The Project Gutenberg eBook of Romanceiro geral

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Title: Romanceiro geral

Compiler: Teófilo Braga

Release date: July 12, 2023 [eBook #71173]

Language: Portuguese

Original publication: Portugal: Imp. da Universidade

Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROMANCEIRO GERAL ***

[Pg i]

[Pg iii]

[Pg v]

ROMANCEIRO GERAL

COLLIGIDO DA TRADIÇÃO

POR
THEOPHILO BRAGA

Procuré con mi sudor
Y con inmenso trabajo
Juntar diversos romances
Que andavan discarriados....

ROM. GENERAL, de 1594.


COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1867


DO COLLECTOR


As primeiras poesias portuguezas, conservadas casualmente nos Chronicons, não são de origem popular, e o seu valor litterario acha-se destituido pela auctoridade de João Pedro Ribeiro. Depois do Concilio de Trento a musa do povo foi banida da egreja, aonde tomava parte na liturgia, participando tambem da inspiração hymnica. Os latinistas ecclesiasticos e o cultismo provençal excluiram-na das côrtes. Dom Diniz, apprendendo a fazer versos na lingua provençal, desprezou o verso octosyllabico, inteiramente popular e do genio rythmico da lingua, pelo endecasyllabo de diez syllabas a la manera de los limosis, como diz o Marquez de Santillana. Os nossos Cancioneiros são aristocraticos.

No tempo de Dom Fernando começa a sentir-se a influencia normanda, isto é, a implantação das tradições do norte e dos diversos povos, trazidas pelos aventureiros que divagavam então pela Europa vivendo d’este seu mister.

O cyclo da Tavola Redonda é imitado nas aventuras dos passos d’armas, na Ala dos Namorados e da Madre Sylva, nos Doze de Inglaterra, desenvolvendo-se a ponto de crear um typo messianico em Dom Sebastião, em tudo similhante a el-rei Arthur. No maravilhoso popular encontram-se vestigios das superstições germanicas, e o cyclo carolino toma o sentimento cavalheiresco da fidelidade allemã como[Pg vi] principio de unidade, em vez da independencia altiva do genio franko.

No seculo XVI a eschola italiana absorveu a attenção dos espiritos a ponto de sacrificarmos o genio nacional ás exagerações classicas. Foi Gil Vicente o unico que não desprezou o sentimento popular, decidindo-se abertamente por elle, com mais franqueza do que o douto Sá de Miranda, que tergiversa entre a seducção estrangeira e a indole do nosso povo. Emquanto o endecasyllabo novo se expraia nas eclogas enfadonhas do gosto siciliano, a redondilha popular salva-se com a facilidade chistosa de Gil Vicente. O povo ia elaborando a sua poesia maritima, inspirado pelo sentimento profundo da aventura, a que o proprio Camões, classico do fundo d’alma, não se eximiu de modo que a influencia que recebeu não fosse o caracteristico por onde é hoje admirado na Europa. A Historia tragico-maritima era o nucleo das narrações em prosa d’onde havia de sahir já feito o verso octosyllabico, verso por assim dizer falado, da mesma sorte que das Chronicas hespanholas saiu a maior parte e a mais celebre dos Romanceiros antigos.

A perda de Alcacer Kibir foi o termo da edade heroica de Portugal; o povo, no desalento, nas extorsões de uma dominação extranha, volveu-se ás suas esperanças imaginarias, atou as tradições do campo de Ourique aos destinos da patria, fel-a o Quinto Imperio do mundo. De facto as prophecias nacionaes são a unica poesia popular do seculo XVII. As reminiscencias do cyclo de Arthur e as esperanças do genio celtico vêm coadjuvar a mente popular na formação de um ideal messianico. Dom Sebastião tornou-se o Encoberto que hade vir soltar o sonho em que Portugal succederá na gerarchia das grandes nações. De todos os povos da Europa, nós fômos o ultimo que deu importancia á poesia popular. As discussões[Pg vii] dos philologos allemães sobre o Niebelungen, a publicação das epopeas francezas dos seculos XII o XIII, a polemica sobre a originalidade dos poemas de Ossian e a critica homerica encetada por Vico, concorreram bastante para o esclarecimento da grande these das creações anonymas, renovando o amor pela restauração d’estes thesouros perdidos. Entre nós os que primeiro recolheram algumas poesias primitivas, por mera curiosidade erudita, foram Fr. Bernardo de Brito, Miguel Leitão e Manuel de Faria e Sousa, que mutuamente reproduziram essas quatro duvidosas reliquias dos seculos XII e XIII. Sobre todos, Garrett foi quem descubriu a poesia popular das nossas provincias. Que delicadissimo artista para perceber a alma do povo! Não lhe comprehenderam o alcance do trabalho entre nós; em um prologo se queixa elle com pesar d’esta insufficiencia. A chamada geração nova atirou-se ao verso octosyllabico, pondo-se a rimar solaos e baladas, superfetações ridiculas, sem imaginação, nem arte. Muitos dos romances que formam a presente collecção, já andavam na lição de Garrett melhor dramatisados, e com um colorido encantador. Desanimámos por vezes, quando confrontavamos as versões que recolhiamos com as d’elle, sempre mais primorosas e extensas. Por fim vimos, e as palavras de Garrett o confirmam, que elle por vezes de muitas variantes formava um só romance, supprindo versos, ou completando-os pelos manuscriptos do Cavalleiro de Oliveira. Assim apresentou um trabalho excellente sob o ponto de vista artistico, pelo gosto de Percy, mas que não merece a absoluta confiança dos que quizerem surprehender a alma do povo na elaboração da sua poesia. Esses sessenta romances, que a todo o custo alcançámos de pessoas que não sabem dizer sem cantar, e que logo que as interrompem perdem o fio da cantilena,[Pg viii] de outras supersticiosas e que temem de ser escarnecidas, todos estes romances foram, por assim dizer, apanhados em flagrante delicto do enthusiasmo popular. Comparámo-los com as versões de Garrett, e creio que aonde lhes são inferiores assenta a sua valia. A classificação adoptada não é a de Duran: é tirada da natureza da poesia popular, que por si mesmo se divide e aconselha as partes em que se deve agrupar. A poesia do povo não é uma habil curiosidade; como um facto profundo do espirito, não deve de ser estudada somente pelo lado artístico; é principalmente pelo lado psychologico que a sua rudeza e ingenuidade pittoresca tem valor. A presente collecção, pode sem orgulho nacional dizer-se, é composta do que ha de mais bello e antigo na poesia popular da Peninsula; quasi todos estes sessenta romances que andam na tradição, se encontram nas velhas recopilações hespanholas, mas aqui melhor dramatisados, mais breves e simples, e tal vez mais puros, porque passaram directamente da versão oral para a lição escripta. Quando a observação nos confirmou a grande verdade que ha na poesia do povo e fez vêr n’ella a sua principal belleza, para de logo um sentimento de respeito venerando obrigou a conservar sempre na sua rudeza as coplas e narrativas que iamos recolhendo. E assim, para os homens que se dedicam a este genero de trabalhos, para os psychologos que procuram surprehender as manifestações da alma na sua verdade, diante d’esses protesto, em nome da probidade do homem e da intuição de artista, que todos os romances populares que da tradição recolhi são estremes e genuinos.


[Pg 1]

ROMANCEIRO GERAL


FLOR DOS ROMANCES ANONYMOS DO CYCLO CARLINGIANO E DA TAVOLA-REDONDA


I—ROMANCES COMMUNS AOS POVOS DO MEIO DIA DA EUROPA

1
Romances da Dona Infanta

(Versão da Beira-Baixa)

Andando a Dona Infanta
No seu jardim passeava;
Deitou os olhos ao mar,
Viu vir uma grande armada:
«Dizei-me, oh meu capitão,
Dizei-me por vossa alma,
Marido que Deos me deu
Se ahi vem na vossa armada?
[Pg 2]
—Diga-me minha senhora
Que signaes é que levava?
«Levava cavallo branco,
Cavallo branco levava,
Levava cella amarella,
Por cima sobredourada;
E adiante de si levava
A cruz de Christo pregada.
—Eu o lá vi, oh senhora,
Elle na guerra ficava,
Com tres chagas bem abertas
E todas eram mortaes.
Por uma se via o sol,
Por outra o bello luar;
Por outra tambem se via
Rica bola de jogar.
«Ai triste de mim viuva,
Ai triste do mim coitada!
Ir-me-hei por esse mundo
Chamando-me desgraçada.
Ai triste da só viuva,
De mim que nemja de si.
—Quanto dereis vós senhora
A quem o trouxera aqui?
«Dera-lhe ouro e prata,
Fôra mais rico que mim.
—O vosso ouro e a vossa prata
Não me servem para mim.
Eu sou soldado de el-rei,
E não posso estar aqui;
Mas quanto davas, senhora,
A quem o trouxera aqui?
«Tres laranjaes que tenho
Todos tres os dera assim.
—Não quero os seus laranjaes
Não me servem para mim;
[Pg 3]
Que sou soldado de el-rei
E não posso estar aqui.
«Os tres moinhos que tenho
Todos tres os dera a si;
Um que móe pau de canella,
Outro móe pau do Brazil;
Outro móe rica farinha
Que el-rei me manda pedir.
—Eu não quero os seus moinhos,
Não me servem para mim;
O que dereis vós, senhora,
A quem o trouxera aqui?
«Essas tres filhas que tenho,
Todas tres quizera dar,
Uma para vos vestir,
Outra para vos calçar,
A mais linda d’ellas todas
Para comsigo casar.
—Eu não quero as vossas filhas,
Não me servem para mim.
O que dereis mais, senhora
A quem o trouxera aqui?
«Não tenho mais que lhe dar,
Nem você mais que pedir.
—Inda tem mais que me dar,
E eu tambem que lhe pedir:
Esse corpo delicado
Para commigo dormir.
«Merece ser arrastado
O maroto que tal diz
Ao rabo do meu cavallo,
Á roda do meu jardim.
—Não se amofine, senhora,
Que eu consigo já dormi.
O anel de cinco pedras
Que eu comvosco reparti.
[Pg 4]
Que é da vossa metade,
Pois a minha eil-a aqui?
«Pois a minha ametade
Esqueceu-me no jardim.
Vão-me já chamar meus manos,
Que o venham conhecer;
Se elle o meu marido for
Eu o quero receber;
E se algum maroto fôr
Veja como se hade haver.»

2
Dona Catherina

(Variante da Beira-Baixa)

’Stando Dona Catherina
No seu jardim assentada,
Com um pente de ouro na mão
Seu cabello penteava.
Deitou os olhos ao largo
Viu vir uma grande armada;
Capitão que ’nella vinha
Trazia-a mui bem guiada.
—Catherina, Catherina,
Catherina de Menezes,
Sabbado vou para França,
Catherina que quereis?
«Saúdai-me o meu marido,
Que por lá o achareis.
[Pg 5]
—Diga-me minha senhora
Que signaes levava elle?
«Levava cavallo branco,
E espada de Marquez;
Capote de camellão
Forrado de setim verde.
—Pelos signaes que me daes
Não o vi senão uma vez;
Vi-o morrer em França,
Enterral-o em Santa Inez.
Já Catherina chorava
Lagrimas de tres a tres.
—Calai-vos oh Catherina,
Casae commigo outra vez.
«Senhoras da minha laia
Não casam mais que uma vez.
—Quanto déreis vós, senhora,
A quem vol-o traga, aqui?
«Dera-lhe armas e cavallos,
Que cresceram de Dom Luiz.
—Suas armas, seus cavallos
Não me servem para mim;
Que eu sou capitão da armada,
Já me vou para o Brazil.
Quanto déreis mais, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
«Dera ouro, dera prata,
Fôra mais rico que mim.
—O seu ouro e sua prata
Não me servem para mim;
Eu sou capitão da armada
Já me vou para o Brazil.
Quanto déreis mais, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
[Pg 6]
«As tres azenhas que tenho
Todas tres te dera a ti;
Uma móe cravo e canella,
A outra móe serzelim,
Outra móe rica farinha
Para el-rei, mais para mim.
—Vossas azenhas, senhora,
Não me servem para mim,
Sou capitão das armadas,
Já me vou para o Brazil.
Quanto dereis mais, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
«Uma pereira que eu tenho
No meio do meu jardim,
Pois quando ella dá pêras
O rei m’as manda pedir.
—Eu sou capitão da armada,
Já me vou para o Brazil;
Quanto déreis mais, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
«Essas tres filhas que eu tenho
Todas tres te dera a ti,
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais linda d’ellas todas
Para comtigo dormir.
—As suas filhas, senhora.
Não me servem para mim,
Sou capitão das armadas
Já me vou para o Brazil.
Quanto dereis mais, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
«Não tenho mais que vos dar,
Nem vós mais que me pedir.
—Ainda não me offereceu
Esse seu corpo gentil.
[Pg 7]
«Cavalleiro que tal fala,
Cavalleiro que tal diz,
Merece a lingua arrancada,
Cortada pelo nariz.
Levantai-vos meus criados,
Vinde-lh’o fazer assim,
Ao rabo do meu cavallo,
Ao redor do meu jardim.
—Os criados que a servem
Já me serviram a mim,
As suas filhas, senhora,
Tambem são filhas de mim.
Suas azenhas, senhora,
Tambem pertencem a mim;
Sua pereira, senhora,
Tambem me pertence a mim.
Suas armas e cavallos
Tambem pertencem a mim;
Seu ouro e a sua prata
Tambem pertencem a mim.
O anel que vos eu dei
Quando eu d’aquí sahi,
Mostrai-me a vossa metade,
Pois a minha eil-a aqui!
O anel que vos eu dei
Que se nos partiu no chão,
Mostrai-me a vossa metade,
Aqui está o meu quinhão.

[Pg 8]

3
Romances de D. Martinho de Avizado

(Versão da Beira-Baixa)

—Grandes guerras ’stão armadas
Entre França e Aragão!
Mal o hajas tu mulher,
Mais a tua criação;
Sete filhas que tiveste
Sem nenhuma ser varão!
Respondeu logo a mais velha
Com todo o seu coração:
«Dê-me armas e cavallo
Que eu irei por capitão.
—Tendes o cabello louro,
Filha, conhecer-vos-hão!
«Dê-me cá uma thezoura,
Verei-o cahir no chão.
—Tendes os olhos fagueiros,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Quando passar pelos hombres
Eu os ferrarei no chão.
—Tendes os peitos crescidos,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Mande fazer um justilho
Que me aperte o coração.
[Pg 9]
—Tendes as mãos mui mimosas,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Lá virá vento e chuva,
Que ellas se callejarão.
—Tendes o pé pequenino,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Dê-me cá as suas botas
Encherei-as de algodão.
—Tendes o passo miudo,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Quando passar pelos hombres
Farei passo de ganhão.
—Filha, se fores á guerra
Como te lá chamarão?
«Dom Martinho do Avizado,
Filho do Rei Dom João.»
—Ai minha mãi que me morro,
Morro-me do coração;
Os olhos de Dom Martinho,
Mi madre, matar-me-hão,
O corpo tiene de hombre,
Os olhos de mulher são.
—«Convidai-o vós, meu filho,
Que vá comvosco jantar,
Se então elle fôr mulher
Em baixo se hade assentar.
Dom Martinho de Avizado
Cadeira mandou chegar,
Com o seu capote em cima
Para mais alto ficar.
—Ai minha mãi que me morro,
Morro-me do coração,
Os olhos de Dom Martinho,
[Pg 10]
Madre minha, matar-me-hão.
O corpo tenia de hombre,
Os olhos de mulher são.
—«Convidai-o vós, meu filho,
Que vá comvosco enfeirar,
Elle então se for mulher
Ás fitas se hade pegar.
«Oh que espadas finas estas
Para hombre guerrear!
Oh que fitas para damas,
Quem lh’as pudera mandar.
—Ai minha mãi, que me morro,
Morro-me do coração,
Os olhos de Dom Martinho,
Madre minha, matar-me-hão!
O corpo tenia de hombre,
Os olhos de mulher são.
—«Convidai-o vós, meu filho,
Que vá comvosco dormir,
Que se elle for mulher
Não se hade querer despir.
«Tenho feito juramento,
Espero de o cumprir,
De emquanto eu andar na guerra
As ceroulas não despir.
—«Convidai-o vós, meu filho,
Que vá comvosco nadar;
Que se elle for mulher
Certo, se hade acovardar.
Dom Martinho de Avizado
Primeiro o mandou entrar:
«Ide vós mais adiante
Para me ires ensinar!
[Pg 11]
Cartas me vêm da terra,
Cartas de muito pezar;
Meu pai que já é morto,
Minha mãi está a acabar.
Tenho seis irmãs mais novas,
Quero-as ir amparar;
Venha a casa de meu pai
Se commigo quer casar.
Sete annos andei na guerra,
Sete annos por capitão,
Sem ninguem me conhecer
Se eu era mulher ou não.

4
Dom Martinho

(Variante da Beira-Baixa)

—Oh que guerras vão armadas
Entre França e Aragão!
Ai de mim, que já estou velho,
Não as posso vencer, não.
De sete filhas que tenho
Sem nenhuma ser varão!
Respondeu-lhe uma mais nova,
Respondeu-lhe com rasão:
«Venha uma espada e cavallo,
Eu serei já capitão.
[Pg 12]
—Tendes os olhos grandes,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Quando passar pelos homens,
Abatel-os-hei ao chão.
—Tendes o cabello longo,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Venha uma thezoura d’oiro,
Vel-o-heis cahir ao chão.
—Tendes as mãos muito brancas,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Virão calmas e geadas,
Que ellas negras se farão.
—Tendes o pé pequenino,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Venham uns sapatos grandes,
Que os pés n’elles crescerão.
—Tendes o passo miudo,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Quando passar pelos homens
Darei passo de malhão.»
—Os olhos de Dom Martinho,
Minha mãi, matar-me-hão.
Elle o corpo será de homem,
Os olhos de mulher são.
—«Convida-o tu, meu filho,
Um dia para o pomar,
Que se elle mulher fôr
Ao agro se hade apegar.
Dom Martinho de avisado
Ao doce se foi lançar.
—Os olhos de Dom Martinho,
Minha mãi, me hãode matar!
[Pg 13]
—«Convida-o tu, meu filho,
Um dia para o jantar,
Que se elle mulher for
Aos bancos se hade assentar.
Dom Martinho de avisado
Cadeira mandou chegar:
«Oh que cadeira tam baixa
Para um homem se assentar.
—«Convida-o tu, meu filho,
Um dia para feirar,
Que se elle mulher for
Ás fitas se hade apegar.
Dom Martinho de avisado
Ás espadas se foi lançar:
«Oh que espadas tam pezadas
Para um homem guerrear;
Oh que fitas para damas,
Quem lh’as pudera levar.
—Os olhos de Dom Martinho,
Minha mãi, me hão de matar.
—«Convida-o tu, meu filho,
Um dia para dormir,
Que se elle mulher for
Não se hade querer despir.
Dom Martinho de avisado
Se foi logo descalçar:
«Tenho feito juramento,
Espero de o não quebrar,
Em quanto eu andar na guerra
As ceroulas não tirar.
[Pg 14]
Tenho feito juramento
Protesto de o cumprir,
Em quanto eu andar na guerra
A camisa não despir;
E a espada de meu pae
Entre nós hade dormir.
—Os olhos de Dom Martinho,
Minha mãi, me hãode matar!
—«Convida-o, tu, meu filho.
Um dia para nadar,
Que se elle mulher for
Logo se hade acovardar.
Dom Martinho de avisado
Se foi logo descalçar:
«Entre, entre o cavalleiro,
Já o vou acompanhar;
Os sinos da minha terra
Aqui os ouço tocar!
A minha mãi já morreu,
Meu pai se está a finar;
De sete manas que tenho
Aqui as ouço gritar.
«Abra-me as portas, meu pai,
De todo o seu coração;
Sete annos andei na guerra
Sem me conhecer varão;
Mas só no fim dos sete annos
Conheceu-me o capitão,
Conheceu-me pelo riso,
Que por outra cousa não.»

[Pg 15]

5
Dom Barão

(Variante da Foz)

Já se começam as guerras
No campo de Dom Barão:
—Triste de mim que sou velho
As guerras me acabarão!
«Dê-me armas e cavallo
Serei seu filho varão.
—Tendes o cabello loiro,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Dae-me cá uma thesoura,
Que eu já o deito ao chão.
—Tendes as mãos pequeninas,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Metel-as-hei n’umas luvas,
Nunca d’ellas sairão.
—Tendes o pé pequenino,
Filha, conhecer-vos-hão.
«Metel-os-hei n’umas botas,
Nunca d’ellas sairão.
Dae-me armas e cavallo,
Serei seu filho varão.
—Tendes os peitos mui altos,
Filha, conhecer-vos-hão.
[Pg 16]
«Incolherei os meus peitos
Dentro do meu coração.»
O capitão dos soldados
Um grande amor lhe tomou;
Dom Barão como discreto
De nada se receiou.
—Oh mi padre, oh mi madre,
Grande dor do coração,
Os olhos do soldadinho
São de mulher, de homem não.
—«Convida-o tu, meu filho,
Que comtigo vá cear,
Porque no partir do pão
Se virá a delatar,
Que se elle o partir ao peito
Por mulher se hade mostrar.
Dom Barão como discreto
De nada se receiou;
Pegou na faca de ponta,
Pão e queijo estransinhou.
—«Bota-lhe cadeiras altas,
Cadeiras baixas a par;
Porque elle se mulher for
Nas baixas se hade assentar.
A donzella por discreta
Na mais alta quiz estar.
—Minha mãi, minha mãesinha,
Eu morro do coração;
Os olhos do soldadinho
São de mulher, de homem não.
[Pg 17]
—«Convidae-o vós, meu filho,
Que comvosco vá feirar,
Que se elle mulher fôr,
Ás fitas se hade apegar.
Dom Barão como discreto
Foi uma espada apreçar:
«Oh que bellas fitas estas
Para damas adornar.
—«Convida-o tu meu filho
Que comtigo vá dormir;
Que se elle mulher fôr
Então se hade descobrir.
Dom Barão como discreto
De nada se receiou;
Vestiu camisa e ceroulas
E com elle se deitou.
—Oh mi padre, oh mi madre,
Grande dor do coração;
Os olhos de Dom Barão
São de mulher, de homem não.
—«Convida-o tu, oh meu filho,
Que comtigo vá nadar;
Que se elle mulher fôr
Desculpa vos hade dar.
Dom Barão como discreto
De nada se receiou;
Chamou pelo seu creado
Uma carta lhe entregou:
«Novas me chegam agora,
Novas de negro pezar;
[Pg 18]
E os sinos da minha terra
Já ouço repinicar,
Ou meu pae que já é morto,
Ou está para enterrar.
—Montae-vos oh Dom Barão,
Que eu vos vou acompanhar.
Lá chegando á sua terra
Viu seu pae a passear.
—Que foi isso Dom Barão,
Quem vos vem acompanhar?
«Um genro de vocemecê
Se o quizer acceitar.

6
Romance de Gerinaldo

(Versão de Traz-os-Montes)

«Gerinaldo, Gerinaldo,
Pagem de el-rei mais querido,
Queres tu oh Gerinaldo
Tomar amores commigo?
—Vós como sois ama minha
Senhora zombais commigo?
«Eu não mango Gerinaldo,
Que eu bem deveras t’o digo.
—Diga-me minha senhora
Quando heide ir no promettido?
«Lá da uma para as duas,
Que meu pae esteja dormindo.
[Pg 19]
Inda bem não era a uma
Gerinaldo ao postigo,
Descalço de pé e perna
Para não fazer trupido.
«Oh quem bate á minha porta,
Oh quem é o atrevido?
—É Gerinaldo, senhora,
Que aqui vem ao promettido,
Descalço de pé e perna
Para não fazer trupido.
«Pousa ahi as tuas armas,
E deita-te aqui commigo.
El-rei sonhava um sonho
Que bem certo lhe sabia:
Ou deshonram a Infanta,
Ou me roubam o castillo.
Levantou-se el-rei da cama
Com desgraçado sentido,
Pegou em a sua espada
E foi dar volta ao castillo;
Achou-os ambos na cama
Como mulher e marido:
—«Eu se mato a Gerinaldo
Criei-o de pequechinho!
Eu se mato a dona Infanta
Fica o reinado perdido.
Meto-lhe a espada no meio
Para que sirva de aviso.
Acordou o Gerinaldo,
Ficou mais morto que vivo.
«Não te assustes Gerinaldo
[Pg 20]
Que meu pai o tem sabido,
Se nos quizera matar
Poder estava comsigo.
Não te assustes Gerinaldo
Vem ter com o rei ao castillo.
—«D’onde vens oh Gerinaldo,
D’onde vens espulverido?
— Venho de matar caça,
Senhor, da borda do rio.
—«Não me mintas Gerinaldo,
Que nunca me tens mentido.
— Venho de regar as flores
Que ellas o estavam pedindo!
—«Pois toma-a por tua mulher,
E ella, a ti por marido.

7
Romance da Noiva roubada

(Versão de Almeida)

—Deos vos salve minha tia,
Na vossa roca a fiar!
«Venha embora o cavalleiro
Tam cortez no seu falar.
—Má hora se elle foi, tia,
Ma hora torna a voltar!
Que já ninguem o conhece
De mudado que hade estar.
Por lá o matassem mouros,
Se assim tinha de tornar.
[Pg 21]
«Ai sobrinho de minha alma,
Que és tu pelo teu falar!
Não vês estes olhos, filho,
Que cegaram de chorar?
—E meu pai e minha mãi,
Tia que os quero abraçar?
«Teu pai é morto, sobrinho,
Tua mãi foi a enterrar.
—Que é da minha armada, tia,
Que eu aqui mandei estar?
«A tua armada, sobrinho,
Mandou-a o fronteiro ao mar.
—Que é do meu cavallo, tia,
Que eu aqui deixei ficar?
«O teu cavallo, sobrinho,
El-rei o mandou tomar!
—Que é da minha dama, tia,
Que aqui ficou a chorar?
«Tua dama faz hoje a boda,
Amanhã se vae casar.
—Dizei-me onde é minha tia,
Que me quero lá chegar.
«Sobrinho não digo, não,
Que te podem lá matar.
—Não me matam, minha tia,
Cortezia eu sei uzar.
E onde faltar cortezia
Esta espada hade chegar.
—Salve Deos, oh la da boda,
Em bem seja o seu folgar!
—«Venha embora o cavalleiro,
E que se chegue ao jantar.
—Eu não pertendo da boda,
Nem tam pouco do jantar;
Pretendo falar á noiva,
[Pg 22]
Que é minha prima carnal.
Vindo ella lá de dentro
Toda lavada em chorar,
Mal que viu o cavalleiro,
Quiz morrer, quiz desmaiar.
—Se tu choras por me veres,
Já me quero retirar;
Se é os teus gastos que choras,
Aqui estou para os pagar.
«—Pagar devia com a vida
Quem me queria enganar,
Quando te deram por morto
Nessas terras d’alem-mar.
Mas que fiquem com a boda,
E bem lhes preste o jantar,
Que os meus primeiros amores
Ninguem m’os hade quitar.
—Venha juiz de Castella,
Alcaide de Portugal;
Que, se aqui não ha justiça
Co’ esta espada a heide tomar.

8
Romance do Alferes matador

(Versão da Covilhã)

—Indo eu por quelha abaixo,
Topando por quelha acima,
Olhei para uma janella,
Onde vi ’star trez donzillas.
[Pg 23]
Aquella de azul claro
É linda em demasia,
Tenho de a ir buscar
Inda que me custe a vida.
As dez horas eram dadas
E elle á porta batia.
«Quem bate á minha porta
Deshoras á porta minha?
—É um grande cavalleiro
Que vem buscar sua filha,
«Minha filha não ’stá em casa,
Foi para a de sua tia,
Que a mandou cá buscar
Para uma função que havia.
Deitou os hombros á porta,
Não uzou mais cortezia;
Entrou pela casa dentro
Com toda a sua ousadia,
E foi direito a um quarto
Aonde a filha dormia.
«Oh filha faz, pela honra
Antes que te custe a vida;
Honra as barbas a teu pae,
Que brancas na cara as tinha.
Pegou-lhe pelos cabellos
Foi-a arrastar pela villa,
E depois de a ver morta
A sua mãi a trazia.
—Aqui tendes oh D. Anna,
Oh Dona Anna vossa filha,
[Pg 24]
Honrada e virtuosa,
Mas porem custou-lhe a vida.
«Antes a quero ver morta
Que a sua honra perdida,
Justiça venha do céo
Que na terra não a havia,
E caia sobre um Alferes,
Matador da minha filha.

9
Romance da Romeirinha

(Versão de Traz-os-Montes)

Por aquelles montes verdes
Uma romeira descia;
Tão honesta e formosinha
Não vae outra á romaria.
Sua saia leva baixa,
Que nas hervas lhe prendia;
Seu chapellinho cahido
Que os lindos olhos cobria.
Cavalleiro vae traz d’ella,
Alcançal-a não podia;
Alcançou-a descançando
Debaixo da verde oliva,
Á sombra da arvore benta.
Que está no adro da ermida:
«Eu te rogo, cavalleiro,
Por Deos e Santa Maria,
Que me deixes ir honrada
Para a santa romaria.
[Pg 25]
Cavalleiro de malvado
De amores a accomettia;
Pegaram de braço a braço,
Qual de baixo, qual de cima.
A romeira por mais fraca
Logo debaixo cahia.
No cahir lhe viu á cinta
Um punhal que elle trazia,
Com toda a força o arranca,
No coração lh’o mettia.
—Da vingança que tomaste
Eu te peço romeirinha,
Que o não digas em tua terra,
Nem te vás gabar á minha.
«Heide dizel-o em tua terra,
Heide-me ir gabar á minha
Da vingança que tomei
Da affronta que me fazias;
Que matei um vil cobarde
Com as armas que elle trazia.
Tocou a campa da ermida
A campa que retinia:
«Eu te peço, ermitão,
Por Deos e Santa Maria,
Que enterres esse traidor
Lá na tua santa ermida.

[Pg 26]

10
Romances da Infanta de França

(Versão da Covilhã)

Dom João foi para caça,
Foi á caça á porfia,
Anoiteceu-lhe n’um bosque,
Era o que elle mais temia;
Seus cavallos por ferrar,
Era o que elle mais sentia!
Lá pela noite adiante
Um lindo cantar ouvia,
Deitem os olhos ao largo
Viu lá estar uma donzilla,
Penteando o seu cabello
Em um tanque de agua fria.
—Que fazeis aqui, senhora,
Que fazeis aqui donzilla?
«Sete fadas me fadaram
No collo de madre minha,
Fadaram-me por sete annos,
Por sete annos e um dia.
Hoje se acabam os annos,
Á manhã por noute o dia;
Bem podera o cavalleiro
Levar-me na companhia.
—Desde, já minha senhora,
Eu tudo isso lhe faria;
[Pg 27]
Dizei-me, oh minha senhora,
Se ides de anca ou de silha?
«Eu vou de anca, oh cavalleiro
Que isso é da honra minha.
Lá pelo caminho adiante
Ella se pôz a sorrir.
—Do que vos rides, senhora,
Do que rides vós donzilla?
«Eu rio-me do cavalleiro
E da sua cobardia,
Achar donzilla no campo
E guardar-lhe cortezia.
—Tornemos atraz senhora,
Tornemos a traz donzilla,
Que deixei a minha espora
No tanque da agua fria.
«Adiante, oh cavalleiro,
Eu atraz não tornaria,
Se a espóra era de prata
Meu pai de ouro lh’a daria.
—Dizei-me, oh minha senhora,
De quem é que vós sois filha?
«Sou filha do rei de França,
Neta do rei de Castilla.
—Pelos signaes que me daes
Vós sois uma mana minha!
Mal hajam todos os homens,
E quem em mulheres se fia;
Cuidando que levo esposa
Levo a uma irmã minha!
Abram-se esses palacios,
Venha toda a fidalguia,
Trago aqui uma mana
Ha sete annos que a não viram.
[Pg 28]
Venha cá, senhora mãi,
Ande vêr a sua filha,
Cuidei trazer nóra sua
E trago uma mana minha.
Levantou-se a sua mãi
Da cadeira aonde estava:
—«Se tu és a minha filha
Anda cá para os meus braços,
Se tu és a minha nóra
Ai tens os teus palacios.

11
A Encantada

(Variante da Foz)

Indo um cavalleiro á caça
Á caça de altanaria,
Lá chegando ao alvoredo
Viu estar uma donzilla.
—Que fazeis ahi senhora?
Que fazeis aqui donzilla?
«Sete fadas me fadaram
No ventre d’uma mãi minha:
De eu aqui estar sete annos,
Sete annos e mais um dia.
Sete annos são acabados
Hoje se acaba o dia;
[Pg 29]
Se quereis oh cavalleiro
Levai-me por companhia,
Não me leveis por senhora,
Não me leveis por donzilla;
Levai-me por estrangeira
Que achaes na terra perdida.
—Montai-vos aqui, senhora,
Montai-vos aqui, donzilla,
Ou nas ancas ou na sella,
Onde fôr mais honra minha.
Montou-se logo a donzella
Foi seguindo o seu caminho,
Lá chegando á estrada
De risos o accommettia:
—De que se ri oh menina?
De que se ri oh donzilla?
«Rio-me do cavalleiro
E da sua cobardia,
De achar menina na serra
E lhe guardar cortezia.
—Deixai-me agora chorar
Olhae a minha mofina!
Oh quem perdeu o que eu perco
Grande pena merecia.

