Title: A triste canção do sul (subsidios para a historia do fado)
Author: Alberto Pimentel
Release date: July 25, 2023 [eBook #71274]
Language: Portuguese
Original publication: Portugal: Livraria Central
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ALBERTO PIMENTEL
Subsidios para a Historia do Fado
LIVRARIA CENTRAL
DE Gomes de Carvalho
EDITOR
158, Rua da Prata, 160
LISBOA
ALBERTO PIMENTEL
A triste
canção do sul
(SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DO FADO)
LISBOA
LIVRARIA CENTRAL de Gomes de Carvalho, editor
158—Rua da Prata—160
1904
[Pg 6]
LISBOA
Typ. de Francisco Luiz Gonçalves
80, Rua do Alecrim, 82
1904
[Pg 7]
Os romanos incluiam Fatum na sua mythologia como sendo a vontade expressa não só por Jupiter, mas tambem pelos outros deuzes, em relação ao destino dos homens, das cidades e das nações.
Os nossos diccionaristas mencionam esta etymologia, mas interpretam-n’a sob o ponto de vista do monotheismo.
Assim, o Padre Raphael Bluteau, no Vocabulario, diz que, segundo a doutrina de Santo Agostinho e S. Thomaz, Fado é a disposição e providencia divina, que antevê os acontecimentos humanos.
Moraes, encostando-se tambem aos theologos, define Fado dizendo: «é a ordenança que se vê em as coisas por divina providencia.»
De modo que a differença consiste em admittir a vontade de muitos deuzes ou de um só Deus, mas o facto subsiste o mesmo tanto nas religiões polytheistas como nas monotheistas: acredita-se que o destino humano é regulado por uma auctoridade sobre-natural e tem de ser cumprido com indeclinavel sujeição.
[Pg 8]
Os nossos poetas d’outr’ora (e ainda os modernos) deixaram-se dominar pela crença na fatalidade do destino, cuja infelicidade lamentam como «escravos da sorte.»
Bastará citar o exemplo de Bocage:
O nosso povo, á semelhança dos poetas, tem sido sempre fatalista: explica suas faltas e desgraças, e tambem sua boa fortuna, por uma imposição da lei do Fado; no primeiro caso diz: «Estava escripto no livro dos destinos ou «Era Fado; tinha de ser assim»; no segundo caso: «Tive sorte; estou em sorte, etc.»
Mas o nosso povo, com ser fatalista, no que alguns querem ver principalmente um vestigio da influencia arabe, como se o homem não tivesse acreditado sempre, mais ou menos, em todos os tempos e em todos os paizes, n’uma predestinação que lhe é imposta por um Arbitro supremo; o nosso povo, crente na fatalidade da sorte a que tem de obedecer, apenas n’um passado relativamente proximo começou a dar o nome de Fados ás canções que celebram as agruras do destino e a crença na lei irrevogavel do Fado.
A accepção da palavra Fado no sentido de «canção» é relativamente moderna, ou só modernamente passou do calão para o vocabulario geral da lingua e para a technologia musical.
[Pg 9]
Não apparece era os nossos mais antigos diccionarios: não vem em Bluteau (1712-1721); nem em Santa Rosa de Viterbo (1798).
Nem apparece tambem nas primeiras edições do Diccionario de Moraes (seculo XIX) tanto nas duas que foram revistas pelo auctor como em algumas das que se fizeram depois da sua morte.
O Diccionario de Faria, cuja 1.ª edição é de 1849, não traz, no vocabulo Fado, aquella accepção.
É só depois de passada a primeira metade do seculo XIX que a palavra Fado apparece nos diccionarios da lingua com o significado de canção popular, já sanccionado pelo uso commum.
Lacerda, na 4.ª edição, que é de 1874, diz: «Fado, cantiga e dança popular, muito caracteristica e pouco decente: o de Lisboa, o de Coimbra».
Na 5.ª edição, 1879, não altera a definição, mas substitue a palavra Coimbra pela palavra Cascaes.
Na 5.ª edição de Moraes ainda não apparece o vocabulo Fado com a significação de canção ou cantiga. Não pudemos consultar a 6.ª edição. Mas examinamos a 7.ª (1878) e foi n’esta que se nos deparou a accepção que procuravamos: «Fado, poema do vulgo, de caracter narrativo, em que se narra uma historia real ou imaginaria de desenlace triste, ou se descrevem os males, a vida de uma certa classe, como no fado do marujo, da freira, etc. Musica popular, com um rythmo e movimento particular, que se toca ordinariamente na guitarra e que tem por lettra os poemas chamados fados.»
[Pg 10]
Isto pelo que respeita aos diccionarios portuguezes.
Quanto aos estrangeiros, tambem não se encontra no Glossarium de Ducange aquella accepção.
Apenas Freund, no seu diccionario latino, cita os vocabulos Fatum e Fatus como derivações de uma raiz commum, attribuindo a Fatus tanto a significação de destino como de discurso, o que justifica a propriedade com que se chama Fado á cantiga, ao discurso em verso que trata do destino, conservando-se ainda no Alemtejo a redundancia de dizer cantigas do Fado, para designar todas aquellas a que o destino serve de thema.
Nas collecções da Bibliotheca Nacional de Lisboa ha bastantes canções populares, desde 1820 até hoje, mas em nenhuma das mais antigas se encontra a designação de Fado.
Intitulam-se «cantigas, romances, modas ou modinhas, etc.»
O Diccionario erudito de Padre João Pacheco (1734-38) traz todas as designações de musicas, canções e danças do seu tempo, mas não menciona os Fados.
Nas Infermidades da lingua, e arte que a ensina a emmudecer para melhorar, composta pelo dr. Manuel Joseph de Paiva e publicada em 1760, vem arrolado grande numero de palavras e phrases, que o auctor, com excessivo e ás vezes injustificavel escrupulo, pretendia repellir da lingua portugueza, por as julgar indignas e improprias de um vocabulario grave.
Não apparece ahi a palavra Fadista; nem a palavra[Pg 11] Fado no sentido de canção ou de vida dissoluta.
Mas vem mencionada a palavra banza que nós recebemos das nossas colonias africanas,[1] e que entrou na linguagem de calão d’onde passou para a litteratura humoristica, como se vê nas Poesias de Costa e Silva (1844):
No fim do seculo XVIII a Gazeta de Lisboa annunciava, frequentes vezes, modinhas e minuetes, á venda nas lojas dos livreiros. Tambem annunciava sonatas de guitarra. Havia em 1792 um Jornal de modinhas, que se vendia na Real Fabrica e Impressão de Musica no Largo de Jesus, em Lisboa. O maestro Mr. Marchal, que então teve certa voga n’esta cidade, deu á estampa uma collecção de minuetes e rondós. Este mesmo maestro explorava a musica das ruas, glosava os pregões das vendedeiras (por exemplo, Azeitonas novas, com variações, peça composta sobre o pregão de uma vendedeira de Lisboa: Gazeta de 26 de fevereiro de 1793). Mas a designação Fado não apparece ainda em nenhum dos annuncios que recommendavam as musicas populares.
Beckford, nas suas cartas sobre Portugal, apenas se refere ás «modinhas», acompanhadas a guitarra.
[Pg 12]
É que no seculo XVIII a modinha estava em voga no nosso paiz; dominava por toda a parte, até no theatro, onde Antonio José da Silva, o Judeu, a aproveitou como elemento essencial das suas composições dramaticas.
Theophilo Braga diz que a modinha, comquanto «seja uma creação musical do genio portuguez» se chamava brazileira, porque no Brazil se conservou «levada para ali pelos negociantes e colonos, e do Brazil a trouxe na sua inteireza primitiva Antonio José da Silva, que abandonára a patria aos oito annos de idade e achava n’essas cançonetas uma recordação da infancia.»[2].
Stafford, na Historia da musica, diz que as arias nacionaes dos portuguezes eram os lunduns e as modinhas; Fétis falla de Hespanha, mas não de Portugal.
Em toda a graciosa collecção da Macarronea, que tão pittorescamente retrata a vida academica de Coimbra no seculo XVIII, não ha noticia do Fado, mas sim de outras canções que os estudantes cantavam: mille trovas, com diz o Sabonete Delphico.
Na Feição á moderna ou logração desmascarada vem especificadas algumas d’essas canções, portuguezas e hespanholas: «E logo dareis duas gaitadas, fazendo o compasso com o pé, e seguindo o sonoro com a cabeça. Victor quem canta; lá vae Bella arma misera, ou outra da moda; depois entregar a algum curioso[Pg 13] o instrumento, sair para o meio com o chapeu na mão a desafiar algum circumstante; dar quatro voltas de pé cambeo, ou bem ou mal, que sempre no fim se-ha de applaudir com catarro. Acabada esta primeira jornada, gritareis dizendo: «Venha doce, que estou esfalfado»; e depois de consolar a barriga comendo doce usque ad satietatem, saireis outra vez com o segundo papel lançando uma nesga de relação antiga v. g. do Mariscal de Viron, ou D. Carlos Ozorio, intimando no furor das acções a valentia, e nos requebros da voz a ternura, cortando o hespanhol como queijo do Alemtejo com faca flamenga, e no fim correspondendo aos vivas com perna trocada.»
Nicolau Tolentino, que morreu em 1811, falla no doce londum chorado, nas modinhas brazileiras, cita algumas canções populares, taes como De saudades morrerei e a Comporta; diz referindo-se á primeira,
e alludindo á segunda,
mas nem uma unica vez faz menção do Fado.
Nenhum dos poetas portuguezes que no seculo XVIII[Pg 14] e na primeira metade do seculo XIX se tornaram mais populares emprega a palavra Fado na accepção de canção ou cantiga.
É certo que alguns estrangeiros que n’aquelles seculos, e ainda no anterior, visitaram Portugal, se mostraram impressionados, como lord Beckford, com o tom plangente da musica do nosso povo.
O barão de Lahontan, que esteve em Lisboa no seculo XVII, diz que alta noite vagueavam guitarristas pelas ruas tocando umas arias funebres como o «De Profundis.»
Não lhes chama Fado, nem podia chamar, porque essa designação não era usada ainda.[3]
O erudito escriptor portuense sr. Rocha Peixoto escreveu no periodico Nova Alvorada um artigo a que deu o titulo de O cruel e triste fado e em que synthetisou a relação psychica existente entre o Fado, canção, e a orientação historica do povo portuguez.
«... o fado—pondera esse escriptor—e o que n’elle se diz de sonho, de sombra, de amor, de ciume, de[Pg 15] ausencia, de saudade e principalmente de conformação com o cru e negro imperio do destino, eis o que exprime dramaticamente a feição da alma nacional. O fado é portuguez, é toda uma mentalidade, é toda uma Historia».
Apenas o sr. Rocha Peixoto se deixou arrastar por um flagrante anachronismo quando diz que o infante D. Miguel de Bragança batia o fado.
Oliveira Martins, que muitas vezes se enredou em salientes anachronismos, foi mais cauteloso quando poz a canção Negro melro na bocca da plebe miguelista.
Certamente que o povo, poeta das ruas, improvisador espontaneo e inconsciente, costumaria cantar em publico as suas desgraças e as da patria, como faziam, em mais alta graduação de merito litterario, os poetas cultos; ou repetiria as trovas d’estes poetas quando ellas exprimiam as dores da existencia individual ou o luto pelas desgraças e dissabores nacionaes.
Sabemos que no seculo XVI se generalisaram na voz do povo as canções que lastimavam a ingente derrota do rei e do exercito em Alcacerquibir. Miguel Leitão de Andrade, na Miscellanea, traz uma d’essas canções, lettra e musica, mas dá-lhe o nome de romance; e tudo faz crêr na sua origem popular.[4].
[Pg 16]
A estas «toadas tristissimas» não se chamava Fados; nem chamou a nenhuma outra do mesmo genero até depois de 1840.
Hoje ainda os viajantes estrangeiros se impressionam profundamente com a melancolia e dolorida doçura das nossas canções populares, mas já todos as designam pelo nome de Fados.
Madame Adam, no seu livro La patrie portugaise (1896), escreve: «Jovens guitarristas, agrupados em bandos, cantam e acompanham o Fado, a canção que se traduz pela palavra «Destino» e que é puramente lusitana. Todos os motivos do Fado são portuguezes. Ha Fados para todos os acontecimentos da vida, para o amor, especialmente; e para a politica tambem.»
Tal é o testemunho de uma intelligente e instruida mulher franceza, que reconheceu em os nossos Fados um caracter privativo, uma expressão nacional, a alma de um povo, emfim.
Igual impressão recebeu um viajante hespanhol, que em novembro de 1896 escreveu, no jornal A Voz do Commercio, a seguinte apreciação:
«Nada mejor como la música refleja el caracter y la manera de ser especial de los pueblos. Un filósofo aleman decia: daz-me los adagios de un pais cualquiera y la dictaré leyes. Pues bien, yo dispensaria los adagios y me sobraria con la música. España con sus jotas y sus peteneras y Portugal con su rico fado son y serán siempre dos naciones antitéticas. La jota pide luz, castañuelas y vino en jarro. La petenera pide[Pg 17] algomas: abrazos de muger que ahoguen, besos que quemen neurosis debilitantes y por encima de todo esto cañnitas de manzanilla bajo el toldo de una parra. En cambio, «o fado» pide silencio absoluto, penumbra misteriosa y una cierta dósis de tristeza en el corazon. Con diferencias tan marcadas antojáseme tarea fácil legislar para los dos paises sin mas que consultar cuadernos de música popular.»
Só os escriptores da actualidade, tanto estrangeiros como nacionaes, fazem menção do Fado no sentido de canção popular.
Em um livro de memorias, aliás muito interessante,[5] e relativo á primeira metade do seculo XIX, diz o seu auctor fallando do enthusiasmo com que em Lisboa foi recebida a Polka:
«Não só desthronou o Solo inglez, e fez prescrever a Gavota, como contribuiu tambem para a emigração do Pirolito—da Maria Cachucha—do Beijo á Saloia—do Rei Chegou e do Passarinho Trigueiro. Creio mesmo que só então deixou de cantar-se a antiga e popular romança—A Nau Cathrineta, uma especie de—papão vai-te embora—com que os avós, desde o principio do seculo, vinham entretendo os serões e... acalentando os netos.»
Nem uma unica palavra de referencia aos Fados.
[Pg 18]
Mencionando a litteratura de cordel n’essa epoca, diz o mesmo auctor:
«Ali (obras do Arco da rua Augusta) entretinham-me as toscas gravuras, quasi em papel pardo, do João de Calais—da Imperatriz Porcina—da Cornelia Bororchia—e da Formosa Magalona, que, á guiza de estendal de roupa, se baloiçavam bifurcadas no cordel que, de lado a lado, se prendia ao tapume com que estava vedada a passagem do Terreiro do Paço para a rua Augusta.»
Tambem nenhuma referencia aos Fados, que hoje se vendem em folhetos, muitos d’elles com gravuras toscas (especialmente os que se referem a grandes crimes ou outros acontecimentos de sensação) e que são apregoados nas ruas.
No romance do Padre João Candido de Carvalho (vulgarmente Padre Rabecão) Eduardo ou os mysterios do Limoeiro, publicado em 1849, não obstante ser uma chronica muito interessante dos costumes populares de Lisboa n’aquelle tempo, e começar por uma scena de taberna na Madragôa (hoje rua de Vicente Borga) não apparece a palavra Fado, comquanto haja uma referencia a fadista. É a seguinte:
«Ao canto opposto existia uma outra banca, como para guardar symetria áquella, de que fallei; e sentado a ella estava um mancebo de 19 a 20 annos, de jaqueta, chapeu á christina, cinta de seda enrolada á fadista, calça de cotim enlameada, fumando no seu charuto de cinco réis, que accendia repetidas vezes, emquanto acompanhava as fumaças com outros tantos[Pg 19] gollos de uma bebida quente que tinha mandado preparar por mais de uma vez, e em cada vez, que a pedia por ter esgotado o copo, repetia—Oh patrão! dê-me outra Francisquinha.»
É o typo do Fadista, descripto em 1849, a beber vinho na taberna, usando do calão e do traje da sua classe. Mas o Padre Rabecão, que viu o Fadista, não ouviu o Fado, nem a elle se refere nunca em nenhum dos quatro tomos do seu romance.
