pó sujo, esfarpelado na abotoadura, e uma chibata de marmeleiro com que sacudia a poeira das calças arregaçadas.
—Tem 84 annos—continuou o vigario de Caldellas—veio a pé de sua casa, que dista d'aqui legua e meia, janta um vintem de arroz, bebe outro vintem de vinho, tem quinhentos contos, e volta para sua casa a pé, atravez ou pouco menos das suas quatorze quintas. Com a frugalidade, com o exercicio e com o seu egoismo sordido viverá ainda muito tempo, porque o velho Alexandre Dumas disse que os egoistas e os papagaios viviam cento e cincoenta annos.
Com os subsidios ministrados pelo cura de Caldellas compuz esta narrativa, espraiando-me por accessorios de duvidoso bom senso, cuja responsabilidade declino dos hombros d'aquelle discreto sacerdote. Tudo que n'este livro tem bafio de velhas chalaças, ironias e satyras é meu; e, se alguem por isso me arguir de pouco respeitador do vicio e da tolice, retiro tudo.
Se o meu condescendente informador me permitte, ouso dizer-lhe—para nos esquivarmos ambos ás insidias da critica portugueza—que a demencia de Martha não é extremamente original nem o meu romance uma singularidade incontroversa. O que, sem disputa, é original, é duvidar eu de que o sou.
Em um Conto de Charles Nodier, auctor remoto que se perde no crepusculo da litteratura archeologica, ha uma LYDIA que endoudeceu quando o marido, um barqueiro de limpo nascimento e generosa indole, pereceu n'um incendio salvando tres creanças e sua mãe.
Lydia enlouquece e cuida que seu esposo está no céo de dia e a visita de noute. Ella, desde o repontar da aurora, sae ao jardim, e colhe flores para o brindar quando elle desce do azul com azas de pennas de ouro. Ao cabo de seis annos d'este sonhar delicioso, a ditosa douda, quando andava a recolher as flores dilectas para o bouquet das nupcias com o anjo de cada noute, sentou-se em dulcissima somnolencia e expirou.
As analogias de Lydia e Martha frizam pela visão dominante na demencia de ambas—uma especie de resurreição do amado. No que ellas diversificam essencialmente é que uma sonhou seis annos e a outra vai no trigesimo setimo da sua demencia; Lydia sonhou absorvida na sua ideal alliança com um celicola, um bem-aventurado com azas de ouro; Martha quando immerge allucinada no seu lethargo, é a paixão leal ao amado sempre vivo na terra e no seu coração. Lydia passa as noutes em amplexos do marido celestial: Martha, sem consciencia da sua vida organica, tem cinco filhos, como se arrancasse de si a porção ignobil de seu ser e a rejeitasse ao sêvo sensual do marido resalvando a alma d'essa inconsciente materialidade. Quer-me, portanto, parecer que não ha nodoa de plagiato no meu livrinho—uma coisa original como o peccado.
O leitor pergunta:
—Qual é o intuito scientifico, disciplinar, moderno, d'este romance? Que prova e conclue? Que ha ahi proveitoso como elemento que reorganise o individuo ou a especie?
Respondo: Nada, pela palavra, nada. O meu romance não pretende reorganisar coisa nenhuma. E o auctor d'esta obra esteril assevera, em nome do patriarcha Voltaire, que deixaremos este mundo tolo e máo, tal qual era quando cá entramos.
S. Miguel de Seide, dezembro de 1882.