[Pg 30]

II—ROMANCES DE SUPOSTA ORIGEM PORTUGUEZA

12
Romance da Sylvana

(Versão de Lisboa)

Passeava-se Sylvana
Pelo corredor acima;
Viola de ouro levava,
Oh que bem que a tangia!
E se ella bem a tangia,
Melhor romance fazia.
A cada passo que dava,
Seu padre a accommettia:
—Atreves-te tu, Sylvana,
Uma noite a seres minha?
«Fôra uma, fôra duas,
Fôra, meu pae, cada dia;
Ma’las penas do inferno
Quem por mim las penaria?
—Penal-as-hei eu, Sylvana,
Que las peno cada dia.
[Pg 31]
Foi-se d’ali a Sylvana,
Mui agastada que ia;
Foi-se encontrar com sua madre
Lá no adro da ermida:
—«Que tens tu, minha Sylvana,
Que tens tu, oh filha minha?
«Oh, quem tal pae não tivera,
Quem não fôra sua filha!
Que me accommette de amores
Oh minha mãi, cada dia.
—«Vae, filha, vae para casa,
Veste uma alva camisa,
Que o cabeção seja de ouro,
As mangas de prata fina:
Deitar-te-has no meu leito,
Eu no teu me deitaria...
E hade valer-nos a Virgem,
A Virgem Santa Maria.
Lá junto da meia-noite
Seu padre que a accomettia:
—Se eu soubera, Sylvana,
Que estavas tão corrompida,
Oh! las penas do inferno
Por ti las não penaria...
—«Esta não é a Sylvana,
É a mãe que a paria;
Tambem pariu Dom Alardos,
Senhor da cavalleria,
Tambem pariu a Dom Pedro,
Principe da infanteria,
Tambem pariu a Sylvana
Que seu pae a accomettia.
—Oh mal haja, que haja a filha.
[Pg 32]
Que seu padre descobria!
—«Oh mal haja, que haja o padre
Que sua filha commettia.
Manda-a metter n’uma torre
Que nem sol, nem lua via;
Dão-lhe a comida por onça,
E a agua por medida.
Ao cabo de sete annos
Eis a torre que se abria...
Assomou-se a Sylvana
A uma ventana mui alta,
Foi-se encontrar com su madre
Lavrando n’uma almofada:
«Estejaes emb’ora, madre,
Oh madre da minha alma;
Peco-vos por Deos do céo,
Que me deis um jarro d’agua;
Que se me aparta a vida,
Que se me arranca a alma!
—«Dera-t’a eu, filha minha,
Se a tivera salgada,
Que ha sette para outo annos
Que por ti sou malcasada.
Se teu padre tem jurado
Pela cruz da sua espada,
Quem primeiro te desse agua
Tinha a cabeça cortada.
Assomou-se a Sylvana
A outra ventana mais alta;
Foi-se encontrar com os irmãos,
Que estavam jogando as cannas:
«Estejaes emb’ora irmãos,
[Pg 33]
Meus irmãos já da minha alma,
Peço-vos por Deos do céo
Que me deis um jarro d’agua,
Que se me aparta a vida,
Que se me arranca a alma.
—Dera-t’a eu, irmã minha,
Se a tivera empeçonhada:
Que nosso pae tem jurado
Pela cruz da sua espada,
Quem primeiro te desse agua
Tinha a cabeça cortada.
Assomou-se a Sylvana
A outra ventana mais alta,
Foi-se encontrar com seu pae
A jogar a embocada:
«Estejaes emb’ora, padre,
Padre meu já da minha alma:
Peço-vos por Deos do céo
Que me deis um jarro d’agua,
Que se me aparta a vida,
Que se me arranca a alma...
E de hoje por diante
Serei vossa namorada.
—Alevantem-se, meus pagens,
Criados da minha casa,
Uns venham com jarros de ouro,
Outros com jarros de prata:
O primeiro que chegar
Tem a commenda ganhada,
O segundo que chegar
Tem a cabeça cortada.
Os criados que chegavam
[Pg 34]
Sylvaninha que finava,
Nos braços da Virgem santa
Dos anjos amortalhada.
—Vai-te emb’ora, Sylvaninha,
Sylvaninha da minha alma,
Tua alma vae para o céo,
A minha fica culpada.

13
Romance de Bernal-Francez

(Versão da Foz)

«Oh quem bate á minha porta,
Quem bate, oh quem está ahi?
—São cravos minha senhora,
Flores lhe trago aqui!
«Eu não abro a minha porta
A taes horas de dormir.
—Se me não abres a porta
Morto me acharás aqui.
«Ai se é Bernal-Francez
A porta lhe vou abrir.....
Ao abrir a minha porta
Se apagou o meu candil!
Ao subir a minha escada
Me cahiu o meu chapim.
Peguei n’elle nos meus braços
[Pg 35]
Levei-o pelo jardim,
Mandei lavar pés e mãos
Em aguinha de alecrim;
Vestir camiza lavada,
Deital-o ao par de mim.
Era meia noite dada:
«Não te viras para mim?
Se tu temes a meu pae
Elle longe está de ti;
Se temes os meus criados
Elles estão a dormir;
Se temes o meu marido
Más novas venham aqui.
—Eu não temo a teu pae
Que elle sogro é de mim;
Não me temo dos criados
Que mais me querem que a ti;
Não me temo da justiça
Que a justiça é por mim.
A teu marido não temo
E d’elle nunca temi...
Teme tu falsa traidora
Pois o tens ao par de ti.
Deixa tu vir a manhã
Que eu te darei de vestir,
Te darei saia de gala,
Roupinha de cramesi;
Gargantilha colorada,
Pois que tu o queres assi.
—«Deixa-me ir por’qui abaixo
Com minha capa cahida,
Quero ver a minha amada
Se é morta ou se inda viva.
[Pg 36]
—Que fazeis oh cavalleiro
A taes horas por aqui?
—«Venho vêr a minha amada
Que ha dias que a não vi.
—A tua amada, senhor,
É morta que eu bem n’a vi!
Os sinaes que ella levava
Eu te los direi aqui:
Levava saia de gala,
Roupinha de cramesi,
Gargantilha colorada,
Pois o ella o quiz assim.
—«Monta, monta meu cavallo,
Quanto poderes montar,
Só n’aquella sepultura
É que eu posso descançar:
Abre-te oh penha constante
Que me quero lá meter,
Já que fui o causador
Da minha amada morrer.
Abre-te oh penha sagrada
Esconde-me ao par de ti!
Do fundo da sepultura
Uma triste voz ouvi:
«A mulher com quem casares
Seja Anna como a mim;
E as filhas que tu tiveres
Tem-as sempre ao pé de ti,
Para que não aconteça
O que aconteceu a mim.

[Pg 37]

14
Romance do Conde Niño

(Versão de Traz-os-Montes)

Vae o conde, conde Niño
Seu cavallo vae banhar;
Em quanto o cavallo bebe
Cantou um lindo cantar:
—Bebe, bebe, meu cavallo,
Que Deos te hade livrar
Dos trabalhos d’este mundo,
E das areias do mar.
—«Esperta, oh bella princeza,
Ouvide um lindo cantar;
Ou são os anjos no céo,
Ou as sereias no mar!
«Não são os anjos no céo,
Nem as sereias no mar,
É o conde, conde Niño
Que commigo quer casar.
—«Se elle quer casar comtigo
Eu o mandarei matar.
«Quando lhe deres a morte
Mandai-me a mim degollar;
Que a mim me enterrem á porta,
A elle ao pé do altar.
Morreu um, e morreu outro,
Já lá vão a enterrar;
[Pg 38]
D’um nascêra um pinheirinho,
Do outro um lindo pinheiral;
Cresceu um e cresceu outro,
As pontas foram junctar,
Que quando el-rei ia á missa
Não o deixavam passar.
Pelo que o rei maldito
Logo as mandava cortar;
D’um correra leite puro,
E do outro sangue real!
Fugira d’um uma pomba
E do outro um pombo trocal,
Sentava-se el-rei á meza,
No hombro lhe iam poisar:
—«Mal haja tanto querer,
E mal haja tanto amar;
Nem na vida, nem na morte
Nunca os pude separar.

15
Romance da Promessa de noivado

(Versão da Covilhã)

—Oh menina da mantilha
Guarde-me esse lindo rosto,
Que eu vou para a minha terra,
Em vindo caso comvosco.
Lá dos quatro para os cinco,
E dos cinco para os seis,
[Pg 39]
Menina se eu não vier,
Menina casar-vos-heis.
—«Filha eu quero-te casar
Que é o teu tempo venido.
«Senhor pae estou casada
Não tenha duvida n’isso.
Agarrou no seu fatinho
Abalou por ai alem,
E ia de terra em terra,
E de logar em logar.
Já levava a bocca secca
De por elle procurar;
Os seus olhos como punhos
De por elle ir a chorar.
«Móra aqui um cavalleiro
Da minha terra natural?
—Aqui móra, sim senhora,
Anda na caça a caçar;
Se elle é de muita pressa
Eu o mando lá chamar.
«Elle a pressa não é muita
Que por elle heide esperar.
Elle á noite quando veio
Começou-se a admirar:
—Quem vos trouxe aqui, senhora,
Á minha terra natal?
«Foram as suas saudades
Que fizeram cá chegar.
—Tenho os meus filhos pequenos,
Que Deos m’os deixe criar,
Tenho a minha mulher moça
Que Deos m’a deixe gosar.
[Pg 40]
A menina que isto ouviu
Cahiu morta para traz.
—Que farei aqui, senhora,
Que farei a tanto mal?
—Pegue-lhe pelos cabellos
E mande-a deitar ao mar!
—Não farei isso, senhora,
Na mi terra natural;
Mando fazer um caixão
Com a tampa de crystal,
E na pia da agua benta
A mandarei sepultar

16
Romance de Dom Aleixo

(Versão da Foz)

Na cidade de Madrid,
Na melhor que el-rei tenia,
Havia um cavalleiro
Dom Aleixo se dizia,
O cujo tal cavalleiro
Namorava uma donzilla;
Ella lhe pediu tres cousas
Que ao seu corpo convenia:
Uma, que fosse sósinho
Sem mais outra companhia,
Outra pela meia noite
Quando a gente dormia.
Inda as dez não eram dadas
[Pg 41]
Dom Aleixo se vestia,
Seu capacete de grana,
Seu chapeu á bizarria.
Pegando na sua espada
Foi para vêr sua amiga;
Chegando a um alvoredo
Penhascos o cobririam:
—Não me atireis com pedras
Que pedras é cobardia;
Pucha pela tua espada
Que eu tambem trago a minha.
Se algum d’aí não a tem
Eu lhe emprestarei a minha.
Cessae, cessae oh villões,
Não useis de mais porfia,
Quero fazer testamento
Da fazenda que tenia:
A minha alma dou a Deos,
E á Virgem Santa Maria;
O meu corpo tão valente
Já o dou á terra fria,
Coração á minha dama
Discreta Dona Maria.
Rescordou Dona Maria
Do somno em que jazia:
«Quem te matou Dom Aleixo?
Quem te matou vida minha?
—Os ladrões de teus irmãos
Já me tiraram a vida.
Perde quem anda de noite
Ganha quem anda de dia;
Perde quem tem seus amores
Que d’elles se não retira.
[Pg 42]
Puchou por um faquim de ouro
Que á sua cinta trazia:
«Quero sacar a minha alma,
Quero levar companhia.

17
Romance de Dom Pedro

(Versão da Beira-Baixa)

«Oh minha mãi quem me dera
Vêr-me em Castilha do mar;
Tenho desejos de ir ver
A minha mãi natural...
—«Se tens desejos de ver
A tua mãi natural;
Mas Dom Pedro foi á caça
Em vindo lhe irei contar.
Da caça que elle trouxer
Te mandará um casal:
De duas perdizes uma,
De tres coelhos um par.
Ella a sahir pela porta
Dom Pedro a entrar o quintal.
—Que é da minha rosa branca
Que me não vem abraçar?
—«Tua rosa branca, Dom Pedro,
[Pg 43]
Está em Castilha do mar?
Olha o que ella ia dízendo,
Que se não pode contar:
«Que em sua caza não tinha
Cama para se deitar!
Olha o que ella ia dizendo,
Que se não pode dizer:
«Que em sua casa não tinha
Um pão para se comer!
Bem puderas tu meu filho
Minha benção alcançar;
Como vieste da caça
Ir-m’a já lá arrastar.
—Ála, ála meus criados,
Meus cavallos vão ferrar,
Com ferraduras de bronze
Para melhor caminhar.
Dou sete voltas á cerca,
Sem n’ella poder entrar;
Viu lá entrar uma preta
Que se estava a pentear.
—Abri-me as portas oh preta,
Põe-m’as já de par em par!
Menina que lá está dentro
Já a lá vou arrastar.
«—Dae-me alviçaras Dom Pedro
Dae-m’as, bem m’as podeis dar;
Que vos nasceu um infante
Lindo como um crystal.
«—Novas vos trago, senhora,
Novas de muito pezar;
[Pg 44]
Que Dom Pedro está á porta
Jura de vos vir matar.
«Dê-me a mão, oh minha mãe,
Ajude-me a levantar,
Que Dom Pedro está á porta
Jura de me vir matar.
—Deixa-te estar oh filha
Que eu o vou assocegar!
Que Dom Pedro é attencioso
Logo me ha de querer falar.
Pegou-lhe pelos cabellos
E elle a foi arrastar;
Andára mais de tres leguas
E sem lhe querer falar.
«Olha para traz Dom Pedro,
Olha se queres olhar,
O teu cavallo é branco
Veio já do meu signal.
Leva-me áquella ermida
Que me quero confessar,
Se não, confesso-me a ti
Por eu já não ter logar.
—Mal o haja a tua mãe
Que te deixou levantar.
«Mal haja a tua, Dom Pedro,
Que taes conselhos quiz dar.
Cá te fica um infante
Cá o darás a criar,
Não o dês a tua mãe
Que jura de m’o matar;
Da-o cá antes á minha
Que ella o dará a criar.
[Pg 45]
—Fica-te aqui rosa branca
N’este campo de alegria!
Com a ponta da espada
A cova ali lhe fazia;
Com as lagrimas dos olhos
A terra lhe amollecia.

18
Romances da Filha do Imperador de Roma

(Versão de Traz-os-Montes)

O imperador de Roma
Tem uma filha bastarda,
A quem tanto quer e tanto
Que a traz mui mal criada,
Pedem-lh’a Duques e Condes
Homens de capa e de espada;
Ella isenta e desdenhosa
A todos lhe punha taxa:
A uns que não eram homens,
Outros que não tinham barbas;
Aquelle que não tem pulso
Para puchar pela espada,
Dizia-lhe o pae sorrindo:
—Inda hasde ser castigada!
De algum villão de porqueiro
Te espero ver namorada.
Por manhã do Sam João,
Manhã de doce alvorada,
[Pg 46]
Subiram a uma ventana
Uma ventana mui alta.
Viu andar trez cegadores
Fazendo sua cegada;
O mais pequeno dos tres
Era o que mais trabalhava;
De seu garbo e gentileza
A infanta se namorava.
Ali estava a aia discreta
Em que toda se fiava:
«Vês, aia, aquelle ceifeiro
Que anda n’aquella cegada?
Condes, Duques, Cavalleiros,
Nenhum que o ceifeiro valha.
Vai-m’o chamar em segredo,
Que ninguem não saiba nada.
—«Bom cegador vem commigo,
Que te quer falar minha ama.
—Eu não conheço a senhora,
Nem tam pouco a criada.
—«Cegador de boa estreia
Trazes a vista mui baixa;
Alça os olhos e verás
A estrella da madrugada.
—Vejo o sol que vem nascendo,
Não vejo a estrella d’alva.
—«Estrella ou sol, vens commigo?
—Irei pois, quem pode manda.
Entraram por um postigo
Que a porta ainda era cerrada;
No camarim da princeza
O bom do ceifeiro estava.
[Pg 47]
—Senhora, que me quereis,
Pois venho á vossa chamada?
«Quero saber se te atreves
A fazer minha cegada.
—Atrever, me atrevo a tudo,
Trabalho não me acobarda!
Dizei vós, senhora minha,
Onde é a vossa cegada.
«Não é no monte ou no vale,
No baldio ou na coutada;
Cegador, é nos meus braços
Que de ti estou namorada.
Lá junto da meia-noite
Ao cegador perguntava:
«Dizei-me bom cegador
De quem eu fico pejada?
—Eu sou filho de um porqueiro,
E meu pae porcos guardava.
«Oh triste de mim, oh triste,
Oh triste de mim coitada!
Bem me dizia meu pai:
Tu hasde ser castigada.
Pediram-me Condes, Duques,
Homens de capa e d’espada,
E agora eis-me aqui
De um porqueiro deshonrada.

[Pg 48]

19
O hortelão das flores

(Variante da Beira Baixa)

—Não venho por te vêr, nem por te dar valor,
Venho por erguer olhos e a vista no sol pôr.
Falar quero á princeza, o amor me traz rendido,
A ti peço conselho, velha do tempo antigo.
«Vista traje mudado, cante em seu bandolim,
Boquinha de crystal, faces de seraphim.
—Um bom conselho velha me deste para mim;
Não farão de mim caso, se me virem assim.
Com Deos te fica velha mais a tua porfia,
Mas se eu a render, velha, tens tensa cada dia.
Eu vou bater o mato, caçar altanaria,
Mas se ella me escapar em ti me vingaria.
—Abri lá essas portas, oh hortelão das flores,
Venho em traje mudado falar aos meus amores.
—«Senhor podeis entrar, que tendes sempre acerto;
Senhor, sois Dom Duarte, que bem vos reconheço.
—Oh que varandas altas, com cem palmos de alteza,
Diz velho de bom tempo se ali vem a princeza?
«Para as varandas altas, para tomar a fresca
Costuma vir sósinha quasi sempre a princeza.
[Pg 49]
—Se ella te perguntar quem é o estrangeiro,
Dize que é um teu filho vindo lá d’outro reino.
Que varandas tão altas, que jardim bem plantado;
Soubera o que hoje sei, que o tinha passeado.
«Oh regador dos cravos venha para mais perto
Conversar a princeza com prazer discreto.
Oh regador dos cravos venha para o mirante
Olhar para a princeza com olhos de diamante.
—Mandaram-me cá vir, não sei se é verdade.
—«Tão verdade não fôra, espelho bello e claro.
—Tendes-me aqui senhora, mandae como a vassallo,
Já estive em noite escura, agora é dia claro;
Dae-me, que tenho sêde, um pucarinho de agua!
—«Aqui vos mato a sêde, espelho bello e claro.
—A mim não ha quem mate a sêde continuada...
—«Vem cá falar commigo ámanhã de madrugada.
Alluga uma burrinha, que o não saiba ninguem,
Que eu quero para sempre ir d’aqui para alem.
—Como a levarei, senhora, com quem irá d’aqui?
Filho d’um corta carne, que apregôa aqui!
—«Não se me dá que o sejas ou que apregôe aqui.
—Alluguei a burrinha, vá-se despedir.
—«Adeos oh fontes claras e poços de agua fria,
Eu já não ouço aqui rouxinóes ao meio dia.
Se meu pae perguntar quem é que me queria,
Dizei que a desgraça não é a que me guia.
[Pg 50]
—Cala-te, Magdalena, lagrimas de peregrina!
Nos reinos estrangeiros melhor agua haveria.
Tambem ha claras fontes, poços de agua fria,
E canta o rouxinol á hora do meio dia.
—«Pareces Dom Duarte! oh que fortuna a minha,
Tornemos ao palacio a dizel-o á rainha:
Rainha e mãe senhora, humildo-me ao castigo,
Aqui está Dom Duarte, que vem por meu marido.
Rainha e mãe senhora, que pena me acompanha,
De não achar meu pae senhor de toda a Hespanha.
Rainha e mãe senhora, humildo-me com dor,
Não tem a quem pôr culpa, é mui cego o amor.»

20
O Duque da Lombardia (Variante da Beira-Alta)

Por manhã de Sam João,
Manhã de doce alvorada,
Ao seu balcão muito cedo
A Infanta se assomava.
Viu andar tres cegadores
Fazendo sua cegada;
O mais pequeno dos tres
Era o que mais trabalhava.
Fitta que traz no chapeo
De ouro e seda era bordada.
Fina prata que luzia
A foice com que ceifava.
[Pg 51]
De seu garbo e gentileza
A Infanta se namorava.
O ceifeiro vae ceifando...
Bem sabe elle o que ceifava.
«Vês, aia, aquelle ceifeiro
Que anda n’aquella cegada?
Vae-m’o chamar em segredo,
Que ninguem não saiba nada.
Entraram por um postigo,
Que a porta inda era cerrada;
No camarim da princeza
O bom do ceifeiro estava:
«Quero saber se te atreves
A fazer a minha cegada?
—Atrever me atrevo a tudo,
Trabalho não me acobarda.
«Não é no monte ou no vale,
No baldio ou na coutada;
Cegador é nos meus braços
Que de ti estou namorada.
Passou todo aquelle dia,
O mais da noite passava,
Ceifando vae o ceifeiro...
Bem sabe o que elle ceifava.
«Basta, basta, cegador,
Feita está tua cegada;
Vae-te que meu pae não venha
Antes de ser madrugada.
Palavras não eram ditas
El-rei á cama chegava:
[Pg 52]
—«Com quem falas, minha filha,
Tão cedo de madrugada?
«Falo com esta minha aia,
Que me tem desesperada;
Uma cama tão malfeita
Que dormir me não deixava.
—«É forte essa tua aia
Que a barba tem tão cerrada!
Vista-se já a donzella,
Que antes de ser madrugada,
Pelo barbeiro do algoz
A quero ver barbeada.
O cegador muito enchuto
Sua sentença escutava;
Com uma mão se vestia,
Com a outra se calçava.
Saltou no meio da casa,
Como se não fôra nada:
—Venha já esse barbeiro
Com a navalha afiada:
Ao Duque da Lombardia,
Verêmos quem faz a barba.
O imperador mui contente
Depressa ali os casava:
Não quiz senhores, nem condes,
Homens de capa ou de espada,
Senão só o cegador
Que andava em sua cegada.
Sahiu-lhe um Duque reinante,
Senhor d’alta nomeada,
Pois tudo é sorte no mundo,
A sorte foi bem deitada.

[Pg 53]

21
Romance de Dona Agueda de Mexia

(Versão do Alemtejo)

Era uma menina bella,
Discreta e bem parecida,
Dom João a namorava,
Mil requebros lhe fazia.
Por fidalgo e gentil moço
Ninguem tanto a merecia;
Mas o pae d’aquella moça
Por melhor conselho havia
Casal-a com um mercador
Que áquellas partes vivia.
Dom João quando isto soube
Por pouco se não morria:
Foi se d’ali muito longe
Sem dizer para onde ia.
Tres mezes por lá andou,
Tres mezes n’essa agonia.
Mandou sellar seu cavallo
Sem cuidar no que fazia;
Deitou por esses caminhos
Sem saber adonde ia.
O cavallo é quem andava,
Cavalleiro obedecia;
Passou por terras e terras
Nenhuma não conhecia.
Á sua tinha chegado,
Onde estava não sabia.
[Pg 54]
Té que veio a passear
Á rua da sua amiga;
As casas onde morava,
Janellas aonde a via,
Tudo é coberto de preto
Mais preto que ser podia.
Mandou chamar uma dama
Por Deos e á cortezia:
—Dize-me tu por quem trazes
Ausencias tam doloridas?
«Trago-as por minha senhora
Dona Agueda de Mexia,
Que é com Deos a sua alma,
Seu corpo na terra fria;
E por vós foi, Dom João,
Por vosso amor que morria.
Dom João quando isto ouviu
Por morto em terra cahia;
Os seus olhos não choravam,
Sua bocca não se abria.
Mirava a gente em redor
A vêr o que elle faria.
Foi-se direito á egreja
Onde a sua dama tinha:
—Eu te rogo, sacristão,
Por Deos e Santa Maria,
Que me ajudes a erguer
A campa da minha amiga.
Ali a viu tão formosa
Tal como d’antes a via.
Pôz os joelhos em terra,
Os braços ao céo erguia;
[Pg 55]
Jurou a Deos e á sua alma
Que mais a não deixaria.
Puchou por um punhal d’ouro
Por lhe fazer companhia.
Permittiu a virgem santa
A virgem Santa Maria,
Que se não perdesse uma alma
E um milagre fazia:
A defuncta a mão direita
Ao seu amante estendia,
Seus lindos olhos se abriram
A sua bocca sorria;
Volta á vida que se fôra
Com todo o amor que não se ia.
Seu pae o foram buscar,
Já estava na agonia;
Vêm amigos, vêm parentes
Todos com grande alegria;
E a Dom João dão a esposa
Que mui bem a merecia

22
Romance do Casamento e mortalha

(Versão do Minho)

Lá das bandas de Castella
Triste nova era chegada;
Dom João que vem doente,
Mal pesar da sua amada.
São chamados tres doutores
Dos que têm mais nomeada:
[Pg 56]
Que se algum lhe desse a vida
Teria paga avultada.
Chegaram os dois mais novos,
Dizem que não era nada;
Por fim que chega o mais velho
Diz com voz desenganada:
—Tendes tres horas de vida
E uma está meia passada;
Essa é para o testamento,
Deixar a alma encommendada.
A outra é para os sacramentos,
Que inda é mais bem empregada;
Na terceira as despedidas
Da vossa dama adorada.
Estando n’estas conversas
Dona Isabel que é chegada.
Ergueu os olhos para ella
Com a vista já turvada:
—«Ainda bem que vieste,
Minha prenda desejada;
Que tanto queria ver-te
Nesta hora minguada,
«Tenho fé na Virgem Santa,
N’ella venho confiada,
Que me hade ouvir e salvar-te,
Que teu mal não será nada.
—«Oh que se eu chegar a erguer-me,
Minha rosa namorada,
No vaso d’este meu peito
P’ra sempre serás plantada,
Com as bençãos de um Arcebispo,
E de agua benta regada,
Com a estóla da santa egreja
Ao meu coração atada.
[Pg 57]
Estando n’estas conversas,
Sua mãe que era chegada:
«—Que tens tu, filho querido
D’esta alma amargurada?
—«Tenho mãe que estou morrendo,
Que esta vida está acabada;
Com só três horas por minhas,
E uma já meio passada.
«—Filho de minhas entranhas,
N’esta hora minguada,
Lembra-te se algo deves
A alguma dama honrada.
—«Minha mãe, que devo, devo,
E Deos me não peça nada!
Dona Isabel, que em má hora
Por mim fica diffamada.
Mas deixo-lhe mil cruzados
Para que seja casada.
«—A honra não se paga, filho,
Mil cruzados não é nada.
—«Já lhe deixo mais duzentos
E a cruz da minha espada.
«—A honra não se paga, filho,
Os cruzados não são nada.
—«Deixo-a a estes tres doutores
Muito bem encommendada;
E a vós, minha mãe, vos peço
Que a tenhaes bem guardada.
O que com ella casar
Tem uma villa ganhada;
O que lhe disser que não
Tenha a cabeça cortada.
«—A honra não se paga, filho,
Nem com terras é comprada:
Se a essa dama lhe queres,
Não a deixes deshonrada.
[Pg 58]
—«Pois fique esta mão já fria
Na sua mão adorada;
De Dom João é viuva,
Condessa será chamada.

23
Romance da Nau Catherineta

(Versão de Lisboa)

Ora da nau Cath’rineta
D’ella vos quero contar,
Sete annos e mais um dia
Andou nas aguas do mar.
Não tinham lá que comer,
Nem mais quê para manjar,
Deitaram sólas de môlho
Para o domingo jantar.
A sóla era tão dura
Não a puderam tragar.
Deitam sortes á ventura
A vêr quem se hade matar!
Logo foi cahir a sorte
No capitão general.
—Sóbe, sóbe marujinho
Áquelle tópe real,
Vê se vês terras de Hespanha,
Ou praias de Portugal.
«Não vejo terras de Hespanha,
Nem praias de Portugal,
Vejo sete espadas nuas
Todas para te matar.
[Pg 59]
—Acima, acima, gageiro
Áquelle tópe real,
Vê se vês terras de Hespanha,
As praias de Portugal.
«Alviçaras, capitão,
Meu capitão general;
Já vejo terras de Hespanha
E praias de Portugal.
Tambem vejo tres meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a cozer,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar.
—Todas tres são minhas filhas,
Oh quem m’as dera abraçar!
A mais formosa de todas
Comtigo a heide casar.
«A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
—Dar-te-hei tanto dinheiro
Que o não possas contar.
«Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
—Dou-te o meu cavallo branco
Que nunca houve outro igual.
«Guardae o vosso cavallo
Que vos custou a ensinar.
—Que queres tu, meu gageiro,
Que alviçaras te heide eu dar?
«Eu quero a Nau Cath’rineta
Para n’ella navegar.
—A Nau Cath’rineta, amigo,
É de el-rei de Portugal;
Mas ou eu não sou quem sou,
Ou el-rei t’a hade dar.

[Pg 60]

III-ROMANCES QUE SE ENCONTRAM NAS COLLECÇÕES HESPANHOLAS

24
Romances do Conde prêso

(Versão de Trás-os-Montes)

Prêso vae o Conde, prêso,
Prêso vae a bom recado;
Não vae prêso por ladrão,
Nem por home’ haver matado.
Mas por violar a donzella
Que vinha de Sanctiago.
Não bastou dormir com ella,
Se não dal-a ao seu criado!
Accommetteu-a na serra,
Mui longe do povoado;
Por morta ali a deixára
Sem mais dó, sem mais cuidado.
Foi á presença do rei
Onde o Conde era levado:
«Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apostolo sagrado,
Que n’esta sua romeira
O fôro seja guardado.
[Pg 61]
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degollado;
Não ha fôro ou privilegio
Onde Deos é o aggravado.
Disse o rei aos do conselho,
Com semblante carregado:
—Sem mais detença este feito
Quero já desembargado!
—«Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado;
Ou hade casar com ella,
Ou senão... ser degollado.
—Pois que me praz, disse o rei,
O algoz seja chamado;
Ou já casar com a romeira,
Ou aqui ser degollado.
«—Venham algoz e cutello,
(Respondeu o accusado)
Antes morrerei mil vezes,
Antes que ser deshonrado!
Não me enterrem na egreja
Nem tam pouco em sagrado:
N’aquelle prado me enterrem
Onde se faz o mercado.
Cabeça me deixem fóra,
O meu cabello entrançado;
De cabeceira me ponham
A pelle do meu cavallo,
Que digam os passageiros:
Triste de ti, desgraçado!
Morreste de mal de amores,
Que é um mal desesperado!

[Pg 62]

25
Dom Garfos

(Variante da Beira Baixa)

Lá abaixo vem o Conde,
Prêso vem, arreatado,
Não por furtos que haja feito,
Nem por homens que ha matado;
Foi por zombar da romeira
Que vinha de Sanctiago.
A romeira era nobre,
A el-rei se ha queixado.
Mando que case com ella,
Ou que seja enforcado!
Não heide casar com ella,
Nem heide ser enforcado!
Quem me dera aqui meus pretos,
Ou meus velozes cavallos,
Ou meu sobrinho Dom Garfos,
Que eu me vira bem vingado.
Palavras não eram ditas
Dom Garfos era chegado:
«Quem vos trouxe aqui, meu tio,
Tão prêso e arreatado?
Não por furto que haja feito,
Nem por homens que ha matado?
[Pg 63]
—Foi por zombar com a romeira
Que vinha de Sanctiago;
A romeira era nobre
A el-rei se ha queixado.
Manda que case com ella,
Ou que seja enforcado.
Vae tu falar com el-rei,
A vêr se me ha perdoado.
Entrou por palacio dentro:
«Deos vos salve, meu bom rei!
Mandae-me soltar meu tio,
Se não eu o soltarei.
—«Vae Dom Garfos para casa,
Dorme um somno descançado;
Das onze pr’a meia noite
Teu tio será soltado.
Lá pela noite adiante
Acordou sobresaltado!
Disse p’ra sua mulher
Que um sonho tinha sonhado:
«Lá no Terreiro do Passo
Está meu tio enforcado.
—Não digas isso zombando,
Que esta noite ouvi um brado.
Com uma mão veste a capa,
Com outra sela o cavallo;
A um pretinho que tinha
Uma lança lhe ha dado.
Foi-se ao Terreiro do Paço
E viu seu tio enforcado!
[Pg 64]
«Deos te perdôe, meu tio,
Deos te tenha perdoado.
Sete condes caminhavam
A verem o enforcado;
A um mata, outro degolla,
Só um lhe ha escapado;
E esse mesmo que escapou
Foi a unha de cavallo.
—«Oh Dom Garfos, oh Dom Garfos,
Não sejas desatinado,
Mataste-me já seis condes,
Os melhores do meu reinado.
«E a vós tambem proprio Rei,
Se cá estivesses em baixo;
Mas como estaes de ventana
Palraes nem um papagaio!
Mas n’uma filha que tendes
Eu me verei bem vingado.
Vae Dom Garfos para casa,
Quatro facadas lhe ha dado:
«Uma é á honra de tu padre,
Outra á honra de tu madre;
Outra por minha saúde
Que te as haja mui bem dado!
Outra por seres traidora,
Que me não has acordado.

[Pg 65]

26
Justiça de Deos

(Variante da Beira-Alta)

Prêso vae o conde, preso,
Prêso vae a bom recado;
Não vae preso por ladrão,
Nem por homem ter matado,
Mas por violar a donzella
Que vinha de Sanctiago:
Não bastou dormir com ella,
Senão dal-a ao seu criado.
Accommetteu-a na serra,
Mui longe do povoado:
Por morta ali a deixara
Sem mais dó, nem mais cuidado.
Chorou tres dias, tres noites,
E mais teria chorado,
Senão que Deos sempre acode
A amparar o desgraçado.
Passou por ali um velho,
Um pobre velho soldado,
As barbas brancas de neve,
Em sua espada abordoado.
Vieiras traz na esclavina,
O chapeo d’ellas cercado;
Chegou-se á pobre romeira
Com muito amor, muito agrado:
[Pg 66]
—Não chores mais, filha minha,
Filha, de mais tens chorado;
Que esse villão cavalleiro
Prêso vae a bom recado.
Levou comsigo a donzella
O bom velho do soldado,
Vão á presença d’el-rei
Onde o conde era levado.
—Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apostolo sagrado,
Que n’esta tua romeira
O fôro seja guardado.
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degollado:
Que não valem fidalguias
Onde Deos é o aggravado.
Disse el-rei aos do conselho
Com semblante carregado:
—«Sem mais detença, este feito
Quero já desembargado,
«—Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado:
Ou hade casar com ella,
Ou senão, ser degollado.
—«Pois que me praz, disse o rei,
O algoz que seja chamado;
Ou já casar com a romeira,
Ou aqui ser degollado.
«Venham algoz e cutello,
Respondeu o accusado:
Mas antes morrer mil vezes
Que viver envergonhado.
[Pg 67]
Agora ouvireis o velho,
O bom velho do soldado:
—Fazeis, bom rei, má justiça,
Mau feito tendes julgado;
Primeiro casar com ella,
E depois ser degollado.
Lava-se a honra com sangue,
Mas não se lava o peccado.
Palavras não eram ditas
A espada tinha arrojado;
Despe o gaivão de romeiro,
Despe as armas de soldado,
Nos trajos de um santo Bispo
Apparece transformado!
Sua mitra de pedras finas,
De ouro puro o seu cajado;
Tomou a mão da romeira,
A mão do conde ha tomado,
Por palavras de presente
Ali os tem desposado.
Choravam todos que o viam,
Chorava mais o culpado;
Chorando, pedia a morte
Por não ficar deshonrado.
O santo Bispo o absolvia
Contricto do seu peccado:
D’ali o levam por morto,
Que nem o algoz foi chamado;
Justiça de Deos foi n’elle:
Antes de uma hora é finado.