Este facto leva-nos a formular uma hypothese, que opportunamente desenvolveremos.
Tem-se dito muitas vezes que a origem dos nossos Fados é arabe.
Theophilo Braga inclina-se a esta opinião quando diz «que os cantos conhecidos pelo nome de Huda, pelo Arcipreste de Hita, são ainda os nossos Fados, que usados pelos tropeiros do Brazil coincidem com a descripção feita pelo arabista Caussin de Perceval.»[6]
O Arcipreste de Hita, de que Theophilo Braga deu varias composições no jornal litterario Era Nova e de que Amador de los Rios faz menção na Historia critica da litteratura hespanhola, compoz cantigas para cegos andantes e para tunas escolares; parecendo que tambem escrevera canções populares em arabe, o que aliás é contestado por alguns escriptores.
[Pg 20]
Mas, como quer que seja, obedeceu manifestamente á influencia arabe, ainda quando se dè por assente que não chegou a escrever n’esta lingua alguns dos seus cantares.
Theophilo Braga, filiando nos Hudas os nossos Fados, acceita-os, pelo menos, como um vestigio d’aquella mesma influencia.
E é ainda mais explicito quando diz: «As danças portuguezas participam dos caracteres provenientes da nossa situação: sensuaes, como os Fados, os Batuques recebidos dos arabes e das possessões africanas, e as Modinhas recebidas das colonias do Brazil.»[7]
É verdade que nas Epopeas da raça mosarabe[8] fallando da xácara, usada pelos xaques ou ciganos (d’onde veio a denominação xácara ou xacarandina) diz que o nosso Fado é «uma degeneração da xácara, que pelas transformações sociaes veio a substituir a canção de gesta da idade media.»
Ora nós seguiremos outro caminho; não nos demoraremos a apalpar hypotheses.
Apenas mencionaremos os factos, e o que parece certo é que o Fado, tal como hoje o conhecemos, nasceu em Lisboa, depois da primeira metade do seculo XIX, e que d’aqui irradiou para as provincias, apenas com o caracter de «moda» de invenção moderna, o que exclue a hypothese de uma antiga filiação arabe.
[Pg 21]
O erudito professor Ernesto Vieira, no seu Diccionario musical, chegou ás seguintes conclusões, que nos parecem exactas:
1.ᵃ O Fado só é popular em Lisboa: para Coimbra foi levado pelos estudantes, e nem nos arredores d’estas duas cidades elle é usado pelos camponezes, que teem as suas cantigas especiaes e muito differentes.
2.ᵃ Nas provincias do sul, onde os arabes se conservaram por mais tempo e os seus costumes e tradições são ainda hoje mais vivos, o Fado é quasi desconhecido principalmente entre a gente do campo.
3.ᵃ Nenhum livro ou escripto anterior ao actual seculo (XIX) faz a menor referencia a esta musica popular.
4.ᵃ A poesia com que, invariavelmente quasi, se canta o Fado é uma quadra glosada em decimas, forma poetica d’uma antiguidade pouco remota, de uma origem nada popular e sem relação alguma com a poesia arabe.
Effectivamente, o grande fóco de irradiação do Fado é Lisboa; mas a provincia, tanto ao sul como ao norte, apenas o acceitou como um dictame da moda, que não logrou absorver e substituir os cancioneiros provinciaes.
Dá-se com o Fado e com outras canções, que em Lisboa cairam no gosto publico, o mesmo facto que se dá com os figurinos, as toilettes, cujo modelo a capital exporta para o interior do paiz: apparecem na provincia alguns exemplares, mas a maneira de vestir[Pg 22] propria de cada região continúa subsistindo tradicionalmente.
Os Fados chegaram a Coimbra levados pelos estudantes, como diz Ernesto Vieira; e ao Minho, levados, como diz Camillo, pelos jovens fidalgos que mais ou menos frequentavam a capital e queriam ir dar-se ares extravagantes de marialvas e fadistas nas suas terras.
Tambem foi Lisboa que exportou o Fado para as provincias ultramarinas.
Ha o Fado de Loanda, composto sobre motivos de cantos indigenas por um maestro angolense, já fallecido, que veio á Europa estudar musica por conta da sua provincia.
Não deve passar sem reparo o facto de Lacerda, na 4.ᵃ edição do seu Diccionario, feita em 1874, ter citado o Fado de Lisboa e o de Coimbra; e de na 5.ᵃ edição, de 1879, ter substituido—Coimbra—por—Cascaes.
Esta alteração corresponde certamente a um facto chronologico: é que a praia de Cascaes, mais proxima de Lisboa que a cidade de Coimbra, deve ter recebido o Fado por contacto directo com os marialvas e fadistas da capital.
Coimbra recebeu-o mais lentamente, levado por um ou outro estudante do sul em gerações successivas.
A guitarra e o Fado tiveram que luctar, nas serenatas da academia, com a tradição do «machinho», de que tanto se falla na Macarronea, e da viola; e com as[Pg 23] canções amorosas ou populares, que estavam arraigadas nos costumes coimbrãos.[9]
José Doria ficou celebre como tocador de viola.
João de Deus, que era algarvio, e tinha, por isso, que passar algumas vezes em Lisboa, dava lindas serenatas de viola no Penedo da Saudade, cantando improvisos seus ou canções do povo, mas não tinha sympathias pelo Fado. Elle mesmo o confessa: «nunca pensei em Fado, nunca o apreciei, nem o toquei: liguei-o desde o principio ás mulheres de má vida, e de ahi a minha especie de aversão a tal musica; mas, aqui, ouvindo-o a estudantes, não me repugnou fazer-lhe umas tantas quadrinhas, e continuar-se-ha...»[10]
Depois, na vida de Lisboa, familiarisou-se com a guitarra e, portanto, com o Fado, a tal ponto que estudou um systema de melhorar a pontuação das guitarras.[11]
João de Deus diz, como vimos, ter composto «umas tantas quadrinhas» para serem cantadas com o acompanhamento de algum Fado.
É certo que os Fados á morte da Severa, e alguns[Pg 24] mais, eram em quadras, mas depois o povo adoptou outra forma estrophica. A quadra, no Fado, veio modernamente de Coimbra e foi o estudante Hilario que lhe deu grande voga cantando quadras compostas por elle ou outros poetas.
A lettra do Fado, na tradição popular, como nota Ernesto Vieira, é talhada nos moldes arcadicos do mote em quadras e da glosa em decimas.
Esta tradição mantem-se ainda entre o povo de Lisboa nos Fados que se vendem nos kiosques (que substituiram o muro, o cordel e o cego andante) e em alguma livraria, como, por exemplo, a de Verol Junior na rua Augusta.
Apenas o Fado litterario admitte a quadra em vez da decima.
Mas o Fado, apesar da dupla aristocratisação que tem recebido dos poetas e das salas, denuncia a sua origem popular, a alma do povo que o canta.
É nas ruas, nas tabernas e nos bordeis que o Fado parece nascer, espontaneamente, como nascem certas flôres nos charcos: a Pontederia crassula, por exemplo, que é uma linda flor azul.
Em geral a lettra dos Fados justifica a etymologia, porque celebra as desgraças de um individuo ou de uma classe, mas ha casos em que a lettra, por glosar um assumpto alegre ou malicioso, briga com a toada dolente da guitarra.
A musica, o acompanhamento, é sempre triste, como um ecco da alma do povo, ingenua e soffredora, que, pela sua rudeza, não sabe procurar difficuldades[Pg 25] nos effeitos musicaes, contentando-se com uma toada simples e facil, e que, pela amargura do seu destino, está sempre disposta a carpir-se, a lastimar-se.
A lettra do Fado revela a facilidade espontanea da metrificação popular, da redondilha, que é o porta-voz da raça latina da peninsula, e na vivacidade por vezes maliciosa dos conceitos accentua-se a heroica resignação com que nós, os meridionaes, graças á inconstancia do nosso humor, á benignidade do clima e ao azul radioso do ceu, podemos afogar as nossas lagrimas no desabafo redemptor de um sorriso amargo...
Assim é que nas cantigas do Fado os assumptos mais tristes são temperados por um sabor picante de ironia, que lhes adelgaça o azedume, como, por exemplo, quando o marinheiro conta a sua vida, ao som da guitarra, sorrindo e zombando do seu proprio destino:
Comprehende-se que o povo, no meio dos seus prazeres, não esqueça inteiramente a pesada fatalidade com que a sorte o subjuga; mas comprehende-se tambem que ache gosto em saborear o desabafo que a guitarra lhe proporciona, fazendo-o cantar, e dando-lhe pretexto para molhar a palavra com o vinho.
D’envolta pois com o sentido esmagador da palavra[Pg 26] Fado, que representa uma condemnação invencivel, vem associada a ideia da folga na taberna, da merenda nas hortas, do passeio ao luar, emquanto a guitarra vai dizendo da sua justiça.
N’esses momentos, o povo, sem esquecer a dureza do destino, porque a sente como o condemnado ás galés sente o peso da corrente de ferro, experimenta os unicos prazeres que lhe são permittidos, e que todos parecem volitar, como um enxame de abelhas, em torno da guitarra: o canto, a dança, o vinho, e o amor.
O povo julga-se relativamente feliz na fruição d’esses prazeres que o Fado arrasta comsigo. Assim elle pudesse prolongal-os! E, saboreando-os, encarece-lhes a voluptuosidade tentadora, que seria capaz, julga elle, porque é o melhor que pode gosar, de abalar a santidade do Papa:
O povo de Lisboa, limitado ás ruas e ás tabernas da cidade, e, uma vez por outra, quando muito, ás hortas dos arrabaldes, encontra na guitarra, nas cantigas do Fado, a sua melhor distracção.
[Pg 27]
O vinho da taberna pode leval-o até á embriaguez, até ao crime, como não raro acontece; mas quando não vai tão longe, suggere-lhe a vaga melancolia de uma vida contrariada de privações, produz no povo aquillo a que Camillo Castello Branco chamou com feliz propriedade a sensação nervosa, o soluçado requebro das saudades do Vimioso.
Nas aldeias, especialmente no norte do paiz, a vida dos campos, muito laboriosa e sadia, inspira as canções vivazes, movimentadas, que a viola chuleira acompanha n’um andante batido, repenicado. Só o espirito de imitação, conduzido pelos fidalgos, pelos estudantes e pelos bohemios, principalmente os cegos andantes, tem introduzido o Fado alfacinha nas provincias do norte, que o cantam sem o comprehender, porque as condições de vida são ahi muito differentes.
É tambem por espirito de imitação que o Fado se aristocratisou na guitarra dos marialvas e no piano das salas, como um producto exotico violentamente aclimado, uma planta d’estufa, que parece chorar pelo seu clima nativo—o clima dos bairros infamados e das ruas suspeitas.
É preciso que o marialva viva fóra da sociedade em que nasceu, identificando-se com o povo, como o conde de Vimioso, para comprehender e sentir o Fado; a não ser isto, só o comprehende e sente um bohemio de talento, um poeta torturado como D. José de Almada, de quem Julio Cesar Machado escreveu: «Coisa curiosa: ninguem, a exceptuarmos o conde de Vimioso, cantava o Fado como elle. O Fado é a melancolia.[Pg 28] Por baixo dos seus sorrisos, gracejos e gargalhadas d’elle, havia lagrimas sempre...»
Só um ou outro homem bem nascido, o Vimioso, o Almada, tem conseguido celebrisar-se de guitarra na mão, por condições especiaes da sua existencia; mas todo o homem do povo é capaz de pôr lagrimas na voz para cantar o Fado, porque cada classe, como cada raça, possue uma gamma especial para interpretar as suas paixões, os golpes crueis do seu destino.
Já vimos como ainda antes de estabelecida a denominação de Fados, os viajantes estrangeiros se impressionaram com as canções dolentes, na lettra e na musica, do povo portuguez.
É que sempre temos sido um povo melancolico por effeito das condições da nossa propria existencia e de uma educação tradicional.
Vivemos n’um paiz confrangido entre as montanhas e o mar: as montanhas criam as povoações alpestres e os pastores solitarios; o mar educa os marinheiros pensativos e concentrados, que serenamente jogam a vida contra a furia das tempestades na vastidão immensa das aguas.
Nascemos de um grupo de lusitanos, que tiveram[Pg 29] de soffrer o choque de povos poderosos, de immigrações torrenciaes e, por ultimo, de fazer a guerra contra os mouros, uma guerra de fanatismo, estimulada pelo odio de raça e pelo sentimento religioso, que é a mais cruel e intransigente de todas as guerras.
Depois fomos navegadores em mares desconhecidos e conquistadores em plagas remotas, onde a nostalgia cortava o coração saudoso.
Ouvimos o canto monotono e languido do preto em Africa. De lá parece havermos trazido o lundum, que se coadunou com o nosso genio melancolico, e que tem sido certamente a canção popular mais aproximada do Fado actual. A expressão de Tolentino «o doce londum chorado» dá bem a impressão do Fado choradinho de nossos dias.
O excesso de religião pesou sobre nós com todos os seus terrores inquisitoriaes: o carcere, a tortura, o auto de fé.
Vivemos mais de meio seculo opprimidos pelo jugo castelhano, a que só alguns fidalgos se mostravam affeiçoados por vil cortezanismo.
Soffremos, no principio do seculo XIX, invasões armadas que exigiram um esforço duro para reconquistarmos a liberdade ameaçada.
Tivemos violentas luctas partidarias, que accendiam odios figadaes entre os individuos de uma mesma familia.
Depois da Regeneração, a vida publica tornou-se mais calma, mas os maus processos de administração trouxeram os desiquilibrios orçamentaes, as difficuldades[Pg 30] financeiras, a falta de credito, os embaraços economicos, que dão um mal-estar geral.
Como ultima desgraça, empobrecemos.
E n’isso estamos.
A nossa lingua é triste, exprime melhor a dolencia, o soffrimento moral, do que os pensamentos alegres e vivos.
Falta-lhe o colorido e o gorgeio de outros idiomas neo-latinos: do francez, que é uma lingua de passaros; do italiano, que é uma lingua de musicos. Falta-lhe o vigor varonil do hespanhol, lingua aliás menos harmoniosa do que as outras duas, mas que tem a bravura como compensação.
Orgulhamo-nos de possuir a palavra «saudade», que exprime melhor do que qualquer outro vocabulo das linguas estranhas o doer da ausencia, isto é, um pensamento triste, consolação unica das almas inconsolaveis por effeito de uma separação dolorosa.
Escreveram alguns estrangeiros que somos um povo de namorados.
Este conceito sôa como diagnostico de uma psychose nacional; exprime a nossa sensibilidade doentia excessivamente vibratil. Mas o amor dos portuguezes é sempre uma tortura, nos poetas e nos outros.
D’ahi vem que toda a nossa poesia lyrica é soluçante e dolorida, desde Bernardim Ribeiro e Camões até Soares de Passos e Antonio Nobre; facto que tambem se reconhece nos poetas bohemios como Bocage, que perde o seu tom alegre e esturdio logo que roça pelo lyrismo subjectivo.
O povo pertence á mesma raça dos poetas, vive e[Pg 31] respira no mesmo meio geographico e social e, á parte a educação litteraria, soffre como elles.
Portanto tambem canta como elles, ferindo a nota da tristeza, queixando-se do seu destino.
É ainda mais desgraçado, e por isso é mais triste.
Não é preciso, para explicar o estado permanente da alma nacional, exagerar a influencia arabe, nem filiar n’ella, exclusivamente, a melodia plangente do Fado.
É certo que no Alemtejo o rythmo das canções populares é lento e arrastado, no que pode admittir-se até certo ponto o effeito de uma occupação arabe mais longa do que nas provincias do norte.
Mas esse rythmo não chega a ser choroso e cortante como o dos Fadinhos, nem tem a mesma expressão de melancolia acabrunhada, esmagadora, que distingue o Fado.
Em todo o paiz ha vestigios «dos mouros», como diz o nosso povo. São communs a todas as provincias as lendas das mouras encantadas. No norte, ainda apparecem as janellas de rótulas; no Alemtejo e Algarve os biôcos das mulheres.
Sem embargo, o Fado não está em todas as provincias de Portugal na alma do povo, nem por intuição, nem por tradição. Vai aonde o levam; e algumas povoações menos progressivas, acreditando aliás nas lendas mouriscas, repellem o Fado, preferem-lhe as suas canções locaes,[12] com que foram embaladas[Pg 32] desde a infancia, e que traduzem melhor a tranquilla resignação, a paz saudavel da sua lide agricola.
O baluarte do Fado continua a ser, além de Lisboa, as tabernas dos seus arredores e as do Ribatejo, frequentadas por maltezes, toureiros, cocheiros e almocreves que estão em constante communicação com a capital.
Mas nem ahi mesmo tem entrado na vida dos campos.
A guitarra, o instrumento de melhor apropriação ao Fado, é que nos veio dos arabes; essa sim. É filha do alaude musulmano, e foi naturalmente conservada pelos jograes mouriscos. Alguns estrangeiros chamam-lhe ainda «guitarra mourisca» para a distinguir do instrumento a que dão o nome de—guitarra—e que não é outra cousa senão o violão ou a viola franceza.[13]
Mas não se diga que a guitarra, por via da sua origem, trouxe comsigo a musica arabe, e que a melodia do Fado proveio d’esta dupla origem.
Parece ter sido no seculo XVIII que reviveu entre nós a tradição arabe da guitarra: pelo menos foi em 1796 que Antonio da Silva Leite publicou um methodo, considerado hoje como o primeiro que se imprimiu em Portugal, certamente na espectativa de encontrar mercado favoravel.
Não padece duvida que n’esse seculo a guitarra serviu entre nós para executar «sonatas» e acompanhar[Pg 33] «modinhas», muitas das quaes não glosavam assumptos tristes, nem cantavam a fatalidade amarga do Destino.
Instrumento suave e relativamente perfeito, a guitarra adapta-se com facilidade aos requebros e á ternura das canções galantes e sentidas.
Fez a sua epoca de «sonatas» e «modinhas» e identificou-se depois com o Fado por um conjunto de disposições favoraveis para os soluços do amor, para os gemidos de desventura.
Mas os proprios fadistas, na sua ancia de encontrar um instrumento que exprimisse ainda melhor toda a doçura gemente do Fado, abandonaram algum tempo a guitarra quando appareceu o bandolim.
Tanto elles não tinham a intuição de que o Fado e a guitarra fossem irmãos gemeos.
A guitarra luctou então pela existencia e procurou combater o seu rival bandolim. Alindou-se; tratou de melhorar-se. Mudou a sua afinação, que era de cravelhas e chave, para a elegante chapa-leque; os seus pontos que eram, em algumas, 12 e, em outras, 14, passaram a 17. As cordas tambem de 10 passaram a 12. E foi assim, que vendo em litigio o monopolio do Fado, a guitarra se habilitou a executar trechos de operas, como acontecia nas mãos de João Maria dos Anjos.
A toada do Fado obedece a um padrão, a um typo musical, descripto segundo a technica pelo erudito professor Ernesto Vieira:
«Existe uma grande quantidade de melodias sobre o fado, e a cada momento os cantores populares inventam outras; mas todas vasadas no molde primitivo[Pg 34] que é o seguinte: um periodo de oito compassos em ²⁄₄, dividido em dois membros iguaes e symetricos, de dois desenhos cada um; preferencia do modo menor, embora muitas vezes passe para o maior com a mesma melodia ou com outra; acompanhamento de arpejo em semicolcheias feito unicamente com os accordes da tonica e da dominante, alternados de dois em dois compassos.»
O fadista chama ao simples acompanhamento do canto: Fado corrido.
Mas fora d’este caso, quando não ha cantor, o guitarrista «phantasia muitas variações sobre a mesma melodia», abandona-se á inspiração de momento, borda floreios e ornatos.
Referindo-se em geral ás nossas canções, diz Theophilo Braga: «A pobreza ou simplicidade da Melodia portugueza provém-lhe da falta de melismos, ornatos, floreios estranhos, como acontece com as melodias hespanholas, muito pittorescas, mas cheias de ornatos dos arabes.»[14]
Ora, esta theoria applicada ao Fado, na sua mais pura e inicial expressão, que é o canto (porque as variações são artificios que resultam de motivos primarios) exclue por sua vez a cooperação ornamental dos arabes na melodia do Fado, que é simples, ingenua, corrida.
E tanto assim é que o sr. Theophilo Braga, descrevendo em outros logares o typo do Fado, mostra-o[Pg 35] como sendo «uma longa narrativa, entremeiada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade, com uma forma dolorosa, observação profunda, graça despretenciosa, monotonia de metro e de canto, que infundem pesar quando os sons saem confusos do fundo das espeluncas. O rythmo d’este canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros.»[15]
A monotonia de metro e de canto no Fado, como o douto professor observou, contém-se justamente nos limites de simplicidade de todas as melodias populares portuguezas; vê-se, portanto, que os arabes, que deixaram vestigios de ornato na musica hespanhola, apenas deixariam no rythmo de algumas das nossas canções um tenue vestigio da sua dominação, e que o Fado nasceu independentemente d’essa remota influencia.
Quer-nos parecer que os Fados da actualidade estão mais proximos, na indole como no tempo, dos lunduns africanos do que dos hudas arabes.
[Pg 36]
Impressionado pela singela estructura musical do Fado corrido, notou o professor Rœder, director do Conservatorio de Boston, que nos Fados portuguezes a poesia era mais bella do que a melodia.
Este auctorisado depoimento testemunha ainda em favor da exclusão do elemento arabe no Fado.
Theophilo Braga quiz achar uma explicação do facto apontado pelo professor Rœder, e sustentou que acontecia em Portugal o que se dá entre todos aquelles povos, cuja civilisação assenta no municipalismo: uma efflorescencia de lyrismo pessoal, emotivo, que trasborda da alma para o verso.
Pela nossa parte não remontaremos tão longe, nem tão alto.
O municipalismo trouxe, é certo, uma vida tranquilla, um bem-estar social ás povoações que o acceitaram como regimen administrativo. A organisação municipal no nosso paiz teve o caracter de uma intima aggremiação familial, em que os dirigentes defendiam zelosamente os interesses da communidade, não vacillando, quando era preciso, em bater o pé deante da auctoridade real, ameaçando-a.
Os governados, confiando na vigilancia dos governantes, não tinham que pensar na autonomia e defeza do municipio: podiam entregar-se a si mesmos, dar largas aos seus pensamentos de goso pessoal, expansão ás suas emoções e ideaes mais intimos.
Era, não ha duvida, uma condição favoravel ao desenvolvimento do lyrismo emotivo.
[Pg 37]
Mas o municipalismo está hoje decadente em Portugal pela absorpção tutelar dos governos e pela indifferença do povo. As franquias municipaes teem sido profundamente cerceadas. E comtudo não corresponde a esse facto uma sensivel depressão do instincto poetico do nosso povo, cuja faculdade de improviso se transmitte de geração em geração.
Esta faculdade póde ter explicação na exagerada sensibilidade dos portuguezes, no seu immenso sentimentalismo, que encontra um meio propicio á inspiração nas circumstancias precarias e por vezes dolorosas do paiz.
diz o nosso povo como um axioma de therapeutica prática para curar as doenças da alma.
O Fado abre uma valvula de segurança ao desafogo da escória social, tão abundante em todas as capitaes, especialmente em Lisboa, que é uma cidade indolente e pobre.
Todo o portuguez é poeta. São numerosos os improvisadores em Portugal, até nas classes menos cultas, e especialmente entre ellas.
A lingua parece auxiliar esta predisposição hereditaria, tradicional, não só por ser triste e convidar á cadencia dolente, mas tambem por se adaptar facilmente á metrificação, especialmente á redondilha, que se encontra feita e perfeita em todos os prosadores.
[Pg 38]
Castilho deu-se, com uma paciencia de cégo, ao trabalho de «medir» a prosa de alguns classicos, e achou dentro d’ella a contextura espontanea de varios metros.
Os musicos em Portugal não são tão abundantes como os poetas, o que mostra que se repete uma banalidade, com resaibos mythologicos, quando se diz que a musica é irmã da poesia.
Aprendemos sem esforço as melodias simples e singellas, como as do Fado corrido, porque são como que uma resonancia natural do proprio genio da lingua, uma especie de metrificação musical, parallela á versificação instinctiva do povo.
Mas os bons compositores de musica, tanto nas classes illustradas como nas populares, não avultam pelo numero.
O Fado das ruas, cujo rythmo é facil, muito adaptavel á memoria e ouvido do povo, póde ter escasso merito litterario e artistico, mas tem sempre um alto valor ethnographico: é a historia cantada das classes e dos individuos inferiores.
Não padece duvida que muitos dos nossos Fados populares provéem de pessoas mais instruidas do que o povo; mas são escriptos para elle, que não os assimilará se os não entender.
Por isso grande numero dos nossos Fados mira á observação de phenomenos sociaes quotidianos, de interesses e particularidades de classe, ao retrato e biographia de typos da rua, quanto mais despresiveis mais apreciados pelo povo, que os conhece de perto.
[Pg 39]
Outros Fados, especialmente os politicos, e os que celebram algum acontecimento grave, são uma exploração de momento, um recurso de occasião, que pretende aproveitar a sensação causada no povo tanto pelas tranquibernias dos governos e dos collegios eleitoraes, como pelos factos de importancia occorridos nas classes superiores.
De modo que, póde bem dizer-se, o Fado é em nossos dias um poderoso instrumento de divulgação, que se transmitte facilmente, por meio da imprensa, com uma rapidez electrica.
Sob o ponto de vista da satyra e do epigramma, os Fados substituem os mordentes Pater noster de outr’ora, que não encontravam tão faceis meios de circulação como aquelles que a publicidade moderna proporciona.
Camillo, referindo-se a um Pater noster castelhano, que satyrisava Clemente VII, diz com razão: «É o que hoje chamaríamos o Fado do Papa.»
[Pg 41]
[Pg 42]
[1] A lingua portuguesa, noções de glottologia geral e especial portugueza, por F. Adolpho Coelho.
[2] Historia do theatro portuguez no seculo XVIII, pag. 153.
[3] O sr. visconde de Castilho (Julio) quando, ao descrever uma noite de S. João na quinta da Boa Vista em Carnide, põe Vieira Luzitano, que nasceu em 1699, a arranhar na banza, como outros rapazes, «os accordes lacrimosos e dulcissimos de um fado», dá a esses accordes um nome que se não podia referir á epoca do serão, mas emprega uma designação generica em o nosso tempo, por dar a impressão da indole melancolica que sempre tiveram entre nós as canções populares.
Tomada ao pé da lettra, com relação áquella época, a palavra Fado seria um anachronismo.
[4] «É um canto plangente, estremamente singelo em estylo de fabordão. Pode-se por isso acreditar na sua origem popular; tem pelo menos esse caracter.» Ernesto Vieira, A arte musical, n.ᵒ 79, IV anno.
[5] A ultima nau portugueza, reminiscencias por Theodoro José da Silva, Lisboa, 1891.
[6] O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições, vol. I, pag. 62.
[7] O Povo Portuguez nos seus costumes, crenças e tradições, vol. I, pag. 385.
[8] Pag. 321.
[9] Ainda em 1886 o sr. Borges de Figueiredo escrevia no seu livro Coimbra antiga e moderna: «A viola foi sempre um dos instrumentos mais favoritos dos conimbricenses. Nas serenatas do Mondego e n’outras pelas ruas e suburbios da cidade, reina ella a par da flauta e do violão (viola franceza), já enchendo os ares de suas harmonias, já formando o acompanhamento de graciosos cantares.»
[10] Revista Portugueza, n.ᵒ 6, 1894-95.
[11] No mesmo periodico, n.ᵒ 1.
[12] Os nomes d’estas canções variam, segundo o seu genero, de terra para terra: são cantigas, modas, lôas, reisadas, chulas, trobos, remances (nos Açores, aravias) jacras (xácaras) etc.
[13] Ernesto Vieira, Dicc. Mus.
[14] A Tradição, revista de ethnographia portugueza, IV anno, n.ᵒ 1.
[15] Historia da poesia popular portugueza, pag. 89, e Epopeas da raça mosarabe, pag. 321.
[Pg 43]
O facto de termos encontrado nos Mysterios do Limoeiro a palavra fadista (como termo de calão e por isso graphada em italico) sem que até essa epoca (1849) appareça qualquer vestigio do vocabulo Fado ou Fadinho na accepção de cantiga popular, leva-nos á conjectura de que foi da moderna nomenclatura da classe que derivou o nome da canção, em vez de ser da canção que proviesse o nome á classe.
Entende-se por fadista a pessoa que cumpre um mau destino; seja homem ou mulher, prostituta ou rufião. E aqui ha a notar que o vocabulo fado tomou em calão um sentido exclusivamente pejorativo: Vida do fado, a má vida; moça do fado, a rameira. Umas palavras geram outras: de fado (destino) veio fadista; fadistar, levar vida de fadista; afadistar-se, adquirir ares e modos de fadista; fadistagem, a conectividade da gente de mau fado, a pratica de suas tunantadas e proezas; fadistice, a chibança ou prosápia de fadista; Fado ou Fadinho (e Faduncho, aliás menos vulgar) canção em que os faditas lastimam o seu destino.
[Pg 44]
«O Fado, escreve Palmeirim, é de ordinario a historia veridica e romanesca do homem que de guitarra em punho extasia os ouvintes, narrando-lhes as tribulações da sua vida ou os incidentes e peripécias dos seus amores. O mote, a divisa do fadista é:
De cantar o seu fado veio a dizer-se, por generalisação, «cantar o Fado». E esta palavra tomou a accepção de cantiga de fadistas: como em italiano barcarola é a canção dos barcaiurolos (gondoleiros) e no portuguez—serrana—é a canção dos habitantes das montanhas (serranos).
É claro que em todos os tempos existiram na sociedade portugueza, e nas outras, como escumalha vil da civilisação, os representantes da classe a que hoje se dá o nome collectivo de fadistas.
Os autos de Gil Vicente e do Chiado deixam uma nitida impressão do que era essa despresivel classe no seculo XVI em Portugal.
N’elles apparece a par da boneja (prostituta) o rufião, que a explora; o rascão bebado e desordeiro, ocioso e libertino, trovista e tangedor de taberna; o vaganau, etc.
No seculo XVIII encontramos, segundo a lição de Bluteau, «marotos», ganisaros ou janisaros, etc.
[Pg 45]
Só desde o fim da primeira metade do seculo XIX nos apparece, porém, a designação fadistas, com a de faias,[17] faiantes,[18] bailhões,[19] etc; e a de Fados como nome generico das suas canções.
O Fado, n’esta accepção, é uma palavra adoptada ha meio seculo ou pouco mais.
O Fadista, no seu aspecto moderno, tem surgido aos nossos olhos como um typo social que os escriptores contemporaneos observam e descrevem.
«Chama-se Fadista—diz Theophilo Braga—ao vagabundo nocturno que no meio das suas aventuras modula essas cantigas (Fados); no velho francez, Fatiste significa poeta, e Edelestand Du Meril pretende que esta designação vem do scandinavo fata, vestir, compor.»[20]
Apoiado na chronologia, crêmos, como já exposémos, que não foram as canções que deram o nome aos fadistas; mas que, pelo contrario, d’elles o receberam as canções.
[Pg 46]
Tanto mais que, entre nós, a palavra fadista não tem a significação restricta de tangedor e cantor ou poeta de Fados, mas é commum a todos os individuos que vivem no mesmo meio de depravação e libertinagem, sejam de um ou de outro sexo.
E n’esta accepção generica parece tel-a já empregado o padre Rabecão em 1849, porque o seu fadista da taberna da Madragôa bebe e não canta.
A evidencia do typo—fadista,—de que Lisboa é alfòbre copioso, tem-se imposto, repetimos, á observação dos bellos-espiritos da litteratura moderna, alguns dos quaes, e dos mais brilhantes, o retrataram com uma fidelidade flagrante, como vamos vêr.
Ramalho Ortigão, nas Farpas, lança uma affirmação demasiado absoluta quando diz: «Em cidade alguma da Europa existe uma palavra de significação analoga a esta—o fadista.»
É claro que o typo humano não apresenta o mesmo aspecto em todas as raças e nações. O clima e a civilisação modificam-n’o, alteram-n’o. Mas ha um fundo cosmopolita, de equivalencia social, que supprime as distancias e as fronteiras.