[Pg 68]

27
Romances do Conde Alberto

(Versão do Porto)

Indo Dona Silvaninha
Pelo corredor acima,
Tocando sua guitarra,
Muito bem que a tangia;
Acordou seu pae da cama
Com o estrondo que fazia.
—Que tendes, Dona Silvana,
Que tendes, oh vida minha?
«Raparigas do meu tempo
São casadas, têm familia,
Eu por ser a mais formosa
Para o canto ficaria?
—Não tenho com quem te case
Neste reino, minha filha;
Só se fôr o Conde Alberto,
É casado e tem familia.
«Mandai-o chamar, meu pae,
Da sua parte e da minha,
Que mate sua condessa,
E case com vossa filha;
Que traga a cabeça d’ella
Nesta dourada bacia.
Eis manda chamar o Conde
Da sua parte e da filha;
[Pg 69]
Matasse a sua condessa,
Casasse com Silvaninha.
Veio o Conde mui depressa,
Mais depressa que podia:
—Quero mates a condessa,
Que cases com minha filha.
—«Como matar a condessa
Se ella a morte não merecia?
—Mata, mata, Conde Alberto;
Antes de uma Ave-maria
Me traz a sua cabeça
N’esta dourada bacia.
Foi o Conde para casa,
Muito triste que elle ia;
Mandou fechar seus palacios,
Cousa que nunca fazia.
Mandou vestir seus criados
De luto á maravilha;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lagrimas eram tantas
Que pela mesa corria;
Os suspiros eram tantos
Que o palacio estremecia.
Desceu a condessa abaixo
A vêr o que o Conde tinha:
»Que tens tu, oh Conde Alberto,
Que tendes, oh vida minha?
Conta-me as tuas tristezas
Como contaes alegrias.
—«Minhas tristezas são tantas
Que contar-vos não queria,
»Conta, conta, Conde Alberto,
Conta, conta, vida minha.
[Pg 70]
—«Manda-me el-rei que te mate,
Que case com sua filha.
»Cala-te lá, Conde Alberto,
Que isso remedio teria:
Meter-me-has n’um convento,
Que não veja sol, nem dia;
Deras-me o pão por onça,
Agua por uma medida.
—«Ai! como pode isso ser,
Condessa da minha vida?
Diz que te leve a cabeça
Nesta maldita bacia.
»Cala-te d’ahi, oh Conde,
Que isso remedio teria:
Matarias a donzella
Que se parece commigo.
—«Cala-te d’ahi, mulher,
Que isso não é honra minha.
»Vou para casa de meu pae
Nunca mais apparecia.
Palavras não eram ditas
El-rei á porta batia:
Se a condessa era morta,
Senão elle a mataria.
—«A Condessa não é morta,
Anda n’essas agonias.
»Deixa-me dar um passeio
Da sala até á cosinha:
Adeos moças, adeos aias
Com quem eu me divertia,
Adeos espelho real
Onde me via e vestia;
Que ámanhã por estas horas
Já estarei na terra fria.
[Pg 71]
Dá-me cá esse menino
Que o quero pentear;
Dá-me cá o outro mais novo,
Quero-lhe dar de mammar:
Mamma, mamma, meu menino,
Este leite de paixão,
Que ámanhã por estas horas
Está tua mãe no caixão.
Mamma, mamma, meu menino,
Este leite de pesar,
Que ámanhã por estas horas
Vae tua mãe a enterrar.
Mamma, mamma, meu menino,
Este leite de amargura,
Ámanhã por estas horas
Está tua mãe na sepultura.
Tocam sinos em palacio,
Ai, Jesus, quem morreria?
—Morreu a filha do rei
Pela soberba que tinha,
Descasar os bem casados
Cousa que Deos não queria.

28
Conde Alves

(Variante da Beira Baixa)

Estando a princesa a chorar,
Filha do rei de Castilla:
Seu pae se foi ter com ella
Ao estrondo que fazia:
[Pg 72]
—O que é isso, oh Silvana,
Que é isso, oh filha minha?
«De tres manas que eu tenho
São casadas tem família;
Eu por ser a mais formosa
Solteirinha ficaria?
—Não tenho com quem te case
Na mais alta senhoria;
Só sendo com o Conde Alves,
É casado e tem familia.
«Com esse, meu pai, com esse,
Com esse é que eu queria;
Mande-o chamar, meu pae,
Da sua parte e da minha!
—Ála, ála, meus criados,
O Conde Alves vão chamar.
—«Ainda agora de lá venho,
Já para lá heide tornar?
Entrou pelo passo dentro
Fazendo mil cortezias:
—«Que me quer a Vossa Alteza,
Vossa Alteza Senhoria?
—Quero que mates a Condessa,
E cases com minha filha!
—«A Condessa não a mato,
Que ella a morte não merecia.
Mando-a deitar aos matos,
Que os bichos a comeria.
—Mata, mata, Conde Alves,
Não me tornes demasia;
A cabeça me ha de vir
N’esta dourada bacia.
Não m’a troques lá por outra,
Que eu bem a conhecia;
[Pg 73]
Que ao seu lado direito
Um sinal preto teria.
Foi-se d’ali o bom Conde,
Cheio de melancholia;
Mandou fechar suas portas,
Cousa que nunca fazia!
Mandou pôr a sua mesa,
Nem um, nem outro comia;
As lagrimas eram tantas,
Que pela mesa corria.
«—O que é isso, oh bom Conde,
Que é essa melancholia?
Conta-me as tuas tristezas,
Que eu te conto alegrias!
—«Se eu te contasse tristezas,
Morta para trás cahirias:
Mandou o rei que te mate,
Que case com sua filha.
«—Isso não, bom conde, não,
Que eu a morte não merecia;
Manda-me deitar aos mares,
Que os peixes me comeria.
—«Isso não, condessa, não,
Que o rei logo o sabia,
A cabeça te hade ir
N’aquella negra bacia,
Que te não troque por outra
Que elle bem te conhecia;
Que ao teu lado direito
Um sinal preto teria.
«—Deixa-me dar um passeio
Da sala para o jardim:
Adeos cravos, adeos rosas,
Adeos flor do alecrim.
[Pg 74]
Deixa-me dar um passeio
Da sala para a cosinha;
Deixa-me dar de mammar
Ao filho que tanto queria.
Mamma, filho, mamma, filho,
Este leite amargurado,
Ámanhã por estas horas
Já teu pai está coroado.
Mamma, filho, mamma, filho,
Este leite de amargura;
Ámanhã por estas horas
Já estarei na sepultura.
Anda cá, filho mais velho,
Que te quero ensinar
A tua mãe a rainha
Como lhe haveis de chamar,
Com o joelho no chão,
O chapeosinho no ar.
Estando n’estas razões
El-rei á porta batia:
A condessa já é morta,
Senão elle a mataria.
—«A condessa não é morta,
Está n’essas agonias.
Tocam os sinos na côrte,
Ai, Jesus, quem morreria?
Morreu, foi Dona Silvana,
Por crimes que commettia;
O pae morreu ás dez horas,
E a filha ao meio dia.
Apartar os bem casados
Era o que Deos não queria.

[Pg 75]

29
Romances do Conde de Allemanha

(Versão da Beira-Baixa)

Já o sol nasce na serra,
Já lá vem o claro dia,
Inda o Conde de Allemanha
Com a rainha dormia.
Não o sabia o rei,
Nem quantos na côrte havia,
Sabia-o só o princesa
Juliana sua filha.
—Juliana, se o sabes,
Não o queiras descubrir;
Porque o Conde é muito rico
De ouro te hade vestir.
«Não quero seus fatos d’oiro,
Já os tenho de damasco;
Inda meu pae não é morto,
Já me querem dar padrasto!
As pregas d’esta camisa
Eu não as chegue a fazer,
Quando meu pae vier da missa
Se eu lh’o não fôr dizer.
As pregas d’esta camisa
Não as chegue eu a acabar,
Em meu pae vindo da missa
Se lh’o eu não fôr contar.
[Pg 76]
Estando n’estas rasões
O pae á porta batia:
—«Oh que razões serão essas
Entre uma mãe e a filha?
«Com bem venha, senhor pae,
Com Deos seja a sua vinda;
Tenho para lhe contar
Um conto de maravilha:
Estando eu no meu tear,
Tecendo cambraia fina,
Veio o Conde de Allemanha...
—«Algum fio te quebraria?
Não te zangues, minha filha,
Nem me faças tu zangar,
Porque o Conde é divertido,
Talvez fosse por brincar.
«Mal o hajam os seus brincos,
Mais o seu negro brincar;
Que me pegou por um braço
E á cama me quiz levar.
—«Accommoda-te pois, filha,
Não me faças mais zangar,
Ámanhã por estas horas
Vae o Conde a degollar.
«Levante-se, minha mãe,
Venha vêr a bizarria!
E o Conde da Allemanha
Tambem vae na companhia,
Com a cabeça n’um prato,
E o sangue n’uma bacia.
—Mal o hajas tu, oh filha,
Fóra o leite que mammaste;
Sendo o Conde tão bonito
A morte que lhe causaste.
«Accommode-se minha, mãe,
[Pg 77]
Não me faça mais zangar,
A morte, que o Conde leva
Não lh’a faça eu levar.
—Bem hajas, oh minha filha,
Mais o leite que mammaste;
Menina de doze annos
Da morte que me livraste.

30
O Conde de Allemanha

(Variante de Trás-os-Montes)

Já o sol dava na côrte,
E já era o claro dia,
Inda o Conde de Allemanha
Com a rainha dormia.
Não no saberia el-rei,
Nem quantos na côrte havia,
Sabia-o a Dona Infanta
Filha da mesma rainha.
—«Infantinha, se o sabes,
Não me queiras descobrir,
Que o Conde é mui brioso,
De ouro te hade vestir.
«Não quero vestidos d’ouro,
Que os tenho de damasco,
Meu pae ainda é bem novo,
Já me querem dar padrasto.
As mangas d’esta camisa
Não as chegue eu a romper,
Se quando vier meu pae
Eu lh’o não fôra dizer.
[Pg 78]
Venha, venha, senhor, pae,
Santa seja a sua vinda,
Um conto quero contar,
Um conto á maravilha.
—Conta, conta, minha filha,
Que eu gósto do te ouvir!
«Estando eu na minha cella,
Dobando seda amarella,
Veio o Conde de Allemanha
Tres fios me tirou d’ella,
—Cala-te lá, oh filha,
Vamos p’r’a mesa jantar,
Que o Conde é rapaz novo,
É menino quer brincar.
«Mal hajam os seus brinquedos,
Mal haja do seu brincar,
Que pegou em mim nos braços,
Á cama me foi lançar.
—Dize pois, oh minha filha,
Que castigo lhe heide dar?
«Quero escadas dos seus ossos
Para o jardim passear.
—Cala-te lá, oh filha.
Vamos para a mesa jantar,
Que amanhã por estas horas
Vae o Conde a degollar.
—«Arrenego-te, Mariana,
Mais o leite que mammaste,
Oh que Conde tão bonito
E a morte que lhe causaste,
«Minha mãe, minha mãesinha,
Venha á janella do canto,
Venha ver o senhor Conde
Todo vestido de branco.
Venha vêr, oh minha mãe,
Á janellinha do poço,
[Pg 79]
Venha vêr o senhor Conde
Com uma corda ao pescoço.
Venha, venha, minha mãe,
Venha p’r’a sala do meio,
Vêr o Conde da Allemanha
Feito n’um cravo vermelho.
—«Mal o hajas tu, oh filha,
Fóra o leite que mammaste,
Sendo o Conde tão bonito
A morte que lhe causaste.
«Cale-se ahi, minha mãe,
Ninguem a ouça falar;
Que a morte que leva o conde
Não a vá você levar.

31
Romances de Dom Carlos de Montealbar

(Versão do Porto e Beira-Alta)

Estando Dona Silvana,
Mais Dom Carlos Montealbar,
Debaixo de uma roseira,
Debaixo de um rosal,
Passou por ali um pagico,
Que nunca elle passasse:
—Pagico, do que has visto
A el-rei não vás contar,
Que eu te dou a minha chave,
[Pg 80]
Quanto puderes levar;
E da parte da senhora
O que ella te quizer dar.
«Não quero ouro, nem prata,
Se ouro e prata me heis dar;
Quero guardar lealdade
A quem a devo guardar.
Pagem, como ignorante,
A el-rei o foi contar,
Á casa dos estudantes
Onde estava a estudar,
«Deos vos salve, senhor rei,
E a vossa corôa real;
Lá deixei o conde Carlos
Com a princesa a folgar,
«—Se á puridade o dissesses
Tença te havia de dar;
Mas pois tam alto falaste,
Alto hasde ir a enforcar.
—«Ganhas-te, mexeriqueiro,
Com o teu mexericar.
«Ganhei a morte, senhora,
E a vida me podeis dar.
—«Se ella está na minha mão,
A vida não te heide dar;
Para outra não fazeres
Já irás a degollar,
E ao rabo do meu cavallo
Te mandarei arrastar.
Aos sette para outo mezes
Seu pae que a estava a mirar;
-«Que me mira, senhor pae,
[Pg 81]
Que tanto me está a mirar?
«—Eu miro-te, minha filha,
Que me pareces pejada.
—«Calle-se d’ahi, meu pae,
Que é das saias mal talhadas.
Mandou chamar dois obreiros
A quem elle mais amava,
Olharam um para o outro:
»Estas saias não tem nada!
«—Call’-te, call’-te, minha filha,
Ámanhã serás queimada!
—«Não se me dá que me queimem,
Que me tornem a queimar;
Da-se-me d’este meu ventre
Que é de sangue real.
Ai quem me dera um pagico
Que me fôra bem mandado,
Que me levara uma carta
A Dom Carlos Montealbar.
«Escreva, minha senhora,
Em quanto eu vou jantar.
—«Se elle estiver a dormir
Façam-no logo acordar,
Se elle estiver a comer
Não o deixem acabar.
«Aqui lhe trago, senhor,
Novas de grande pesar,
Que a sua bella menina
Ámanhã vae a queimar.
Jornada de trinta leguas
Temol-a nós para andar.
Era meia noite em ponto
Dom Carlos a repousar;
[Pg 82]
Chamou um dos seus criados
O que lhe era mais leal,
Lhe aparelhasse um cavallo
Dos que tem melhor andar;
Doze campainhas d’ouro
Lhe puzesse ao peitoral.
Onde vás tu, oh Dom Carlos,
Sósinho por esse andar?
Vestiu-se em trajos de frade
Ao caminho foi esperar.
—Cesse, cesse, senhor conde,
Cesse se hade cessar,
Que a menina que aí vae
Inda está por confessar.
«—Confesse-a, senhor padre,
Em quanto eu vou jantar.
—Diga-me, minha menina,
Verdade me hade falar:
Se algum dia teve amor
A leigo, crelgo, ou a frade?
—«Nunca tive amor a crelgo,
Nem a leigo, nem a padre;
Tive amores com Dom Carlos,
Por isso vou a queimar.
No primeiro mandamento
O padre nada lhe disse;
No meio da confissão
Um beijinho lhe pediu.
—«Cesse, cesse, senhor padre,
Cesse se hade cessar,
Onde Dom Carlos beijou
Ninguem mais hade beijar.
—Esse sou, minha senhora,
Que a venho aqui buscar.
[Pg 83]
Tomou-a logo nos braços,
Puzeram-se a caminhar;
Correm d’alem os criados
E puzeram-se a gritar:
«Senhor padre, deixe a moça,
Que a manda seu pae queimar!
—Pois vão dizer a seu pae,
Que a venha d’aqui tirar.

32
Dona Lisarda

(Variante da Beira-Baixa)

—Oh Lisarda, oh Lisarda,
Oh Lisarda meus amores,
Quem dormira uma só noite
Comvosco n’esses alvores.
«Dormirieis uma ou duas
Se não vos fôsses gabar.
—Tenho feito juramento
Na folhinha do Missal,
Menina com quem dormir
De eu a não ir diffamar.
Ainda não era manhã
Ao jogo se foi gabar:
—Dormi esta noite com uma....
Não ha na corte uma egual!
[Pg 84]
Puzeram-se uns para os outros:
Quem seria? quem será?
Aonde estava um irmão
Á mãe o veio contar;
A mãe assim que o soube
Logo a mandou fechar.
O pae perdeu confiança,
Lenha lhe mandou cortar.
«—Oh Lizarda, oh Lizarda,
O pae te manda queimar.
«Não se me dá que me queime,
Nem que me mande queimar;
Dá-se-me d’este meu ventre
Que leva sangue real.
Chegou a uma janella
Mui triste do coração:
«Haverá por’hi um pagem
O qual queira do meu pão,
Que esse levasse uma carta
Ao conde de Montalvão?
Appareceu-lhe um menino
De sete annos e mais não:
—«Eu lh’a levarei, senhora,
Escripta no coração.
«Se o achares a dormir
Deixa-o primeiro acordar;
Se o achares á janella,
Cartas lhe vás entregar.
Foi fortuna do menino
Á janella o ir achar:
[Pg 85]
—«Cartas lhe trago, senhor,
Cartas de muito pesar;
Menina com quem dormistes
Ámanhã a vão queimar.
Não se lhe dá que a queimem,
Nem que a levem a queimar;
Dá-se-lhe só do seu ventre
Que leva sangue real.
—Ala, ala, meus criados,
Cavallos ide ferrar,
Com ferraduras de bronze
Que não se hajam de gastar.
Jornada de outo dias
Esta noite se hade andar.
Vestiu-se em trajos de frade
Começou a caminhar;
Quando chegou ao pé d’ella
Então já a iam queimar.
—Quéde, quéde essa justiça,
Se não a farei quedar,
A menina que aí levam
Ainda vae por confessar.
—Confessae-a, senhor padre,
Emquanto vamos jantar;
A confissão é de um anno,
Ella hade-se demorar.
—Venha cá, minha menina,
Faça confissão geral,
No meio da confissão
Um beijinho me hade dar.
«Tenho feito juramento
Na folhinha do Missal,
Bocca que beijou o conde
Frade não hade beijar.
[Pg 86]
—Venha cá, minha menina,
Que a quero confessar;
No meio da confissão
Um abraço me hade dar.
«Não permitta Deos do céo
Nem os santos do altar,
Braços que o conde abraçaram
Frades não hão de abraçar.
Começa-se elle a sorrir
No meio da confissão:
«Pelo rir estás parecendo
O Conde de Montalvão!
—Esse sou, minha senhora,
Criado para a salvar.
Montou-a no seu cavallo,
Foi á pressa a caminhar,
Quando veio a justiça
Não a puderam alcançar.
—Digam agora a seus manos ’
Que a venham cá accusar;
Digam agora a sua mãe
Que a venha cá fechar;
Digam também a seu pae
Que a mande agora queimar!
Vae na minha companhia
Para com ella casar.

[Pg 87]

33
Dona Areria

(Variante de Coimbra)

A cidade de Coimbra
Tem uma fonte de agua clara;
As moças que bebem n’ella
Logo se vêem pejadas.
Dona Areria bebeu n’ella
Logo se viu occupada
Estando com seu pae á mesa
Seu pae que muito a mirava:
—Dona Areria, Dona Areria,
Parece que estás pejada?
«A culpa é dos alfaiates,
Que talharam mal a saia.
Chamaram-se os alfaiates
Á sua salla fechada,
Olharam uns para os outros:
—Esta saia não tem nada.
Ao cabo de nove mezes
Ella será abaixada.
Arrecolheu-se ao seu quarto
Muito triste, desmaiada.
—Dona Areria, Dona Areria,
Ámanhã serás queimada.
[Pg 88]
«Não se me dá que me queimem,
Que me tornem a queimar;
Dá-se-me d’este meu ventre
Que é de mui nobre linhagem.
Oh quem me dera um criado
Que me comêra o meu pão;
Que me levara uma carta
Ao conde de Montalvão.
—Escreva, menina, escreva,
Escreva do coração,
Que eu lhe levarei a carta
Ao conde de Montalvão.
—Aqui tem, oh senhor conde,
Carta de muito pesar;
Menina com quem dormiu
Ella aí vem a queimar.
—«Se tu me dizes devéras,
Cavallos mando apromptar;
A jornada de oito dias
Ainda hoje se hade andar.
—Lá ao fim de nove legoas
Liteiras se hão de encontrar.
Vestiu-se em trajos de frade
Ao caminho a foi esperar;
Em chegando ao pé d’ella
Aos criados foi falar:
—«Pára, pára, oh da liteira,
Que eu te farei parar,
A menina que vem dentro
Ella vem por confessar:
—«Diga-me, minha menina,
Verdade me hade falar,
Se teve amores com clerigos
Ou com frades, mal pesar?
[Pg 89]
«Não tive amores com clerigos,
Nem frades de mal pesar;
Tive amores com Dom Carlos,
Por isso vou a queimar.
—«Lá no meio da confissão
Um beijinho me hade dar.
«Onde o conde pôz a bocca
Padre algum lhe hade tocar.
—«Pois Dom Carlos sou eu mesmo
E comtigo heide casar.

34
Romance do Passo de Roncesval (Versão de Trás-os-Montes)

—Quêdos, quêdos cavalleiros,
Que el-rei os manda contar!
Contaram e recontaram,
Só um lhe vinha a faltar;
Era esse Dom Beltrão,
Tão forte no batalhar;
Nunca o acharam de menos
Senão n’aquelle contar,
Senão ao passar do rio,
Nos portos de mal passar.
Deitam sortes á ventura
A qual o ha de ir buscar.
Que ao partir fizeram todos
Preito, homenagem no altar,
[Pg 90]
O que na guerra morresse
Dentro em França se enterrar.
Sete vezes deitam sortes
A quem no hade ir buscar;
Todas sete lhe cahiram
Ao bom velho de seu pae.
Volta redeas ao cavallo,
Sem mais dizer, nem falar...
Que lh’a sorte não cahira,
Nunca elle havia ficar.
Triste e só se vae andando
Não cessava de chorar;
De dia vae pelas montes.
De noite vae pelo val;
Aos pastores perguntando
Se viram ali passar
Cavalleiro de armas brancas,
Seu cavallo tremedal?
«Cavalleiro de armas brancas,
Seu cavallo tremedal,
Por esta ribeira fóra
Ninguem não no viu passar.
Vae andando, vae andando
Sem nunca desanimar,
Chega áquella mortandade
D’onde fôra Roncesval:
Os braços já tem cansados
De tanto morto virar;
Viu a todos os francezes,
Dom Beltrão não pôde achar.
Volta atrás o velho triste,
Volta por um areal,
Viu estar um perro mouro
Em um adarve a velar:
[Pg 91]
—Por Deos te peço, bom mouro,
Me digas sem me enganar,
Cavalleiro de armas brancas
Se o viste por’qui passar?
Hontem á noite seria,
Horas do gallo cantar,
Se entre vós está cativo
A oiro o heide pezar.
«Esse cavalleiro, amigo,
Diz’-me tu que signaes traz?
—Brancas são as suas armas,
O cavallo tremedal,
Na ponta da sua lança
Levava um branco sendal,
Que lh’o bordou sua dama
Bordado a ponto real.
«Esse cavalleiro, amigo,
Morto está n’esse pragal,
Com as pernas dentro d’agua,
O corpo no areal.
Sete feridas no peito
A qual será mais mortal:
Por uma lhe entra o sol,
Por outra lhe entra o luar,
Pela mais pequena d’ellas
Um gavião a voar.
—Não tórno a culpa a meu filho,
Nem aos mouros de o matar:
Tórno a culpa a seu cavallo
De o não saber retirar.
Milagre! quem tal diria,
Quem tal poderá contar!
O cavallo meio morto
Ali se pôz a falar:
—«Não me tornes essa culpa,
[Pg 92]
Que m’a não podes tornar;
Tres vezes o retirei,
Tres vezes para o salvar;
Tres me deu de espora e rédea,
Co’a senha de pelejar.
Tres vezes me apertou silhas,
Me alargou o peitoral...
Á terceira fui a terra
D’esta ferida mortal.

[Pg 93]


VERGEL DE ROMANCES MOURISCOS, CONTOS DE CAPTIVOS, LENDAS PIEDOSAS E XACARAS


IV—ROMANCES MOURISCOS E CONTOS DE CAPTIVOS

35
Fragmento de um Romance do Cid

(Versão de Gil Vicente)

Ai Valença, guai Valença,
De fogo sejas queimada,
Primeiro foste de Mouros
Que de Christianos tomada.
Alfaleme na cabeça
En la mano uma azagaya,
Guai Valença, guai Valença,
Como estás bem assentada;
Antes que sejam tres dias
De Moiros serás cercada.
........................
........................

[Pg 94]

36
Romances de Dom Gayfeiros

(Versão de Trás-os-Montes)

Sentado está Dom Gayfeiros
Lá em palacio real,
Assentado ao taboleiro
Para as tavolas jogar.
Os dados tinha na mão,
Que já os ia deitar,
Se não quando vem seu tio
Que lhe entra a pelejar:
—Para isso és Gayfeiros,
Para os dados arrojar;
Tua esposa lá têm mouros,
Não és para a ir buscar.
Outrem fôra seu marido,
Já lá não havia estar.
Palavras não eram ditas
Os dados vão pelo ar,
A que não fôra o respeito
Da pessoa e do logar,
Tavolas e taboleiro
Tudo fôra espedaçar:
—«Sette annos a busquei, tio,
Sem a poder encontrar;
[Pg 95]
Os quatro por terra firme,
Os tres por cima do mar.
Andei por montes e valles
Sem dormir, nem descançar;
O comer de carne crua,
No sangue a sêde matar,
Sangue vertiam os pés,
Cansados de tanto andar;
E os sete annos cumpridos
Sem a poder encontrar.
Ella estava em Salsonha
Lá em palacio real!
Mercê vos peço, meu tio,
Se m’a vós quizereis dar,
Vossas armas e cavallo
Que m’as queiraes emprestar.
A minha esposa entre mouros
Eu a quero ir buscar.
—Minhas armas não te empresto,
Que as não posso desarmar;
Meu cavallo bem vezeiro
Não o quero mal vezar.
Dom Gayfeiros, que isto ouviu,
A espada foi a tirar:
—«Bem parece Dom Roldão,
Bem parece mal pesar,
O muito amor que me tendes
Para assim me affrontar.
Mandae-me dizer por outrem
Que me las possa pagar,
Essas palavras, meu tio,
Que vos não quero tragar.
—Bem parece, Dom Gayfeiros,
Bem se deixa de mostrar,
[Pg 96]
Que a falta de annos, sobrinho,
Em tudo vos faz falar.
Aquelle que mais te quer
Esse te hade castigar:
Fôras tu mau cavalleiro,
Nunca te eu dissera tal!
Porque sei que és bom, o disse,
E agora armar e sellar.
Meu cavallo e minhas armas
Ahi estão ao teu mandar,
E aqui tendes o meu corpo
Para vos acompanhar.
—«Só quero ir, meu tio, só
Para melhor a tirar;
Venham armas e cavallo,
Que já me quero marchar.
«Oh que lindo cavalleiro
De tão gentil cavalgar!
—«Melhor sou jogando ás damas,
Com mouros a batalhar.
«Se sois christão cavalleiro
Recado me haveis levar,
Que digaes a Dom Gayfeiros
Porque me não vem buscar;
Pois me querem fazer moira,
E de Christo renegar.
Com um rei mouro me casam
De alem das bandas do mar,
Dos sette reis da moirama
Rainha me hão de coroar.
—«Esse recado, senhora,
Eu mesmo lh’o heide dar,
Pois Dom Gayfeiros sou eu,
Que vos venho a buscar.
A fala não era dita
[Pg 97]
Puzeram-se a caminhar;
Tirou-a pelo balcão
Por não haver mais logar.
Cavalgam, vão caminhando,
Não cessam de caminhar,
Por essa moirama fóra
Sem mais temor, nem pesar;
Falando de seus amores
Sem de mais nada pensar.
Em terras da christandade
Por fim vieram a entrar,
As festas que se fizeram
Não teem conto, nem par.

37
Melisendra

(Variante de Trás-os-Montes)

—Sette annos são cumpridos
Bem n’os deves de contar,
Que a Melisendra é cativa
E a vida leva a chorar.
Outrem fôra seu marido,
Já lá não havia estar!
A seu tio Dom Roldão
Tal resposta lhe foi dar:
—«Os sette annos são cumpridos
Sem a poder encontrar!
Agora a saber sou vindo
[Pg 98]
Que a Salsonha foí parar.
E eu sem armas, nem cavallo
Com que a possa ir buscar!
—Eu sempre te vi com armas,
Com cavallos a adestrar;
Agora que estás sem elles
É que a queres ir buscar?
—«As vossas armas meu tio,
Que m’as não queiraes negar;
A minha esposa cativa
Como heide eu ir buscar?
—Em Sam João de Latrão
Fiz juramento no altar
De a ninguem emprestar armas
Que m’as faça acovardar.
Saltam-lhe os olhos da cara,
De merencorio falar:
—«De covarde a mim! ninguem
Nunca me hade appellidar!
—Fôras tu mau cavalleiro,
Nunca te eu dissera tal.
Dom Roldão a sua espada
Ali lhe foi entregar:
—E mais terás o meu corpo
Para te ir acompanhar.
—«Mercês, meu tio, heide ir só,
Só, tenho de a ir buscar.
—Pois se queres ir só, sobrinho,
Esta te hade acompanhar;
Meu cavallo é generoso
Não o queiras sopear;
Dá-lhe mais rédea que espora,
[Pg 99]
N’elle te podes fiar.
Andando vae Dom Gayfeiros,
Andando a bom andar;
Por essas terras de Christo
Té á moirama chegar.
Ia triste e pensativo,
Cheio de grande pesar,
Para as portas de Salsonha,
Sem saber como hade entrar;
Melisendra em mãos de mouros
Como lh’a hade sacar?
Estando n’este cuidado
As portas se abrem de par,
El-Rei com seus cavalleiros
Sahia ao campo a folgar.
Furtou-lhe as voltas Gayfeiros,
Pelas portas foi entrar;
Deu com um christão cativo
Que ali andava a trabalhar:
—«Por Deos te peço, cativo,
E elle te venha livrar,
Assim me digas se ouviste
N’esta terra anomear
A uma dama christan,
Senhora de alto solar,
Que anda cativa de mouros
E a vida leva a chorar?
«—Deos te salve, cavalleiro,
Elle te venha ajudar!
E assim me dê outra vida,
Que esta se vae a chorar.
Pelos signaes que me déste
Já bem te posso affirmar,
Que a dama que andas buscando
[Pg 100]
Em palacio deve estar.
Toma essa rua direita,
Que leva ao passo real,
Lá verás pelas janellas
Muitas christãs a folgar.
Tomou a rua direita,
Que no palacio vae dar,
Alçou os olhos ao alto,
Melisendra viu estar
Sentada áquella janella,
Tão entregue ao seu pensar,
Que as outras em redor d’ella
Não as sentia folgar.
Rua abaixo, rua acima,
Gayfeiros a passear:
«D’onde é o cavalleiro
De tão lindo passear?
—«O cavalleiro é christão
Das bandas d’alem do mar.
«Se o cavalleiro é christão
Recado me haveis levar,
Que digaes a Dom Gayfeiros
Porque me não vem buscar,
Em quanto eu presa e cativa.
A vida levo a chorar.
—«Esse recado, senhora,
Vós mesma lh’o haveis de dar;
Dom Gayfeiros aqui o tendes,
Que vos vem a libertar.
Palavras não eram ditas
Os braços lhe foi a dar,
Ella do balcão abaixo
Se deitou sem mais falar.
[Pg 101]
Maldito perro de mouro
Que ali andava a rondar
Em altos gritos o mouro
Começava de bradar:
«—Accudam á Melisendra,
Que se vae para alem-mar.
—«Melisendra, Melisendra,
Agora é o esforçar!
Aperta a cilha ao cavallo,
Affrouxa-lhe o peitoral,
Saltou-lhe em cima de um pulo,
Sem pé no estribo poisar.
Tomou-a pela cintura,
Que o corpo ergueu por lh’a dar.
Assenta a esposa á garupa
Para que a possa abraçar;
Finca esporas ao cavallo,
Que o sangue lhe faz saltar,
Os mouros pela cidade
A correr e a gritar;
Quantas portas ella tinha
Todas as foram cerrar,
Sette vezes deu a volta
Da cerca sem a passar,
O cavallo ás outo vezes
De um salto a foi saltar.
O rei que vinha da caça
Lá deitou a desfilar.
Sentiu logo Dom Gayfeiros
Como o iam alcançar:
—«Não te assustes, Melisendra,
Que é força aqui apear;
Entre estas arvores verdes
[Pg 102]
Um pouco me hasde aguardar,
Em quanto eu volto a esses perros,
Que os heide affugentar.
As boas armas que trago
Agora as vou a provar.
«—Renego de ti, christão
E mais do teu pelejar!
Não ha outro cavalleiro
Que se te possa egualar;
Só se fosse Dom Roldão,
O encantado sem par.
—«Calla-te d’aí, rei mouro,
Calla-te, não digas tal,
Sou o infante Dom Gayfeiros,
Roldão meu tio carnal,
Alcaide mor de Paris,
Minha terra natural.
Gayfeiros, senhor do campo,
Não tem com quem pelejar;
Cheio de grande alegria
Melisendra foi buscar:
«Ai, se vens ferido, esposo,
E que ferido hasde estar?
Eram tantos esses mouros,
E tu só a batalhar!
Mangas da minha camiza.
Com ellas te heide pençar;
Toucas da minha cabeça
Faxas para te apertar.
—«Calla-te d’aí, infanta,
E não queiras dizer tal,
Por mais que foram-n’os mouros
Não me haviam fazer mal:
[Pg 103]
São de meu tio Roldão
Estas armas de provar.
A Paris já são chegados,
Já sáem para os encontrar,
Sete leguas da cidade
A côrte os vae esperar;
Sahia o imperador
A sua filha a abraçar:
Grande honra a Dom Gayfeiros,
Os parabens lhe vão dar;
Por sua muita bondade
Todas o estão a louvar,
Pois libertou sua esposa
Com valor tão singular.

38
Romance de Branca-Flor

(Versão da Extremadura)

—Á guerra, á guerra, mourinhos,
Quero uma christã cativa!
Uns vão pelo mar abaixo,
Outros pela terra acima;
Tragam-me a christã cativa,
Que é para a nossa rainha.
Uns vão pelo mar abaixo,
Outros pela terra acima;
Os que foram mar abaixo
Não encontraram cativa;
[Pg 104]
Os que foram terra acima
Tiveram melhor atina.
Deram com o conde Flores,
Que vinha da romaria:
Vinha lá de Sanctiago,
Sanctiago da Galliza.
Mataram o conde Flores,
A condessa vae cativa;
Mal que o soube a rainha
Ao caminho lhe sahia:
«Venha embora a minha escrava,
Boa seja a sua vinda!
Aqui lhe entrego estas chaves
Da dispensa e da cosinha;
Que me não fio de moiras,
Que me não dêem bruxaria.
»Acceito as chaves, senhora,
Por grande desdita minha!
Hontem condessa jurada,
Hoje moça da cosinha.
A rainha está pejada,
A escrava tambem o vinha;
Quiz a boa ou má fortuna
Que ambas parissem n’um dia.
Filho varão teve a escrava,
E uma filha a rainha;
Mas as perras das comadres,
Para ganharem alviçaras,
Deram á rainha o filho,
E á escrava deram a filha.
»Filha minha da minha alma,
Com que te baptisaria?
As lagrimas dos meus olhos
[Pg 105]
Te sirvam de agua bemdita.
Chamar-te-hei Branca Rosa,
Branca-Flor d’Alexandria,
Que assim se chamava d’antes
Uma irmã que eu tinha.
Captivaram-n’a os mouros
Dia da Paschoa Florida,
Quando andava a apanhar rosas
N’um rosal que meu pae tinha.
Estas lastimas choradas
Veis la rainha que ouvia,
E co’as lagrimas nos olhos
Muito depressa accudia:
«Criadas, minhas criadas,
Regalem-me esta cativa;
Que se eu não fôra de cama
Eu é que a regalaria.
Mal se alevanta a rainha
Vae-se ter com a cativa:
«Como estás, oh minha escrava,
Como está a tua filha?
»A filha boa, senhora,
Eu como mulher parida.
«Se estiveras em tua terra
Que nome lhe chamarias?
»Chamava-lhe Branca Rosa,
Branca-Flor de Alexandria;
Que assim se chamava d’antes
Uma irmã que eu tinha:
Cativaram-n’a os mouros
Dia de Paschoa Florida,
Quando andava a apanhar rosas
[Pg 106]
N’um rosal que meu pae tinha,
«Se vira’la tua irmã
Se tu a conhecerias?
»Assim eu a vira nua,
Da cintura para cima;
Debaixo do peito esquerdo
Um lunar preto ella tinha,
«Ai, triste de mim coitada,
Ai triste de mim mofina!
Mandei buscar uma escrava
Trazem-me uma irmã minha.
Não são passadas três dias
Morre a filha da rainha:
Chorava a condessa Flores
Como quem por sua a tinha;
Porem mais chorava a mãe,
Que o coração lh’o dizia.
Deram á lingua as criadas,
Soube-se o que succedia:
A mãe com o filho nos braços
Cuidou morrer de alegria.
Não são passadas tres horas,
Uma á outra se dizia:
«Quem se vira em Portugal,
Terra que Deos bemdizia!
Juntaram muita riqueza
D’ouro e de pedraria;
Uma noite abençoada
Fugiram da moiraria.
Foram ter á sua terra,
Terra de Santa Maria,
Metteram-se n’um mosteiro,
Ambas professam n’um dia.

[Pg 107]

39
Romance da Moira Encantada

(Versão do Algarve)

Meia noite alem ressôa
Cerca das ribas do mar,
Meia noite já é dada,
E o povo ainda a folgar.
Em meio de tal folguedo
Todos quédam sem falar,
Olhos voltam ao castello
Para ver, para avistar
A linda moira encantada,
Que era triste a suspirar.
—Quem se atreve, ai quem se atreve
Ir ao castello e trepar,
Para vencer lo encanto
Que tanto sabe encantar?
Ninguem ha que a tal se atreva,
Não ha que em moiras fiar;
Quem lá fosse a taes deshoras
Para só desencantar,
Grande risco assim corrêra
De não mais de lá voltar.
—Ai que linda formosura,
Quem a pudera salvar!
O alvor dos seus vestidos
[Pg 108]
Tem mais brilho que o luar!
Doces, tão doces suspiros,
Onde ouvil-os suspirar?
Assim um bom cavalleiro
Se estava a delatar,
Em amor lhe ardia o peito,
Em desejos seu olhar.
Tres horas eram passadas
N’este continuo anciar,
Cavalleiro d’armas brancas
Nunca soube arreceiar,
Invoca a linda moirinha,
Mas não ouve o seu falar;
Nada importa a Dom Ramiro
Mais que a moira conquistar.
Vae subir por muro acima,
Sente os pés a resvalar!
Ai que era passada a hora
De a poder desencantar.
Já la vinha a estrella d’alva
Com seus brilhos a raiar.
No mais alto do castello
Já mal se via alvejar
A fina e branca roupagem
Da linda filha de Agar.
Ao romper do claro dia,
Para bem mais se pasmar,
Sahiu do castello uma nuvem,
Era apenas a pairar.
Jurava o povo, jurava
E teimava em affirmar,
Que dentro d’aquella nuvem
Vira a donzellinha entrar.
Dom Ramiro de enraivado
De não poder-lhe chegar,
[Pg 109]
D’ali parte e contra os mouros
Grande briga vae armar,
Por fim ganha um bom castello,
Mas sem moira para amar.

40
Romance de Nossa Senhora dos Martyres

(Versão do Algarve)

Candida Virgem dos Martyres,
Formosa Virgem Maria;
Estrella do céo fulgente
Clara luz do claro dia,
Contar todos seus milagres
Quem contal-os poderia?
De todos o mais patente
Acha-se ahi n’essa villa
De Castro-Marim chamada,
Que já foi da mouraria.
É este santo milagre
De tal poder e valia,
Que em Portugal e Castella,
E mais ainda em Barberia,
A quantos bem o conhecem
Faz espanto e maravilha:
Era um christão que passava
Negra vida que tenia
Debaixo de duros ferros.
Lá para as bandas de Arzilla
Cativeiro mais penoso
[Pg 110]
Outro christão não havia.
O perro mouro infiel,
Que o comprara em Almeria,
Por seguro se não dava
De que lhe não fugiria.
Sempre o maldito do perro,
Que receioso vivia,
Maltratar o pobre escravo
Com ferrenha mão sohia.
Já invenção lhe faltava
De como elle o guardaria;
Mandou fazer um caixão
Muito forte em demasia,
E n’elle sem mais detença
O triste christão mettia;
Mas por certo inda o não dava
Apesar do que fazia;
Aquella mente maldita
Em mil receios ardia.
Nova ideia de tormento
Alma lhe enche de alegria;
Com uma grossa corrente
De pés e mãos o prendia,
E ainda sobre o caixão
O indino perro dormia!
Negro pão e agua turva
Era o manjar que tenia;
Mas uma ardente esperança
Que na Virgem Santa havia,
Vida nova lhe apontava
Sobre a que já lhe fugia.
A Virgem Mãe soberana
Invocava noite e dia
Para que lhe désse n’alma
Vigor que se lhe extinguia,
E de todo o livrasse
[Pg 111]
De tão dura escravaria.
A Santa Virgem dos Martyres,
Que todo o seu rogo ouvia,
D’aquelle espirito afflicto
Muito bem se condoía;
O caixão, que em terra estava,
Cercado d’agua se via,
E com o perro do mouro
Que em cima d’elle dormia,
Á tona d’agua boiando
Tres dias assim corria.
Já despontava a manhã,
A manhã de um claro dia;
Novas areas se mostram,
Outras céos, outra alegria!
Da torre o gallo tres vezes
Este milagre annuncia;
Os sinos do campanario
Repicavam á porfia
Sem que ninguem os tangesse,
Porque tudo inda dormia.
O ladrar de muitas cães,
Em todo o mar percutia.
Quando o perro ouviu os sinos
Sobre tudo se doria,
Que junto de terra extranha,
Terra que não conhecia,
Por sua desaventura
Com seu escravo se via!
Encalhado em fina areia
O mesmo caixão se abria,
Com rosto mais que magoado
O mouro ao escravo dizia:
—Christão, que paiz é este
De tão alta senhoria?
[Pg 112]
Na tua terra, christão,
Cantam gallos á porfia,
Tocam sinos, ladram cães
Logo ao despontar do dia?
—Esta terra sei que é minha.
Mas eu não a conhecia;
Na minha terra, senhor,
Cantam gallos á porfia,
Ladram cães, repicam sinos
Logo ao despontar do dia.
Assombrado o sarraceno
Do que do christão ouvia,
Sem mais pergunta fazer-lhe
Da corrente o desprendia.
—Ergue-te, christão, perdoa-me
Todo o mal que eu te fazia;
Até hoje eras meu escravo,
Teu escravo sou n’este dia!
Para vêr este milagre
Toda a gente ali corria:
Com seus gibões encarnados
Os da justiça assistiam.
Já todos vão, já se partem,
Caminho da santa ermida;
O mouro com viva crença
O baptismo requeria.
Eis que aos pés da Virgem Santa
D’agua uma fonte se abria,
Tão crystallina e tão pura,
Que a todos pasmar fazia.
Com esta agua bemdita,
Agua de tanta valia,
Foi logo ali baptisado
[Pg 113]
O mouro da Barbaria.
Baptisado o agareno,
Ao pé da fresca fontinha
Se formára um lindo mar
D’aquella agua que corria.
E para maior milagre:
Ao cabo de sete dias
Mesmo no meio das aguas
Um verde freixo nascia,
Que o que mais maravilhava.
Era o vêr como crescia!
Desde então ficou a Virgem
Tendo grande romaria;
De Portugal e Castela
Tudo ali corre em seu dia,

41
Romances do Cativo de Argel

(Lição manuscripta do seculo XVII)

—Mi madre era de Hamburgo,
Mi padre de l’Antequera,
No hubo perro, ni mouro
Que por mim ni blanca dera;
Si no um perro Judio
Que alcançar-me não debera.
Daba-me una vida mala,
Daba-me una vida perra,
De dia a moêr esparto,
De noche a pizar canella,
Com uma mordaça na bocca
Para lhe não comer d’ella.
[Pg 114]
Quiz Deos e Santa Maria
Dar-me uma Ama tam bella;
Quando perro ia a caçar
Cataba-me na cabeza.
Daba-me a comer pan blanco
Del que El-Rey Moro comia,
Daba-me a beber bon vino
Del que El-Rey Moro bebia.
Muitas vezes me decia:
«Christiano, vae p’ra tu tierra.
—Como me heide ir, mi señora,
Dexar una Ama tam bella!
«Mais vale tu liberdade,
Que amores em terra alheia.
—Como me heide ir, mi señora,
Se me falta la moneda?
«Mete a mão en tu faltriquera,
Docientos dobrões te dera,
Cento para teu resgate,
Cento para tua terra.
—«Vem ali, oh Christiano,
Quem te dió tanta moneda?
—Fue un vecino mio
Venido de minha tierra.
—«Queres tu, oh Christiano,
Seres Mouro arrenegado?
Dera-te os mais lindos olhos
Que em Argel foram criados.
—Como me tornarei Mouro,
E Mouro arrenegado,
Se eu já tenho em mi pecho
A Jesus crucificado?
—«Se eu soubera, Christiano,
Que eras assim avisado,
[Pg 115]
Em dias de tua vida
Nunca fôras resgatado.
«Oh, mi padre, oh mi padre,
Dexe ir el Christiano,
Que el no me deve nada,
Debe-me a flor de mi bocca,
Dou-lh’a por bem empregada.

42
O Cativo

(Variante de Lisboa)

—Eu vinha do mar de Hamburgo
N’uma linda Caravella;
Cativaram-nos os mouros
Entre la paz e la guerra.
Para vender me levaram
A Salé, que é sua terra,
Não houve mouro, nem moira
Que por mim nem blanca dera;
Só houve um perro judio
Que alí comprar-me quizera.
Dava-me uma negra vida,
Dava-me uma vida perra:
De dia pisar esparto,
De noite moêr canella,
E uma mordaça na bocca
Para lhe não comer d’ella.
Mas foi a minha fortuna
Dar com uma patrôa bella,
Que me dava do pão alvo,
Do pão que comia ella.
Dava-me do que eu queria,
[Pg 116]
E mais do que eu não quizera,
Que nos braços da judia
Chorava, que não por ella.
Dizia-me então: «Não chores,
Christão, vae á tua terra.
—Como me heide eu ir, senhora,
Se me falta la moeda?
Se fôra por um cavallo
Eu uma egua te dera,
Se fosse por um navio
Dar-te-hia uma galera.
—Não fôra por um cavallo,
Não fôra, senhora bella,
Que está longe Mazagão,
Ceuta tem voz de Castella.
Nem por navio não fôra,
Que eu fugir não quizera,
Que era roubar a teu pae
Dinheiro que por mim dera.
«Toma esta bolsa, christão,
Feita de seda amarella;
Minha mãe quando morreu
Me deixou senhora d’ella.
Vae-te, paga o teu resgate,
E ás damas da tua terra.
Dirás o amor da judia
Quanto vale mais que o d’ellas.
Palavras não era ditas
O patrão que era chegado:
—Venhaes embora, patrão,
E vinde com Deos louvado,
Que agora recado tenho
De que chega o meu resgate.
[Pg 117]
—«Christão, christão, que disseste!
Olha que é muito cruzado!
Quem te deu tanto dinheiro
Para seres resgatado?
—Duas irmãs m’o ganharam,
Outra m’o tinha guardado;
E um anjo do céo m’o trouxe,
Um anjo por Deos mandado.
—«Dize-me, oh christão, dize
Se queres ser renegado?
Que te heide fazer mouro,
Senhor de todo o meu estado.
—Eu não quero ser judio,
E nem turco arrenegado,
E não quero ser senhor
De todo esse teu estado,
Porque trago no meu peito
A Jesus crucificado.
—«Anda cá, oh filha Angelica,
Dize-me cá, filha amada,
Se é pelo christão maldicto
Que ficaste desgraçada?
«Meu pae, deixe o christão, deixe
Que elle não me deve nada;
Deve-me a flor de meu corpo,
Mas de vontade foi dada.
Mandou fazer uma torre
De pedraria lavrada;
Que não dissessem os mouros:
A judia é deshonrada.
«Viola, minha viola,
Fica-te aqui pendurada;
Que os amores da Judia
Vão por essa agua salgada.

[Pg 118]

V—LENDAS PIEDOSAS

43
Jesus Mendigo

(Versão do Minho e Beira Baixa)

Indo um lavrador p’ra arada
Ai Jesus!
Encontrou um pobresinho,
Ai Jesus!
E o pobresinho lhe disse:
Ai Jesus!
Leva-me n’esse carrinho.
Ai Jesus!
Levantou-se o lavrador
Ai Jesus!
A pôr o pobre no carro,
Ai Jesus!
Levou-o p’ra sua casa
Ai Jesus!
Para a melhor sala que tinha;
Ai Jesus!
Mandou-lhe fazer a cêa
Ai Jesus!
[Pg 119]
Do melhor manjar que havia,
Ai Jesus!
E depois da meza posta
Ai Jesus!
O pobre nada comia.
Ai Jesus!
Mandou-lhe fazer a cama
Ai Jesus!
Da melhor roupa que tinha,
Ai Jesus!
Por baixo damasco roxo,
Ai Jesus!
Por cima cambraia fina.
Ai Jesus!
Era meia noite em ponto,
Ai Jesus!
O pobresinho gemia.
Ai Jesus!
Levantou-se o lavrador
Ai Jesus!
A vêr o que o pobre tinha;
Ai Jesus!
Achou-o crucificado
Ai Jesus!
N’uma cruz de prata fina.
Ai Jesus!
—Meu Senhor, quem tal soubera
Ai Jesus!
Que em minha casa vos tinha,
Ai Jesus!
Mandava fazer preparos
Ai Jesus!
Que a minha casa não tinha.
Ai Jesus!
[Pg 120]
«Cala-te, oh lavrador,
Ai Jesus!
Não te enchas de phantasia,
Ai Jesus!
No céo te tinha guardado
Ai Jesus!
Cadeira de prata fina:
Ai Jesus!
Outra p’ra tua mulher.
Ai Jesus!
Que tambem a merecia.
Amen Jesus!

44
Romance de Santo Antonio e a Princeza

(Versão do Algarve)

Achava-se em Realmonte
Com sua côrte real,
Casada uma princeza,
Princeza de Portugal.
De Antonio, santo varão,
Do seu paiz natural,
Devota a princesa era,
Por crença a mais singular;
Filha infante ella tinha
Mais formosa que o luar;
Mas a infante era um anjo,
[Pg 121]
E ao céo se foi parar.
Toda a côrte lá se ajunta
Para lhe o corpo levar;
Mas não consente a princeza
Que o levem a soterrar.
Tres dias eram passados
E ainda por sepultar;
A mãe em continuo pranto,
Mas a filha a regelar;
Sómente ella não chorava,
Que estava a bom resar
Ao santo varão Antonio
Que tanto soubera amar;
A infante encommendava
Para lhe a resuscitar;
Com grande fé verdadeira
Assim começa a orar:
—«Santo que sois de mi terra
Onde não ha outro igual,
Que por todo o mundo andavas
Noite e dia a milagrar!
A esta vossa devota
Vinde por Deos escutar;
Aquella que vêdes morta
Mandae-a resuscitar,
Mais sete dias de vida
Depois fazei-a expirar:
Afugentai-me esta ausencia,
Que a não posso supportar:
Inda a oração era em meio
Já no céo ia a entrar:
—Sete dias tens de vida
Podes á terra voltar.—
[Pg 122]
Disse Deos e santo padre,
A vida lhe foi a dar.
Do atahude se erguera
A infante de Portugal,
E com divinal semblante
Á princeza foi falar:
«Senhora mãe que choraes,
Onde me quereis guardar?
Aqui me tendes na terra
Onde já não sei estar.
D’entre as virgens me arrancastes,
Sem saber, por meu pesar;
Deixae-me, senhora mãe,
Que eu no céo tenho um altar;
Eu apenas vim ao mundo
Para vos vir consolar.
Prometteis, senhora mãe,
De não mais por mim chorar?
—«Assim o prometto, oh filha,
Podes para Deos voltar:
Ora por mim tu que és anjo,
E que no céo tens altar.
Os sete dias findavam
Ao nascer de o luar,
A alma da bella infante
Para o céo se viu voar;
O corpo que era de terra,
Á terra o foram levar.
Toda a côrte se espantava
De não ver a mãe chorar.

[Pg 123]

45
Romances de Iria a Fidalga

(Versão de Santarem)

«Estando eu á janella co’a minha almofada,
Minha agulha d’ouro, meu dedal de prata,
Passa um cavalleiro, pedia pousada:
Meu pae lh’a negou: quanto me custava!
Já vem vindo a noite, é tam só a estrada...
Senhor pae não digam tal da nossa casa,
Que a um cavalleiro que pede pousada
Se fecha esta porta á noite cerrada.
Roguei e pedi, muito lhe pezava!
Mas eu tanto fiz, que por fim deixava.
Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;
Ao lar o levei, logo se assentava.
Ás mãos lhe dei agua, elle se lavava;
Pus-lhe uma toalha, n’ella se limpava.
Poucas as palavras, que mal me falava,
Mas eu bem sentia que elle me mirava.
Fui erguer os olhos, mal os levantava,
Os seus olhos lindos na terra os pregava.
Fui-lhe pôr a cêa, muito bem ceava;
A cama lhe fiz, n’ella se deitava.
[Pg 124]
Dei-lhe as boas noites, não mo replicava;
Tam má cortezia nunca a vi usada!
Lá por meia noite, que me eu suffocava,
Sinto que me levam com a bocca tapada....
Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,
Correndo, correndo sempre á desfillada.
Sem abrir os olhos vi quem me roubava;
Calei-me e chorei, elle não falava.
D’ali muito longe, que me perguntava:
Eu na minha terra como me chamava.
Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
Por aqui agora Iria a cansada.
Andando, andando, toda a noite andava;
Lá por madrugada que me attentava....
Horas esquecidas que por mim luctava;
Nem força, nem rogos, tudo lhe mancava.
Tirou do alfange... ali me matava,
Abriu uma cova onde me enterrava.
No fim de sette annos passa o cavalleiro,
Uma linda ermida viu n’aquelle outeiro.
—Minha santa Iria, meu amor primeiro,
Se me perdoares serei teu romeiro.
«Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,
Que me degollaste que nem um cordeiro.

[Pg 125]

46
Santa Iria

(Variante da Covilhã)

«Estando eu a coser na minha almofada,
Com agulha de ouro e dedal de prata,
Veio o cavalleiro pedindo pousada,
Se lh’a meu pae dera, estava bem dada.
Deu-lh’a minha mãe, que mui me custava,
Fui fazer a cama no meio da sala.
Era meia noite, a casa roubada,
De tres que nós éramos só a mim levava.
Eram sete leguas, nem fala me dava,
Lá para as oito é que me perguntava:
—Lá na tua terra como te chamavam?
«Lá na minha terra era eu morgada,
Cá n’estas montanhas serei desgraçada.
—Por essa palavra serás degollada.
Ao pé de um penedo serás enterrada,
Coberta de rama bem enramalhada.
No fim de sette annos por ali passava,
E a todos que via lhe perguntava:
[Pg 126]
—Dizei-me, pastores que guardaes o gado,
Que ermida é aquella que alem branquejava?
—É de Santa Iria bemaventurada,
Que ao pé de um penedo morreu degollada.
—Oh minha santa Iria, meu amor primeiro,
Perdoa-me a morte, serei teu romeiro.
«Não te perdôo, ladrão carniceiro,
Que me degollaste, que nem um carneiro.
Veste-te de azul, que é a cor do céo,
Se elle te perdoar, perdoar-te quero.

47
Santa Helena

(Variante do Minho)

’Stando santa Helena
Á porta assentada,
Cosendo mui linda
Na sua almofada,
Sua agulha de ouro,
Seu dedal de prata,
Veio um cavalleiro
Pediu-lhe pousada.
«Se meu pae lh’a dera
Está mui bem dada.
Entrou para dentro,
Logo se assentou;
[Pg 127]
Fizeram-lhe a ceia,
Elle não ceiou;
Fizeram-lhe a cama,
Então se deitou.
Lá por meia noite
Se alevantou;
De tres irmãs que eram
Só n’ella pegou.
Levou-a p’r’o monte
E lhe perguntou:
Como lhe chamavam
E como a tratavam
.................
«Em caz’ do meu pae
Helena fidalga,
Agora na tua
Serei desgraçada.
Puchou pelo alfange
E logo a matou,
Cobriu-a de ramos,
Ali a deixou.
Findos sette annos
Por ali tornou:
—Pastorinhos novos,
Que guardaes o gado,
Que ermida é aquella
Que está n’aquelle adro?
—É de Santa Helena,
Morreu degollada.
—Minha santa Helena,
Meu amor primeiro,
Perdoa-me a morte,
Serei teu romeiro.

[Pg 128]

48
Romance da Devota da Ermida

(Versão de Trás-os-Montes)

No alto d’aquella serra
Está uma bella ermida;
Uma devota está ’nella,
Serva da Virgem Maria.
Uma visinha da porta
Mau testimunho lhe erguia:
Ella que andava d’amores
Com um sacerdote de missa!
Sacerdote se agastava,
E ella pena não tinha.
Veio o marido de fóra:
«Boa seja a vossa vinda,
Que vos quero perguntar
Que vae lá por essa villa.
—Que te confesses, traidora,
Que te vou tirar a vida.
«Quer m’a tires, quer m’a deixes,
Eu confessar-me queria.
Marido, se me matares,
Enterra-me na Ermida
Aos pés de Nossa Senhora,
Aos pés da Virgem Maria.
Prenhadinha de oito mezes
Para os nove corria;
No cabo dos nove mezes
[Pg 129]
Um lindo cantar se ouvia.
Abriram a sepultura
Onde a encontraram parida,
Com uma menina nos braços,
Que se chamava Maria.
—Perdoa-me, oh Mariquinhas!
Perdoa-me, oh mulher minha!
«Como te heide eu perdoar
Se a tua alma está perdida?
A minha está na gloria
Dos anjos bem assistida.

49
Oração do Dia de Juizo

(Versão do Minho)

Por aquella noite escura
Morreu uma criatura,
Com grande arrependimento,
Sem receber sacramento!
Suas culpas e peccados
Foram á face de Christo.
—Oh meu senhor Jesus Christo,
Aqui visitar-vos venho;
Sou a alma mais perdida
Que tem o vosso rebanho.
[Pg 130]
«Escuta, oh alma zellosa,
Que primeiro te escutei;
Ensinei-te a benzer,
Não quizestes aprender.
Lá te deixei meus jejuns,
Sempre passaste comendo.
Lá te deixei meu Calvario,
Sempre passaste correndo.
—«Oh meu filho tão amado,
Oh meu filho tão querido!
Filho, salva-me aquella alma,
Pois que se me vae perdendo.
«Pois a minha Mãe o manda
Faço o seu mando correndo:
Sam Miguel pesae as almas,
Ponde pesos na balança.
Os peccados eram tantos,
Foram com elles ao chão!
Pôz Nossa Senhora o manto,
Ficaram pesos suspensos:
Com a graça de Maria
Ficou a alminha contente!
Quem esta oração disser
Um anno continuamente,
Terá por certo viver
Lá no céo eternamente.
Quem a sabe e não a diz,
Quem a ouve e não a aprende,
Lá no Dia do Juizo
Saberá o bem que perde.

[Pg 131]

50
Romance do Terremoto de Villa Franca do Campo

(Lição de Gaspar Fructuoso)

Em villa Franca do Campo,
Que de nobre precedia
Na Ilha de Sam Miguel
A quantas villas havia,
Era de mil e quinhentos
E vinte e dois que corria,
Vinte e dois dias d’outubro,
Quarto da lua seria;
Correu a terra de um monte
Que da alta serra pendia,
E com ímpeto furioso
Sobre a villa se estendia.
Alí começa a dar gritos
A gente que se affligia;
D’elles chamavam por Deos,
D’elles por Santa Maria.
Quando chegou a manhã
Nenhum d’elles perecia;
Todos cobertos de terra,
E de grande penedia,
Que correu d’aquella serra,
Que sobre a villa jazia.
Essa gente que escapara,
Como pasmada morria.
Outra que viva ficava,
Vivendo assi, não vivia.
Aqui chega Frei Affonso,
E com a tocha que trazia
[Pg 132]
Da Ordem de Sam Domingos
De Toledo reluzia,
Esse Padre glorioso
Que da gloria parecia.
Para consolar o povo,
Assi falava e dizia:
—Confessae-vos, irmãos meus,
Em quanto vos tem o dia.
Resae todos o rosario
Da Virgem Santa Maria,
Edificae-lhe uma Casa,
Indo a ella em romaria.
Tomae-a por valedora,
Que ella por vós rogaria,
Tende n’ella confiança,
Que certo vos valeria.
Não acaba de falar,
Quando a casa se fazia,
Uns acarretando pedra,
Outros madeira á porfia.
Trabalham moços e velhos,
Pessoas de grão valia;
Até as nobres mulheres
Serviam sem fantazia.
Trazem telhas e telhados,
Que no arrabalde havia,
Como formigas ligeiras
Andam a quem mais faria.
Tanto que em poucos dias,
A Ermida já servia,
Já celebram missa n’ella,
Já lá vão em romaria.

[Pg 133]

VI—XACARAS E COPLAS DE BURLAS

51
Xacara da Linda Pastorinha

(Versão da Beira-Baixa)

—Deos te salve, Rosa,
Lindo seraphim!
Linda pastorinha
Que fazeis aqui?
Que fazeis pastora
Por essa ribeira?
Tirae-vos ao sol,
Do sol que vos queima.
«O sol não me queima,
Que estou calejada
Do rigor da chuva,
Do rigor da calma.
—Tão gentil senhora
A guardar o gado,
Ao longo do rio
Tão bem repastado.
[Pg 134]
«Criado tão nobre
Com meias de seda!
Olhe não as rompa
Por essa resteva.
—Sapatos e meias
Tudo romperei,
Pela pastorinha
Tudo eu farei.
«Por altas montanhas
Ouço gritar gado;
São as ovelhinhas
Que me tem faltado.
—Dê-me cá a cesta,
Tambem o cajado,
Que eu lh’as vou buscar
Com todo o cuidado.
«Vá-se embora, homem,
Não me dê tormento;
Não o posso vêr
Nem por pensamento.
—O que está de ingrata,
Tão impertinente!
Homens não são lobos
Que comam a gente.
«Eu se sou ingrata
Faço muito bem;
Quero ser ingrata,
Assim me convem.
[Pg 135]
—O teu gado, Rosa,
Eu aqui t’o trago:
Um formoso moço
Para teu criado.
Não tenha esse medo
Que o gado se perca,
Por aqui passarmos
Uma hora de sésta.
«Vá-se d’aí, negro,
Não me dê mais pena;
Que aí vem meus amos
Trazer-me a merenda.
—Isso é que eu quero
Que venham seus amos;
Quero que elles saibam
Que falamos ambos.
«Tal razão como essa
Não a ouvirei;
Já dirão meus amos
Que de mais tardei.
—Diga-lhe, menina,
Que se demorou
Com esta nuvem d’agua
Que tudo molhou.
«Va-se d’aí, homem,
Não me dê tormento;
Não o quero vêr
Nem por pensamento.
[Pg 136]
—Que tem a menina
Que está agastada?
No meu coração
Trago-a retratada.
Uma vez que quer
Que me vá embora,
Lá verá o gado
Que vae serra fóra.
«Se vae serra fóra
Pois deixal-o ir;
Se o não matarem
Tornará a vir.
—Por altas montanhas
Corre grande p’rigo;
Oh linda pastora
Queira vir commigo.
«Não é de homem nobre
O dar tal conselho,
Pois quer que se perca
O gado alheio.
—O gado alheio
Não quero se perca;
Quero que tenhamos
Uma hora de sésta.
«Guardemos a sésta
Lá para depois;
Eu quero saber
Quem é que vós sois.
[Pg 137]
—Sou filho da côrte,
Assisto em palacio;
Linda pastorinha
Dae-me um abraço.
Já me vou embora
Pela serra acima,
Linda, pastorida
Dae-me a despedida.
«Venha cá, oh homem,
Venha aqui correndo;
O amor é cego,
Já me vae rendendo.
—Se você me chama
Eu me vou andando,
Que a aposta que fiz
Já a vou ganhando.
«Bem sei o que queres,
Queres um abraço;
O abraço se o deres
Dá bem apertado.
O abraço se o deres
Dá-m’o apertado,
Para apagar penas
Que commigo trago.
—O abraço que der
Não tem má tenção,
Cala-te lá, Rosa,
Que sou teu irmão.
[Pg 138]
Quer ella a menina
Que demos um brado
Á gente do povo
Que accudam ao gado?
«Oh gente do povo
Accudi ao gado,
Que foge a pastora
Com o seu namorado!
Eu quero fugir,
Que é ventura minha;
Depois de pastora
Irei ser rainha.
-Se a pastora foge,
Deixal-a fugir,
Nem cravos, nem rosas
Lhe hão de accudir.
Digo-te a verdade,
Do meu coração:
Não sou teu esposo,
Mas sou teu irmão.
Digo-te a verdade,
Oh meu camarada;
A aposta que fiz
Já cá vae ganhada.

[Pg 139]

52
Xacaras dos Conversados

(Versão de Coimbra)

Fui indo áquella casa
Com pequena confiança,
Com o sentido apurado,
Já com a minha lembrança.
Fui indo ali aos domingos
E dias santos do anno;
Procurando a certeza,
Ou então o desengano.
Já n’isso lhe ia tocando
Cora boa sinceridade;
Para vêr se ella me tinha
Parte de alguma amisade:
—Oh que estado tão bonito
De solteiro bem logrado;
Mas pretendo a menina
Se quizer mudar de estado.
«A resposta ao seu recado
Eu lh’a darei quando fôr,
Eu não lhe dou a certeza
Sem sabêr seu interior.
[Pg 140]
—P’ra saber meu interior
Quinze dias lhe heide dar;
Bem pode tirar inculcas
Para se certificar;
«Vá indo e vá voltando,
A resposta eu lh’a darei;
Se você me fôr leal,
Eu sempre firme serei.
—Que palavrinhas tão doces,
Com ellas me consolou;
Se você jura ser firme,
Eu tambem leal lhe sou.
«Sou a mesma que aqui estou,
E lhe torno a affirmar,
Se você de mim pretende
Trate de a meu pae falar.
—Se essa é a sua duvida
Eu já d’ella a vou tirar,
Falando eu a seu pae
Quero com você casar.
«Commigo pode contar,
A certeza eu lh’a darei;
Se meu pae lhe der o sim,
Eu sempre firme serei.
—Eu já com seu pae falei,
Elle me disse prudente:
Se você quizer ser minha,
Da sua parte é contente.
[Pg 141]
«Não o diga a muita gente
Por murmuração não dar;
Que isto anda em segredo
Em quanto se não falar.
—Quero recommendar
Algumas recommendações,
Temos tratado de tudo
Faltam agora os pregões.
«São boas recommendações
Com que se deve importar,
Tratemos de os fazer
E na egreja os ir prantar.
—Já os banhos são corridos,
Estamos apregoados;
Vamos agora tratar
Do dia d’este noivado.
«E bem dado esse recado,
Commigo pode contar,
Espere mais algum tempo
P’ra me poder arranjar.
—Ora vâmos lá com isso,
Deos lhe a saude conserve,
Eu tenho casa e vida,
Não tenho quem m’a governe.
«Se não tem quem lh’a governe
Já não é por muito tempo;
É emquanto não arranjo
O fato do casamento.
[Pg 142]
Eu com isso fui contando,
Ella ficou descansada;
Estando na fonte um dia
Pedi-lhe um pucaro de agua:
—Que pucaro tão formoso,
Que agua tão saborosa!
Tomára ser seu esposo
P’ra você ser minha rosa.
«Se essa agua é gostosa
E gosto que Deos lhe deu;
Sendo você meu esposo
Já sua rosa sou eu.