Assim, pelo que respeita á escoria da sociedade, existe em Hespanha o chulo, e em França o souteneur, que correspondem ao nosso rufião.
Todos elles vivem á custa de mulheres perdidas, cantando e bebendo nas tabernas e nos bordeis, como os fadistas portuguezes.
Em Roma ha os camorristi, gente de «mala vita», que dão uma facada por gosto, e vivem na devassidão,[Pg 47] como os bailhões e faias da fadistagem de Lisboa.
Em Napoles o lazarone, representando a ultima classe do povo, é um inutil perigoso como o nosso fadista.
Fóra da Europa, no Brazil, existe o capoeira.
Em toda a parte a sociedade tem a sua bôrra immunda, e uma palavra, ou mais de uma palavra, para definil-a.
Precisamos, pois, investigar qual seria o pensamento de Ramalho Ortigão, que não desconhece todos estes factos, ao escrever aquella phrase, em que parece conter-se uma affirmação gratuita por demasiadamente extensiva.
Quereria, provavelmente, dizer que, apesar do povo ser em toda a parte fatalista, em nenhuma outra lingua ha uma palavra que lance unicamente á fatalidade do destino a responsabilidade dos actos praticados pela ultima classe social.
O illustre escriptor lembra que o fadista moderno continua os espadachins populares que, no seculo XVIII, suciavam com os fidalgos em arruaças e espancamentos nocturnos.
Depois fixa o perfil do fadista, a seguros traços, dizendo:
«O fadista não trabalha nem possue capitaes que representem uma accumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração do seu proximo. Faz-se sustentar de ordinario por uma mulher publica, que elle espanca systematicamente. Não tem domicilio[Pg 48] certo. Habita successivamente na taberna, na batota, no chinquilho, no bordel ou na esquadra da policia. Está inteiramente atrophiado pela ociosidade, pelas noitadas, pelo abuso do tabaco e do alcool. É um anemico, um cobarde e um estupido. Tem tosse e tem febre; o seu peito é concavo, os braços são frageis, as pernas cambadas; as mãos, finas e pallidas como as das mulheres, suadas, com as unhas crescidas, de vadio; os dedos queimados e ennegrecidos pelo cigarro; a cabelleira fétida, enfarinhada de poeira e de caspa, reluzente de banha. A ferramenta do seu officio consta de uma guitarra e de um Santo Christo, que assim chamam technicamente a grande navalha de ponta e triplice calço na mola. É habitado por uma molestia secreta e por varios parasitas da epiderme. Um homem de constituição normal desconjuntar-lhe-hia o esqueleto, arrombal-o-hia com um sôco. Elle sente isso e é traiçoeiro pelo instincto de inferioridade. Não ataca de frente como o espadachim ou o pugilista, investe obliquamente, tergiversando, fugindo com o corpo, fazendo fintas com uma agilidade proveniente do seu unico exercicio muscular—as escovinhas. Não ha senão uma defeza para o modo como elle aggride: o tiro ou a bengala, quando esta seja manejada por um jogador estremamente destro. A guitarra debaixo do braço substitue n’elle a espada á cinta, por meio da qual se acamaradavam com a nobreza os pimpões seus ascendentes do seculo XVII. É pela prenda de guitarrista que elle entra de gôrra com os fidalgos, acompanhando-os ainda hoje nas feiras, nas touradas da[Pg 49] Alhandra e da Aldea Gallega, e uma ou outra vez nas ceias da Mouraria, onde depois da meia noite se vai comer o prato de desfeita, acepipe composto de bacalhau e grão de bico polvilhado de vermelho por uma camada de colorau picante.»
Em seguida pormenorisa o traje tradicional do fadista: «a bota fina de tacão apiorrado ou o salto de prateleira, a calça estrangulada no joelho e apolainada até o bico do pé, a cinta, a jaleca de astrakan e o chapeu arremessado para a nuca pelo dedo pollegar, com o gesto classico do grande estylo canalha.»
Apenas lhe esqueceu um complemento da toilette: o penteado, as melenas cuidadosamente lisas e repuxadas sobre as orelhas.
Descreve-o, finalmente, cantando o Fado:
«A guitarra, seu instrumento de industria e de amor, dedilha-a elle com um desfastio impávido, deixando pender o cigarro do canto do beiço pegajoso, gretado e descahido; com um olho fechado ao fumo do tabaco e o outro aberto mas apagado, dormente, perdido no vago em uma contemplação imbecil; o tronco do corpo cahido mollemente para cima do quadril; a perna encurvada com o bico do pé para fóra; o cachucho da amante reluzindo na mão pallida e suja. Tambem canta algumas vezes, apoiando a mão na ilharga, suspendendo o cigarro nos dedos, de cabeça alta, esticando as cordoveias do pescoço e entoando a melopéa dos fados, em que se descrevem crimes, toiradas, amores obscenos e devoções religiosas á Virgem Maria, com uma voz soluçada, quebrada na larynge, acompanhada[Pg 50] da expressão physionomica de uma sentimentalidade de enxovia, pelintra e miseravel.»
Uma exuberante tatuagem é um dos caracteristicos do corpo do fadista; ás vezes, não só exuberante, mas tambem muito complicada de figurações caprichosas, algumas das quaes, como o signosamão, cuja interpretação ethnographica está por fazer, livram, segundo a superstição tradicional, de maus olhados e de espiritos ruins.
Na vida do fado este facto é commum tanto ao homem como á mulher.
O rufião tatúa a amante, pacientemente, como se estivesse produzindo, com ternura e enthusiasmo, uma obra de arte; ou se tatúa a si mesmo ou se deixa tatuar pelos seus pares.
Luiz Augusto Palmeirim tambem descreveu o fadista.
Nota que não tem familia, é engeitado da Santa Casa, para assim ir ao encontro da predestinação, do mau fado, que vem do berço, e com que o fadista pretende desculpar toda a sua existencia de vicio e torpeza.
Mas ha muitos que teem familia, paes conhecidos, e que são levados á fadistagem por uma espontanea tendencia de baixos instinctos, pela companhia e convivencia de faias, pela desmoralisação do Limoeiro onde foram uma primeira vez expiar qualquer rapaziada leve; ou ainda pela suggestão nociva do bairro em que nasceram e moram.
A Bisnaga escolastica, «colhida do Campo da Cotovia[Pg 51] pelo lavrador do Palito Metrico», conta as brigas e contendas travadas entre os rapazes do Bairro Alto e os de Alfama, a murro e calhau.
Estes dois bairros, antigas escolas de fadistagem, habilitavam, assim, praticamente, desde a infancia, os continuadores das suas tradicionaes escarapelas e zaragatas, ainda hoje não extinctas completamente.
Alfama e o Bairro Alto vem, pois, educando por suggestão local os fadistas do futuro.
Pato Moniz, na Agostinheida, querendo mostrar que o padre José Agostinho de Macedo arranchava com faias e bailhões, recebendo d’elles apoio, tambem se refere a essas pugnas, ás vezes cruentas, que preparavam cidadãos para a vida do fado:
Pato Moniz illustra o texto com a seguinte nota: «Bem sabida, e bem fallada foi em Lisboa a guerra da rapazia no sitio da Penha de França; e muito mais depois que n’ella entraram o General Luneta (Dom Th. d’A., cujo rival no generalato era um façanhoso Pretalhão)[27] e alguns outros, que, posto serem geralmente havidos em ruim conta, nunca se esperou que chegassem a tanto.»
Vê-se mais uma vez que no principio do seculo XIX ainda não eram correntes as palavras fadista e fadistagem. A 1.ª edição da Agostinheida é de 1817. Pato Moniz usa todas as expressões que podem pintar a[Pg 53] escumalha social: çáfia cambada, gingantes campeões afragatados, relé mais pifia, flor da pangayada, etc. só lhe faltava ainda a palavra fadistagem. Se já então pudesse dispôr do vocabulo—fadistão, com certeza o haveria atrambolhado ao padre José Agostinho, que alguma coisa teve de isso, em verdade.
Casos ha em que os fadistas provéem de pais honestos, de familias decentes e remediadas, e até, facto que já foi mais vulgar do que hoje,—porque as raças nobres tendem a extinguir-se,—tem havido fadistas descendentes de familias illustres.
Estes, eram jovens fidalgos que viviam com picadores e cocheiros, toureiros, arruaceiros e espadachins.
D. Affonso VI, quando infante, e D. Francisco, irmão de D. João V, viveram com a ralé que hoje se chama fadistagem.
D. Miguel de Bragança foi creado no mesmo teor de vida; mas depois, no exilio, regenerou-se completamente.
Outros fidalgos houve, porém, que menos felizes chegaram até á facada, ao homicidio, e tiveram de ir cumprir no ultramar uma pena infamante.
Para ser fadista é necessario um longo tirocinio: aprender a tocar guitarra e cantar o Fado, a fazer «escovinhas», riscar, a esconder a navalha na manga da jaleca, a puxar as melenas, a enfiar as calças esticadas, e a fallar o calão.
Vemos ás vezes rapazes do povo trabalhando em qualquer officio, mas já vestidos de fadistas: andam na aprendizagem, por vocação e por gosto.
[Pg 54]
Não esperam senão a monção favoravel que os ha de levar definitivamente para a vida do fado.
Essa monção é qualquer acontecimento de familia—a morte do pai, da mãe ou de algum outro parente que ainda lhes impunha certo respeito.
Partido esse laço, adeus trabalho, adeus honra, adeus dignidade e consciencia.
Até o seu appellido perderão: hão de passar a ser conhecidos por um alcunha.
Ha só um caso em que o noviço do fado ainda pode salvar-se: é se não conseguiu livrar-se, por debilidade physica, de sentar praça no exercito.
Palmeirim nota com razão: «O fadista, feito soldado, deixa de ser homem, é um automato! Os artigos da guerra arrefecem-lhe a inspiração, entibiam-lhe o enthusiasmo pela poesia, sua irmã de infortunio.»
Mas isso não acontece sempre, não é regra geral, porque muitas vezes o iniciado na fadistagem, depois de ter sentado praça no exercito ou na armada, conserva os seus amores nos bordeis, frequenta os bairros e botequins suspeitos, arma desordens com a policia e com os soldados da guarda municipal, e chega o ser um heroe... da Mouraria.
O marinheiro é muito mais fadista do que o soldado: talvez por que a guitarra de bordo seja o traço de união que o põe em constante communicação espiritual com os outros fadistas.
Nos mares da India ou da China o Fado, tangido por elle ao luar, no convés do navio, lembra-lhe Lisboa,[Pg 55] a Mouraria e Alfama; lembra-lhe a sua terra, se é saloio ou se é natural do Ribatejo.
O fadista saloio, diga-se de passagem, tambem tem tanto «caracter de classe», que se conhece pela apparencia: a carapuça ou o chapeu desabado, a melena repuxada, a calça de bocca de sino, o ar gingão e canalha.
Traz na carroça a guitarra e toca o Fado nas tabernas da estrada: ás vezes combina, com os maltezes, fazer um crime, assaltar um casal solitario e matar os donos.
Ainda outro escriptor portuguez descreveu o fadista: é Julio de Castilho no 1.º volume da sua Lisboa antiga.
«Deixal-o lá (o Fadista) sentado na borda do mocho da taberna, arranhar na banza truanesca os amores do conde de Vimioso, mais os seus; deixal-o ir saracotear-se na espera dos toiros, todo chibante com a sua calça de bocca de sino, e a sua jaleca de alamares; deixal-o ir para as hortas ao domingo, deleitar, com os chistes ambiguos do ultimo fadinho corrido, os bulhentos freguezes da Perna de Pau e do Alto do Pina.
«Estou-o a ver encostado a uma ombreira, de chapeu para traz e mãos cruzadas nas costas, com os olhos piscos do fumo azul de um cigarrito engelhado, que de quando em quando lhe pende ao canto da bocca, exprimir no rosto encorreado, na fronte baixa e estreita, na nuca de cão de agua, e na melena recurva, que elle enxota com as costas da mão, todos os segredos ignobeis dos antros que lhe são theatro. A sua voz avinhada e rouquenha come umas palavras,[Pg 56] e estropia outras, ao prantear a morte da Severa, n’um tom silvestre de acre melancolia indescriptivel.
«O fadista do Bairro Alto é o marialva do rés do chão da sociedade, escória das tendencias elegantes de uma cidade grande, producto bastardo da ociosidade e do vicio. É o triste frequentador da galeria das causas crimes; e muita vez o pobre Othello obscuro da parte de policia. O fadista é um aleijão nos costumes; tarde lhe chegará a sua vez de regeneração, lôbrego vadio inconsciente, a quem o Limoeiro fascina, com o magnetismo escancarado de um sapo collossal.»
O fadista tem, nos seus bairros, botequins e tabernas especiaes, que frequenta todos os dias ou todas as noites: ahi se discutem os assumptos da classe, rixas, amores, ciumes, crimes da vespera ou do dia seguinte...
Fialho d’Almeida, nos Gatos,[28] coloriu com duas pinceladas intensamente descriptivas um botequim da Carreirinha do Soccorro:
«Ás oito horas, no corredor estreito e comprido que é a sala do botequim de fadistas que lhes disse, todo occupado com duas filas de mesas onde os freguezes abancam, sentados em mochos de pau, para saborear a pequenos goles, uma cerveja que parece feita d’ourina albuminurica, ou qualquer chavena d’esse café negro e pegajoso que a Mouraria designa pelo pittoresco nome de carócha; ás oito horas não ha no[Pg 57] botequim um unico logar, devoluto. Por um rótula de dois porticos, ao fundo, intercalada de prateleiras de garrafas, d’onde se franjam, por transparencia, fogos de rubis de creme rosa d’aguardente de ginjas, esmeraldas de Kermann, grandes topasios de licor de canella e tangerina, pousa o busto do cafézeiro, em camisola, um gordanchudo, barbaceno e alvar, que trata a freguezia por gajos, e coça as piugas nos entreactos da confecção dos capilés. De roda, outros gallegos ajudam, indo do fogão para o balde das lavagens, da gaveta das colhéres para os trés-fonds da baiuca, d’onde nos intervalhos de silencio vem um guinchar d’enormes ratazanas. Nas paredes, quadrinhos de mulheres offerecendo os seios á sucção de quem nas observa—bicos de gaz flambando sob tulipas de loiça pendentes do taboado; e por entre as filas de bancos onde mal cabe a perna do moço que faz o serviço, atravessa de quando em quando uma especie de rodeuse da rua Suja, chuchada, vestida de branco, com tamancos nos pés e lesmas de cabello ruivo sob a testa.»
A pintura é fiel, palpitante de realidade, e o scenario dos botequins fadistas não muda essencialmente de bairro para bairro.
O publico dá-lhes o nome de botequins de lepes; em calão, lepes quer dizer dez réis. Esta designação exprime a miseria dos habitués, e está um pouco antiquada, porque hoje a despesa a fazer n’aquelles botequins excede a de outros tempos. Todos elles ou quasi todos elles teem piano e pianista, que exige uma diaria certa; e as camareras, que servem as bebidas,[Pg 58] vão arteiramente induzindo os freguezes a maiores gastos.
De todos os botequins fadistas da actualidade o mais amplo é o do Veiga no largo Silva e Albuquerque, onde aliás ha outro, o do Peres, afamado pela ginjinha; na rua d’aquelle mesmo nome o botequim do Ramalho tem uma roda abundante de habitués da Mouraria.
No Bairro Alto o botequim da rua da Atalaya, n.ᵒ 100; em Alcantara, o da Praça d’Armas, n.ᵒ 5; em Alfama o da Rosa Maria são os de maior nomeada na fadistagem hodierna de Lisboa.
Nas tabernas, onde as iscas vieram desthronar a chanfana, tão decantada no seculo XVIII por Tolentino e pelo Lobo da Madragôa, tambem o fadista tem preferencias especiaes, segundo os bairros.
Em Alcantara, na rua do Livramento, a taberna do Otero é conhecida pelo «armazém da meia noite», designação popular que por si mesma dá ideia de um coio de fadistas noctivagos.
Na rua da Guia a taberna do Manuel do Jogo, na rua da Amendoeira a taberna do Cego, no largo do Limoeiro a taberna do Pateo do Carrasco, e na rua de S. Miguel a taberna do Batalha são fócos vulcanicos da vida airada, onde o cheiro das frituras, do tabaco e do vinho condensam uma atmosphera crassa, capaz de congestionar um Hercules.
Tanto aos botequins como ás tabernas se liga a tradição do Fado no piano, na guitarra ou na voz soluçante dos «filhos da Desgraça», elles a ellas.
[Pg 59]
O fadista do Bairro Alto dir-vos-ha, se fôr consultado, que a guitarra de Alda Gracinda, rameira da rua do Diario de Noticias, vale um thesouro quando ella lhe põe as mãos.
Um dos primeiros cantadores do Fado, segundo a chronologia e a fama, foi José Norberto, o saloio de Campolide. Em 1848 teria uns 50 annos de idade. Era sympathico: boa cara, physionomia desanuveada.
Bulhão Pato conserva de memoria algumas glosas que lhe ouviu, e que são muito caracteristicas da vida tradicional dos Fadistas n’aquella epoca e... ainda hoje.
Banzara é uma paragoge do calão—banza—synonymo de guitarra.
O bom cantador do Fado requebra a voz com «sentimentalidade canalha» e com a «intermissão de uns oras e de uns ais mui langorosos, o zing fadista de cervejarias e botequins de lacaios.»[29]
Curvado sobre a guitarra, como para ouvir melhor a voz d’esse instrumento querido e suave, que parece dizer-lhe confidencias, ergue de quando em quando a cabeça e põe os olhos no alto, acompanhando assim as notas agudas que parece fugirem da terra para as regiões do sonho...
É um enlevo, um extasi, como podem sentil-o as almas que vegetam no lôdo da crápula; é a «sentimentalidade canalha», de que falla Camillo; a poesia da devassidão; é a mariposa que roçou no monturo e adeja para seccar as azas no ar e na luz do espaço infinito.
[Pg 61]
Outro eximio cantador do Fado foi o Pitalcante, filho do famoso jogador de pau que se chamou José Maria Saloio.[30].
Presava-se de saber musica, pois estudára no Conservatorio. Chegou a ser um Orpheu popular. Encantava as patrulhas com os seus descantes, a ponto de algumas vezes o não prenderem ou de o soltarem depois de preso.
Foi verdadeiramente uma celebridade no seu genero, fazendo pendant no sexo masculino á Severa, que foi a mais insigne cantadora do Fado e que, por este e outros motivos, terá capitulo especial.
Bulhão Pato esteve para levar o Pitalcante a Alexandre Herculano, quando o grande historiador já residia em Val-de-Lobos.
A tysica, fim vulgar nos fadistas e nos bohemios, cujos excessos os consomem rapidamente, foi a doença que victimou o Pitalcante.
Devemos agora fallar do Salles Patuscão.
Era, como quasi todos os fadistas de um e outro sexo, enthusiasta pela tauromachia, grande aficionado.
Tomou parte n’uma tourada de fidalgos, que se realisou na praça do Campo de Sant’Anna, a 28 de agosto de 1859.
N’esta corrida foi cavalleiro o conde de Vimioso, então maior de quarenta annos.
[Pg 62]
Salles era «moço de forcado»; e muito da intimidade do Vimioso.
Alto, moreno, bexigoso; pulso rijo: um valentão.
Diga-se desde já que foi elle o auctor do Fado da Severa, quando ella falleceu:
Não obstante a sua corpulencia e robustez, o Salles Patuscão morreu tysico, como Pitalcante.
O Sousa Casacão (ainda hoje muito lembrado na tradição popular) teve notoriedade como cantador do Fado, e conservou essa evidencia até depois de 1870.
Um dos seus Fados predilectos fôra-o tambem da Severa; é o que principia dizendo:
De 1860 a 1880 figuraram como cantadores do Fado:[Pg 63] José Borrègo, José Petiz, José Maria Enguia, José Carlos, Saldanha da Porcalhota, José Maior, José Montaurino, Caetano, o Calcinhas, João Campanudo, José Bento d’Oliveira, Patusquinho, etc.
Tambem, continuando as tradições fadistas da Severa, se tornaram notaveis: Maria Cezaria (a quem foi dedicado um Fado pelo guitarrista Ambrosio Fernandes Maia), Luiza Cigana e Maria Paus.
Como guitarristas adquiriram renome, além de Ambrosio Fernandes Maia, Antonio Candido, o Visinho; Thomaz dos Santos, o Thomaz do Bairro Alto; Antonio Casaca, Manuel Casaca e José Casaca; José Gualdino, João da Preta, Augusto Trajano o Palhetas e João Maria dos Anjos.
Tanto o Anjos como Ambrosio Fernandes Maia publicaram methodos de guitarra: o do 1.º foi editado pela livraria Pereira; e o do 2.º pelo proprio auctor.
O Maia ainda vive e d’elle, por interposta pessoa, colhi interessantes informações, sendo uma d’ellas que o Fado mais antigo que conhece é o do Marinheiro.[32]
Por isso o reproduzimos n’este livro.
[Pg 64]
Conheci, e ouvi muitas vezes, o João Maria dos Anjos.
Era eximio no Fado; sem embargo, gostava de tocar, em concertos publicos, peças de maior responsabilidade artistica, como trechos de opera, etc.
Uma d’essas composições era a Marcha funebre de Luiz XVI; de difficil execução.
Sempre lhe manifestei opinião contraria a esta aristocratisação artistica da guitarra; elle respondia-me:
—É para mostrar que a guitarra pode dar tudo.
Mas na praia da Ericeira (aonde elle ia todos os annos dar um concerto) era encantador ouvil-o, por noites de luar, nas Ribas e nas Furnas, variar prodigiosamente o Fado.
Diz a seu respeito o professor Vieira no Dicc. biog. dos musicos portuguezes: «Entre varias pessoas distinctas que o apreciavam como excellente tocador do instrumento nacional, conta-se a sr.ᵃ duqueza de Palmella, que algumas vezes o mandou chamar para abrilhantar as suas reuniões mais intimas.»
Tambem uma vez foi ao Paço no reinado de el-rei D. Luiz.
[Pg 65]
João Maria dos Anjos deixou um filho, que sentou praça no exercito ultramarino.
Ainda ha pouco, vindo á metropole, me procurou.
O Anjos foi um guitarrista da epoca em que o Fado entrou nas salas; e em que a guitarra passou da mão do povo para a das damas illustres.
Diz-se que concorreu muito para esta ascensão nobilitante sua magestade a rainha D. Maria Pia, encantada com a melodia simples e doce, que constitue o fundo nacional dos nossos Fados.
Manuel Roussado (hoje barão do seu appellido) explorou no theatro a corrente aristocratica do Fado, escrevendo a comedia Ditoso Fado, que fez carreira na Trindade, representada por Taborda e Rosa Damasceno.[33]
O assumpto da comedia é simples: Violante e o Doutor Saraiva, pessoas de boa sociedade, descobrem, momentos antes do seu casamento, que são ambos doidos pelo Fado, e essa harmonia de pensamentos completa a felicidade das suas almas.
Julio Cesar Machado refere-se á epoca da aristocratisação do Fado lamentando-a como adaptação violenta e desnaturada.
[Pg 66]
«O fado é talvez filho bastardo do landum,[34] mas é mais bonito que elle: os filhos bastardos, não se sabe por que, são quasi sempre mais bonitos que os legitimos: este foi mais adiante, e logrou ser mais formoso que o pai. O vagabundo nocturno assenhoreou-se d’elle durante muito tempo; chegou a pensar que era preciso ter desenhos emblematicos na mão, gravados com tinta e polvora, caracoes sobre a orelha e uma morte ás costas para se poder entender bem a poesia d’essa musica, que significa a tristeza das desgraças, amores que hajam tido por capella o Aljube e o Limoeiro, o ciume da faca de ponta, o amargar ventura entre grades, as saudades da patria, o suspirar do degradado...
«Isso não impediu que em todo o tempo um ou outro fidalgo tenha querido dar-se a estudar os segredos d’aquella musica tão vaga, que pede a maior parte do seu encanto ao sentimento do tocador e á doçura plangente dos descantes: citam-se o marquez de F.[35], o conde de V.[36]; ultimamente, uns poucos de mancebos, grandemente amadores d’essa musica, e prendados com os dotes mais requeridos para tirarem d’ella effeitos admiraveis, reunem-se ás noites n’alguma quinta dos suburbios da cidade, e não seria facil[Pg 67] dizer-se com que inspiração ardente, n’aquelle campo, á luz das estrellas, suspiram as vozes dos cantadores e as cordas maviosas das suas guitarras, poetica, melancolicamente, como raios da lua por entre uma chuva de lagrimas.
«Mas, desde que os fidalgos e os janotas gostam de ser fadistas, estão os fadistas a querer parecer janotas e fidalgos, e não se pode contar com elles; saiem-se já de casaca, em grande seriedade de virtuoses, a dar concertos no Casino e no Circo, e o mais que se alcança d’elles é contarem-nos a vida de Salomão e de David...
«Uma massada!»[37]
Effectivamente, no Casino do largo da Abegoaria, chegou a haver concertos publicos em que se ouvia o Fado, com grande aprazimento do auditorio fidalgo, cantado por algumas coristas dos theatros da capital.
O empresario d’estes concertos está ainda vivo e são: era Ernesto Desforges.
Quando elle tratou de arrendar o Casino, perguntou-lhe o velho Figueira:
—Para que é?
Desforges respondeu com lealdade:
—Para dar concertos de guitarra.
Figueira replicou-lhe:
[Pg 68]
—Isso é um instrumento que se ouve de graça em todas as ruas. Ninguem vai pagar para o ouvir.
Enganou-se. Os concertos, sob a direcção de João Maria dos Anjos, tiveram um grande exito. No primeiro tocaram apenas 12 guitarristas; no ultimo eram já 50.
Depois um allemão de appellido Gruder, que mais tarde figurou como lithographo n’um processo de notas falsas, tambem foi explorar o Fado e a guitarra para o Gymnasio.
A generalisação do Fado explica a apparição de publicações, que lhe diziam respeito, e tinham grande voga.
Publicaram-se:
A guitarra, de Souto Maior Judice.
A Lyra do Fado, de Manuel Antonio da Luz, que foi morrer a Rilhafolles.
O Piano e a Guitarra, de Ernesto Cesar dos Santos, que a tuberculose victimou aos 20 annos de idade.
O Fado Liró e o Fado do Marinheiro, collaborados por Luiz F. da Costa Soromenho (já fallecido), Patricio José de Mattos, a quem uma paralysia atormentou os ultimos annos de existencia, e F. Napoleão da Victoria, que tem hoje uma loja de livros (principalmente theatro) na travessa de S. Domingos.
O Fado Universal, A Lyra do Fadinho, a Lyra do Cantador (todos de 1878) collaborados por Domingos Fernandes (Salazar Guerreiro), fallecido; Patricio José de Mattos, A. Feliciano Corrêa, tambem fallecidos; J. Rodrigues Chaves (actor, ainda vivo), Ernesto Cesar[Pg 69] dos Santos, J. Cordeiro (fallecido) e F. Napoleão da Victoria.
O Pianinho,[38] principalmente redigido pelo sr. José Ignacio de Araujo, que ainda floresce com distincção em todos os generos de poesia popular, apesar da sua idade avançada.
O Cantador Popular e o Fado Novo, collaborados por P. J. Mattos, A. F. Corrêa, Xavier de Paiva; o Vianna que foi collaborador do Pimpão (Antonio Vigas), já fallecidos; e F. Napoleão da Victoria.
Fado Chic, Fado Maritimo, Fado dos Jesuitas, glosas de diversos, limadas por F. Corrêa.
O Fado Politico, em que se apreciava a marcha dos partidos.
Ignoro quem fossem os collaboradores.
O Fado exdruxulo, para piano e guitarra, de Salazar Guerreiro.
Cantigas do Fado, de Luiz de Araujo.
Apenas vi a 3.ª edição, que é de 1881.
Outra collecção editada por Casimiro Baptista.
Appareceram alguns Fados licenciosos, que a policia apprehendeu.
N’este genero tem-se publicado a Guitarrinha innocente (innocente por antiphrase, é claro) e o Almanach do Fado brejeiro, Fado da Padralhada, etc.
Dá perfeita ideia do gosto com que o Fado se ia[Pg 70] generalisando, o seguinte mote publicado em um dos folhetos que deixamos mencionados:
Começaram a apparecer almanachs de cantigas do Fado, para acompanhar e satisfazer o gosto publico:
Almanach do Cantador (1871). Editor, Verol Junior.
Almanach do bom fadista (1875), de Joaquim José de Mattos, já fallecido.
Almanach dos bons Fadinhos. Editor, Verol Junior, Está publicado o de 1902.
Almanach dos cantadores. Editor, F. Silva, rua de Santo Antão. No 6.º anno.
Almanach dos fados das salas. Editor, o mesmo F. Silva.
Quasi todos os almanachs populares, para obter maior acceitação, não deixam de conter alguns Fados.
O da Terra e mar, para o anno de 1902, insere, por exemplo, o Fadinho da cerração do mar e o das Duas fragatas.
Tambem o sr. Verol Junior iniciou o Almanach da Severa, a que mais de espaço nos referiremos.
Os fadistas classificam os Fados segundo os assumptos que n’elles são tratados.
Assim dizem:
[Pg 71]
Fados á terra (assumptos terrestres).
Fados ao mar (assumptos maritimos).
Fados á campa[39] (assumptos funebres).
Fados á Escriptura (assumptos biblicos).
Tambem pertencem ao genero Fados as «Cantigas a atirar», ou de provocação e despique.
Conheço uma publicação exclusivamente dedicada a esta especie de Fados. Intitula-se Cantigas a atirar, Fadinhos para quem fôr pimpão. Por um fadista de pé leve. Lisboa, Typographia Luso-Britannica, 1873.
E conheço muitas outras cantigas da mesma especie espalhadas pelos diversos almanachs de Fados.
Exemplo de «cantiga a atirar»:
Outro:
Nas provincias do norte tambem ha certamens poeticos entre a gente do povo, especialmente no Minho. É o que lá chamam «cantar ao desafio.» E nas provincias do sul, fóra da classe dos fadistas, diz-se—cantar á desgarrada. Mas em Lisboa e seus arredores resalta uma profunda differença entre as «cantigas a atirar» e os duellos a verso das outras classes, tanto do norte como do sul.
Começa a avultar a differença na propria designação: a atirar.
Esta expressão dá logo ideia de uma classe bulhenta e desordeira, que deseja «ferir» o adversario, em vez de o vencer apenas.
Nos «desafios» e nas «desgarradas» usa-se geralmente a quadra; nas «cantigas a atirar», a décima.
É a influencia da fórma estrophica do Fado com seu mote e suas glosas.
A disputa assenta sobre a competencia ou incompetencia para cantar Fadinhos; póde o adversario ser um rouxinol, mas se não entrar bem no rythmo do Fado, é peior do que um cão a ladrar, na opinião dos fadistas seus pares.
Toda a pimponice do fadista se arreganha nas «cantigas a atirar.»
[Pg 75]
A si mesmo se exalta, elle, na recordação das suas grandes «zaragatas» em Alfama e Mouraria:
Desvanece-se de afugentar os janotas e de «resistir á policia»:
É a prosapia do «bailhão,» o mais desordeiro e implicante dos fadistas; como quem diz a «quinta essencia» da classe.
Tem seus Fados especiaes, o «bailhão». Celebra-se a si mesmo; canta a sua Odyssea.
Ha familias, dynastias de bailhões, que se fazem temer: dizem-no estas glosas, que são paginas de auto-biographia:
E, quanto ás proprias proezas, continuando as tradições de familia:
Quando o bailhão, nas «cantigas a atirar», arremessa para a nuca o barrete preto, que no trajo da classe toma a alternativa do chapéu de aba direita, é[Pg 77] tremer d’elle: está disposto a ir passar uma temporada ao Limoeiro:
É o caminho da cadeia ou do degredo.
As «cantigas a atirar» não se confundem, pois, nem pelo texto, nem pela forma, com os «desafios» do norte e com as «desgarradas» do sul.
São o proprio Fado n’uma intenção provocante, de «zaragata» e de facada.
[16] Galeria de figuras portuguezas, pag. 112.
[17] Uma vaga tradição alfacinha diz que o fadista se deu por orgulho de classe a designação de faia, medindo-se, vaidosamente, com o aprumo e elegancia da arvore d’este nome.