53
A Conversada da Fonte

(Versão de Penafiel e Coimbra)

—Entre canas e canaes
Agua deve de nascer;
Menina que estaes na fonte
Dê-me agua, quero beber.
«Por um pucarinho novo
E rodeado de flores,
Quem me fôra tão ditosa
Que désse agua aos meus amores.
[Pg 143]
Que désse agua aos meus amores
Mais á Senhora da Guia;
Diga-me, senhor manata,
Se vem por alguma via.
—A via por que aqui venho
Eu lhe digo na verdade,
Venho por passar o tempo
Que é cousa da mocidade.
«Essa sua mocidade
Já me vieram dizer,
Que a sua sabedoria
Se occupava em saber ler.
—Não sei ler, nem escrever,
Nem tambem tocar viola;
Eu desejava aprender
Na sua real eschola.
«Na minha real eschola
Você não hade aprender,
Andam mestres mais bonitos
Desejosos de saber.
—Oh minha gaia menina,
Que tão forte me falaes,
Se até aqui mui vos queria,
Agora vos quero mais.
«Ainda mais vos quero eu
Da raiz do coração;
Mas tambem comtudo isso
Não haveis de pôr a mão.
[Pg 144]
—Oh que lindas, oh que lindas,
Pois ellas assim serão?
Dá-me licença, menina,
Para vêr como ellas são?
«A licença vós a tendes,
Mas por ora ainda não;
Não haveis de ser o gabo
Que lhe haveis de pôr a mão.
—Eu a mão não vol-a ponho,
Nem menos bulo comvosco;
Só de estar ao pé de ti
D’isso faço muito gosto.
«Tendes gosto desgostae,
Que não é por via vossa;
Esta rosa que aqui vêdes
Já é d’outro, não é vossa.
—Se ella é d’outro e não é minha,
Inda o póde vir a ser;
Menina, diga a seu pae
Que nos mande arreceber.
«Isso não lhe digo eu,
São palavras escusadas,
Que eu sou rapariga nova
Para ir governar casas.
—Outras de menor edade
São casadas, tem marido,
Assim serás tu, oh Rosa,
Quando casares commigo.
[Pg 145]
Casarei, não casarei
Quando vier outra vez;
Diga, menina, a seu pae
Que elle tambem assim fez.
«O recado está dado,
Vós, magano, vós o déstes;
Se já sabeis o caminho
Tornae por onde viestes.
—O caminho bem o sei,
Por elle heide de tornar,
Se vós me deres a prenda
Que eu aqui venho buscar.
«Eu a prenda não a dou,
Que a tenho na janella,
Para dar ao meu amor,
Que faz grande gosto d’ella.»

54
Os estudos de Coimbra

(Versão de Penafiel)

—Os estudos de Coimbra
Para te amar aprendi;
Com penas e saudades
Uma carta te escrevi.
[Pg 146]
«Com penas e saudades
O meu coração chorou;
A carta que me escreveste
Ainda cá não chegou.
—Antoninha, cara linda,
Eu queriate falar;
A vergonha me retira,
O amor me faz chegar.
«Eu falar-te, falaria
De todo o meu coração;
Quem me dera adivinhar
Qual era a tua tenção.
—A minha tenção é boa,
Mas é só para comtigo;
Se eu saír d’esta terra
Heide-te levar commigo.
«Eu comtigo não iria,
Que diria a minha gente?
Que ficava d’esta terra
Desterrada para sempre.
—Oh menina não se assuste,
Não é caso de assustar;
Se eu em fama te meter,
Da fama te heide livrar.
«Eu a fama não a tenho,
Mas ella me póde vir;
Fale baixo, não acorde
Meu pae, que está a dormir.
[Pg 147]
—Teu pae, que está a dormir,
Está em somno socegado;
Dize-me, oh minha menina,
Se eu serei do teu agrado?
«Oh do meu agrado é,
Que mais o não pode ser;
Ausente da tua vista
Melhor me fôra morrer.

55
Xacara do Cego andante

(Versão da Beira-Baixa)

—Abre a porta, Anna,
Abre o teu postigo;
Dá-me um lenço, amor,
Que venho ferido.
«Se vindes ferido,
Vinde muito embora;
Porque a minha porta
Não se abre agora.
—Abri-me vós a porta,
Ao menos o postigo;
Venham dar esmola
Ao pobre ceguinho.
[Pg 148]
«Acorde, minha mãe,
Acorde de dormir;
Ande ouvir o cego
Cantar e pedir.
—«Se elle canta e pede,
Dá-lhe pão e vinho;
E o pobre do cego
Que vá a seu caminho.
—Não quero o seu pão,
Não quero o seu vinho,
Só quero que a menina
Me ensine o caminho.
—«Péga, minha filha,
Na tua roca e linho,
Vae ao triste cego
Ensinar o caminho.
«Espiou-se a roca,
Acabou-se o linho,
Agora adiante, cego,
Lá vae o caminho.
—Ande a menina
Mais até alem,
Que eu ainda sou cego
E não vejo bem.
Ande a menina
Mais um boccadinho;
Ande mais até
Áquelle verde espinho.
[Pg 149]
Ande a menina
Por este carreiro;
Ando até áquelle
Verde centeio.
Ai, arreda, arreda
Para este altinho;
Que aí vem cavalleiros
Por esse caminho.
«Adeos, minhas casas,
Adeos minhas terras,
Adeos minha mãe,
Que tão falsa me eras;
De Condes e Duques
Me vi pretendida;
Agora de um cego
Me vejo vencida.
Que gente é aquella
De cavalleria?...
—Ai, arreda, arreda
Para este altinho.
Se vem cavalleiros,
Vem devagarinho,
Que ha muito me tardam
Por este caminho;
É a minha mãe
Mais sua madrinha,
Que a vem buscar
Para a terra minha.

[Pg 150]

56
Xacara da Moreninha

(Versão do Porto)

Frei João se levantou
N’uma bella madrugada,
Chega á porta da Morena.
Da Morena engraçada:
—Abre-me a porta, Morena,
Morena da minha alma.
«Comote heide abrir a porta,
Frei João da minha alma?
Tenho o menino nos braços
O meu marido á ilharga.
—«Com quem falas, mulher minha,
A quem dás as tuas falas?
«Falo com a padeirinha,
Se cozia ou se amassava;
Se cozia pão de trigo ’
Que lhe não botasse agua;
Se cozia pão de ló
Uma pinguinha bondava;
Levantae-vos, meu marido,
Levantae a vossa casa,
Mandae as moças á lenha,
E os criados buscar agua;
Que o melhor coelhinho
É o que sae de madrugada.»
Seu marido que saía,
Ella muito se aceiava;
[Pg 151]
Seu sapato de setim,
Que de polido estalava;
Sua mantinha de seda,
Que o ventinho levantava.
Chega á porta do Convento
Por Frei João perguntava;
Frei João que tal ouvia
Por vir a correr saltava,
Pegou-lhe pela mãosinha
E para a cella a levava;
Deu-lhe muito de comer,
Deu-lhe muita marmelada,
Deu-lhe um copinho de vinho
Do melhor que a Ordem dava:
—Fica-te embora, Morena,
Morena da minha alma,
Vou á Egreja de Sam Pedro
Dizer a missa cantada.
No meio do Evangelho
O calix cahiu da mão;
Acodiu o Provincial
E toda a Religião:
—O que é isto, meus peccados!
O que é isto, Frei João?
—São amores da Morena
Que trago no coração.
Moreninha que tal viu,
Saíu muito apaixonada,
Já no meio do caminho
Seu marido encontrava:
—«D’onde vindes, mulher minha?
Que vindes tão arreiada?
[Pg 152]
«Venho de fazer visitas
A quem veio á nossa casa.
-«D’onde vindes, mulher minha,
Que vindes tão insentada?
Ou tu me temes a morte,
Ou tu não és bem fadada!
«Eu a morte não a temo,
Pois d’ella heide morrer;
Temo só os meus meninos,
D’outra mãe podiam ser.
—«Confessa-te, mulher minha,
Faz acto de contrição,
Que te não tornas a vêr
Nos braços de Frei João.

57
Xacara do Soldado

(Versão de Trás-os-Montes)

Lá se vae o capitão
C’os seus soldados á guerra;
Duzentos eram quintados,
Eram duzentos de leva.
Se todos elles vão tristes,
Um mais que todos o era;
Baixa traz a sua espada,
Seus olhos postos em terra.
Lá no meio do caminho
O capitão lhe dissera:
—Porque vás triste, soldado,
Essa paixão por quem era?
[Pg 153]
«Não é por pae, nem por mãe,
Nem por irmão que eu tivera,
É pela esposa que deixo,
Lá tam só na minha terra.
Este cordão de ouro fino,
Que sete arrateis bem péza,
Mais me pesa a mim leval-o,
Que ao partir lh’o não dera.
—Soldado, tens sette dias
Para que voltes a vel-a.
Se a encontrares chorando,
Fica sete annos com ella:
Senão, nem mais uma hora
Terás de aguardo ou de espera.
Quem saltava de contente
O meu soldadito era;
Deixou estrada direita,
Por atalhos se mettera.
Inda não é meia noite
Á sua porta batera.
—«Quem bate á minha porta,
Quem bate com tanta pressa?
«É um soldado, senhora,
Que vos traz novas da guerra.
—Mal haja as novas que traz
E mais quem veio trazel-as!
Ergue-te tu, minha vida,
Assoma-te a essa janella;
Despede-me esse soldado,
Que a tam má hora aqui chega.
—Amigo, vindes errado
Co’as vossas novas da guerra;
Deixae-nos dormir em paz,
Que bem precisamos d’ella.
[Pg 154]
Foi-se d’ali o soldado
Mais prompto do que viera:
«Bem haja o meu capitão
Pelo bem que me fizera!
Com sette dias de aguardo....
Nem sette horas carecêra
Para me quitar saudades,
Livrar-me de toda a pena!
Tomae lá, meu capitão,
Os mimos da minha terra,
Este cordão de ouro fino,
Que agora inda mais me pésa;
Minha mulher não precisa,
Que os primos podem mantel-a.
—Pois tua mulher tem primos,
E tu vinhas com dó d’ella?

58
Xacara do Toureiro namorado

(Versão da Beira-Baixa)

Lá acima em Catalunha,
Junto ao pé de Sevilha,
Correm os moços um touro
Que admirar-se podia.
O touro era tam bravo,
Ninguem esperal-o queria!
Nomearam capitão
Um moço da mesma villa:
Calçava meia de seda,
[Pg 155]
Seu sapato de palmilha,
Com seu chapeo aprumado
Com tres plumas que tinha.
Volta pela rua abaixo,
Volta pela rua acima,
Ergueu os olhos ao céo
A vêr a hora que seria.
Vae da uma para as duas,
Já passava do meio dia.
—Alerta, álerta soldados,
Álerta, nobre companhia;
Deitem o touro cá fóra,
Que já passa do meio dia.
O touro era tam bravo,
Ninguem esperal-o queria!
Esperava-o aquelle moço
Para mostrar valentia.
Sette voltas deu ao curro,
Outras sette á mesma villa;
Metteu-lhe a chave direita
Entre a sóla e a palmilha.
Não lhe accudiu pae, nem mãe,
Nem irmã, que a não tinha;
Accudiu-lhe uma esposa
Pelo amor que lhe tinha,
Accudiu-lhe toda a gente
Pela lastima que via.
—Se eu morrer d’esta morte,
Como d’ella estou esperado,
Não me toquem a campana,
Nem me enterrem em sagrado,
Enterrem-me áquella quina
Aonde foi o namorado.

[Pg 156]

59
Xacara da Tecedeira

(Versão da Beira-Alta)

—Quero fazer uma aposta,
Ou eu não sei apostar:
De dormir com Mariana
Antes do gallo cantar.
«Tal cousa não faças, filho,
Que não a hasde ganhar;
Mariana é mui sisuda,
E não se deixa enganar.
Não quiz ali dizer nada,
Não quiz ali mais falar;
Vestiu traje de donzella,
Ao jardim foi passear,
«Quem é aquella donzella,
Que alem anda a passear?
—«É a tecedeira, senhora,
Que vem das praias do mar;
Tem a sua têa urdida
E a falta vem-na buscar.
«Essa falta eu a tenho,
Mas não a posso dobar.
—Dobe-a já, minha senhora,
Trate de a mandar dobar;
De noite pelo caminho
Donzellas não hãode andar.
«Para a honra da donzella
[Pg 157]
Aqui hade hoje poisar.
—Tendes criados tão moços,
Mui atrevidos no olhar!
«Para a honra da donzella
No meu quarto hade ficar.
A donzella de contente
Á noite não quiz cear,
Estava a cahir com somno
Que se quiz logo deitar.
Lá por essa noite adiante
Mariana de gritar!
—Cala-te, oh Mariana,
Não te queiras desgraçar;
Tinha a têa já urdida
A falta vim a buscar.
Aos sete para outo mezes,
Sem o teu pae reparar,
Quando te vires pejada
Eu comtigo heide casar.

60
Despedida de Lisboa

(Versão de Coimbra)

Dom João, que Deos guarde,
Aviso mandou ao mar,
Que se aparelhasse o Conde
Para uma manhã largar.
O Conde se aparelhou,
De uma maneira tão bella!
[Pg 158]
Era meia noite em ponto,
Deitou o tiro de leva.
Deitaram a lancha a terra
Para a maruja embarcar,
Uns abordo, outros na praia,
Outros na lancha a chorar.
Deitaram novos apitos
Encastoados em ouro;
Oh que bello commandante
Que leva o real thesouro!
Deitaram novos apitos
Encastoados em prata;
Oh que bello commandante
Que leva a real fragata!
Deitaram novos apitos
Encastoados em latão;
Oh que mestre e contra-mestre,
Tão malvado guardião.
Adeos oh Beato Antonio,
Melhor cousa de Lisboa!
Deos nos leve a salvamento
A esta coverta bôa.
Adeos oh Caes do Tejo,
Aonde está o cativo;
Eu me encommendo ao santo
Que me livre d’este perigo!
Adeos Fundição de cima
Do armamento d’el-rei;
Eu cá vou n’esta viagem,
Não sei quando tornarei.
Adeos oh venda do pezo,
Onde se vende o azeite;
Adeos Praça da Figueira,
Adeos saloias do leite.
Adeos oh caza da India,
[Pg 159]
Despacho do algodão;
Adeos oh caixões do assucar,
E os faiantes do torrão.
Adeos Terreiro do Paço,
Adeos do Paço terreiro;
Adeos memoria real
Que és de Dom José Primeiro.
Adeos tambem Arsenal
Onde se fazem navios,
Adeos escalér real,
És fama dos algarvios.
Adeos, adeos Corpo Santo,
Armazem dos pucarinhos,
Adeos oh moças bonitas,
Adeos quartilhos de vinho.
Adeos castellos e torres
Da cidade de Lisbôa;
Que eu cá vou n’esta viagem
Na Corveta Nova Gôa.

61
Á Freira arrependida

(Versão da Beira-Baixa)

Não sei para que nasci
De tão bello parecer;
Formosa e gentil mulher,
E tão bonita.
Metteram-me a capuchinha
Cá n’este pobre mosteiro,
Onde pago por inteiro
Meus peccados.
[Pg 160]
Nunca me faltam enfados
Em cuidar em tal clausura,
Pois se me faz noite escura
Ao meio dia.
Nunca terei alegria,
Nem no mundo a pode haver,
Em cuidar que heide comer
Em refeitorio.
Lá juncto ao dormitorio
Onde dormem as mais madres,
Suspiram por seculares
Cá entre nós.
Em vêr que dormimos sós
Me causa grande agonia,
Pois lá pela noite fria
Já me alevanto.
Agora faço o meu pranto,
Já me desvaneço em choro,
Em cuidar que heide ir ao côro
Rezar matinas.
Rezando as horas divinas,
Lá por esses corredores
Me lembram os meus amores,
Por quem morro.
Toda a minha cella corro,
Indo-me ver ao espelho;
Meu rosto já vejo velho,
Sem que eu queira.
[Pg 161]
E a abbadeça ligeira,
Como malvada leôa,
Manda que tanjam a Nôa
E a disciplina.
Triste, coitada, mofina,
Que estás mettida entre redes,
Entre tão fortes paredes,
Em casa escura.
A meu pae tórno a culpa.
E a meus irmãos tambem,
Podendo casar-me bem,
Me desterraram.
A meu pae aconselharam
Que me não désse o meu dote;
Porque era melhor sorte
O ser freira.
Avisaram a porteira,
Tambem a madre abbadeça,
Que me mettesse em cabeça
Que casaria.
Eu como menina cria,
Cuidando que era verdade,
Que qualquer freira ou frade
Casar podia.
Toda a gente me dizia
Que fosse sem arreceio;
Que havia aqui mais recreio,
Divertimento.
[Pg 162]
Agora que estou cá dentro,
Que ainda casar podia,
Eu vejo-me noite e dia
Aqui fechada.
Mais valêra ser casada,
De noite embalar meninos,
Do que andar a tocar sinos
No campanario.
Quando tudo é solitario
E estão todas a dormir,
Ainda estou a carpir
Mágoa tamanha.
Minha mãe, que Deos a tenha,
Deos lhe dê contentamento;
Deixou no seu testamento
Que me casassem.
E se bem não me esposassem,
Que me botem d’aqui fóra;
E da casa arrenegasse
Que não tem homem.

[Pg 163]

NOTAS

Muitos trovadores provençaes, vendo inutil a galanteria de suas canções, sem esperança de abrandarem o coração ou pelo menos de alcançarem um sorriso das castellãs, precipitaram-se na empreza das Cruzadas; era a resolução extrema a que se entregavam, ao acaso das peregrinações e dos combates, em vez da vida ociosa dos castellos e das côrtes do amor, que mais satisfazia a sua natureza meridional. Quando a Europa, se alevantava levada pelo sentimento religioso, com a idêa no sancto Sepulchro, o trovador ía acompanhado pelo desalento para esquecer o sepulchro dos seus amores—a Provença. Assim se espalharam as grandes tradições cavalheirescas, repetidas na Italia, em Portugal, Hespanha e na Grecia moderna; tradições que se não prendiam a algum facto historico, que versavam quasi sempre sobre peripecias e situações então produzidas pelo estado social: ora se vê um peregrino que pede, tocando na theorba, hospedagem em seu castello para reconhecer a fidelidade de sua dama; ora um mancebo volta da guerra ainda a tempo para salvar a noiva de um casamento forçado; umas vezes uma donzella disfarça-se em trajos de guerreiro; outras vezes é a historia de uma romeira accommettida por algum conde em altas serras, aonde ninguem lhe pode valer. Não se prendendo as versões a facto particular da historia, eram mais promptamente acceitadas na tradição oral, que as accommodava ao gosto da phantasia popular, e á prosodia dos differentes dialectos do Meio Dia da Europa. O povo guardava na memoria o romance ligeiro, com que o trovador peregrino, na sua passagem, pagava a hospitalidade; ía-o repetindo, e o recordar-se era como crear novamente sobre as impressões que tinham ficado: assim[Pg 164] dramatisava mais aquellas partes em que o trovador fôra conciso, era mais plangente onde lhe falara á paixão, e prescindindo completamente das transições que não comprehendia. Pons de Capduelh, enamorado trovador da dama Mercoeur, vae morrer na Palestina, inconsolavel pela morte d’aquella que nunca lhe acceitou os galanteios; Gancecem Faidit, depois de amar sete annos a esquiva Maria de Vantadour, alista-se na Cruzada para se tornar mais digno d’ella; Pierre Vidal, na sua doudice, parte levando na alma a imagem de Adelaide de Roquemartine, e na imaginação a conquista do Oriente. D’este poeta encontram-se documentos da sua passagem em Portugal.

A vinda dos Cruzados pelo Mediterraneo á Terra Santa, e o auxilio que prestavam na conquista de Lisboa, fazem crer que pelas narrações das viagens e dos arraiaes espalhassem entre nós essas grandes tradições cavalheirescas do cyclo carolino, que então percoriam a Europa. Os factos levam-nos a estas inducções. Existem na poesia popular da Grecia moderna alguns romances cavalheirescos communs ao Meio Dia da Europa; espalharam-se ali na tradição pela passagem dos Cruzados. Falando do romance piemontez, A Guerreira, o cavalheiro Nigra determina as similhanças que se dão entre elle e um canto slavo publicado por Tommaseo nos seus Canti Greci, illirici, e com outro canto grego que traz o conde de Marcellos nos Cantos da Grecia moderna; por este facto assigna-Ihe a Provença por origem, passando para ali no tempo das Cruzadas. Este romance é em tudo similhante á versão portuguesa da Donzella que vae á guerra, e accresce a circunstancia de ser uma tradição do líttoral, porque é omissa nas collecções hespanholas. Um facto analogo se dá com o romance portuguez da Noiva roubada, e com o romance da Dona Infanta, cujos paradigmas se podem ver na citada collecção do conde de Marcellus. Se estes cantos foram levados para a Grecia pelos Cruzados, e se encontram tambem entre nós, não é destituida de fundamento a inducção, posto que não pizemos o campo da historia.

1 e 2—Romances da Dona Infante.—São estes romances os mais repetidos na tradição oral; um allude ao tempo das Cruzadas; no outro, mais moderno, o Brazil substitue na imaginação do povo o ponto para onde converge a aventura cavalheiresca. A origem d’estes romances é litteraria; na Esposa Fiel de Juan Ribera se determina ella visivelmente. (Duran, Romancero general, n.º 318) Encontram-se paradigmas nos Cantos populares da Grecia moderna, (pag. 152, 162 e 163)[Pg 165] no romance catalão de Brancaflor, na collecção ingleza de Percy (Liv.I, p. 261) na Ballada allemã de Liebesprobe (Deutsches Balladenbech, S. 14) nos cantos da França e da Italia (Du Puymaigre, Vieux auteurs castillans, p. 389). Pode com certeza affirmar-se que é um dos principaes romances communs aos povos do Meio Dia da Europa.

3, 4 e 5—Romances de Dom Martinho de Avisado.—Quasi todos os romances portuguezes são de origem castelhana e ainda se encontram nos Romanceiros hespanhoes. A donzella que vai á guerra não apparece n’essa collecção; apesar d’isso Garrett não o julga originalmente portuguez. Fala d’este romance Jorge Ferreira de Vasconcellos (Scena I, acto III; fol. 84 da Aulegraphia) conhecido no seculo XVI pelo Rapaz do Conde Daros. Versões d’elle se encontram no Alemtejo, Extremadura, Minho, Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa, Açores e Lisboa; a donzella que vae á guerra, segundo cada provincia, ora se chama Dom Martinho de Avisado, Dona Leonor, Dom Carlos, Dom João e Dom Barão. Foi pela primeira vez publicado por José Maria da Costa e Silva nas notas ao seu poema Isabel ou a heroina de Aragão, em 1832. M. Nigra, em seus interessantissimos estudos da poesia popular do Piemonte (Revista Contemporanea de Turin, novembro de 1858) publíca um romance piemontez, intitulado a Guerreira, que é como uma variante da versão portugueza:

«Porque choraes, meu pae, porque Choraes? Se tendes de ir á guerra, eu irei por vós; apromptai-me um cavallo que possa levar-me bem, e um bom pagem em quem me possa fiar. Tomae meus vestidos cinzentos, dae-me umas calças e um gonel, e com a minha pequena fita fazei-me um laço sobre o chapéo.» Quando chegou a Nice, eis que sobe aos bastiões: «Oh! vêde-a! que linda pequena vestida de rapaz!» O filho do rei estava á janella, a miral-a: «Oh! que pequena tão bella: se ella quizesse ser minha! Oh minha mãe, minha mãe, ella é uma rapariga! Oh que pequena tão bella: se ella quizesse ser minha! «—Se queres saber quem é, leva-a a casa de um negociante; se fôr uma donzella, só ha de comprar luvas.—Olhae, meus soldados, olhae para estes guantes!—Soldados que vão á guerra não têm frio nas mãos.—Oh minha mãe, minha mãe, é certamente uma donzella! Oh que pequena tão linda: se ella quizesse ser minha!—Se queres saber quem é, leva-a a casa de um ourives; se fôr uma rapariga, ha de comprar um annel.—Olhae, meus soldados, vêde que anneis tão bellos.—Soldados que vão á[Pg 166] guerra só precisam de espadas e punhaes.—Oh minha mãe, minha mãe, é certamente uma donzella. Oh que rapariga linda! Se ella quizesse ser minha!—Se queres saber quem ella é, leva-a para dormir comtigo. «Ella apagou o candil e mandou para lá o seu creado.» Oh minha mãe, minha mãe, é certamente uma donzella! Que rapariga, linda! se ella quizesse ser minha!—Se queres saber quem é, fal-a passar na agua; se for uma donzella, não se ha de querer descalçar. Ella despiu uma perna, quando chegou uma carta; a carta diz que lhe dêem a sua baixa. A pequena a meio caminho se poz a cantar: «Donzella estive na guerra, donzella voltei de lá».

No romance portuguez também se encontra esta prova do banho, e da carta que o pagem lhe traz, mas continúa, porque o capitão acompanha-a na volta á patria e vem a casar com ella. Na licção dos Açores, que traz Garrett, (t. III, pag. 65) termina egualmente o romance com um conceito engraçado:

Sette annos andei na guerra
E fiz do filho barão,
Ninguem me conheceu nunca,
Senão o meu capitão;
Conheceu-me pelos olhos,
Que por outra cousa não.

M. Nigra encontrou tambem na Servia vestigios d’este romance. Posto que se não ache nos Romanceiros hespanhoes, Jorge Ferreira na Comedia da Aulegraphia traz uns fragmentos em castelhano:

Pregonadas son las guerras
Da Francia contra Aragone...
Como los haria triste
Viejo, cano o peccador?...

que fazem suppor ter elle existido primitivamente n’esta lingua, attendendo á grande importancia que o castelhano tinha na corte portugueza. Tommaseo recolheu nos seus Canti greci, illirici, etc., um canto slavo, cuja similhança com o canto piemontez e portuguez faz suppor uma origem commum. Tommaseo publicou tambem um canto grego moderno. Qual será essa origem commum? M. Nigra diz que «os cantos romanescos communs á poesia romanesca das raças latinas devem, sem se hesitar, ser considerados como vindos e muitas vezes originarios da Provença, etc.» M. Nigra julga[Pg 167] este romance do tempo das Cruzadas, passando da Provença para os paizes Slavos e para a Grecia. É o unico modo como se pode explicar o seu apparecimento na poesia popular das duas Peninsulas. (Du Puymaigre, Vieux Auteurs Castillans, Append. p. 462 e 465.)

6—Romance de Gerinaldo—São muitas as influencias das tradições do norte sobre a poesia do nosso povo. O Conde Niño tem um final como o romance de Tristão e Yseult; a Imperatriz Porcina, de Balthasar Dias, encontra-se na lenda de Hildegarda, recolhida por Jacob Grimm. O romance de Reginaldo pertence ao cyclo carlingiano; não nos veiu através da Hespanha, como a maior parte dos romances carolinos; os dois romances recolhidos das folhas volantes publícados no Romancero general de Duran (1849-51, tomo I, p. 175 e 176,) differem muito do nosso; o primeiro é incompleto, e o segundo tem uma côr mourisca da fronteira. Em cada provincia dão ao pagem feliz diversos nomes; no Alemtejo Generaldo, no Minho e Porto Girinaldo o atrevido, e na Beira, segundo descobriu primeiro Garrett, chamam-lhe Eginaldo, que é a traducção mais proxima de Eginhart. Quasi todos os nomes dos personagens carolinos foram aportuguezados pelo nosso povo, como Valdovinos, Reinaldos de Montalvão, Roldão, Oliveiros, Beltrão, Dones Ogeiro, transformados de Bauduin, Reynaud de Monteauban, Roland, Olivier, Bertrand, Ogier le Danois. O romance portuguez de Reginaldo, tal como corre no Alemtejo, Extremadura, Beira Alta, Beira Baixa, Minho, apesar de todas as differenças de acção nas variantes, aproxima-se o mais possivel da tradição, que Jacob Grimm recolheu do Chronicon Laurishamense, (ed. Manheur, 1768, in 4.º, I, f. 40, 46) e que Vicente de Bauvais refere ao tempo de Henrique III: «Eginhart, primeiro camarista e secretario de Carlos Magno, alcançou, pelos bons e leaes serviços na corte, a estima de todos, e sobretudo o amor de Emma, filha do Imperador. Estava promettida em esponsaes ao rei da Grecia; e quanto mais o tempo do casamento se aproximava, mais a intima inclinação d’Eginhart e de Emma se fortificava em seus corações. Detinha-os o medo de que o rei não viesse a descobrir esta paixão e se enfurecesse. Por fim o mancebo não pode dominar os seus transportes; revestiu-se de coragem, e, não podendo communicar com a joven princeza por algum confidente, veiu protegido pelo silencio da noite ao quarto d’ella. Bateu levemente á porta do aposento, como se viera mandado pelo rei, e entrou. Ali protestaram o mutuo[Pg 168] amor, e regosijaram-se nos abraços tão ardentemente desejados. Eis que, ao romper da alvorada, o mancebo ao retirar-se viu que havia cahido durante a noite muita neve, e não se atrevia a dar passo da soleira da porta, porque as pegadas de homem o teriam logo trahido. N’esta perplexidade, os dois amantes resolveram o que haviam de fazer, e a menina concebeu um plano atrevido: quiz a toda a força pegar em Eginhart aos hombros, e antes do rasgar da manhã levou-o até á porta do seu quarto, e voltou cuidadosamente sobre as mesmas pegadas. Logo n’esta noite não tinha o imperador pregado olhos; levantou-se, e mal raiavam os primeiros alvores, se poz a olhar para os jardins do palacio. Então viu passar por debaixo das janellas a filha, que vergava sob o doce, mas carregado pezo, e que, depois de o haver deposto, correu rapidamente sobre os primeiros passos. O imperador firmou-se bem, para se não enganar, e ao mesmo tempo se sentiu tocado de dor e admiração; comtudo calou-se. Eginhart que sabia muito bem que mais hoje ou amanhã chegaria o caso aos ouvidos do rei, resolveu-se, e veiu ter com seu amo, deitou-se-lhe aos pés, pedindo que o despedisse, a pretexto de que seus fieis serviços não eram suficientemente recompensados. O rei ficou silencioso por longo tempo, e refreiou seus sentimentos; alfim prometteu ao joven de lhe dar uma prompta resposta. No entanto formou um tribunal, reuniu os primeiros e mais íntimos conselheiros, e descobriu-lhes que a magestade real fôra ultrajada pelo commercio amoroso de Emma com o secretario; e em quanto ficaram todos surprehendidos com a nova de um crime tão inaudito e grave, explicou-lhes como se haviam passado as cousas, e como observara tudo com os proprios olhos; depois, quando acabou, pediu-lhes parecer sobre o facto. A maior parte dos conselheiros, homens prudentes e inclinados á doçura, foram de voto que o rei pronunciasse de motu proprio sobre esta circunstancia. Carlos, depois de haver considerado o caso em todas as suas faces, reconheceu n’este acontecimento o dedo da Providencia, resolveu usar de clemencia, e casar os dois amantes. Applaudiram todos com alegria a moderação do rei, que mandou chamar o secretario e lhe falou assim: «Ha mais tempo devera ter compensado melhor os teus serviços, se me tivesses já manifestado o teu pezar; agora quero, em recompensa, dar-te em casamento minha filha Emma, pois que ella propria, levantando sua cintura, te quiz levar aos hombros.» Immediatamente deu ordem para que chamassem a filha, que appareceu muito córada, e em presença da assembleia[Pg 169] foi casada com o enamorado. Deu-lhes um rico dote em bens immoveis, em ouro e em prata: e depois da morte do imperador, Luis-le-Debonaire fez-lhes presente, por um acto particular de doação, de Michlinsadt, no Maingan. Os dois amantes, depois de mortos, foram enterrados n’esta referida cidade. A tradição oral do paiz conserva ainda a sua memoria, e a floresta vizinha, se se der credito a esta tradição, se chamou Odenwald, porque uma vez Emma se dirigiu a ella exclamando «O duwald! «Oh tu, floresta.» (Tradições allemãs de Jacob Grimm, ed. franceza de 1838, t. II, p. 149, 152.) O nosso romance popular apenas differe d’esta tradição em lhe faltar a pequenissima circumstancia da neve e das pégadas. Em nada altera a acção; os trovistas do Meio Dia só tiraram da tradição os episodios que conheciam; descreveram a paixão como a sentiam; pintaram a natureza como estavam costumados a vel-a. É assim qne se transplantam e naturalisam as tradições e as formas poeticas. Garrett, no engraçado estudo com que precede a sua versão de Reginaldo, quer achar na ballada ingleza de Little Musgrave and Lady Barnard uns longes de semilhança com o nosso romance: (Percy’s Reliquis, XI, secç. III, book the first), o que o leva a julgar a tradição de todos os paizes; no romance de Blancefleur ha o mesmo episodio do sonno dos dois amantes (v. 2363). Este assumpto era da predilecção dos menestreis populares; representa a acção que, segundo Edgar Quinet (Revoluções de Italia) exerceu a poesia provençal, isto é—a fusão do elemento aristocratico e feudal com o povo, pelo sentimento; a nossa lenda dos amores de Bernardim Ribeiro e da infanta Dona Beatriz, promettida ao duque de Saboya, tambem se parece bastante com a de Eginhart, accommodada ao gosto de uma civilisação mais conveniente. No romance de Reginaldo se encontram costumes dos povos do norte; o imperador, quando encontra o pagem dormindo com sua filha,

Tira el-rei seu punhal d’oiro,
Deixa-o entre os dois mettido,
O cabo para a princeza,
Para Reginaldo o bico.
Foi-se a virar o pagem,
Sentiu-se cortar no fio:
—«Accorda já, bella infanta,
Triste sonno tens dormido!
Olha o punhal do teu pae,
Que entre nós está mettido.»