[18] De faia.
[19] Bailarim, por comparação. O que pula jogando a navalha, risca, faz escovinhas, bate o Fado, etc.
[20] Epopeas da raça mosarabe, pag. 321.
[21] Antigos bandidos dos Pyrenéos.
[22] Allusão á Bisnaga escolastica.
[23] A Penha de França, segundo a Agostinheida; a Cotovia, segundo a Bisnaga. Em ambas estas eminencias, tanto ao oriente como ao poente da cidade, se feriam as batalhas garotaes. A Penha era reducto para os garotos de Alfama; e a Cotovia para os do Bairro Alto.
[24] Corpos pesados, ordinariamente pedra ou ferro, que os pescadores empregam para fundear os seus barcos.
[25] Sáfea, segundo a graphia de Gil Vicente. Reles, despresivel.
[26] Rancho de rapazes inuteis; vadios.
[27] N’outra publicação contra o padre José Agostinho, diz Pato Moniz, mais claramente, que o General Luneta era D. Thomaz de Almeida, e que o general do exercito opposto era «um preto caiandeiro.»
[28] N.º 2. 1889.
[29] Camillo, no Eusebio Macario.
[30] L. A. Palmeirim, Os excentricos do meu tempo, pag. 263.
[31] Esta decima, tendo por assignatura trez XXX, appareceu publicada no Almanach de lembranças para 1861.
[32] São fornecidas pelo Maia as seguintes relações, aliás um pouco baralhadas chronologicamente, de cultores do Fado.
Tocadores mais celebres:
Palmella, Maggyoli, José Vinagre, Thomaz do Bairro Alto, Francisco d’Alcochete, Antonio dos Fosforos, Constantino Marceneiro, Antonio, Manuel e José Casaca, João Maria dos Anjos, Paulo Pereira, Luiz Petrolino, Thomaz Ribeiro, Robles, Reynaldo Varella, Alberto Lima, Julio Silva Carvalhinho, Chico Padeiro, Carmo Dias, Julio Silva (Ourives), João da Preta, Palhetas. (Não deve esquecer o proprio Maia.)
Cantadores mais celebres: José Maior, Saldanha, José Carlos, José Borrêgo, José Petiz, Calcinhas, Pae Antonio, Patusquinho, Campanudo, Damas, José Maria Artilheiro, Sapateirinho, Batata d’Adiça, João da Matta, Isidoro Pataquinho, Serrano da Graça, Manuel Serpa, Russo do Chafariz, Manuel da Motta, Jorge Caldeireiro, Eduardo, Brazileiro, Manuel Serpa, Rosa Sapateiro, Carlos Arintho, Sepulveda, José Carlos, Zé Um, Luiz Palhinhas, José Cecilio, Chico Plainudo, Chico Torneiro, Ginguinha.
Antigos fabricantes de guitarras: mestre Jeronymo, largo da Annunciada; José Pedro o Mudo, Paço do Bemformoso; Manuel Guitarreiro, largo da Esperança; João Ramella, calçada dos Caldas.
[33] «Quando Taborda cantava na comediasita Ditoso fado algumas quadras á viola (aliás guitarra) o publico em altos gritos pedia mais, e mais, e mais, e o grande, o incomparavel Taborda entoava centenas de quadras entre applausos.» Julio de Castilho, Amores de Vieira Lusitano, pag. 127.
[34] Esta palavra tem-se graphado em portuguez dos seguintes modos: lundu, lundum, landum, londum.
[35] Marquez de Ficalho.
[36] Conde de Vimioso.
[37] Lisboa na rua, pag. 167 e seg.
[38] Pianinho é outro synonymo da guitarra, em calão fadista.
[39] Ultimamente publicou-se uma collecção de Fados infernaes, em que se encontram «Fados á campa».
[Pg 78]
O fadista, como já vimos a respeito do «bailhão», não deixa o seu credito por mãos alheias.
Pouco lhe importa que os litteratos o descrevam; descreve-se elle a si mesmo, propagando uma litteratura, que é d’elle ou feita para elle, e que lhe dá celebridade.
Essa litteratura é o Fado.
O fadista canta as outras classes; tão tolo seria elle que não cantasse a classe a que pertence.
Ha Fados que o descrevem na vida e na morte, no prazer e no azar, em liberdade e no Limoeiro.
A conjugação de todos esses Fados, dá, completa e integra, a vida do fadista.
A guitarra é o porta-voz do fadista. O calão é a sua linguagem. O Fado é a sua eloquencia, a sua poesia.
Por isso elle se mostra reconhecido ao inventor da[Pg 83] guitarra, cuja estatua desejaria erigir na praça publica, como se se tratasse d’um heroe.
Mas, não o podendo conseguir, quer ao menos levantar-lhe um monumento com as melhores canções de todos os cantadores do Fado, o que faz lembrar a lenda da cortezã Rhodopis, que levantou uma das pyramides do Egypto convidando cada um dos seus amantes a acarretar uma pedra.
Depois da invenção da guitarra, nada parece ao fadista tão admiravel e sublime como o Fado em que elle póde traduzir tudo quanto pensa e sente, toda a expressão da sua alma, toda a synthese da sua existencia.
[Pg 86]
Para o fadista, cidadão dos bairros infamados, habitué das espeluncas e dos bordeis, todo o paiz se resume n’esse mundo, que é o seu, a «sua patria», o seu habitat.
Por isso considera o Fado um «hymno nacional».
[Pg 87]
E lisonjeia-se de que as classes superiores da sociedade executem o Fado no piano, em sumptuosas[Pg 88] salas; como um estrangeiro se póde lisonjear de ouvir o hymno da sua nação, apreciado n’uma terra que não é a d’elle.
O Fado é, para o fadista, a melhor de todas as musicas, a mais dôce, a mais terna, a mais estonteadora: o que vale ao Padre Santo, para não ultrajar a dignidade da tiara, é «não saber o gosto que o Fado tem»; o Diabo, nas profundezas do inferno, arde menos no fogo das suas paixões quando se põe a cantar o Fado como um faia da Mouraria:
[Pg 89]
Um Fado infernal descreve a macabra alegria do Averno quando lá sôam os accordes de algum Fado mephistophélico:
O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece um dialecto, sem o ser rigorosamente. Muito pittoresco,[Pg 90] não se limita apenas a alterar phoneticamente as palavras como a giria infantil; além de lhes alterar o som, altera-lhes tambem a forma, e muitas vezes lhes desloca a significação, levando-a para outros objectos, n’um sentido tropologico, fundado na relação de semelhança.
Assim, a garrafa preta da taberna é viuva; os copos são filhos da viuva: uma viuva e dois filhos quer dizer—uma garrafa e dois copos.
Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se sino grande.
O cigarro é soldado de calça branca; a navalha, sardinha; a faca, sarda; o apito, rouxinol; a quantia que o rufião recebe da amante, queijada; o dinheiro, painço; o café com leite, mulato; a agua com café, meio-caiado; Deus, juiz do Bairro Alto; as pernas, juntas; a barriga, folle das migas; as notas de banco, filhozes; enfiar uma guitarra pela cabeça d’outra pessoa é fazer uma gravata; a bofetada é estampa; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, avental de madeira, etc.[41]
Nas outras linguas encontra-se um vocabulario correspondente ao calão dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam-lhe germania e chamavam-lhe antigamente gerigonza; os francezes jargon e argot; os italianos gergo e lingua furbesca; os inglezes cant, etc.[42]
Calão vem de caló, nome que os ciganos dão a si mesmos.
[Pg 91]
Portanto significa propriamente «cigano», «lingua de cigano.»
A giria portugueza, isto é, a linguagem especial usada pelas classes vis a fim de que as outras classes sociaes a não entendam, é muito antiga: já no seculo XVI Jorge Ferreira de Vasconcellos se refere aos que fallavam germanía.
No seculo XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos de giria na Feira dos anexins, que é, como se sabe, uma galante collecção de equivocos e jogos de palavra.
No seculo XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d’aquelles termos, que incluiu no seu Vocabulario, e que foi copiada em parte no Compendio de orthographia de Frei Luiz de Monte Carmelo.
No mesmo seculo, os Rasgos metricos, de Alexandre Antonio de Lima, e as Infermidades da lingua, a que já tivemos occasião de referir-nos, fornecem elementos subsidiarios para o estudo do calão.
No seculo XIX, a Historia do captiveiro dos presos d’estado na Torre de S. Julião da Barra, por João Baptista Lopes; a traducção dos Mysterios de Pariz, feita no Porto pelo dr. Pereira Reis; o romance Fr. Paulo ou os doze mysterios; o romance Eduardo ou os mysterios do Limoeiro pelo padre Rabecão; os artigos de Candido Landolt na Revista do Minho (1875) e os de Queiroz Vellozo na Revista de Portugal, 1890; os Ciganos de Portugal, por Adolpho Coelho, abrangendo um importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem[Pg 92] copiosas fontes para o vocabulario do calão portuguez.
Adolpho Coelho traz o seguinte Fado composto em calão, reproduzido por Alberto Bessa:
Ha, porém, outros Fados compostos em calão. Conhecemos quatro que não devemos deixar de transcrever, tanto mais que elles contéem alguns termos, como por exemplo antrames e gamotes, que não foram incluidos no diccionario do sr. Bessa.
Assim, pois, o fadista creou para si um mundo á parte, onde a linguagem, os usos, os costumes constituem uma vida exótica, de aberração, que se escôa por entre a sociedade portugueza como um enxurro negro e torvo.
N’essa vida destragada todos os mais nobres sentimentos da humanidade se abatem e enlameiam, attingindo ás vezes as proporções de um paradoxo.
Uma das coisas que mais custam a comprehender na vida do fadista é o ciume que elle tem da mulher perdida, que todos os dias se vende ao primeiro homem que passa.
Interesse? affeição? tudo isto talvez, porque o fadista vive á custa da depravação da amante, mas quando o ciume o domina dir-se-ha haver n’esse sentimento o que quer que seja superior ao interesse material.
Reconhecendo-se atraiçoado, o fadista procura matar a mulher que lhe foi desleal, e desprésa todas as conveniencias pessoaes que d’essa convivencia amorosa lhe resultavam.
É então que parece comprehender o amor e sentir o ciume como todos os outros homens.
Fóra d’esses lances, encara a prostituição da mulher[Pg 100] como um commercio que exclue toda a idéa de sentimentalidade, e que o ajuda a viver.
Do que elle tem ciumes não é das caricias que a sua amante vende; é d’aquellas que ella pode dar por um impulso espontaneo do coração.
O mobil das grandes desordens entre os fadistas tem quasi sempre origem no ciume—este ciume de contrabando, paradoxal, que tanto custa a comprehender.
Nos Fados, a mulher perdida é cantada pelo fadista como sendo tambem uma victima da fatalidade do destino:
[Pg 101]
Camillo, no Eusebio Macario, reproduz dois versos de um Fado da Escarnichia (Escarniche, na pronuncia popular), os quaes dão a impressão rapida da «má sorte» que, segundo a lenda fadista, a arremessou para a desgraça:
Todas as rameiras mais populares, desde a Severa, a Escarnichia, a Joaquina dos Cordões,[44] etc., até á Borboleta[45], teem sido choradas pela guitarra e encontrado uma necrologia nas glosas sentimentaes do Fado.
Além da vida do fadista e da morte das mal-fadadas que viveram entre o povo, o Fado canta ainda outros assumptos, a saber:
a) O amor, como o fadista é capaz de o sentir; sem[Pg 102] delicadeza e sem recato: o amor sensual, que principia por onde nas outras classes acaba.
E muitas vezes o amor é declarado em calão, para ser melhor entendido:
b) Os trabalhos e soffrimentos das classes sociaes que estão em contacto com o fadista ou proximas a elle.
c) Os aspectos da vida popular e a chronica das ruas, como as hortas, os pregões, a noite de Santo Antonio.
[Pg 103]
d) Os grandes crimes e os grandes desastres terrestres ou maritimos, que impressionam a opinião publica.
e) A morte de personagens celebres.
f) Os conflictos politicos ou religiosos que provocam discussões na imprensa e no parlamento.
g) A nomenclatura popular de utensilios de trabalho nas artes e officios ou de animaes, arvores, plantas, flores, etc.
h) As cidades, seus bairros e ruas, as villas e aldeias do paiz, n’um jogo de metaphora ou de antithese; n’um sentido de orgulho local e patriotico ou de funda nostalgia.
i) Passagens da Biblia, assumptos religiosos, especialmente relativos á vida eterna, e episodios da historia de Portugal.
j) Descripção das esperas de touros, peripecias das touradas, triumphos e desastres dos toureiros mais evidentes.
k) Expressão de malicias e gaiatices, que ou é formulada brutalmente n’uma linguagem obscena ou recorre ao equivoco e ao trocadilho.
l) Floreios de palavras exdruxulas e arrevezadas que muitas vezes não fazem sentido.
Entre as classes sociaes que são cantadas no Fado, avulta a dos marinheiros, talvez pela razão, de que o marujo é meio fadista.
Já dissemos que, segundo a opinião do velho guitarrista Maia, o Fado do marinheiro é um dos mais antigos.
[Pg 104]
Tornou-se muito popular uma cantiga, que não seguia a metrica tradicional do Fado, mas que entrou logo no genero, a que realmente tinha direito não só pelo assumpto, como tambem pelo seu rythmo plangente:
D’este Fado correm pelo menos duas versões, como se pode reconhecer confrontando a de Coimbra—que vem no Cancioneiro popular de Theophilo Braga—com a (de Lisboa) que vem appensa á Confissão geral do[Pg 105] marujo Vicente, edição de Verol Junior.
No Almanach da terra e mar, tambem edição d’este livreiro, vem um novo Fado do marujo, decalcado sobre o antigo; além de outros Fados maritimos.
É muito original, pelo emprego da technologia nautica n’uma intenção amorosa, o seguinte Fado:
De outros Fados de classe daremos ainda alguns exemplos.
[Pg 108]
Sobre os aspectos da vida popular e a chronica das ruas:
Os Fados sobre crimes notaveis são vulgarissimos; como já dissemos, apparecem frequentes vezes, em folhas volantes. Damos, por isso, apenas um specimen:
Sobre um desastre que impressionou Lisboa—a morte do conde de Camaride:
Na morte de personagens celebres apparecem sempre Fados, que encontram um grande exito na rua entre as classes populares.
O que se segue, escripto por occasião da morte de Antonio Feliciano de Castilho, cantou-se na Mouraria, posto accuse uma origem culta:
[Pg 118]
Apontemos outro facto mais recente: o suicidio de Mousinho de Albuquerque.
Vendeu-se logo um folheto de 8 paginas contendo a noticia da sua vida e morte, glosada em decimas.
A catastrophe final é assim descripta:
Os acontecimentos politicos e os conflictos religiosos, quando agitam fortemente a opinião publica, tambem encontram écco na poesia popular.
A questão do caminho de ferro de Salamanca (vulgarmente, Salamancada) inspirou em 1883 este Fado:
A questão religiosa, ultimamente levantada a proposito do incidente Calmon no Porto, provocou Fados de occasião contra os jesuitas, os conventos e recolhimentos, etc.
Trecho de um Fado ironico contra os jesuitas:
[Pg 122]
No Porto havia um musico ambulante, de nome Marcolino, que improvisava Fados com caracter satyrico, entrando frequentes vezes pelo dominio da politica.
Aos Fados de nomenclatura (como os nauticos) que do caracter popular passaram ao caracter scientifico pela intervenção do famoso bohemio Luiz de Almeida, reservamos menção especial.
Exemplo de Fados toponymicos, a começar por Lisboa:
Um barbeiro de Bucellas quiz lembrar-se, para me dizer, de certo Fado composto sobre o onomastico locativo do Termo de Lisboa, mas não se recordou senão d’estes quatro versos:
O Fado saloio tem já hoje vida propria e autónoma.[Pg 124] Quero dizer que os fadistas do Termo não se limitam a copiar os Fados de Lisboa, mas já por sua vez os compõem sobre assumptos locaes: portanto é natural que lhes dêem um caracter toponymico.
N’esta especie de Fados a quadra substitue a decima, que é de mais difficil improvisação; mas já ouvi quadras locaes da Ericeira—por mim recolhidas em outro livro—[48]cantadas no rythmo do Fado.