[Pg 170]

Tambem no thalamo de Brunhilde e Sigurd, e na pyra, se collocou entre ambos uma espada (Ampère, Litterature du Nord; Michelet, Origines, p. 32). Já nos romances de cavalleria, quando o esposo encontra Yzeult dormindo com o amante entre a relva, retira-se tranquillo, porque ha entre ambos uma espada (Michelet, Histoire de France, t. II, c. 1, prope finem). A significação d’este symbolo cavalheiresco era o respeito, como ainda no seculo XV se usava, quando o procurador do archiduque Maximiliano desposou Maria de Bourgonha, e dormiu com ella separado por uma espada núa. (Grimm, Antiguidades do Direito Allemão, p. 170.) No romance popular o cabo voltado para a princeza e o fio para o pagem, denota aquelle symbolo juridico da Lei Ripuaria: «que uma mulher livre que desposasse um escravo contra a vontade da familia devia escolher entre a espada e a roca, que o rei ou o conde lhe apresentassem. Se pegava na espada, era preciso que ella matasse com suas mãos o escravo; se escolhesse a roca, devia permanecer tambem na escravidão.» (Lex Rip. 58, 18, d’après Michelet, Origines, p. 31.) Na Hespanha havia tambem um costume em que a mulher renegava o marido de inferior condição depois de morto, e tornava a alcançar os seus fóros.

Uma das verdades da poesia popular é o seu apparecimento logico; o romance de Gerinaldo encontra-se em Hespanha e Portugal, justamente até onde se estendeu a acção da poesia provençal; o genio hespanhol, impulsionado pelo sentimento cavalheiresco da honra, e o caracter portuguez, dominado pela integridade do dever, acceitam esta creação dos trovadores da Provença, em que a dama do solar, a filha do hidalgo se deixa amar por um homem de condição inferior. Cumpre citar aqui a auctoridade de Edgar Quinet no seu brilhante livro das Revoluções de Italia: «A feição caracteristica dos trovadores é que quasi todos são filhos de servos que, pelo acaso do genio, pela elevação do coração, se acham por instantes em uma relação de egualdade ficticia com a aristocracia feudal. Entrando no solar o filho do povo, o trovador, todo emoção, ingenuidade, alma, poesia, paixão, é immediatamente deslumbrado pelo encanto da dama sua soberana; ousa apenas levantar os olhos para ella. D’onde resulta, que pela sua propria origem, o amor dos trovadores nasceu de relações inteiramente novas, que repugnavam á antiguidade, em que a mulher se torna o forte, e o homem fica o ente fraco. As relações dos sexos estão invertidas: é a mulher que protege, e o homem que necessita do apoio. Do lado d’ella está a auctoridade, o mando, o pleno poder; para elle[Pg 171] ha só timidez, a submissão do servo. O trovador dedica-se a uma pessoa, que das alturas sociaes em que está collocada o domina, o opprime com a superioridade; é sempre para elle um ser inaccessivel.» (p. 80). Em outro logar o profundo pensador dá ainda mais relevo a esta idea: «O começo da sociedade moderna é a alliança da castellã e do filho do povo sobre os confins da barbaria; n’este laço chimerico, n’este momento de extasis que aproxima as duas extremidades da humanidade e casa duas condições que no decurso dos seculos estiveram sempre desunidas, está verdeiradamente encerrado o nascimento civil do mundo moderno. Emancipação real do escravo pelo amor d’aquella a quem elle pretence, instincto manifesto de fraternidade social, egualdade das almas, tudo está contido nestes esponsaes invisiveis da dama nobre com o humilde servo» (p. 85). Todos estes sentimentos nos são despertados ao lêr o romance de Gerinaldo; é incontestavelmente de origem provençal, e tanto que até pode servir como prova do pensamento luminoso de Quinet. Cada vez nos convencemos mais do que uma vez disse Jacob Grimm: que não ha uma só mentira na poesia popular.

Este romance canta-se em Freixo de Espada á Cinta; é mais breve do que na lição de Garrett; differe em pequenas circumstancias, e no desenlace principalmente. El-rei vae dar com o pagem dormindo com a infanta por causa de um sonho, um pezadello sinistro, que bem certo lhe sahia; no Reginaldo de Garrett, é já dia e não apparece o pagem para trazer os vestidos a el-rei, caso que o leva a serias desconfianças. Na versão do Alemtejo remata com um epigramma: el-rei castiga o pagem dando-lhe a filha por mulher. O final do romance, como traz o Romanceiro de Garrett (t.II, p. 161), parece não pertencer-lhe, como ampliação que afrouxa as situações; antes parece mais uma addição do romance hespanhol de Virgílios. Nas collecções hespanholas o romance de Gerinaldo termina sem a ampliação da versão de Garrett.

O romance de Gerinaldo encontra-se no Romanceiro de Duran; a primeira versão (n.º 320) é a das Asturias, aonde se encontram tambem vestigios da Náu Catherineta, e uma versão da Rainha e Captiva. A segunda versão (n.º 321), tambem anonyma, é um romance que os cegos vendem em folha volante, aonde se não encontra a segunda parte do Reginaldo de Garrett, que é visivelmente uma interpollação. Na Andaluzia ha um Corrio ou romance tradicional de Gerinaldo:

[Pg 172]

Carrerilla de Gerineldo

«D’onde vienes, Gerineldo,
Tan triste y tan affligido?
—Vengo del jardin, señora,
De regar flores y lirios.
«Gerineldo, Gerineldo,
Mi camarero es Pulio
El que te pondrá esta noche
Tres horas á mi servicio.
—Como suy vuestro criado,
Señora, os burlais comigo.
«No me burlo, Gerineldo,
Que de veras te lo digo:
A la una de la noche
Has de venir al castillo,
Con zapatitos de seda,
Para que no seas sentido.»
Esto le digo la Infanta,
Y al punto se ha despedido,
Diciendole Gerineldo:
—Señora, será cumplido.
DURAN, t. I. p. 177.

7—Romance da Noiva roubada—Na bella collecção dos Cantos populares da Grecia moderna, feita pelo conde de Marcellus, na quinta parte, que encerra as legendas, se encontra uma intitulada o Rapto, em tudo semelhante ao romance portuguez. Eil-a:

«Em quanto estava assentado e comia a uma mesa de marmore, meu cavallo nitriu e o meu sabre estrepitou. Disse então para mim: Casam a minha bella; abendiçoam-na com outro; para outro a corôam, desposam-na, e dão-lhe outro marido. Levanto-me e vou direito aos cavallos, que são ao todo setenta e cinco: qual é dos meus setenta e cinco cavallos, o que pode faiscar no Levante e dar consigo no Poente? Todos os cavallos que me ouvem gotejam sangue; todas as eguas que me escutam abortam. Mas um velho, um velho corcel, com quarenta feridas: «—Eu sou velho e feio, não me dou com as viagens; mas pelo amor da minha bella senhora emprehenderei a corrida, porque ella me trazia de comer no avental arregaçado, e de beber na cova da sua mão.» Sella immediatamente o cavallo, e immediatamente o monta. «Cinge a cabeça com uma toalha de nove almas, não puches[Pg 173] a redea, nem craves as esporas, porque isso me lembraria a minha mocidade, e eu seria como um pôtro e semearia os teus miollos em um campo de nove covados.» D’uma chicotada no cavallo adianta quarenta milhas; redobra e faz quarenta e cinco; e caminhando roga a Deos:—Meu Deos, fazei com que encontre meu pae entrançando sua vinha. Pediu como christão, como sancto foi ouvido, e encontrou seu pae podando a vinha.—Bem andaes, meu velho; mas de quem é essa vinha?—Para lucto e desgraça é do meu filho Janaki. Hoje dão um outro marido á sua bella. Com outro a abendiçoam, para outro a corôam.—Oh dize-me, dize-me, bom velho, ainda os encontrarei á mesa?—Á mesa os encontrarás, se tiveres um bom cavallo; se tens só um rocim, encontral-os-has na benção.—D’uma chicotada no cavallo avança quarenta milhas; redobra, e faz quarenta e cinco, e caminhando, vae orando a Deos.—Meu Deos, fazei com que eu encontre minha mãe regando no seu jardim! Como christão o pediu, como sancto foi ouvido, e encontrou sua mãe regando o jardim. Bem andaes, minha velhinha; de quem é este jardim?—Para desgraça e luto é do meu filho Janaki. Hoje dão um outro marido á sua bella; com outro a abendiçoam, coroam-na para outro.—Oh! dize-me, dize-me minha velha, encontral-os-hei ainda á mesa?—Á mesa tu os encontrarás, se tiveres um bom cavallo; se tiveres só um rocim, tu os encontrarás na benção.—D’uma chicotada no cavallo galga quarenta milhas, redobra e faz quarenta e cinco. O cavallo começa a relinchar e a donzella o reconhece. «Minha filha, quem conversa comtigo? quem te fala?»—É meu irmão mais velho, que traz o meu dote.—«Se é teu irmão mais velho, sae para ir dar-lhe de beber. Se é teu amante, sáio eu, e mato-o.» É meu irmão mais velho, que me traz o dote.—Ella pega em um copo d’ouro, para sair e dar-lhe de beber.—Põe-te á minha direita, ó encantadora, e dá-me de beber pela esquerda.—O cavallo ajoelhou e a donzella se achou sobre elle. Então desfillou como o vento. Os turcos pegam em seus mosquetes, mas já não alcançam nem o cavallo, nem a poeira d’elle. Aquelle que tinha um bom ginete viu a sua poeira; os que só tinham um rocim, nem sequer a avistaram». (Chants populaires de la Grèce Moderne, p. 140.)

Uma outra conclusão, que se tira da ubiquidade d’estes romances, é que o povo adopta sempre aquelles que não dizem respeito a facto algum particular ou historico; os romances communs aos povos do Meio Dia da Europa, são apenas acções cavalheirescas de imaginação, aventuras inspiradas por um certo ideal; isto se confirma pela grande vulgarisação[Pg 174] dos romances do cyclo da Tavola Redonda, e pelo pequeno numero dos romances carolinos na Italia, na Hespanha e nullo quasi em Portugal. Na forma portugueza, e grega d’este romance se encontra a côr local de cada povo: comtudo o nosso parece mais antigo; as terras d’alem mar lembram-nos o modo como o povo designa as expedições á Terra sancta.

8—Romance do Alferes matador—Este romance ainda não tinha sido recolhido da tradição oral; veiu da Covilhã, a mina mais rica destas preciosidades, e aonde se encontram as versões mais puras. Pela confrontação com os romances francezes e italianos está incompleto, porque a donzella apenas se finge morta para salvar a sua honra: circumstancia que não seria omittida, se o nosso rhapsodo popular completasse a historia. Gerard Nerval (Bohème galante, pag. 71) traz uma canção bourbonesa, La jolie Fille de la Garde, tambem conhecida na Picardia. No Pays Messin foi recolhida uma outra versão por M. du Puymaigre (Vieux Auteurs, t. II, p. 478):

Au chateau de Beufort y avait trois belles filles
Elles sont belles, belles comme le jour;
Trois do nos capitaines leur vont faire 1’amour.
....................................................
Le plus jeune des trois, celui qui la courtise,
A mis la bell’sur son cheval grison,
Puis ils l’ont emmenée droit á la garnison.
Deux ou trois jours après, la belle est tombée morte,
Sonnez, trompette, et le tambour joli:
Voilà la belle morte sans en avoir joui.
Il faut enterrer dans l’jardin de son père;
Au dessus de sa tombe on mettra par écrit:
«Voilà la belle morte sans en avoir joui.»
Deux, ou trois jours après, le père qui se promène
A vu le tombeau frais... «Mon pèr’si vous m’aimez,
Faites ouvrir la tombe;
J’ai fait trois jours la morte pour mon honneur garder.

Nos Canti populari, raccolti da Oreste Marcoaldi (pag. 163) vem um romance similhante, na colleção de Caselli (Chans populaires d’Italie, pag. 203), que o dá como do reproduzido Piemonte.

[Pg 175]

9—Romance da Romeirinha—O grande uso das peregrinações e romagens como pena ecclesiastica e civil na edade media, produziu uma tal perturbação na familia, que muitas vezes os maridos vieram encontrar as mulheres já casadas; tudo isto originava muitas tradições. A promessa de romaria era tambem hereditaria como o castigo na penalidade heroica; Josselin fica herdeiro da peregrinação á Terra santa, que seu pae promettera. No testamento de el-rei D. Diniz se lê: «Item, mando que um Cavaleiro, que seja homem de boa vida, e de verguença, que vá por mi á Terra Santa dultramar, e que estêe hi por dous annos compridos se a cruzada for servindo a Deos por minha alma etc.» (Provas da Historia Genealogica, por Antonio Caetano de Sousa, t. I, pag. 101.) As mulheres tambem faziam romarias, e, expostas aos perigos da estrada e da pirataria, não poucos romances tiveram origem das situações difficeis por que passaram. Nos nossos romances do Conde Preso, se vê o fundamento d’aquella carta que escreveu San Bonifacio a Guthbert, bispo de Cantorbery, ácerca das romarias das mulheres: «A maior parte d’ellas succumbem e muito poucas voltam com a sua castidade.»[1] As leis protegiam os peregrinos, coadjuvadas pelas excommunhões dos canones dos Concílios. A lei bávara diz: «Que ninguem faça mal ao estrangeiro, porque uns viajam por Deos, outros por necessidade, e todos precisam de paz». O concilio de Latrão em 1123 excommunga os que vexarem os peregrinos que vão a Roma ou a outro qualquer logar de devoção. No romance portuguez de Dom Garfos, o conde é enforcado por ter violado a romeira de Sanct’Iago. Este romance da Romeirinha, que anda na tradição oral de Trás-os-Montes e Minho, encontra-se tambem, na parte essencial da acção, com alguns romances populares da Italia. Pode-se apresentar como o typo dos romances communs ao Meio Dia da Europa; o cavalleiro Nigra e Du Puymaigre determinaram os paradigmas.

M. Amador de los Rios, nos romances asturianos, que publicou em 1861 no Jahrbuch, traz um em tudo similhante ao nosso; refiro-mo ao essencial da acção. (Vid. Du Puymaigre, t. II, p. 465.)

O Rico Franco do Romanceiro hespanhol (Du Puymaigre, 406) a Montferrina (Caselli, pag. 190), O Corsario (Du Puymaigre, t. II. p. 406), Le beau Marinier colligido de Beaurepière, e o Barzas Breiz, appresentam bastantes situações identicas.

[Pg 176]

10 e 11—Romances da Infanta de França—A versão da Beira-Baixa é notavel por appresentar uma fusão natural de dois romances o Caçador e a Infeitiçada, que traz Garrett, (Romanceiro t. II. p. 21 e 32). O final, que não apparece em nenhuma das lições de Garrett, encontrei-o tambem em um fragmento que recebi de Penafiel. A versão da Foz tem os dois romances confundidos, e nella se nota o processo de abreviação que se dá continuamente nos romances populares. Estes mesmos dois romances vêm nos Romanceiros hespanhoes com o nome de Infantina e Romance de la Infanta de Francia. (Duran, t. I, p. 152). O espirito d’este conto meio decameronico é manifestamente de origem franceza; as nossas versões vieram-nos da tradição de Hespanha, como se vê pela perfeição d’ellas, quasi sempre mais bem acabadas do que as castelhanas. Saem da ultima demão. «A versão portugueza, segundo Fernando Wolf, está mais proxima do original francez do que da versão hespanhola. Ambas tratam o mesmo assumpto, o logar da scena em ambas é perto de Paris; a lubricidade dos Fabliaux, um tom desenvolto e a crença nas fadas, acham-se notadas no primeiro d’estes romances.» (Proben, S. 54). As duas versões que appresentamos, assignalam a influencia normanda na poesia popular portugueza. Gil Vicente no Auto dos Quatro Tempos, traz uma cantiga franceza:

Ay de la noble
Villa de Paris, etc.

que nos comprova esta asserção; basta-nos porem esse paradigma, para fundamental-a melhor:

Nons étions trois filles,
Bonnes à marier;
Nous nous en allâmes
Dans un pré danser.
Nous fîmes rencontres
D’un joli berger.
Il prit la plus jeune,
Voulut l’embrasser.
Nous nous mîmes toutes
A l’en empêcher.
Le berger timide
La laissa aller;
Nous nous en criâmes:
«Ah! le sot berger!
Quant on tient l’anguille
[Pg 177]
Il faut la manger.
Quant on tient les filles,
Faut les embraser.»

Charles de S. Malo traz esta canção a pag. 379 das Chansons d’autrefois, referida ao anno 1660 como anonyma. Gerard Nerval recolheu na Normandia um romance popular, que é o pensamento das nossas versões, mas com aquella graça facil que caracterisa o genio francez. Du Puymaigre, d’onde o reproduzimos (Vieux auteurs Castillans, p. 251, t. II), tambem o ouviu cantar na Borgonha e no Pays-Messin:

Après ma journée faite
Je m’en fut promener,
En mon chemin rencontre
Une fille à mon gré;
Je la prit par sa main blanche,
Dans les bois je l’ai menée.
Quant elle fut dans les bois,
Elle se mit à pleurer:
—Ah! qu’avez-vous, ma belle,
Qu’avez-vous à pleurer?
—Je pleure mon innocence,
Que vous me l’allez ôter.
—Ne pleures pas tant la belle
Je vous le lesserai.
Je la pris par sa main blanche
Dans les champs je l’ai menée;
Quant elle fut dans les champs
Elle se mit à chanter.
—Ah, qu’avez-vous la belle,
Qu’avez vous à chanter?
—Je chante votre bêtise
De me laisser aller,
Qand on tenait la pule
Il fallait la plumer.

Já o sr. Duran tinha dito d’este romance: «Todo indica que este romance es de origen frances, é imitacion de alguna trova caballeresca. De todas maneras é bellissimo por su natural sencillez, y por la festiva e punzante expresion de sus[Pg 178] ideas, tan propria de las crónicas bretonas e de los cantos de los Troberos.» (Rom. Gener. p. 152, t. I).

Ha na Infeitiçada, que Almeida Garrett colligiu, e na versão da Foz, um lance dramatico de quasi todos os romances populares: é o cavalleiro que se encontra com sua propria, irmã:

«Deixai-me agora chorar,
Olhai a minha mofina;
Cuido que levo mulher
E levo a uma irmã minha!

Este mesmo desenlace se encontra no romance de Branca-Flor:

Ai triste de mim coitada,
Ai triste de mim mofina,
Mandei buscar uma escrava,
Trazem-me uma irmã minha.
(Pag. 103, n.º 38.)

No romance catalão Las dos Germanas, publicado por M. Milà y Fontanals (Observationes sobre la Poesia popular, p. 117) a cativa dá-se a conhecer por uma cantiga de berço. Na Bella Infanta ha tambem um reconhecimento. No romance de Dom Bueso, recolhido por Amador de los Rios, o cavalleiro encontrou uma donzella que estava lavando em uma fonte fresca. Leva-a comsigo; já proximo de casa, ella recorda-se d’aquelles sitios, e é quando Dom Bueso reconhece sua irmã Rosalinda. Na poesia grega, onde o amor não é conhecido com a simplicidade ingenua dos povos modernos, a mulher é quasi sempre a que se apaixona de um modo irresistivel, a que se sente arder em um fogo ignoto; veja-se Sapho, Phedra, Pasiphae; o heroe não comprehende essa hallucinação. Na poesia hespanhola o cavalleiro é quasi sempre tambem incitado pelas graças das donzellas. A rudeza das armas fazia-lhe esquecer os devaneios ferventes. No romance da Encantada e da Infeitiçada, a donzella é que se dirige ao cavalleiro, e que ri da sua ingenuidade.

Uma ballada allemã intitulada a Filha do rei encontrada, que Du Puymaigre traduziu (Vieux auteurs Castillans, t. II, p. 365) versa sobre a mesma peripecia, mas illuminada pela melancholia vaga do norte: «Um rei tinha uma filha[Pg 179] pequenina; chamava-se Annellein. Sentou-se ás abas de um bosque sobre uma pedra. Veio um vendilhão estrangeiro por ali; atirou-lhe uma fita de seda: «Agora é preciso que tu me sigas.» Levou-a para casa de uma mulher, que tinha uma estallagem, e deixou-a para servir. «Estallajadeira, minha estallajadeira, tomae para vos servir essa minha filhinha.»—Oh sim, sim, é o que eu quero; heide tratal-a bem, heide ser como uma mãe para ella. «Passado certo tempo, já se contavam annos, eis que passa um senhor a cavallo, indo em busca de uma mulher. Passou pela casa da estallajadeira; a rapariga lhe trouxe vinho. «Estallajadeira, minha cara estallajadeira, é vossa filha? ou é mulher de vosso filho? como é tão bella?—Não é minha filha, nem tão pouco mulher de meu filho: é a pobre Gudeli; ella ensina os quartos aos hospedes.—Estallajadeira, minha cara estallajadeira, deixai-me ficar uma noite ou tres, tantas quantas me fizer conta.—Oh sim, sim, isso é o que eu quero. Eu vos hospedarei tanto tempo quanto quizerdes.» O cavalleiro tomou a bella Annelein pela mão, e a conduziu, para o quarto de dormir; levou-a para uma bella cama e perguntou-lhe se quereria dormir junto d’elle. O Duque tirou a sua espada d’ouro e pol-a entre os dois corações. A espada não hade ferir nem cortar, mas Annelein hade ficar como uma virgem criança. «Ah Annelein, olha agora para mim. Conta-me a tua sorte, dize-me tudo o que sabes, tudo o que te lembra. Dize-me quem é a tua mãe?—O senhor rei é meu pae, a rainha é minha mãe; eu tenho um irmão que se chama Mannigfalt: Deos sabe por onde elle agora anda.—Já que teu pae é o rei, e tua mãe a rainha, e que tens um irmão chamado Mannigfalt, eu apérto a mão de minha irmã.» E quando rompeu a madrugada, a estallajadeira veio à porta do quarto: «Levanta-te, priguiçosa, levanta-te, vem dar de almoçar aos hospedes.»—Oh não, deixa dormir a bella Annelein; serve tu os viajantes; minha irmã Annelein já não é criada.» Monta-se a cavallo, e leva sua irmã á garupa; toma galhardamente sua irmã pela cintura e leva-a atrás de si. E quando chegou á corte, veiu sua mãe ao encontro: Bem vindo sejas, meu filho mais essa terna mulhersinha.—Não é uma mulhersinha, é vossa filha, que tinhamos perdida ha tanto tempo. «Sentaram á meza a bella Annelein, deram-lhe peixe frito e cosido; meteram-lhe no dedo um annel d’ouro: «Até que fôste encontrada, minha filha real.» (Volksliedei, S. 186) Uma outra ballada allemã, de uma orphan, que vae bater á porta de uma irmã casada, para a servir, tem sua analogia com a Branca-Flor (Deutsches Balladenbuch, S. 10).[Pg 180] Esta mesma peripecia se encontra em cantos suecos, dinamarquezes, em um fragmento do poema bretão Les Breiz (M. de Villemarqué, Barzaz Breiz, t. I, p. 137-180), nos Cantos populares do Norte (Marmier, p. 175), nos Cantos populares da Grecia moderna (Conde de Marcellus, p. 146). O maravilhoso feérico das margens do Rheno tambem apparece n’estes romances da Infanta de França, e Encantada. M. Du Puymaigre indica a maior parte dos romances em que se encontram situações analogas de reconhecimento, cujas collisões formam ordinariamente os lances da poesia popular. (Vid. Vieux auteurs castillans, t. II, p. 357, 374).

12—Romance da Silvana—É dos mais populares e antigos; encontra-se em Lisboa, Ribatejo e Beira Alta. Já no seculo XVII D. Francisco Manuel de Mello o cita como velho, como se deprehende d’aquelle verso do Fidalgo apprendiz: Uma letra nova quero, que diz Brites, recusando-se a escutar este romance que Gil lhe ia cantar á guitarra. (Pag. 247). A Silvana faz lembrar a Myrrha da mythologia grega. Pertencerá ella ás ficções eruditas do cyclo greco-romano? Não parece o combate de Tristão com o Morouhet de Irlanda uma imitação o combate de Theseu com o Minotauro? Arthur não é trahido por Ginebra, como Hercules por Djanira? Têm ás vezes origens caprichosas estas tradições do povo. O principio da Sylvana anda quasi sempre confundido com o romance do Conde Alarcos. Foi pela primeira vez publicado por Almeida Garrett, que o dá como originario portuguez. (Rom. t. II, p. 98). Encontra-se porem nas Asturias, e o sr. Amador de los Rios o publicou no Jahrbach für romanische und englische Literatur, t. III, p. 284, com o titulo de Delgadina: «O rei tinha tres filhas, cada qual como uma flor, e a mais nova d’ellas todas chamava-se Delgadina. Estando um dia á meza, estando um dia a comer, seu pae que a estava a mirar, seu pae que tanto a mirava.—Porque é que me olhaes, meu pae? Porque é que me estaes a olhar?—Ólho, filha, porque quero sejas minha namorada.—Isso é o que Deos não quer, nem a Virgem soberana. Deos do céo não quer que eu seja tua namorada. O pae quando isto ouviu a levou para uma torre; não lhe dava para comer, mais que sardinhas salgadas; não lhe dava de beber mais que summo de laranja. Delgadina, morta á sêde, foi pôr-se a uma janella, e vendo os irmãos que estavam a par dos grandes de Hespanha: Oh meus irmãos, meu irmãos, se me daes um pingo de agua, que o meu coração se quebra, e a minha alma se parte.—Não t’a darei, Delgadina, pois se o soubesse meu pae a vida me tiraria com a ponta da sua[Pg 181] espada. Delgadina morta á sêde, foi pôr-se a outra janella, viu suas irmãs estarem bordando tea de Hollanda: Oh manas, manas queridas, mandae dar-me uma pouca de agua.—Não t’a darei Delgadina, Delgadina não darei, porque perderia a vida se é que meu pae o soubesse. Delgadina morta á sêde, foi pôr-se a outra janella, e vendo seu pae já prestes a partir para a caçada: Meu pae, vós que sois meu pae, dae-me vós uma gota de agua?—Eu te darei Delgadina, se tu commigo falares.—Ouvirei as vossas falas, bem contra minha vontade. Os criados que elle tinha, todos foram buscar agua, uns a trazem em jarros de ouro, outros n’um gomil de prata. Ao primeiro que chegou, mandou sua corôa dar, ao que chegou derradeiro, manda a cabeça cortar. O leito de Delgadina estava de anjos cercado, e a cama de seu pae toda cheia de diabos.»

A lição portugueza é mais extensa e mais primitiva, nada perde da sua originalidade; porque os romances asturianos, segundo Amador do los Rios, são de origem extranha, accommodados ás toadas antigas:

Faustina

(Variante de Coimbra)

O Conde da Villa-Flor,
Por ser o Conde maior,
De tres filhas que elle tinha
Clarinhas como o sol;
Uma se chama amada,
Outra se chama querida.
Outra se chama Faustina
for ser a mais fidalgada.
—Queres tu, filha Faustina
Ser a minha namorada?
«Não permitta Deos do céo,
Nem a Virgem consagrada,
Que eu, sendo sua filha,
Seja sua namorada.
—Deixa vir a mãe da missa,
Que eu lh’o saberei dizer:
Ora vinde mulher minha,
Ver o que aconteceu:
A nossa filha Faustina
De amores me prometteu.
Dizei lá, oh mulher minha,
[Pg 182]
O que Faustina mereceu?
—«Torre de pedra lavrada
Para meteres Faustina!
Deras-lhe o pão por onça,
Agua por uma medida.
Ali tiveram Faustina
Por sete annos encerrada:
Davam-lhe agua por onça,
E da carne mais salgada.
Ao cabo de sete annos
Faustina sem ser findada;
Foi-se d’ali a Faustina,
Tristinha e desconsolada,
Assobindo uma ventana
Outra ventana mais alta,
D’ahi viu estar suas manas
Cosendo em uma almofada:
«Deos vos guarde, manas minhas,
Manas minhas da minha alma;
Peço-vos pelo amor de Deos
Que me deis uma pinga de agua!
«—Deos te guarde, oh Faustina,
Oh mana da minha alma,
O nosso pae nos jurou,
P’los cópos da sua espada,
Que quem désse agua á Faustina
Sua cabeça é cortada.
Foi-se d’ali a Faustina,
Tristinha e desconsolada,
Assobiu a uma ventana,
Outra ventana mais alta,
D’onde via estar sua mãe
Lavrando a ouro e prata:
«Deos vos guarde, oh minha mãe,
Mãe minha da minha alma!
Peço pelo amor de Deos
Que me dê uma pinga d’agua.
—«Deos te guarde, oh Faustina,
Oh filha da minha alma;
Ha sete annos que eu vivo
Com o teu pae mal casada.
[Pg 183]
Foi-se d’ali a Faustina,
Tristinha, desconsolada,
Assobiu a uma ventana.
Outra ventana mais alta,
D’onde viu andar seu pae
Passeando n’uma sala:
«Deos vos guarde, oh meu pae,
Oh pae meu da minha alma;
Peço pelo amor de Deos
Que me deis uma pinga de agua.
—Deos vos guarde, oh Faustina
Minha filha mal fadada.
Eu pedi-te a mão direita
Tu não m’a quizeste dar.
«Aqui tem a mão direita,
A esquerda se a quizer!
—Venham as jarras de prata
De ouro se as houver;
Quero dar agua á Faustina,
Que já é minha mulher.
Corram, corram, cavalleiros,
A dar agua á Faustininha;
O que primeiro chegar
Hade ter uma prenda minha.
A agua era chegada,
Era findada Faustina!
No meio d’aquelle largo
Um tanque d’agua apparecia.
Vieram sete senhoras
Domingo de madrugada
Para levarem Faustina
Para o céo em corpo e alma.
Nossa Senhora do Pranto
É que a pranteava,
Tu morreste, Faustininha,
P’la honra de seres honrada.
Nossa Senhora do Pranto
Era quem a pranteava;
No seu pranto, que dizia:
Domingo de madrugada
Vieram sete demonios,
Dormiram em tua casa
Para levarem teu pae
P’r’o inferno em corpo e alma.

[Pg 184]

Aqui está completa a versão apontada por Garrett, de que apenas deixou alguns versos (Rom. t. II.) É um facto curioso vêr como o povo vae confundindo os romances, produzindo inconscientemente situações novas. O nó da acção é imitado pelo povo dos romances do Conde de Allemanha. Nossa Senhora do Pranto, que vem prantear a desgraçada, dá ao romance uma côr de alta antiguidade; era um velho uso de Portugal, já prohibido no tempo de D. João I.

13—Romance de Bernal Francez—Anda na tradição oral da Beira Baixa e Estremadura, e já Garrett o tinha encontrado nos manuscriptos do cavalleiro de Oliveira, por onde aperfeiçoou a lição mais circumstanciada e extensa que vem no Romanceiro, t. II, pag. 129. A versão da Foz é egualmente dramatica, e superior por se ter respeitado n’ella a sua rudeza nativa. Tenho para mim que o romance é formado de duas partes distinctas que a tradição confundiu, e que o povo não sabe discriminar; o pensamento da primeira parte, isto é a difficuldade que sente a esposa diante de seu marido, encontra-se no Romancero General (Duran, n.º 298) na Adultera castigada; a segunda, parece formar-se do romance El Palmero (Duran, n.º 292) em que o cavalleiro vem ver se vê a sua amada e lhe dizem que é morta por amor d’elle.

Circumstancias do dialogo, desfecho, e o caracter principal da acção, revelam-nos manifestamente a fusão dos dois romances, que pelo andar do tempo e pela desmemoria do vulgo se uniram. Porem de todos os romances hespanhoes que mais se parecem com este é o da Bella mal maridada (Ochoa, Tesoro, p. 490) que já vem citado na Comedia de Rubena por Gi1 Vicente:

Cantará o Demo um grito
Das las mas lindas que yo vi.

O romance hespanhol principia assim:

La bella mal maridada
Das las lindas que yo vi.

Este romance foi muito imitado em Portugal pelos poetas cultos dos principios do seculo XVII.

14—Romance do Conde Ninho—Pertence pelo seu caracter maravilhoso ao cyclo da Tavola Redonda. Encontra-se na tradição oral dos Açores, e em Trás-os-Montes foi novamente recolhido. Na lição de Garrett (Rom. t. III, p. 7)[Pg 185] não se encontra o cantar que o conde armou. Nesta versão o rei manda cortar as arvores que rebentam das sepulturas dos amantes, porque o não deixam ir á missa; correm d’ellas leite e sangue, que symbolisam os sexos; situação que faz lembrar, se não é directamente imitada, o mais popular de todos os romances da Europa na edade media Tristan e Yseult. Eis como essa deliciosa imagem se encontra na seguinte passagem do Tristan: «Et de la tombe de monseigneur Tristan, yssoit une ronce belle et verte et bien feuilleue qui alloit par dessus la chapelle, et descendoit le bout de la ronce sur la tombe de la reyne Yseult et entroit dedans. La virent les gens du pays et le comptèrent au roy Marc. Lo roy la fist couper par troys foys et, quant il l’avoit le jour fait couper le lendemain estoit aussi belle comme avoit aultre fois esté, etc.» (Tristan, Chevalier de la Table ronde, fol. CXXIV). Este mesmo maravilhoso se encontra no Lord Thomaz and fair Annet, (Percy, Reliques of ancient english poetry, t. III, p. 296); no Prince Robert, e no The Douglas Tragedy (Walter Scott, Minestrelsy of the Scottish Border, t. III, pag. 59, t. II, pag. 224). O romance de Tristão era conhecido já em Portugal no tempo de D. Diniz, como se vê do seu Cancioneiro:

Qual mayor poss’e o mui namorado
Triste, sey ben que non amou o seu,
Quant’eu vos amo......(Pag. 53.)

Tambem no Catalogo dos livros de uso de el-rei D. Duarte, (Sousa, Provas da Hist. Genealogica, t. I, p. 544) se encontra citado o livro de Tristam. As almas dos amantes voam na forma de pombas; nas lendas ecclesiasticas, e no hymno latino de Santa Eulalia, a alma do justo ascendia para o céo na apparencia do uma pomba. Portanto não é nem provençal, nem francez, ou normando, como pretende Garrett. O nome do conde Niño é talvez a forma hespanhola de conde menino. Garrett chama-lhe Nillo, e diz que não é nome portuguez; com tudo Bernardes, na Floresta, traz um nome de santo similhante, o que bastava para o povo o adoptar.

Quanto á realidade historica d’este romance, alguma se lhe pode assignar:

Na Chronica do conde D. Pedro Niño, narração meio historica meio fabulosa de Gutierre Diez de Games, se encontram vestigios do romance, porque ahì se fala em varias aventuras de amores. Como d’ali veio a tradição para Portugal, é facil de comprehender, porque o conde Niño foi casado com D.[Pg 186] Beatriz, infanta portugueza. Quanto á origem do nome de Niño, diz a chronica: «Segund que de antigüa edad quedó en memoria, dícen qe vino en Castilla un Duque de Francia, é vivió é moró en ella grand tiempo, hasta que morió: é dejó dos fijos pequeñeruelos, é tomólos el Rey, é diólos á un Caballero que los criasse en su casa del Rey.

El Rey llamabalos siempre los Niños: é el su Ayo, cada que alguna cosa delibrar con el Rey para los Niños, siempre eram mentados Niños. D’esta guísa los llamaban las otras gentes: assi que á cada uno decían su nombre apertadamente, é decian encima el Niño.» (Cap. I, 10, 15, pag. 13). O romance fala de um cantar do conde Niño: na Chronica se lê: «Avia graciosa voz, é alta: era muy denoso eu sus decires» (Cap. X, p. 44). O casamento de Pedro Niño com D. Beatriz de Portugal, filha do infante D. João, causou-lhe immensos trabalhos, porque a elle se oppunha el-rei Regente de Castella: «E despues de la respuesta del Infante andubo Pero Niño mas de medio año por la corte é cerca d’ella, é vióse en assaz peligros muchas veces por ver á su esposa.» (Cap. III, Part. III, p. 185). No testamento do conde Pero Niño dispõe que elle e sua mulher sejam sepultados no côro da egreja de S. Thiago da Villa de Cigales. Crêmos ter apresentado os principaes traços historicos, para se vêr a formação do romance popular. Os amores do conde Niño foram cantados em verso por Villasandíno, poeta do tempo de Henrique III e João II, como se pode ver pelo Cancioneiro de Baena.

15—Romance da Promessa de Noivado—Veio-nos esta versão da Beira Baixa; é uma variante do romance a Peregrina, (Romanc. de Garrett, t. III, pag. 22). Apresenta collisões novas, taes como a de estar o cavalleiro já casado e com filhos. A versão de Garrett é artificial, porque a formou dos fragmentos que obteve do Minho, Extremadura e Trás-os-Montes, fundidos na lição do Porto: «Contudo aproveitei bastante d’elles para restituir o texto e dar nexo e clareza à narrativa.» (Pag. 20). Assim fundiu aquella situação de romance de Tristão e Yseult, que apparece no Conde Niño e na Rosalinda, de nascerem duas arvores na sepultura dos amantes, e que elle teve de explicar como logar commum dos romances populares. Na versão da Beira Baixa é só a amante que morre de tristeza. Garrett diz que nos Romanceiros Castelhanos nada se encontra parecido com esta singela historia. No Romancero General do Duran, o Conde Sol (n.º 327) tem muitos pontos de similhança com o nosso, e[Pg 187] tanto que pela extensão d’elle deduzimos ser o nosso uma abreviação posterior. Foi Walter Scott o que primeiro descobriu a tendencia que têm os romances populares de se aberviarem.

16—Romance de Dom Aleixo—Se não é de origem hespanhola, o primeiro verso com que o romance principia faz nascer tal suspeita, posto que nas collecções castelhanas se não descubra. Sabe-o o povo de Lisboa e da Beira Alta. Nos manuscriptos do curioso Cavalleiro de Oliveira o encontrou Garrett, por onde restituiu os fragmentos das versões provincianas. (Rom. t. II, p. 91). Assim a lição que appresenta é bella, mas não é puramente popular, como elle proprio confessa: «Ainda assim, algumas raras palavras foram por mim conjecturalmente substituida.» Ha ali um mysterio que faz estremecer a quem lê: parecem palavras de um encantamento. A versão da Foz que recolhemos é estreme e revela-nos o lavor da imaginação popular sobre um thema commum. A dama pediu ao cavalleiro uma confidencia nocturna, em que elle morre por traição dos seus cunhados; Dona Maria mata-se ao pé do cavalleiro moribundo. Na lição de Garrett é ella que se toma de medo e mata o namorado. Uma é mais bella, a outra simplesmente verdadeira; mas na poesia do povo, segundo Grimm, á principal belleza é a sua grande verdade.

17—Romance de Dom Pedro—Apparece este romance com o nome de Helena no Romanceiro de Garrett, t. III, p. 40; anda na tradição oral da Beira Alta, Extremadura e Lisboa. Da Beira Baixa recebemos uma variante de uma belleza profunda e inexcedivel; é ali aonde a poesia popular portuguesa se conserva mais primitiva e completa. O romance de D. Pedro é mais simples e menos artificioso do que a versão de Lisboa. Aqui o cavallo branco, signal de lucto, demonstra a sua antiguidade. O final, sobre tudo, é a parte mais delicada; não são as penitencias do esposo, mas é elle que enterra a sua rosa branca, como quem planta uma flor, o lhe amollece a terra com as lagrimas dos olhos.

18, 19 e 20—Romances da Filha do Imperador de Roma.—Estes tres romances, colhidos em differentes provincias, completam a tradição. Já Garrett os tinha publicado, unindo-os e cortando aquellas partes em que a variante destruia a unidade da acção. A primeira parte foi colhida em Trás-os-Montes, terra fertil de tradições locaes, e aonde, logo[Pg 188] depois da Beira Baixa, se encontram mais thesouros de poesia popular.

O Hortelão das flores é mais antigo.

Este metro, chamado rimance em endechas, é pouco frequente na poesia popular; é ordinariamente de uma incorrecção pittoresca. Recebi o romance recolhido na tradição oral da Beira Baixa em uma letra tão falta, de forma legivel, de pontuação e escripto á maneira de prosa, que não sabemos se o trabalho de interpretal-o destruiria em parte a ingenuidade simples da creação anonyma!

É um facto curioso comparar este romance, de uma elaboração differente, com o romance do Cegador, versão da Beira Alta e Trás-os-Montes, que traz Garrett, (Romanceiro, t. III, 98). Ha a mesma peripecia da princeza se entregar a uns amores desconhecidos, ao filho de um corta carne, que lhe sae um Duque, como na lição alludida. Este verso podia cortar-se em redondilha; Jacob Grimm na Silva de romances viejos adoptou a forma monorrima de dezeseis syllabas. Um facto notavel se descobre n’este romance: O celebre romance de Gil Vicente intitulado D. Duardos, que os Romanceiros, principalmente o de Anvers, adoptaram, que o povo assimilou e fez quasi de novo, como se pode ver na lição conservada pelo cavalleiro de Oliveira, apparece-nos aqui agora, novamente assimilado, mas deixando ainda ver alguns restos primitivos. A despedida da donzella e as falas de D. Duarte, foi o que o povo conservou na versão da Beira Baixa. São sempre as partes dramaticas que se perpetuam. Eis o romance de Gil Vicente:

Dom Duardos

En el mes era de Abril,
De mayo antes um dia,
Cuando lyrios y rosas
Muestran mas su alegria,
En la noche mas serena
Que el cielo hacer podia,
Cuando la hermosa Infanta
Flerida ya se partia:
En la huerta de su padre
Á los árboles decia:
—Quedáos á Dios, mis flores,
Mi gloria que ser solia;
[Pg 189]
Voyme á tierras estrangeras
Pues ventura allá me guia.
Si mi padre me buscare,
Que grande bien me quería,
Digan que amor me lleva,
Que no fue la culpa mia:
Tal tema tomó conmigo,
Que me venció su porfia:
Triste no sé a dó vó,
Ni nadie me lo decia.—
Alli habla Don Duardos:
«No lloreis mi alegria,
Que en los reinos de Inglaterra
Mas claras aguas havia
Y mas hermosos jardines
Y vuesos, señora mia.
Terneis trecientas donzellas
De alta genealogia;
De plata son los palacios
Para vuestra señoria,
De esmeraldas y jacintos
De oro fino de Turquia,
Con letreros esmaltados
Que mentan la vida mia.
Cuentan los vivos dolores
Que me distes aquel dia
Cuando con Primalion
Fuertemente combatia.
Señora, vos me matastes,
Que yo a el no lo temia.»
Sus lagrimas consolaba
Flerida que esto oia;
Fuéronse a las galeras
Que Don Duardos tenia.
Cincoenta eran por cuenta,
Todas van en compañia:
Al son de sus dulces remos
La Princesa se adormia
En brazos de Don Duardos,
Que bien le pertencia.
Sepan quantos son nacidos
Aquesta sentencia mia;
Que contra la muerte y amor
Nadie no tiene valia.
Obras, t. II, p. 249.

[Pg 190]

21—Romance de Dona Agueda de Mexia—Nos Cantos populares da Italia, de Caselli, pag. 204 e 207, encontram-se dois romances, que tem grande analogia com este, excepto no final, cujo desenlace não é pelo milagre. Creio mesmo que na tradição portugueza é juxtaposição de algum troveiro, como succedeu com o final do romance A Nau Catherineta da versão do Algarve. N’esta versão alemtejana falta a descripção da manhã de Maio que traz a lição de Garrett (Rom. t. III, p. 116). Nem ella tem caracter popular, antes parece um descuido de artista, que teve Garrett quando recompoz as duas versões da Estremadura e Alemtejo para formar o romance de Guiomar. Eis como um d’esses romances se canta no Piemonte:

«Nesta terra ha um mancebo, que pretendia casar; foi pedir a conversada, e não lh’a quizeram dar. Ficou com esta recusa tão afflicto e amargurado, que disse adeus aos amigos, e foi-se fazer soldado. Recebeu carta depois de pouco tempo passado. Uma carta bem fechada, em que lhe era declarado: «A tua querida amante está de cama a morrer» Foi-se ter com o capitão. Aos pés d’elle se foi ter: «Capitão, por vossa alma, a baixa me concedei.» O capitão lhe pergunta: «O que queres tu fazer?—Quero ir ver a minha amante, que está de cama a morrer.—Já vinha perto da terra, ouviu os sinos tocar. Tocam sinos n’um enterro, o defunto quem será? Ao entrar na sua terra, foi quando ouviu resar; era o esquife da amante, que levavam a enterrar. Mete esporas ao cavallo; tornou outra vez para trás; morreu-me o meu coração, vou ser outra vez soldado; «Adeos pae e adeus mãe, e tambem d’ella os parentes; se me dessem vossa filha, estariam mais contentes.»

Quasi que parece a forma primitiva da versão portugueza que reune um outro romance piemontez da Giordanina.

22—Romance do Casamento e mortalha—Foi pela primeira vez publicado por Garrett (Rom. t. III, p. 32). Não o encontrámos na tradição oral; extrahimol-o d’aquella artistica collecção para completar este simples monumento da poesia popular portugueza. De facto não apparece nos Romanceiros hespanhoes. Em um romance francez Le Roi Renaud, ha alguns longes de similhança; o rei volta da guerra, moribundo quasi; sua mãe vem ao encontro, e no meio da alegria o filho pede-lhe que faça uma cama ás escondidas de sua mulher, por que está para expirar. No restante diversifica a tradição (Du Puymaigre, t. II, p. 480). Nos cantos italianos existe tambem o romance do Conde Angilioni, que volta[Pg 191] quasi moribundo da guerra; é até onde a situação é commum á França, Italia e Portugal (Tommaseo, Canti populari, t.I, p. 35).

23—Romance da Náu Catherineta—Nas antigas relações de naufragio temos a nossa poesia maritima com toda a profundidade do sentimento; que importa lhe não déssem fórma poetica? Sente-se uma alma em cada palavra do marinheiro, que faz a narração do que passou, com aquella resignação e serenidade de quem ha sofrido muito e tem uns alvores de esperança que o alentam,—o amor da patria, o culto das tradições gloriosas que procura conservar integerrimas. Com que uncção crente e piedosa não desenha elle os maiores transes! Os horrores do desastre fazem-lhe reconhecer um poder immenso, que adora com uma vehemencia e ardor capazes de fazer prodigios. Vêem a nau quasi a afundar-se: «Pelo que, como homens que esperavam antes de poucas horas dar contas a Nosso Senhor de nossas bem ou mal gastadas vidas, cada um começou a ter com sua consciencia, confessando-se summariamente a alguns clerigos, que ahi iam. A este tempo andavam com um retabulo e crucifixo nas mãos, consolando a nossa angustia com a lembrança d’aquella, que ali nos apresentavam. Isto acabado pediamos perdão uns aos outros despedindo-se cada um de seus parentes e amigos, com tanta lastima, como quem esperava serem aquellas as derradeiras palavras que teriam n’este mundo. N’isto andava tudo, que se não poderiam pôr os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lagrimas, e de uma amarellidão e trespassamento de manifesta dor e sobejo receio, que a chegada da morte causava, ouvindo-se tambem de quando em quando algumas palavras lastimosas, signal certo da lembrança que ainda n’aquelle derradeiro ponto não faltava dos orphãos e pequenas filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos paes, que cá deixavam; e acabando cada um de satisfazer ao humano com este pequeno mas devido comprimento, todo o mais certo do tempo se gastava em pedir a Nosso Senhor remedio espiritual (que do corporal ninguem fazia conta).»[2] A lembrança viva representa a cada instante as passadas angustias. A côr da narração é a verdade. O genio aventureiro marítimo do povo portuguez está dentro d’aquellas paginas; cada palavra é um sentimento surprehendido na sua ingenuidade. O marinheiro ama a sua nau e confessa-o irreflectidamente:[Pg 192] «levando a phantasia occupada n’esta angustia, e os olhos arrasados de agua, não podia dar passo, que muitas vezes não tornasse a trás, para ver a ossada d’aquella tão formosa e mal afortunada nau, porque posto que já n’ella não houvesse pau pegado, e tudo fosse desfeito n’aquellas rochas, todavia emquanto a viamos, nos parecia que tinhamos ali umas reliquias, e certa parte d’esta nossa desejada terra, de cujo abrigo e companhia, (por ser aquella a derradeira coisa que d’ella esperavamos) nos não podiamos apartar sem muito sentimento, etc.»[3]

Isto que o capitão da nau S. Bento sentia era o mesmo que se passava na alma dos velhos mareantes, que davam aos navios nomes domesticos, de paixão, com que esqueciam os que lhes tinham imposto no baptismo; o galeão S. João, que naufragou na carreira da India em 1551, tinha por alcunha o Biscainho;[4] a nau Aguia chamava-se vulgarmente Patifa.[5] Este nome da nau Catherineta, nome popular que Garrett julga um diminutivo de affeição dado por graça a algum navio favorito, parece ter a sua origem do galeão Santa Catherina do Monte Synai, que levou a infante D. Beatriz para Saboya. As memorias do tempo descrevem-n’o como digno da affeição popular, capaz de deslumbrar a imaginação do vulgo, e de fazer nascer uma paixão ao mostrar-se á vista penetrante do marinheiro, que sabe tão bem avaliar o bello das curvas, dos pontaes, e a mastreação elegante. O galeão de Santa Catherina começou a ter a sua popularidade nos versos de Gil Vicente, na tragi-comedia das Côrtes de Jupiter:

Leva gente muito fina,
Poderosa artilharia,
E a nau Santa Catherina
Que vae por graça divina
Co’a a prôa n’Alexandria.[6]

Em uma memoria contemporanea se lê: «e a infante duqueza embarcou esse dia, que eram 5 de agosto, na nau Santa Catherina do Monte Synai, nau de 700 toneis, muito formosa, e de dentro todalas camaras da infanta pintadas de oiro e forradas de bordados.»[7] Não é hypothese gratuita,[Pg 193] ter a imaginação popular motivo sobre que idealisasse uma nau typica, como centro de acção para todos os seus romances maritimos. O genio do povo só exprime os seus sentimentos personalisando e localisando; d’aqui a multiplicidade das lendas, e ao mesmo tempo um fundo de verdade em todas ellas.

A lenda da Nau Catherineta não tem uma determinada origem historica; é a generalidade tetrica de todos os naufragios. Garrett inclina-se a achal-a no naufragio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do Brasil no anno de 1556, em que a fome e a ancia de se devorarem e a resistencia do capitão reflectem muito as cores sinistras da lenda.[8] Tambem na relação, que por vezes havemos citado, do naufragio da nau S. Bento, se encontram ameaços do horror da antropophagia: «E porque havia tantos dias que não fizeramos resgate, nem metteramos nas boccas cousa que nome tivesse, constrangeu a necessidade a muitos serem de parecer que comessemos este cafre; e segundo se já soava, não era esta a primeira vez que a desventura d’aquella jornada obrigara a alguns a gostarem carne humana;[9] mas o capitão não quiz consentir em tal, dizendo que se cobrassemos fama que comiamos gente, d’alli até ao cabo do mundo fugiriam de nós, e trabalhariam de nos perseguir com muito mais odio.»[10] O facto de deitarem muitas vezes sola de molho, apertados pela fome, como conta ligeiramente a lenda popular, é frequente nas relações dos naufragios: «mas fizemos a ceia de umas alparcas que eu levava calçadas, a quem tambem a nossa não menor mingua fez que não menos gostosas as achassemos.»[11] O gageiro, que era o diabo que na lenda da Nau Catherineta levantava o temporal, tem alguma reminiscencia, ou melhor, parece ser fundado no grumete que no naufragio do galeão S. Bento se benze e chama pelo nome[Pg 194] de Jesus ao ver erguerem-se uns enormes vagalhões a que elle não hade chamar senão diabos, que vêm em tropelia.

Em todas as narrações de naufragios ha mais ou menos uma sombra do quadro horrivel da Nau Catherineta; fomos apontando alguns factos, não para determinar origens, mas para reconhecer a generalidade da lenda.

Na poesia das Asturias encontra-se um pequeno romance chamado o Marinheiro; tem o mesmo colorido, similhante ao final da Nau Catherineta da versão do Algarve:

El marinero

Mañanita de San Juan
Cayó un marinero al agua,
—Que me dás marinerito,
Porque te saque del agua?
«Doyte todos mis navios
Cargados de ouro y de plata.
—Yo no quiero tus navios
Ni tu oro, ni tu plata,
Quiero que quando tu mueras
A mi me entregues el alma.
«El alma entrego á Dios
Y el cuerpo á la mar salado.

Os naufragios frequentes dos galeões da India acharam Uma forma livre, espontanea, para revelar a extensão do sentimento nos cantos do genio popular. A Nau Catherineta é uma epopea moderna e por isso incompleta, porque o tempo não deu logar a accumularem-se os episodios, nem dependerem mutuamente as Variantes. A sua formação descobre-se na diversidade de versões que ella tem. A Estremadura, o Minho, o Algarve, Lisboa, Beira-Baixa e Ribatejo, trabalham sobre a mesma lenda. Mais tarde a variante tornava-se episodio, prendia-se á unidade do poema. A imagem do diabo, que mostra as meninas debaixo do laranjal, é de origem puramente christã. O gageiro que sobe ao mando do capitão, sobre quem cahiu a sorte para ser devorado, e que promette o grau de cavalleiro, sua filha, o seu navio, se lhe avistar terras de Portugal, é uma das mil personificações do diabo. Elle produz a cerração que esconde a praia. O mar, segundo as crenças christãs vindas do paganismo, era a mansão do diabo. Typhon, o principio do mal, a quem o mar fora consagrado,[12] transforma-se[Pg 195] depois no diabo da mythologia christã.[13] O espirito supersticioso, a ignorancia das leis naturaes ainda não vulgarisadas na edade media, estão representadas no gageiro que suscita a tormenta. Era a crença da egreja. Na vida de Guibert de Nogent, na Summa, de S. Thomaz e no livro de Alberto Magno De potentia Daemonum apparece este pensamento que vêmos determinado na poesia popular portugueza. Na Divina Comedia e na Jerusalem Libertada, os ventos são tambem attribuidos ao diabo.

Garrett nas poucas linhas com que precede este monumento da nossa poesia popular maritima, admira-se de que um povo de argonautas não exercesse o seu genio creador no romance maritimo.

O século XVI foi a edade da prosa; comtudo o povo é sempre infante, sempre creador e poeta; mas as imitações classicas infatuadas de sciencia absorveram as attenções a ponto de excluirem a poesia popular. O poema cyclo do mar tivemol-o nós. Basta ler as relações das viagens, dos naufragios, das fomes, das tormentas. Antes de se fixarem na forma prosaica da Historia Tragico-maritima, essas dores foram primeiro soffridas e communicadas. A Nau Catherineta não tem uma certa origem historica, como suppõe Garrett, é o germen de uma Odyssea, aonde a multiplicidade das scenas de naufragio estão reduzidas á generalidade mais tetrica. Entre os folhetos de cordel do seculo XVIII encontramos a narração do naufragio da nau Gloria, feito em verso por um marinheiro.

24, 25 e 26—Romances do Conde Prêso—Um facto notavel se dá n’estes romances: como tres provincias, Trás-os-Montes, Beira-Baixa e Beira-Alta se apoderaram de uma mesma tradição, e dos diversos modos como a bordaram. A versão de Trás-os-Montes é simples, não admitte a intervenção do maravilhoso, que repugna ao genio dos romances carolinos; a versão da Beira-Alta foi tomando uma côr religiosa, traz o milagre do romeiro, que era Sanctiago vindo proteger a sua devota. Sem duvida esta é a mais moderna, por isso que o sentido do romance antigo, e o instincto da independencia, cavalheiresca, já não é comprehendido, nem basta para sustentar o romance. Garrett confundiu as duas versões (Rom. t. II, 289). «Poucas cousas mais bonitas, diz elle, tem o romanceiro popular da nossa peninsula. Onde nasceu não sei; mas as collecções castelhanas não o trazem.» A versão da[Pg 196] Beira-Baixa mostra-nos a sua origem hespanhola; chama-lhe Dom Garfos, corrupção do nome Conde Grifos do Romanceiro hespanhol (Duran n.º 324). Não ha aqui maravilhoso, mas sim uma audacia cavalleirosa, a independencia altiva que distingue os romances carolinos da França dos romances carolinos da Allemanha. Sente-se nesta versão a herança do crime do primitivo direito symbolico, e um tanto da irmandade heroica na presteza com que Dom Garfos acode a seu tio, indo falar ao rei, desafiando-o, vingando-se a final na filha d’elle, que é sua propria mulher. Vejamos a lição hespanhola:

El Conde Grifos Lombardo

En aquellas peñas pardas,
En las sierras de Moncayo
Fue do el Rey mandó prender
Al conde Grifos Lombardo,
Porque forzó uma doncella
Camino de Santiago,
La cual era hija de un duque,
Sobrina del Padre Santo.
Quejábase ella del fuerzo;
Quejase el Conde del grado:
Allá van á tener pleito
Delante de Carlo Magno,
Y mientras qu’el pleito dura
Al conde han encarcelado
Con grillones á los piés,
Sus esposas en las manos,
Una gran cadena al cuello
Con eslabones doblados:
La cadena era muy larga,
Rodea todo el palacio;
Allá se abre y se sierra
En la sala del rey Carlos.
Siete Condes le guardaban,
Todos han juramentado
Que si el conde se revuelve
Todos seran á matalo.
Ellos estando en aquesto,
Cartas habiam llegado
Para que cazen la Infanta
Con el Conde encarcelado.

[Pg 197]

Muito se aproxima da versão da Beira-Baixa; ha aqui tambem os sete condes que o sobrinho mata. A versão portugueza, descubrindo uma continuação da peripecia, leva-nos a crer que fosse talvez da origem portugueza, se é que todos os romances cavalheirescos do nosso povo nos não vieram da Hespanha.

27 e 28—Romances do Conde Alberto—Qual será a rasão por que este romance é o mais vulgar na tradição portugueza? Será porque tem alguma similhança com o assassinato de Dona Maria Telles pelo Infante Dom João, para casar com a filha da rainha Dona Leonor? Duran, (Romanc. General, t. II, pag. 219) quando apresenta o romance do Duque de Bragança compara-o com o do Conde Alarcos, e crê que o da tradição oral se refere á historia. O romance do Conde Alarcos (Duran, n.º 365), foi tirado dos Romanceiros hespanhoes por Balthazar Dias, e por elle glosado,como se vê pelo Index Expurgatorio de 1624, que prohibe: «a sua Glosa, com o Romance, que começa: Retrahida eatá a Infante.» (Pag. 98). Na collecção hespanhola é elle mais extenso, d’onde se vê que a versão popular foi d’ali abreviada. É um dos retratos mais completos dos costumes feudaes, e o facto do emprasamento, fez suppor a Duran, que será da epoca de Fernando IV, o Emprasado. Garrett queria á força dar-lhe origem portugueza: «eu me inclino a que o trovador castelhano alargasse a lyra do menestrel portuguez, do que vice-versa.» (Rom. t. II, p. 41). Hypothese inadmissivel á vista dos factos apontados e diante da rasão, porque em todas as versões portuguezas se encontram somente os traços geraes da lição hespanhola, resultado das abreviações que vão soffrendo na tradição. O Conde Alberto tem varios nomes nas diversas provincias: no Minho chamam-lhe Conde Albano, no Porto Conde Alberto, na Beira-Baixa Conde Anardos, Dom Duarte, Conde Yano, como colligiu Garrett, e Conde Alves, como o obtivemos d’aquella mesma provincia. Na poesia popular da Catalunha é conhecido pelo nome de Conde Floris. (Milà y Fontanals, Observationes sobre la Poesia popular, p. 20). Ticknor (Hist. da litteratura hesp. t. I, p. 131, not. 32) considera esta composição jogralesca de Pedro de Riano, «como a composição mais pathetica e bella que se tem escripto.» Guillen de Castro, Mira de Amescua, José Milanes, e Lope de Vega na Fuerza lastimosa, aproveitaram-se dos lances profundamente dramaticos d’esta creação.

Na versão de Garrett ha o maravilhoso de uma criança que fala ao peito da mãe; na versão da Beira-Baixa ha uma[Pg 198] quasi similhança do emprazamento da lição hespanhola, o que a torna mais antiga e mais proxima da sua origem.

Suppõe-se, e Duran no Romanceiro hespanhol o aventa, que este romance allude á morte dada pelo Infante Dom João a sua esposa Dona Maria Telles, por intrigas da Rainha Leonor Telles, para casar com a Infanta Dona Beatriz.

29 e 30—Romances do Conde da Allemanha—Estas duas variantes são egualmente bellas e genuinas da tradição oral; são n’este ponto superiores á lição de Garrett (Rom. t. II, p. 79) refundida e apurada no que lhe pareceu mais legitimo e verosimil, segundo as lições castelhanas de Depping e Duran.

Os romances que apresentamos, colhidos immediatamente da tradição oral, e cheios de repetições que destroem a eurythmia do quadro, são o que ha de mais pittoresco na inspiração popular. O povo tem em cada romance uma parte dythirambica, que borda a capricho, em que se liberta da assonancia forçada; facto já lucidamente determinado por Garrett. É a parte movel por onde a variante vae de geração em geração modernisando o romance.

Do Conde de Allemanha diz Garrett: «Facto conhecido da historia de Portugal ou de outra parte de Hespanha, não sei que o memore este romance;» Duran, falando da versão hespanhola (n.º 305 do Romancero general) diz: «Tiene este romance antiquissimo alguma analogia con el historico del conde Garci Fernandez; pero, un y otro mas parecen tomados de una fabula caballeresca, que no de un hecho verdadero.»

Derivado do Cancionero de Romances de 1581, impresso em Lisboa, podemos sem errar, assignar-lhe uma origem litteraria.

31, 32 e 33—Romances de Dom Carlos de Montealbar—Eis um d’aquelles romances de que o povo tanto se apossou, que o inverte e borda, a capricho, tomando a acção como typo de novas situações. Ha aqui visivelmente a confusão da Claralinda da versão do Porto e Beira Alta. No Romanceiro hespanhol encontram-se as versões d’onde os nossos troveiros abreviaram a lição portugueza. O romance del Conde Claros (n.º 364) é a que parece mais ter contribuido para a versão portugueza. Depping julga pertencer aquelle romance ás aventuras de Eginart e da filha de Carlos Magno. A variante[Pg 199] de Dona Lisarda (Duran, romance de Dona Aliarda, n.º 329) parece-se muito com a Albaninha da lição de Garrett, (t. III, p. l5) principalmente nos gabos do cavalleiro. A variante de Dona Areria é uma confusão do romance de Dona Ausenda. (Vid. Hist. da Poesia popular portugueza, p. 152 e 162).

34—Romance do Passo de Roncesval—Depois da Beira-Baixa é provincia de Trás-os-Montes a mais rica de tradições populares. Veio de lá este romance; é como um ecco da energia da velha Chanson de Roland. O cavallo levanta-se do meio do destroço para defender-se de que não faltou á irmandade heroica do cavalleiro.

São assim os cavallos do cyclo carolino, como o cavallo Bayard, que ao escarvar em terra parecia que tocava lyra! Como veio esta strophe do poema de Roncesvalles fluctuar na tradição portuguesa? Como se conservou no romance a memoria local, sendo a que primeiro se oblitera na tradição? Viria directamente da Hespanha no principio do seculo XVI, ou já cá existiria, desde que os Cruzados ao passarem pelo Mediterraneo espalharam entre nós as grandes legendas dos cyclos cavalheirescos da Europa? Questões estas que se devem propôr, mas não resolver, sem risco de temeridade. Sabemos que este romance era conhecido em Portugal no principio do seculo XVI, por isso que o encontramos citado em Gil Vicente na Comedia de Rubena; vem lá o conhecidissimo verso dos romances de Roncesvalles: Em Paris esta Dona Alda, que, podemos asseveral-o com certeza se derivou para a tradição pelo celebre Cancionero de Romances de Anvers, reimpresso em Lisboa em 1581. Foi Garrett o primeiro que recolheu este romance, e por felicidade o não aformoseou, porque não pode alcançar variante alguma (Rom. t. II, p. 234). Encontram-se versões mais extensas no Romancero General de Duran, (nᵒˢ 395, 396 e 397) d’onde com certeza foi abreviada a nossa.

35—Fragmento de um romance do Cid—Muitos romances populares portuguezes se encontram citados na obras de Gil Vicente. (Vid. a Historia da Poesia popular, p. 23, e 138). Este fragmento do Romanceiro do Cid encontra-se no Auto da Luzitania, (t. III, pag. 270,) e lê-se por extenso no Tesoro de los Romanceros de Ochoa, p. 185, que o aponta como um dos mais antigos e mais populares:

[Pg 200]

Helo, helo por do viene
El moro por la calzada,
Caballero à la gineta
Encima una yegua baya,
Borceguies marroquies
Y espuela de oro calzada,
Una adarga ante los pechos
Y en su mano una azagaya,
Mira y dice á essa Valencia:
—De mal fuego seas quemada,
Primero fuiste de moros
Que de christianos ganada,
Si la lanza no me miente
A moros serás tornada, etc.

Pode confrontar-se a variante portuguesa; é no pequeno fragmento mais bonita, por causa da segunda elaboração que lhe deram cá. Este mesmo romance foi imitado em Hespanha, como se vê na Primavera y flor de Romances, t. II, p. 36.

36 e 37—Romances de Dom Gayfeiros—Pertencem estes dois romances ao cyclo carolino, caracterisado pela altivez do cavalleiro, e por brilhantes feitos de armas. O gosto mourisco do seculo XVI vae modificando os heroes da tradição carlingiana, até os substituir completamente pelos contos de cativos. A lição de Garrett (Rom. t. II, p. 250) traz as duas variantes em uma só versão formada pelas differentes copias que obteve de Trás-os-Montes, e pelo manuscripto do Cavalleiro de Oliveira, traduzindo nas situações duvidosas a lição castelhana de Duran (Rom. general n.ᵒˢ 374 a 381). Na tradição oral nunca os romances são tão extensos; nem o povo sabe o nome dos Doze Pares, nem do Arcebispo Turpin, para os nomear no sequito que veio receber os dois amantes. Os romances populares são sempre dramaticos, raras vezes narrativos, e nunca descriptivos. A lição de Garrett abunda em descripções, justamente nos pontos em que elle segue a versão hespanhola, a qual por ser antiquissima, isto é, mais proxima da sua composição jogralesca, devia de ser assim descriptiva. Duran julga ser o romance de Dom Gayfeiros o que mais quadra com a memoria que d’elle deixou Cervantes no Don Quijote (Part. 2, cap. 26). As versões portuguezas todas mais curtas do que as lições castelhanas dos romanceiros, como Garrett o confessa, denunciam a sua origem, e o processo da abreviação, que a antiguidade lhes vae dando, reduzindo-as aos traços mais profundos. Veio-nos o romance, directamente[Pg 201] da Hespanha para a tradição portugueza, e no seculo XVI correu elle na sua linguagem nativa, por isso que Gil Vicente, na Comedia de Rubena o cita no dialogo da Ama (Tom. II, scena II, p. 27): Vámonos, dijo mi tio, que é o primeiro verso do segundo romance de Gayfeiros que traz Ochoa no Tesoro de los Romanceros, p. 44. Veio do Cancionero de Romances de Anvers, reimpresso em Lisboa em 1581; collecção celeberrima, por ser a primeira em que se recolheram os romances directamente da tradição oral, até então desprezada. Quasi todos os romances de origem hespanhola, communs aos povos do Meio Dia da Europa, d’ali se derivaram para a tradição portuguesa. Tambem o romance do Mouro Calainos, aonde se fala de uma cativa que está em Sansueña, a qual muitas vezes requerida de amores, só os escuta com a condição de lhe trazerem de Paris tres cabeças dos melhores Pares, pertence ás aventuras de Gayfeiros. É certo que esse mesmo andou na tradição portugueza, porque no Index Expurgatorio de 1624 se prohibe: «O Romance do Moro Calaynos y de la Infanta Sybilla.» (Index, Lisboa, 1624, por Pedro Craesbeck, pag. 174).

Uma tradição quasi similhante é a de Mira-Gaia, que se lê no Nobiliario, e que foi romanceada por João Vaz, no seculo XVI.