Sem embargo tambem ha Fados saloios em décimas, que Lisboa exporta nos almanachs, com o fim de conquistar leitores entre as povoações suburbanas:
O Algarve tem o seu Fado, que abrange toda a provincia:
[Pg 126]
Os assumptos biblicos são muitas vezes aproveitados pelo cantador fadista n’um sentido religioso.
Por exemplo:
Tambem o fadista investe ás vezes com os problemas mysteriosos de alem da campa, como n’este Fado:
Quanto á historia de Portugal, tenho ouvido Fados sobre os amores e morte de D. Ignez de Castro e ainda sobre outras epocas e assumptos, como por exemplo:
[Pg 131]
Disse-me o sr. Verol Junior tencionar imprimir uma collecção de Fados, que abrange todos os periodos da historia de Portugal.
A vida do fado está intimamente relacionada com a tauromachia.
O fadista não falta a uma espera de touros, com a sua guitarra na mão; o fadista de um e outro sexo, mulheres e homens.
Antigamente o enthusiasmo era maior, no tempo da Severa e do Vimioso, quando os fidalgos, «amadores» e «cavalleiros», não perdiam uma espera, nem uma tourada.
A tradição tauromachica era então muito mais intensa do que hoje, porque no seculo XVIII tinhamos tido touros de morte, e o enthusiasmo pelas luctas cruentas do redondel conservava ainda, no espirito do povo, um rescaldo ardente.
No seculo XVIII havia em Lisboa nada menos de quatro praças de touros: a da Estrella, nas terras do Infantado; a da Parada, junto ao Rocio; a do Salitre, e a do Campo de Sant’Anna. Não fallando no Terreiro do Paço, onde se realizavam as touradas de maior pompa.
Quem fazia as cortezias era o neto[49], (meirinho da[Pg 132] cidade); quem as recebia era o rei, o senado da camara, o tribunal da junta da casa do Infantado, e, ás vezes, Nossa Senhora!
Assim, no programma de uma corrida em obsequio da devotissima imagem de Nossa Senhora do Cabo, sendo o producto para os cultos da mesma Senhora, lê-se o seguinte: «Ás duas horas e meia estará tudo prompto, e feito o signal costumado, entrará o Neto a fazer as suas cortezias á devotissima imagem de Nossa Senhora, que ha de estar collocada em um logar proprio, e depois ao Tribunal».
Por esta não esperava de certo o leitor: que a propria imagem de Nossa Senhora, collocada em altar todo florente de galas, fosse quem recebesse as cortezias do cavalleiro.
O costume de fazer touradas em beneficio de Nossa Senhora e dos santos, era então vulgarissimo.
Em setembro de 1778 effectuou-se na Praça do Commercio um combate de touros, como n’esse tempo se dizia, a bem do adeantamento das obras da egreja de Santo Antonio d’esta cidade.
Assistiram suas magestades.
Em agosto d’esse mesmo anno realizou-se na Praça do Commercio uma tourada em beneficio de Nossa Senhora do Cabo, funcção promovida pelo capitão[Pg 133] João Dias Talaia Souto Maior, como escravo que era, e toda a sua familia, da mesma Nossa Senhora.
Os touros, em numero de 25, afóra os que vinham sobrecellentes, eram offerecidos bizarramente pela casa real.
No mesmo anno pediu o padre Emygio José da Costa licença para organizar um combate de touros na Real Praça do Commercio, a fim de adquirir uma avultada esmola destinada aos enfermos particulares da capital.
«Os touros que hão-de morrer, dizia o programma, são dezeseis, que El-Rei N. Senhor e varios fidalgos d’esta Côrte deram para o presente dia.»
Aqui temos, pois, as touradas de morte, que tanto horrorisam os portuguezes que a ellas assistem hoje em Madrid, Badajoz ou qualquer outra praça hespanhola.
Quantum mutatus ab illo... o portuguez!
Outro programma dizia:
«Entrará Nicolau Theodoro, suhiço (sic), vestido á suhiça com uma lança na mão, e sobre uma mesa á porta do touril esperará um touro, e ao tempo que o investir lhe metterá a lança, e repentinamente saltará por sima d’elle; e ficando em pé metterá a mão á espada, e esperará o touro cara a cara, e promette matal-o ás estucadas ou ás cotiladas.»
Copio textualmente para conservar toda a feição[Pg 134] historica do programma. Pela mesma razão não alterei a orthographia dos seguintes periodos que de outros varios programmas vou transcrever.
«Entrará o Neto a fazer as cortezias ao Tribunal, e depois um breve divertimento de algumas danças, em quanto os cavalleiros se põem promptos, e rodeando a praça sahirá tudo para fóra, entrarão os quatro contendores a fazer as cortezias do costume ao Tribunal, em primeiro lugar Theodoro Francisco Ribeiro, o qual já domingo passado entrou tambem em primeiro logar, e mostrou o quanto era destemido; em segundo logar Jacintho Pinto de Moraes, aquelle que domingo passado ficou sem capa, pelo Touro lha tirar dos hombros, e n’este dia a quer restaurar; em terceiro logar Thomaz Cesar, o polvilheiro, que por esta Cidade vende poz (sic), que tendo noticias, que domingo passado os cavalleiros fizeram tantas proezas, quer elle imital-os; em quarto logar Carlos Antonio Canute, Genovez de Nação, com logea defronte do Palacio do Excellentissimo Monteiro Mór, sujeito de muito valor, e forças, e a figura muito especial, tem viajado pela China, e Indias de Hespanha, e quer mostrar como n’estes paizes se tourea, etc.»
«Seguir-se-ha logo o Contendor Bernardo de Magalhães e Noronha, filho do Capitão Mór de Formoselha, assistente no campo de Coimbra, pessoa bem conhecida n’esta côrte, o qual pelo seu nascimento, e valor,[Pg 135] executará acções muito distinctas. Terá para combater 15 touros escolhidos das melhores raças; irá acompanhado de seus criados ricamente vestidos, e capinhas, tudo com igual aceio.»
«E logo entrarão os contendores, que serão quatro cavalleiros do gosto dos senhores espectadores, em primeiro logar Lourenço Antonio de Moraes Bandeira, o qual desempenhará n’esta tarde o seu logar, pelas valorosas acções que se esperarão do seu animo; em segundo logar Sebastião Antonio de Mendonça, igual ao primeiro no mesmo valor; em terceiro lugar Francisco da Silva Alcantara, por appellido o fava secca, este promette á sua parte matar de rojão tres, ou quatro touros, por se obrigar a isso no ajuste que fez; em quarto lugar Thomaz Cesar, pulvilheiro d’esta cidade, e n’ella muito bem conhecido; entrarão estes quatro cavalleiros bem vestidos, e providos de bons cavallos, acompanhados dos seus criados, homens de forcado, e capinhas a fazer as cortezias, e acabadas sairão para fóra a mudarem de cavallos; entrarão novamente, e cada um occupará um angulo da praça, e se irão seguindo cada um quando lhe tocar, esperar o touro á sahida da porta do touril, ficando n’esta forma touriando, sem haver perturbação de logares, somente quando houver duellos os perderão para se desaggravarem.»
«Entrará logo o Neto e depois os contadores a fazerem as devidas cortezias ao Tribunal da Junta da Casa do Infantado, os quaes serão Caietano Romão, criado do Excellentissimo Conde de Arcos, e João[Pg 136] Gaspar, Allemão de Nação, professor da arte de Cavallaria, de muitas forças e igual valentia, o que pertende fazer certo neste combate; para o que promette pôr-se a pé, e chamar hum touro, que esteja com todas as suas forças, e ao investir pegar-lhe em huma ponta, e passando-lhe o pé dar-lhe huma tão grande cutilada, que, se fôr no pescoço, lho deixará quasi separado; e se fôr no lombo, lhe cortará o espinhaço, de sorte que lhe sáião os intestinos pela ferida; e se pela violencia do touro lh’o não puder fazer da primeira vez, tentará segunda e terceira; e no caso que o não possa conseguir apezar de toda esta diligencia que promette fazer, chamará o touro de cara a cara, e pegando-lhe por ambas as pontas o deitará em terra de pernas assima, tudo com muita ligeireza, e desembaraço: e se não fizer destas tres valentias huma perderá dez moedas de ouro, que tem depositado; e se executar das tres valentias alguma, as ganhará, etc.»
Vejamos agora a nomenclatura que tinham os diversos logares occupados pelos espectadores:
«Adverte-se que os preços dos camarotes do primeiro andar são a 600 réis a vara, e do segundo andar a 480 réis a vara; e as trincheiras da sombra a 150 réis, e as do sol a 60 réis.»
N’outros espectaculos, que não fossem touros, mas que se déssem em qualquer das praças, baixavam os preços consideravelmente.
Assim, n’uma exhibição pyrotechnica, feita por um[Pg 137] hespanhol de nação, os preços dos camarotes eram a 300 réis por vara, tanto no primeiro como no segundo andar, e todos os palanques a 40 réis.
Um outro programma, da Praça do Campo de Sant’Anna, diz:
«Os camarotes do andar de sima serão com mais comado, (sic).»[50]
Comprehende-se que o seculo XIX recebesse do seculo anterior uma viva tradição tauromachica, que enthusiasmava ainda o povo pelas antigas corridas, cujo brilho e perigo não tinham sido menores que nas praças de Hespanha.
As mulheres de má vida não ficavam indifferentes a essa tradição; não ficou a Severa, que zombava das suas collegas menos animosas do que ella, e que fez escola.
Algumas raparigas do fado chegaram a tomar parte em touradas.
Assim aconteceu n’uma corrida realizada em outubro de 1842.
A Revista Universal, redigida por Castilho, commemorou o acontecimento n’este suelto vernaculo, de que se perdeu já o feitio:
«A corrida de touros de domingo ultimo no Campo[Pg 138] de Sant’Anna pouca menção merece. Sim eram bravos os animaes; mas, exceptuando algumas quédas, alguns corpos humanos marrados e pisados, e algumas saudes provavelmente arruinadas para sempre, não houve ahi successo por onde a tarde se podesse chamar boa.
«Semear morte em vultos de figura humana, é de pequeno interesse dramatico; é preciso dar-lh’a prompta e estrondosa; é doutrina corrente, é aphorismo entre os partidarios do curro. Para descontar porém a semsaboria da festa, houve n’ella a novidade (pomposamente annunciada em todas as esquinas da capital) de uma rapariga a cavallo n’um rossinante, correndo um toiro á vara larga: o toiro, que a podia ter morto, contentou-se fidalgosamente de dar-lhe uma licção; e mettendo os cornos pelos peitos ao cavallo, e arvorando-o a prumo, a despejou da sella, estirada de costas no meio da praça por entre os risos dos circumstantes.
«A mulher forte, com razão assomada da descortesia, recavalgou para se desaffrontar; e não duvidamos que o houvera conseguido, se o cavallo não discordasse manifestamente das opiniões da cavalleira: o exame phrenelogico dos dois craneos, se algum curioso de anatomia comparada o tiver de fazer lá para o futuro, deverá, se nos não enganamos, redundar todo em gloria do quadrupede.»
O brado de um poeta contra as touradas não encontrava écco; nem as mulheres nem os homens lhe davam ouvidos.
[Pg 139]
Qualquer Fadinho toureiro, como relembraremos no capitulo seguinte, o combatia e supplantava.
Resta-nos ainda fallar de duas especies de Fados.
Aquelles que tratam assumptos pornographicos, mais ou menos desbragados, encontram-se na Guitarrinha innocente e no Almanach do fado bréjeiro.
Quanto aos Fados exdruxulos, e outros que apenas visam a uma combinação artificiosa de palavras, technicas ou arrevezadas, havemos de incluil-os na secção dos Fados de nomenclatura, não porque propriamente o sejam, mas porque melhor ficarão ali do que em qualquer outro grupo.
[40] Cordas da guitarra.
[41] Alberto Bessa, A giria portugueza.
[42] Adolpho Coelho, Os ciganos de Portugal, pag. 56.
[43] Bute é uma das palavras que o calão adoptou das linguas estrangeiras. Vem do inglez boot, bota, pé. (Adolpho Coelho.)
[44] Dos Cordões, por trazer sempre dois ao pescoço. Esta mulher devia ser do norte. Morava na rua das Gaveas.
[45] A Borboleta inculcava-se irmã natural do infeliz tribuno Vieira de Castro. Quando ella morreu, cantou-se-lhe um Fado que dizia:
[46] Victor Hussla inspirou-se certamente n’esta lettra quando compoz a ballada «Triste vida do marujo».
[47] Dom Antonio ou Antonio Caro era o illustre estadista Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello, chefe do partido regenerador. Este partido estava então no poder, sendo chefe do gabinete, por delegação de Fontes, o conselheiro Antonio Rodrigues Sampaio.
[48] Sem passar a fronteira, pag. 138.
[49] N’um opusculo em que se descrevem as touradas com que o senado da camara de Lisboa celebrou a acclamação da rainha D. Maria I, encontra-se a origem da accepção tauromachica da palavra Neto. Diz o folheto. «Seguiu-se a entrar na praça o meirinho da cidade João Marcelino Alvares de Sá (a que o vulgo n’estas funcções chama Neto, pela tradição de um meirinho de appellido Neto, que assistiu a muitos d’estes festejos) etc.» É uma nota curiosa, e por isso a registamos.
[50] Todas estas noticias foram colhidas n’uma curiosa collecção de programmas, coordenados em volumes de miscellanea, que existem na bibliotheca da Academia Real das Sciencias de Lisboa.
[Pg 140]
Toda a gente falla ainda da Severa, porque o typo d’essa mulher perdida ficou como que personificando a época famosa do delirio n’uma sociedade de marialvas opulentos, que viviam para a guitarra, para as touradas, para as extravagancias alegres e ruidosas, em que a vida parecia arder como a resina no fogo.
De todas as mulheres da mesma estofa, que a tradição tornou celebres, a Joaquina dos Cordões, a Escarnichia, a Amalia Bexigosa, a Conceição Capellista, foi a Severa aquella cuja individualidade parece ter consubstanciado todas as lendas da bohemia fadista, da vida picaresca de Lisboa, das aventuras do redondel e do alcouce, que tiveram um periodo de fascinação capitosa.
Mas, se toda a gente falla ainda da Severa, é fóra de duvida que a geração de hoje em dia não tem sobre o assumpto senão uma vaga idea fugitiva, que apenas as cantigas do Fado alimentam ainda, e que tende a apagar-se como uma lenda que morre estrangulada pela corrente de novos costumes e novas proezas.
[Pg 141]
No lapso de cincoenta annos a figura da Severa, a muza plebea do Fado, a cuja vida destragada associára a homenagem de fidalgos e populares, a cuja guitarra dolente o conde de Vimioso reconhecia o prestigio de um alaude divino, tem-se diluido como todas as tradições que enchiam de saudade o coração dos velhos que ainda chegamos a conhecer, hoje, na sua maioria, adormecidos para sempre na paz do tumulo.
Através do confuso nevoeiro da versão oral, o sr. Julio Dantas desenhou os perfis, empallidecidos pela acção do tempo, da Severa e do conde de Vimioso n’um drama, representado e publicado, e n’um romance tambem publicado; mas o sr. Miguel Queriol, contemporaneo d’essas duas famosas individualidades, acudiu logo, n’um interessantissimo artigo que O Popular[51] estampou, a reavivar a physionomia exacta do conde e da Severa, e a esclarecer alguns pontos escuros da biographia de ambos.
Para nos guiarmos na reconstituição d’essas duas figuras tradicionaes, devemos dar preferencia ás indicações das trez testemunhas coetaneas que teem escripto sobre o assumpto: Luiz Augusto Palmeirim, já fallecido; Miguel Queriol e Raymundo Antonio de Bulhão Pato, ainda vivos, felizmente.
Muitas pessoas suppunham, e eu com ellas, que a Severa pertencia, pela sua origem, a essas hordas de ciganos errantes que, na passagem por Lisboa, faziam[Pg 142] outr’ora quartel general no Paço da Rainha, e que atravessavam em grupos a rua da Inveja, de S. Lazaro e o Campo de Sant’Anna.
Todavia, como se verá, o sr. Miguel Queriol, com toda a sua auctoridade de contemporaneo, affirma categoricamente que a Severa «nunca foi cigana, mas uma esbelta e infeliz filha de uma megéra, que a explorava, e era bem conhecida na policia pela alcunha de Barbuda.»