38—Romance de Flor e Brancaflor—Outra vez a peripecia de reconhecimento, como na Dona Infanta, e Infanta de França, tão usada em quasi todos os romances populares da Europa. Corre esta versão pela Beira Baixa, Minho, Extremadura, Ribatejo, Beira-Alta e Trás-os-Montes. Publicou-a Garrett, (Romanceiro, t. 2, pag. 183) dizendo: «Nem os romanceiros castelhanos, nem escriptor algum faz menção do bello romance da Rainha e Cativa.» É porem certo que se encontra com o titulo Las dos Hermanas na Primavera y flor de Romances, t. II, pag. 38, d’onde é manifesta a origem do romance portuguez cujas pequenas circumstancias segue. E verdadeira a opinião de Garrett, quando o faz pertencer ao seculo XII. M. Milá y Fontanals recolheu um romance similhante Las dos Germanas da poesia popular da Catalunha, no qual predomina uma completa originalidade; podo ler-se nas suas Observationes sobre la Poesia popular, pag. 117. O romance portuguez é superior ás lições castelhanas. Du Puymaigre tira a este proposito uma judiciosa conclusão: «Que os portuguezes muitas vezes romanceam com mais talento assumptos que se acham nas collecções dos dois povos; porem esta perfeição denota a sua pouca antiguidade.[Pg 202] De ordinario os romances portuguezes são mais claros, mais bem desenvolvidos, para que se tomem por primitivos.» (Vieux auteurs Castilhans. t. II, p. 370). Será este romance um vestigio remoto e já completamente alterado pela tradição do romance de Flor e Blanchefleur? Os nomes dos personagens são o Conde Flores e Brancaflor a quem os mouros cativaram:

Dia de Paschoa florida,
Andando apanhando rosas
N’um rosal que meu pae tinha.

O nome de Blanchefleur, nas versões francezas é explicado pelo dia do nascimento do heroe:

Li doi enfant, quant furent né,
De la feate fure nomé:
La crestiène, por l’honor
De la feste, et nom Blancefleur
v.—169—172.

Na versão italiana de Brancaflor as duas mães têm os seus filhos no mesmo dia:

Partorirno in una medesma sera
Di maggio, ch’era la rosa in su la spina...
Lo fresco giorno di Pasqua rosata.

É mui frequente esta data nos poemas da edade media, principalmente nos de origem oriental. Podemos com certeza asseverar que a versão portugueza, recolhida da tradição oral, se encontra exactamente quanto á essencia no romance de Blancefleur, desde o verso 55 até ao verso 190 (Ediç. Elzeviriana.) As alterações podem-se explicar do mesmo modo que Du-Méril descubriu pela analyse das versões hespanholas: «l’esprit espagnol ne paraît pas l’avoir jamais comprise.» (Introd, pag. LXXIX). Desde quando andará na tradição portugueza este fragmento do romance de Blancefleur? Que elle era conhecido na Hespanha sabemol-o por Affonso o Sabio, pelo Arcipreste de Hita e por Francisco Imperial; em Portugal encontramol-o citado no Cancioneiro de Dom Diniz:

[Pg 203]

Qual mayor poss’ e o mays encuberto
Que eu poss’ e sey de brancaflor
Que lhe non ouv’ eu flores tal amor
Qual vos eu ey; etc.» Pag. 52.

O romance de Banchefleur encontra-se na tradição de todos os povos da Europa; andou por certo na tradição jogralesca, como se vê por este verso:

Mais a un clerc dire l’oït
Qui l’avoit léu en escrit.
V. 51—52.

E assim veio até Portugal pelo tempo dos Cruzados; apoia-se esta conjectura no facto de se encontrar tambem na tradição da Grecia moderna em um poema (publicado por Bekher nas Memorias da Academia das sciencias de Berlim em 1845) o qual fala da antiguidade da tradição.

39—Romance da Moira Encantada—Esta lenda foi recolhida no Algarve pelo sr. Stacio da Veiga e publicada no nº 12 da Estrella de Alva. O maravilhoso feérico das mouras encantadas é do genio popular d’aquella provincia; tambem ali o romance da Nau Catherineta acaba phantasticamente; segundo o citado collector, este romance é dos mais populares do Algarve, e exprime a crença commum e antiga de que na cidadella mourisca de Tavira, á meia noite, na vespera de Sam João, apparecia a formosa encantada pedindo que algum cavalleiro viesse romper-lhe o encanto. Colloca tambem a sua formação nos fins do seculo XVI, principios do seculo XVII, quando o gosto mourisco foi imitado entre nós por Dom Francisco Manuel do Mello nas Tres Musas de Melodino, e por Francisco Rodrigues Lobo no seu pequeno Romanceiro. O final parece imitado do romance da Moriana e do mouro Galvan, que jogava no jardim com a sua amante, e de cada vez que perdia, ia-se-lhe uma villa ou cidade. No romance do Algarve Dom Ramiro ganha um castello, mas sem moira para amar. Isto revela um tanto a sua origem artistica.

40—Romance de Nossa Senhora dos Martyres—O sentimento do maravilhoso e a inspiração piedosa tornam este[Pg 204] romance de aventuras mais do genio celtico, do que do gosto mourisco. Nos Açores são vulgares as tradições dos piratas da costa; e na legislação portuguesa se encontram varias multas applicadas para a Arca da Piedade, d’onde sahia o dinheiro para a redempção dos cativos pelos trinitarios. Foi colligido este romance no Algarve, pelo sr. Stacio da Veiga; repete-o o povo na romaria de Castro-Marim no meado de Agosto. A tradição é antiquissima, a sua forma poetica é porem mais moderna. Frei Luiz de Sousa no livro IV da Historia de Sam Domingos, refere o milagre do seguinte modo:

«Reinando em Portugal el-rei Dom Afonso III, que foi Conde de Bolonha, succedeu cair em poder de mouros um homem natural de Penamacor. Escureceu o tempo as particularidades do nome e calidades da pessoa, e da occasião e logar do cativeiro. Era o tratamento do amo mais de inimigo e tyranno, que de amo e senhor. Porque sendo o pobre cativo seu e fazenda sua, assim se deleitava em lhe fazer cruezas, como se fora christão livre, ou cuidara que com os tormentos lhe acrescentára a vida. Não tinha o atribulado outra consolação no meio dos trabalhos, senão era soccorrer-se ao Santo da sua terra, Sam Domingos da Sovereira. E quando a força d’elles lhe arrancava algum gemido (que até o suspirar era culpa diante do barbaro), sempre saia envolto com o nome de Sam Domingos. Era isto tão ordinario que o mouro (devia ser algemiado, e d’aqui collijo que o cativeiro seria em Granada, ou em outra terra de Hespanha, das muitas que então e muitos annos depois senhoreavam os mouros nella) veio a notar-lhe a linguagem. E porque não ficasse cousa em que deixasse de o martyrisar, perguntou-lhe um dia que arenga era aquella que trazia na bocca, contínua, quando devia chamar por Alá, nomear Domingos, Domingos (é Alá o nome por que os mouros conhecem a Deos.) Alegremente confessou elle que trazia na bocca, e tinha na alma tendo por obra de fé e animo catholico pronunciar claramente e com a lingua o que sentia o coração: e foi proseguindo que era um santo subido, pouco tempo havia, da terra ao céo, e conhecido na sua por grandes maravilhas que obrava, e em quem elle tinha esperança que o havia de livrar das suas mãos. Caro lhe custou ao pobre a alegria e liberdade da confissão, pagou-a com rigoroso castigo presente e com outro mais duro que não tardou. O primeiro não estranhou tanto, como era seu pão quotidiano, offerecendo-o a Deos por honra da fé. Mas com o segundo se viu reduzido a termos de desesperação. Julgou o bárbaro que as esperanças do cativo se deviam fundar em alguma determinação e traça de fugida: quiz acautelar-se;[Pg 205] Vindo uma noite cansado de servir e trabalhar o dia inteiro, encerrou-o sobre má cêa em um novo genero de masmorra, que era um arcaz grande e forte, que depois de fechado com mais do uma chave, lhe ficou para inteira segurança servindo do leito. Mas parecendo-lhe, que ainda assim o não tinha bastantemente arrecadado, ia cada dia accrescentando novas cautellas a sua desconfiança. Já lhe lançava algemas nas mãos, já adobes nos pés, depois de encarcerado na arca. E tendo-o assim, perguntava-lhe de cima com escarneo, se esperava ainda no santo da sua terra................................. ............................................................

«Uma noite, depois que o mouro o meteu na triste masmorra, na forma que temos dito, sobre algemas nas mãos e outros ferros nos pés, lançou-lhe no pescoço um grosso collar, das argollas do qual sahia uma forte cadeia de trinta palmos, com que lhe foi dando voltas, e enrolando o corpo todo. E para dormir mais a somno solto, lançou sobre o alquifer que vestia um alfange a tiracollo, e prendeu um lebreo que tinha ás argolas da arca. Feita esta diligencia estendeu-se sobre ella, e contente com o que tinha de novo acrescentado, bateu-lhe de cima dizendo que se não esquecesse de fazer oração ao seu Domingos da Sovereira, que o viesse livrar de suas mãos...... Assim se lançaram a dormir á noite ambos em terra de mouros: assim amanheceram amo e escravo em terra de christãos com grande distancia de leguas, em meio, e á porta de Sam Domingos da Sovereira em Penamacor..... Abriu o mouro os olhos, viu-se entre montes e cercado de gente, que pelo trajo e espanto que fazia de sua vista conhecia ser christã. Espantava-se o enterrado na arca ouvindo linguagem da sua terra e muitas vozes juntas. Mas nem amo, nem cativo se atreviam a dar credito um aos olhos, outro aos ouvidos: ambos haviam que era tudo sonho. Em fim, como não é facil de enganar o sentido da vista, e o mouro viu que tudo o desenganava, e que estava entre christãos, não por sonhos, senão com effeito, que via a egreja, e ouvia som de sinos que a infidelidade sobre tudo aborrece, acabou de caír que não eram palavras mal fundadas as do seu cativo quando tanta confiança fazia do seu santo. Lembrava-se de tudo com estranha confusão, e só desejava saber por ultimo desengano se estava em Portugal. Como tinha conhecimento das linguagens de Hespanha, perguntou a um de muitos que o rodeavam espantados de tal invenção de romeiro e tal alfaias de romaria, como chamavam a terra, e o sitio em que estavam. Quando soube que tinha diante dos olhos Sam Domingos da Sovereira ficou como fóra de si de pasmado e attonito; e, conformando-se[Pg 206] com o tempo, quiz começar a grangear com cedo quem por boa conta trocadas as sortes havia de ser seu senhor.... Foi o mouro logo revolvendo um molho do chaves que lhe pendiam da cinta, e abrindo cadeados e fechaduras da sua arca. Chegaram os circunstantes a ver que peças trazia para offerecer em tam grande arca o romeiro estranho: senão quando dão com os olhos em um Lazaro sepultado, e em rosto e cores defunto; mas vivo na voz, e envolto em novo genero de mortalhas, mortalhas de ferro: e tão carregado d’ellas, que de nenhum membro era senhor, senão só da lingua, com a qual, voz em grita chamava por Sam Domingos, como quem tinha já sentido onde estava..... Solto em fim sem outra palavra na bocca mais que Sam Domingos, deixa-se cahir em terra, abraça-se com ella, beija-a, e vae-se prostrar diante do altar do Santo...... O cativo cumpriu sua promessa, viveu e morreu ermitão do Santo. O mouro penetrado da grandeza do milagre pediu o santo baptismo (divina força da predestinação) e ficou em cativeiro livre e ditoso servindo a ermida e acompanhando o seu cativo. E por morte foram enterrados juntos á porta d’ella, onde os cobre ambos uma só campa com um letreiro que o declara.» Hist. de S. Domingos, Liv. IV, C. V, f. 211, v. Resumimos o facto deixando de parte os consectarios moraes e piedosos do chronista. Todas as lendas da edade media tendiam a localisar-se; eis porque apparecem reproduzidas. As tradições dos cativeiros, e as esmolas na Arca da piedade iam formando estas creações da mente popular. O milagre é tambem uma das formas do maravilhoso do povo.

41 e 42—Romances do Cativo de Argel—Este romance foi-me offerecido no Porto, escripto um uma letra que denuncia o seculo XVII. Guardo este documento, que prova mais uma vez a grande intuição artistica de Garrett, quando disse: «O romance anda por Lisboa, Ribatejo e Extremadura fóra;—não deve de ser mais antigo que o meado do seculo XVII, se a copla em que allude a Ceuta e Mazagão não é rifacimento moderno, como tambem pode ser e me inclino a crer que é, porque no resto o sabor e o estylo é mais velho.» A lição de Garrett, (Romanceiro, t. III, p. 77) é mais extensa, mais dramatica, mas não tem o mimo, a rudeza primitiva, desta versão meio portugueza, meio hespanhola do dialecto popular usado n’este genero de composições. Diz mais Garrett, que se não acha nas collecções hespanholas. Eis como ella anda n’aquelles romances tradicionaes de cativos, de um modo que parece d’onde sahiram as versões portuguezas:

[Pg 207]

El Cativo

Preguntando esta Flerida
A su esposo placentera
En un vergel asentada
Junto á uma verde ribera:
—Digasme tu, esposo amado,
De dónde eres? de que tierra?
Y a dónde te captivaron?
Y liberdade quien te diera?
«Yo os lo diré, dulce esposa,
Estando atenta síquiera:
Mi padre era de Ronda,[14]
Y mi madre de Antequera;
Captiváronme los moros
Entre la paz y la guerra,
Y llevaroume á vender
A Velez de la Gomera.
Siete dias com sus noches
Anduve en el almoneda:
No hubo moro ni mora
Que por mi una blanca dera,
Si no fuera um perro moro
Que cien doblas offreciera,
Y llevárame á su casa,
Echárame una cadena;
Dábame la vida mala,
Dábame la vida negra;
De dia majaba esparto,
De noche molia cibera,
Echóme un freno á la boca,
Por que no comiese d’ella.
Pero plugo á Dios del cielo
Que tenia el ama buena:
Cuando el moro se iba á caza
Quitabame la cadena;
Echabame en el regazo,
Mil regalos me hiciera,
Espulgabame y limpiaba
Mejor que yo mereciera;
[Pg 208]
Por un placer que le hice
Otro mayor me ofreciera,
Dierame casi cien doblas,
En libertad me pusiera,
Por temor que el moro perro
Quiza la muerte nos diera.
Asi plugo a Dios del cielo
De quien mercedes se espera,
Que me ha vuelta á vuestros brazos
Como de primero era.

Timoneda na Rosa de Amores, Fernando Wolf na Rosa de Romances, e Duran no Romancero General, n.º 258, trazem este romance typo de todos os romances de cativos. Agora pode-se confrontar a nossa lição manuscripta, aonde falta o principio e fim que justifiquem as narrações do cativo. Do Cancionero de Romances, de 1581, creio ter-se elle derivado para a tradição portugueza.

Os piratas do mar, os cativeiros de Argel, a tomada de Constantinopla pelos turcos, absorvem o sentimento e a imaginação da alma popular no seculo XVI. Ha o terror e a incerteza da aventura, quer no espirito da empreza maritima, quer nas descubertas scientificas; os sabios, os artistas e o povo andam na inquietação de uma genese prodigiosa—a Renascença. Espalham-se grandes lendas dos trabalhos e dos amores dos prizioneiros. Cervantes foi heroe; Lope de Vega, em uma das scenas mais lindas das suas comedias, appresenta a anciedade e a grandeza da abnegação na hora do resgate. Os trinitarios levam as esmolas, obtidas por meio de contos dolorosos, e pela recordação dos amigos e parentes que gemem nos ferros.

Como é possivel tanta delicadeza de sentir na alma popular? Sobretudo este final:

Ó mi padre, oh mi padre,
Deixe ir el Christiano,
Que el no me debe nada,
Debe-me a flor de mi bocca,
Dou-lh’a por bem empregada

é de um mimo capaz de fazer desesperar o mais gracioso artista. Que mysterios de amor apenas esboçados, deixados adivinhar n’estas palavras—Debe-me a flor de mi bocca? E que saudade e resignação da princeza na despedida do[Pg 209] cativo, em que dá por bem empregada essa flor, por ser elle que a leva!

43—Jesus Mendigo—É uma daquellas verdades moraes revestida das formas de uma parabola, e tão simples como Christo as ideava, quando queria fazer-se entender pelo povo. Pertence propriamente aos povos do Meio Dia da Europa, quer se busque a sua origem na Legenda Aurea, ou nos Cancioneiros. Falámos especialmente d’ella na Historia da Poesia popular, pag. 123 a 128. Corre no Minho e na Beira-Baixa, d’onde nos veio mais completa. Vejâmos os paradigmas:

La ballade de Jésus Christ

Jesus Christ s’habille en pauvre }
«Faites moi la charité,                } bis
Des miettes de votre table
Je ferai bien mon diner.»
—Les miettes de notre table,     }
Les chiens les mangeront bien;  } bis
Ils nous rapportent des lièvres,
Et toi ne rapporte rien.
«Madame, qu’et’s en fenêtre, }
Faites-moi la charité,              } bis
—Ah! montez, montez, bon pauvre,
Un bon souper trouverez.
Après qu’ils eurent soupé,  }
Il demande à se coucher.     } bis
—Ah! montez, montez bon pauvre,
Un bon lit frais trouverez.
Comme ils montaient les degrés   }
Trois beaux anges les éclairaiant. } bis
«Ah! ne craignez rien, Madame,
C’est la lune qui parait.
Dans trois jours vous mourerez, }
En paradis vous i ez;                   } bis
Et votre mari, Madame,
En enfer irá brûler.»

[Pg 210]

Esta ballada é popular na Picardia, e Champfleury a recolheu nas Chansons populaires des Provinces de France, p. 5. A nossa lenda piedosa é mais primitiva, não tem o sêlo ecclesiastico da maldição: o marido e a mulher, como Philemon e Baucis da antiguidade classica, gosam ambos a bem-aventurança.

44—Romance de Santo Antonio e a Princeza—Esta lenda de Santo Antonio e a Princeza devemol-a ao cuidado do sr. S. P. M. Estacio da Veiga, que a recolheu no Algarve, e appareceu no n.º 11 da Estrella d’Alva, Lisboa 1861.

A lenda piedosa, recolhida da tradição oral, é um dos muitos milagres do santo mais popular de Portugal. Eis como ella se encontra na Chronica dos Frades Menores de Frei Marcos de Lisboa: «Uma Rainha de Leão de Hespanha, a qual era natural de Portugal, e devotissima de Santo Antonio, teve uma filha de onze annos morta tres dias, contra vontade de el-rei seu marido, e dos principes do seu reino, e fazia oração ao Santo, dizendo—Bemaventurado Santo Antonio, eu sou vossa natural, e vim de vossa patria, dai-me minha filha viva.» A cujos devotos clamores resurgiu a filha e reprehendeu a mãe, dizendo: «Oh, senhora mãe, nosso Senhor vos perdoe, porque eu estando êntre as virgens na gloria, o bemaventurado Santo Antonio, com tanta instancia, por amor de vós rogou a Deos, que me restituiu a vida, e me mandou que viesse a vós; mas senhora mãe, sabereis que o Senhor me não deu licença para estar comvosco mais que quinze dias.» Os quaes quinze dias acabados, a Infante se tornou á gloria.—Chr. Tom. I, Liv. V, c. 33, fl. 157, etc.

45, 46 e 47—Romances de Santa Iria—A lenda, appareceu pela primeira vez colligida o publicada por Garrett no tomo II, pag. 35 das Viagens na minha terra. Com aquelle grande senso artistico, discute elle as origens monasticas da tradição da padroeira de Santarem; a differença que ha na versão popular não é um resultado do duas formações diversas; o povo quando recebe uma tradição simplifica-a, redul-a aos traços mais geraes, e é justamente a parte mais bella e inmorredoura da creação individual que elle perpetúa. Tambem se encontra no Porto esta lenda piedosa, aonde ouvimos alguns fragmentos com o titulo de Iria a Fidalga; o sentimento popular não podia deixar do perdoar: é, sobre tudo, isto o que torna a variante da Beira-Baixa superior á lição de Garrett.

[Pg 211]

A variante do Minho,ainda que appresentada por um auctor que fez de lavra sua varias composições-rifacimentos do gosto popular, pertence ao genio anonymo, e por isso a incluimos. Lê-se na Revista Universal Lisbonense, t. III, p. 329. Esta versão distingue-se das precedentes por que é narrada impessoalmente. O nome de Helena é uma confusão de Irene ou Iria. O final estava assim truncado, mas o leitor pode completal-o por qualquer das versões da Beira Baixa ou Santarem.

48—Romance da Devota da Ermida—Foi aqui pela primeira vez recolhido da tradição oral. O cantar da criança que nasce na sepultura faz lembrar aquella ballada bretã dos Tres monges vermelhos, feita pelo povo contra os Templarios.

49—Oração do Dia de Juizo—A poesia do christianismo é inteiramente popular, como se vê pelas palavras de Sam Jeronymo: «Ecclesia non de Academia, sed de viti plebecula orta est.» Que são os Evangelhos apocryphos senão os cantos dos primeiros neophytos? O Livro dos pecados, que hade apparecer no dia do juizo, é uma tradição rabbinica e mussulmana tornada popular nos primeiros seculos da egreja, como se vê pelo Evangelho de José o Carpinteiro. Os rabbinos admittiam que era S. Miguel quem appresentava as almas a Deos. No Ensaio sobre as lendas piedosas da Edade Media, por Alfred Maury, vem um eruditissimo estudo sobre a psychostasia e o uso das balanças no Juizo final (pag. 17 a 84), que trataremos de resumir, para mostrar como a lenda portugueza é formada de tradições primitivas. Nos monumentos egypcios e etruscos se encontra este symbolismo da alma pezada em uma balança, a que alludem tambem Homero e Virgilio. Dherma na religião dos Indous, pesa as boas e más acções. Na Biblia e nos Santos Padres encontra-se esta mesma allusão metaphorica, bem como nos hymnos de Prudencio e Fortunato. Principalmente nas obras de arte da edade media, baixos relevos, pinturas e miniaturas dos manuscriptos, se encontram differentes representações de Sam Miguel pesando as almas.

Quando o diabo fazia pender a balança para o lado das más acções, era a Virgem quem fazia prevalecer o pequeno numero das acções boas, como se vê em Herm. Com. Chr. apud Eccard. Cf. Michelet, Hist. de França, p. 310. D’este mesmo sentimento se inspira o drama de Bartolo: L’Homme par devant Jesus, le diable demandeur et la Vierge defendeur. (Vid. Maury, loc. cit.)

[Pg 212]

50—Romance do Terremoto de Villa Franca do Campo—Foi este romance extraído do celebre manuscripto intitulado Saudades da terra por Gaspar Fructuoso, primeiro historiador insulano. Do cap. V, o copiou Jorge Cardoso para o Agiologio Lusitano, t. 3, p. 415.

51—Xacara da linda Pastorinha—Com titulo quasi identico publicou Garrett (Romanceiro, t. III, p. 187) uma variante dos arredores de Lisboa, em que o guapo galanteador não é irmão, nem vem preoccupado por alguma aposta. É ali incompleta, e está mal classificada; muitas outras cantilenas d’este genero temos encontrado na tradição oral, em forma de descante ou desafio. O povo só conhece na sua poesia a redondilha maior e menor; e de todas as lições que recebemos do Porto, Trás-os-Montes e Beira Baixa nenhuma trazia os versos dispostos em forma alexandrina. De todas as variantes a mais verdadeira é aquela que vem precedida de um preambulo em prosa, contando como um irmão chegado do Brazil á sua terra, antes de se dar a conhecer a sua irmã, começou a falar-lhe de amores, por aposta contra os que lhe diziam ser ella a mais esquiva de todas as raparigas do logar.

52, 53—Xacaras dos Conversados—Aqui está um quadro dos amores do povo, entre dois conversados, como é estylo de campo; a scena é bíblica; a Samaritana do poço percebe todas as allusões e responde com não menos frescura. Na versão de Penafiel, o moço pede de beber por um pucarinho novo, e tocadinho de amor. É uma expressão pittoresca, tirada do usual da vida, por que é tocando que se vê se a louça está sã. As fórmas, que o apaixonado furtivamente observa, a rosa com que symbolisa o seu desejo, e que a cantareira guarda para deixar apanhar a quem for do seu gosto, dão a este idyllio um colorido tão delicado, que a mesma naturalidade quasi que faz passar desappercebido.

54—Os Estudos de Coimbra—Este canto foi recolhido em Penafiel; pertence a genero de despique de conversados. Nas aldeas os rapazes e raparigas namoram-se por cantigas. As quadras improvisadas, lançadas ao vento, e que os viandantes escutam, são as que ficam na tradição oral, formando assim naturalmente um pequeno conto de amor.

55—Xacara do Cego andante—Garrett determina os paradigmas da presente xacara em duas balladas escossezas de el-rei James V, intituladas The Gaberlunzieman, e The[Pg 213] Jolly Beggar (Percy’s, Reliques of ancient english poetry, Series II, book I, 10).

56—Xacara da Moreninha—Esta xacara, anda na tradição popular da Extremadura e Beira; de Castello Branco foi a versão publicada por Garrett (Rom. t. III, p. 54) «mas aproveitou-se de outras lições provinciaes o que foi necessario para lhe dar complemento.» A Moreninha tem a vantagem do ser recolhida da genuina tradição oral do Porto. O tal Frei João é tão antigo na lenda portugueza, como o Frei Jean des Entommeures do Gargantua de Rabalais, se não proveiu d’esta creação comica, foi por certo tirado das aventuras da vida claustral, que em ocio santo e beatifica estupidez era consummida. O retrato do frade da versão popular é similhante ao esboçado em Rabelais; «En l’abbaye estoit pour lors un moine claustrier nommé frère Jean des Entommeures, jeune, galant, frisque, debait, bien à dextre, hardi, adventureux, delibéré, hault, maigre, bien fendu de gueule, bien advantagé en nez, beau despecheur d’heures, beau debrideur de messes, beau descreteur de vigiles: pour tout dire sommairement, vrai moine si ouques en fut depuis que le monde moinant moina de moinerie; au reste, elere jusque ès dents en matière de breviaire.» (Gargantua, C. 27). Em algumas versões do romance portuguez descreve-se como: Frei João se levantou ’numa fresca madrugada; Rabelais diz: «Mais le moine, ne faillit onqués à s’esveiller avant la minuit, tant il estoit habitué à l’heure des matines claustrales. (Id. cap. 41.) Na versão colhida por Garrett o manteo de cochonilha, e a circumstancia dos pretos que vão buscar agua fazem a tradição portugueza do seculo XVI, e por isso contemporanea do romance de Rabelais. Nos Ineditos de Alcobaça, publicados por Frei Fortunato de Sam Boaventura, encontra-se frequentes vezes empregada a palavra gargantuice nos monumentos em prosa do seculo XIV e XV; o que prova existirem entre nós vislumbres da tradição a que Rabelais deu desenvolvimento. Na versão de Garrett não vem o milagre do calix.

57—Xacara do Soldado—Foi pela primeira vez recolhida por Almeida Garrett da tradição oral de Trás-os-Montes, aonde achou tres copias, sendo uma mais completa do que as outras. Não se encontra nas collecções castelhanas. Garrett assigna-lhe a data «pelos tempos da guerra da acclamação, isto é, por meado do seculo XVII.» (Rom. t. III, p. 167). Nos modernos contos de Don Antonio de Trueba respira-se este mesmo sentimento popular.

[Pg 214]

58—Xacara do Toureiro namorado—Foi pela primeira vez aqui recolhida da tradição oral; tem o merecimento de ser um resultado dos costumes dos dois povos da Peninsula, que se fazem notar pela paixão dos divertimentos tauromachicos. Não se encontra nada similhante nos Romanceiros hespanhoes.

59—Xacara da Tecedeira—Tem toda a desenvoltura e licença de um fabliaux francez. A influencia dos troveiros do norte da França não chegou até nós sómente pelo Arcipreste de Hita, guardado na Livraria de Dom Duarte, ou traduzido em portuguez; na alma popular apparecem de longe em longe estas reminiscencias tambem. A xacara é da Beira-Alta; Garrett porem fundiu-a dentro do romance de Dom Claros d’alem-mar (Rom. t. II, p. 192) por mera diversão artistica, porque nas lições castelhanas, d’onde as versões portuguezas se derivaram, não apparece tal situação.

60—Despedida de Lisboa—Com dois tostões venci a repugnancia de um rhapsodo popular para me dictar estas coplas. Assim ficou salva do esquecimento uma reliquia pura do sentimento das aventuras maritimas da alma portugueza. A primeira parte faz lembrar as velhas narrações dos mareantes, como se lêem na Historia Tragico-marítima. Será talvez a abertura de algum romance maritimo já obliterado na tradição? A despedida do marinheiro não é de saudade, é de sêde do goso de que se sente privado pela viagem demorada e tormentosa. Esta xacara é como um truncado florão de architectura manuelina.

61—A Freira arrependida—Estas coplas foram recebidas da Beira-baixa em duas lições fragmentadas, que mal deixavam perceber o sentimento profundo que encerram. No Manuscripto n.º 338 da Biblioteca da Universidade existe uma outra lição em letra do seculo XVII, intitulada Queixas de uma Freira, pela qual podémos coordenar as lições da Beira-Baixa. Eis um grito doloroso do povo contra a direcção monachal, que a egreja queria dar á sociedade; é um grito inspirado pelo sentimento da natureza que a Renascença veiu acordar na alma humana. Sempre uma verdade immensa na poesia do povo.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Epist. 105 Labbe, Coll. dos Concil., t. VI, col. 1559.

[2] Relação do naufragio da nau S. Bento, pag. 55.

[3] Idem, pag. 73.

[4] Idem, pag. 109.

[5] Relação da viagem e sucesso das naus Aguia e Garça, pag. 222.

[6] Obras de Gil Vicente, t. II, pag. 414.

[7] Codic. da B. Real publicado pelo senhor A. H, no vol. III do Panorama, pag, 277.

[8] Tomo III do Romanceiro, pag. 87.

[9] Creio que esta passagem se refere á seguinte: «Estes cafres não deram novas como os quatro homens que mandaramos adiante com recado a Lourenço Marques, eram mortos ou mataram d’alli perto, porque elles constrangidos pela fome tomaram um cafre que toparam ao largo do mar, e metendo-se com elle em um mato, o espostejaram e assaram para fornecer os alforges; mas como os visinhos d’este o achassem menos, e a terra seja de areia, vieram pelo trilho a dar com o negocio; e então levando os nossos á praia, e não se havendo por bem o que d’elles não tomasse vingança, fizeramnos coitados como crua carniceria.»—Idem, pag. 123

[10] Idem, pag. 135.

[11] Idem, pag. 419.

[12] Plutarch. De Io et Osir. 356.

[13] Alfred Maury, Legendes pieuses, p. 144.

[14] D’aqui em diante, com pequenas variantes, é similhante ao romance Mi padre era de Ronda, do Cancioneiro de Romances.

FIM.


[Pg 215]

INDEX

ROMANCEIRO GERAL

FLOR DOS ROMANCES ANONYMOS DO CYCLO CARLINGIANO E DA TAVOLA REDONDA

I—Romances communs aos povos do Meio Dia da Europa

N.º de ord. Pag.
1 Romances da Dona Infanta Beira-Baixa1
2 Dona Catherina Beira-Baixa 4
3 Romances de D. Martinho d’Avisado Beira-Baixa 8
4 Dom Martinho Beira-Baixa 11
5 Dom Barão Douro 15
6 Romance do Gerinaldo Trás-os-Montes 18
7 Romance da Noiva roubada Almeida 20
8 Romance do Alferes matador Beira-Baixa 22
9 Romance da Romeirinha Trás-os-Montes 24
10 Romances da Infanta de França Beira-Baixa 26
11 A Encantada Foz 28

II—Romances de supposta origem portugueza

12 Romances da Sylvana Lisboa 30
Faustina (Víd. notas) Coimbra 181
13 Romance de Bernal-Francez Foz 34
14 Romance do Conde Niño Trás-os-Montes 37
15 Romance da Promessa do Noivado Beira-Baixa 38
16 Romance de Dom Aleixo Foz 40
17 Romance de Dom Pedro Beira-Baixa 42
18 Romance da Filha do Imper. de Roma Trás-os-Montes 45
19 O Hortelão das flores Beira-Baixa 48
20 O Duque da Lombardia Beira-Alta 50
21 Romance de Dona Agueda de Mexia Alemtejo 53
22 Romance do casamento e mortalha Minho 55
23 Romance da Nau Catherineta Lisboa 58

III—Romances que se encontram nas Collecções hesp.

24 Romances do Conde Prêso Trás-os-Montes 60
25 Dom Garfos Beira-Baixa 62[Pg 216]
26 Justiça do Deos Beira-Alta 65
27 Romances do Conde Alberto Porto 68
28 Conde Alves Beira-Baixa 71
29 Romances do Conde d’Allemanha Beira-Baixa 75
30 Conde de Allemanha Trás-os-Montes 77
31 Romanc. do Dom Carlos Montealbar Porto e B. Alta 79
32 Dona Lisarda Beira-Baixa 83
33 Dona Areria Coimbra 87
34 Romance do Passo de Roncesval Trás-os-Montes 89

VERGEL DE ROMANCES MOURISCOS, CONTOS DE CATIVOS, LENDAS PIEDOSAS E XACARAS:

IV—Romances mouriscos e Contos de Cativos

35 Fragmento de um romance do Cid. Liç. de Gil Vic. 93
36 Romances de Dom Gayfeiros Trás-os-Montes 94
37 Melisendra Trás-os-Montes 97
38 Romance de Branca-Flor Extremadura 103
39 Romance da Moura Encantada Algarve 107
40 Romanc. de N. Senhora dos Martyres Algarve 109
41 Romances do Cativo de Argel Lição ms. 113
42 O Cativo Lisboa 115

V—Lendas piedosas

43 Jesus Mendigo Minho e B. B. 118
44 Romance de S. Antonio e a Princeza Algarve 201
45 Romances de Iria a Fidalga Santarem 123
46 Santo Iria Covilhã 125
47 Santa Helena Minho 126
48 Romance da Devota da Ermida Trás-os-Montes 128
49 Oração do Dia do Juizo Minho 129
50 Rom. do Terr. de Villa Fr. do Camp. Lição ms. 131

VI—Xacaras e Coplas de burlas

51 Xacara da linda Pastorinha Beira Baixa 133
52 Xacaras dos Conversados Coimbra 139
53 A Conversada da Fonte Penaf. e Coimb. 142
54 Os Estudos de Coimbra Penafiel 145
55 Xacara do Cego Andante Beira Baixa 147
56 Xacara da Moreninha Porto 150
57 Xacara do Soldado Trás-os-Montes 152
58 Xacara do Toureiro namorado Beira Baixa 154
59 Xacara da Tecedeira Beira Alta 156
60 Despedida de Lisboa Coimbra 157
61 A Freira arrependida Beira Baixa 159