Alguem, certamente por informação que reputou fidedigna, disse já que o conde de Vimioso tambem manteve intimas relações com a mãe da Severa, a qual, mais tarde, viveu com o cavalleiro tauromachico D. H. B.[52].
Nunca ouvi isto a ninguem, mas é possivel, desde que o sr. Queriol affirma que a Barbuda explorava a filha: seria ella propria que a lançára na prostituição, facto abominavel, mas infelizmente vulgar na sua classe.
Por aqui se póde ver quão valioso e importante é o testemunho dos coevos, no meio de tantas e tão imprevistas versões, para se chegar a reatar um tenue fio de verdade historica.
A lenda até já produziu uma duplicação de Severas.
De Evora disseram ao sr. Adolpho Coelho existir[Pg 143] ali uma cigana, que foi amante do ultimo conde de Vimioso, e que é a cantada nos acompanhamentos de viola com o nome de Severa.[53]
Mas a cigana de Evora não se chamava Severa, e o sr. Adolpho Coelho inclina-se a crer que ella teria sido amante de um conde de Vimioso mais antigo que o ultimo.
Ora D. Francisco de Paula Portugal e Castro, ultimo conde de Vimioso, florescia no vigor dos 20 annos em 1837. Admittindo que a cigana de Evora andasse pela mesma idade, teria em 1892, quando o sr. Adolpho Coelho publicou o seu livro, 55 annos.
Se ella houvesse sido amante do penultimo conde, que falleceu em 1840, deveria ser septuagenaria em 1892.
O informador eborense não diz que a cigana fosse de provecta idade, circumstancia que decerto lhe não teria escapado, pois que informa com minuciosidade dizendo que ella vivia na companhia de um filho que era alfaiate, mas usava nome fidalgo; que tinha ainda outro filho, que residia em Lisboa e constava ser rico; que ella, como as demais que aberram dos principios da seita, foi despresada de todos os ciganos e vivia isolada com aquelle filho.
Deve ter sido amante do ultimo conde, se o foi, e talvez do facto de ser cigana proviesse, por confusão, o motivo de se haver julgado que a Severa pertencia á mesma raça.
[Pg 144]
N’um apontamento que Bulhão Pato deu a Urbano de Castro, o illustre poeta da Paquita diz sempre «Maria Severa», o que faz crêr que «Severa» era sobrenome, adoptado e popularisado como «nome de guerra.»
Palmeirim conheceu a Severa, foi vel-a com o interesse de quem visita uma celebridade. Morava ella então no Bairro Alto. E parece que a encontrou n’um momento de tédio, em que ella o recebeu mal, e elle ficou desagradavelmente impressionado.
Conta Palmeirim, textualmente:
«Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação do typo vulgar das que habitam as infelizes suas congéneres, estava ella fumando, recostada n’um camapé de palhinha, com chinellas de polimento ponteadas de retroz vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça, e as mangas do vestido arregaçadas até ao cotovello.
«Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notavel por uns magnificos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparavel dos seus triumphos; e pendente da parede (sacrilegio vulgar nas casas d’aquella ordem) uma pessima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!
«Antes da minha apresentação, que foi rapida, e sem cerimonia, a Severa que logo conheceu não ser eu um official do officio, isto é um fadista emérito, como quasi todas as pessoas que lhe eram apresentadas, mimoseou-me com uma saraivada de injurias, a[Pg 145] que eu repliquei de prompto, dando logar a uma sabbatina pouco edificante, de que me sai como defendente a contento d’ella propria, que não esperava encontrar n’um liró um contendor capaz de lhe replicar ao pé da lettra».[54]
Tudo isto se poderá explicar, na Severa, por um irritante orgulho de celebridade e uma longa pratica de impudores de classe.
Aquella mulher, que um fidalgo portuguez notára e distinguia, e que, de guitarra na mão, era enthusiasticamente applaudida por muitos outros, vendo crear-se á volta do seu nome uma atmosphera estonteante de vaidade, devia por vezes achar-se contrariada fóra d’esse meio que a celebrisára, e que representava para ella o enlevo, o sonho, a poesia na desgraça; devia achar-se constrangida na presença de pessoas que não eram fidalgos, nem toureiros, nem marialvas, nem guitarristas, nem cantores celebres do Fado.
E nas horas de aborrecimento, o seu caracter resoluto, o seu orgulho explosivo, a sua lingua solta e ponteira, encontravam como desabafo o vocabulario torpe que ella aprendêra desde pequena, talvez com a propria mãe.
Na hora em que Palmeirim a viu e ouviu, não estava ao pé d’ella o conde de Vimioso a exercer a suggestão da grandeza e da fidalguia; faltava ali o prestigio que vinha das noites de luar, das esperas de touros,[Pg 146] das serenatas de Fado, das aventuras esturdias, dos applausos da multidão.
Tambem os grandes actores perdem toda a sua grandeza fóra do palco, quando vistos na realidade da existencia.
Falta-lhes o fogo divino, a commoção, a arte; falta-lhes a luz da ribalta que os illumina; a illusão que lhes é emprestada pela caracterisação e pelo scenario; falta-lhes o enthusiasmo do publico, que os admira e que os applaude.
A Severa era n’essa hora uma celebridade arregaçada até ao cotovello, mergulhada em silencio como a guitarra que jazia sobre a mesa, abatida na solidão e na ausencia do Vimioso.
Comprehende-se a sua revolta, o seu mau humor irritado, como tambem se comprehende, embora pareça paradoxal, que sempre que o conde queria dominal-a como se prende uma ave n’uma gaiola, ella lhe fugisse para saborear a liberdade reles do alcouce, que lhe dava orgulho, porque d’ali subira á celebridade, ali a iam procurar os bohemios fidalgos e famosos, desejosos de ouvir a sua guitarra e a sua voz enternecida soluçando o Fado.
O sr. Miguel Queriol conta no artigo do Popular quando e como viu a Severa em casa do conde de Vimioso.
Foi uma noite, á saida de S. Carlos, que elle Queriol e alguns amigos (Augusto Talone, Frederico Ferreira, Antonio de Serpa, João Blanco e outros) tendo alugado burros no Poço de Borratém, seguiram alegremente,[Pg 147] au clair de la lune, para o palacio do conde no Campo Grande.
Ahi encontraram em partida de jogo, sendo Fidié o banqueiro, uma boa roda de amigos: D. Antonio Galveas, Roberto Payant, D. José de Almeida Mello e Castro «O Cazuza», etc.
Queriol descreve: «... depois de muita chalaça e folia em que tomaram parte algumas festejadas companheiras[Pg 148] de outros amigos que em seges de aluguel se nos haviam antecipado, quebrando a monotonia de uma sociedade composta só de homens, o conde de Vimioso mandando entrar a Severa e pedindo a Roberto Camello que a acompanhasse na guitarra, nos deu uma audição de Fado até então desconhecido da maior parte senão de todos os ouvintes.»
Esta declaração é importante, porque vem confirmar tudo quanto havemos dito sobre a data provavel em que principiou a usar-se a palavra Fado como synonymo de canção.
Não se contradiz o sr. Queriol quando n’outro relance do seu artigo escreve que o Fado já anteriormente se cantara «na prôa dos navios de guerra á mistura com a vida do marinheiro e outras canções em que a triste sina ou miserias da vida arrastavam ao infortunio».
Sim, cantavam-se as canções tristes e fatalistas dos portuguezes, n’um rythmo dolente; mas ainda se não havia dado a esse typo de canções populares a categoria musical e o nome generico de Fado.
É isso o que temos sustentado n’este livro, é isso o que o sr. Queriol, que hoje conta mais de 70 annos, affirma no seu artigo, quando diz que o Fado era até então desconhecido da maior parte senão de todos os ouvintes.
Quanto ao physico da Severa, o sr. Queriol está em accôrdo com Palmeirim: nenhum reconhece que fosse bella, mas ambos dão a impressão de que era elegante; um gaba-lhe os olhos, o outro o cabello; do[Pg 149] que resulta que seria, como tantas outras portuguezas, uma mulher attraente, sem formosura, pela sua linha airosa e pelo encanto dos olhos e do cabello.
No attinente ao moral, é que parece haver desharmonia entre o sr. Queriol e o fallecido Palmeirim; mas talvez possamos chegar a uma conclusão conciliatoria.
Vejamos o que escreveu o primeiro, pois que já vimos o que o segundo escreveu.
Diz o sr. Queriol, referindo-se á noite, de que vem fallando, em casa do conde:
«Ora a Severa apresentava-se como uma serviçal e não com pretensões a dona de casa.
«Se bem me recordo era uma rapariga esbelta, bem apessoada, cabello escuro e farto com um ar de desenvoltura sem ultrapassar as conveniencias da sua posição para com quem a favorecia, trajando limpa mas modestamente sem fazer lembrar a desgraça da classe em que menos o vicio que a miseria a havia precipitado, e que pela sua timidez se mostrava contrafeita no meio social em que ali se achava.
«É possivel que a Severa no seu meio ordinario fosse a desregrada fadista da lenda, mas o que de visu posso assegurar, e para confirmação do que appello para os que, ainda vivos, frequentaram as boas e más companhias da nossa mocidade, é que a impressão que conservo da desgraçada heroina, hoje tão celebrada, apenas se limita a uma satisfação passageira e caprichosa do conde, que como o gastronomo saciado do continuo gozo da boa cosinha se deleita[Pg 150] com satisfação no apetitoso prato de sardinha ou no enlevo odorifero do acepipe de taberna.»
Não lhe nega o sr. Queriol um certo «ar de desenvoltura», o ar canaille da sua profissão provocante. Mas conheceu que a Severa, em casa do conde, perante tão luzida companhia de mulheres que valiam mais do que ella, e de homens que eram os primeiros estroinas elegantes da epoca, se mostrava submissa, quasi timida.
Nenhuma d’aquellas pessoas—ou todas ellas—a teria acobardado cara a cara na sua casinha de rameira, onde Palmeirim a viu, quando ella, entregue a si mesma, não era mais do que a Severa da matricula, uma desgraçada como outra qualquer.
Mas, no palacio do Campo Grande, acabava a realidade e começava o sonho.
Ella era como um actor que vae entrar em scena e que, sempre nervoso e agitado, por maior que seja o seu merito, já sente o calor da ribalta, a respiração do publico, o frémito da sala.
Toda a gente sabe que nem os grandes actores escapam á timidez supersticiosa, quando entre bastidores esperam a «deixa.» Todos elles se persignam antes de se defrontar com o auditorio. Mas uma vez em scena, entram n’uma região ideal que os absorve, e ás vezes os divinisa. Já não são timidos, nem supersticiosos; vão affoitamente até onde o seu talento os leva.
A Severa, tal como o sr. Queriol a viu, achava-se na situação hesitante, no momento indeciso, do actor[Pg 151] que sae da realidade para entrar no mundo do sonho.
Depois, tangida a guitarra, ella era como um artista em scena: commovia-se, soluçava, chorava, cantava chorando, arrebatava-se e arrebatava os outros.
A guitarra é, pela sua voz maviosa, um dos instrumentos que mais impressionam, talvez o primeiro em produzir effeitos de sentimentalidade; o Fado tem o que quer que seja de simplicidade grandiosa e dilacerante, como toda a expressão de uma dor sincera.
O sr. Julio de Castilho n’um dos seus livros confessou de si mesmo esta intima fragilidade: «A bordo de um paquete estrangeiro, uma vez, em viagem do Cabo da Boa Esperança, peguei n’uma guitarra, e sosinho comecei a repetir uns pobres fadinhos da Mouraria. Pois não pude ir ávante; restitui a guitarra ao dono, e tive de me afastar.»[55]
Palmeirim diz nos Excentricos do meu tempo: «se de longe me chegam aos ouvidos os sons de uma guitarra tocada com sentimento, deixo-me ir atraz d’esses sons aos mundos dos proprios sonhos, agradecido á aragem que m’os trouxe tirando-me por momentos da aridez da vida positiva.»[56]
De mim lhes posso dizer que em 1873, quando cheguei a Lisboa, me causaram profunda impressão os primeiros Fados que ouvi na guitarra, de noite. N’um livrinho escripto muito á pressa logo nos primeiros dias, do que resultou ficar imperfeito e ser incompleto,[Pg 152] encontro estas palavras que são o testemunho espontaneo da suggestão recebida: «O fado tem a poesia natural das grandes angustias, a tristeza dos que soffrem desamparados. É o hymno da desgraça, o romance das maguas obscuras, a epopêa do povo. Não ha sentimento doloroso que a linguagem melancolica do fado não reproduza desde a saudade do tombadilho até á afflicção do lupanar. É o pensamento dos que não sabem exprimil-o. Para interpretar o fado nenhum instrumento mais de geito que a guitarra. Está costumada a cantar tristezas desde a mais remota antiguidade, e alem d’isso falla tão baixinho que não chega a incommodar os grandes, os felizes, os opulentos. É quasi uma creança que chora ou uma mulher que suspira. Impressiona e não atordoa. Faz-se ouvir, mas não se impõe.»[57]
Eu, que trazia os ouvidos cheios das alegres canções populares do norte, da Canninha verde, do Malhão, do Vira, deixei-me subjugar pela triste canção do sul e lembro-me ainda—já lá vão quasi trinta annos!—de que tambem compuz a lettra de um Fado, que principiava assim:
Não me lembra o resto, e importa pouco.
[Pg 153]
Mas, voltando ao ponto, parece que os nossos dois informadores, Palmeirim e Queriol, acabarão por ficar de accôrdo: é que na Severa, como em quasi todas as pessoas de uma sensibilidade doentia, havia duas entidades diversas—a da realidade e a do ideal.
E quando a ella lhe faltava a atmosphera do sonho, que principiava a engrandecel-a, e a embriagal-a; quando queria preparar-se para cantar, sem se encontrar n’um meio suggestivo que a levantasse, recorria ao vinho, diz a tradição; embriagava-se a valer.
As esperas de touros exaltavam-n’a, faziam-n’a delirar. A paixão tauromachica completava a feição bohemia d’aquelle tempo. O Vimioso era um cavalleiro eximio, o primeiro entre todos. A Severa seguia-o fascinada. Então, no calor da noitada, ao luar e ao relento nas Marnotas, a Severa, excitada, cantava Fados gaiatos, cantigas a atirar, ironicas, picantes, contendendo com as outras mulheres menos celebres do que ella.
Uma vez desfechou contra a Joaquina dos Cordões este mote trocista:
O conde de Vimioso affeiçoara-se-lhe, porque reconhecêra na Severa a mais intelligente e espirituosa fadista de Lisboa, a que melhor sabia cantar e bater o Fado.
[Pg 154]
Mas, ponhamos de parte a lenda, não se deixou arrastar nunca por uma paixão delirante e degradante. Nunca deixou de ser um fidalgo, um gentilhomem; nunca enlouqueceu por amor da Severa. Foi, na primeira sociedade, um bohemio, mas não perdeu nunca a sua linha aristocratica.
Dil-o o sr. Queriol: que o conde, gastronomo saciado de boa cosinha, se deleitava, por extravagancia, saboreando uma sardinha de taberna.
Isso foi um tanto moda entre os fidalgos antigos, e ainda o era no tempo do conde.
N’elle talvez um pouco mais persistentemente do que em outros; mas só isso.
O Diccionario Popular, n’um artigo escripto por Pinheiro Chagas, vem em reforço do sr. Queriol: «O conde de Vimioso era um toureador de primeira ordem, e procurava de preferencia uma sociedade menos propria da sua alta ascendencia, apesar de se apresentar na outra como um verdadeiro fidalgo.»[58].
Ainda havemos de transcrever passagens do artigo do sr. Queriol, que completarão este juizo.
Talvez que o conde de Vimioso pudesse ter-se apaixonado pela Severa, se conseguisse domal-a, arrancal-a á vida que ella arrastava. Se o fizesse, acabaria por aborrecer-se. Ella, intelligente como era, comprehendia esse perigo, e evitava-o. Faltar-lhe-ia então o prestigio da libertinagem, a nota canalha, mas acirrante,[Pg 155] da sua existencia de fadista. Antes «sardinha» toda a vida do que «foie gras» uma hora.
Não ha duvida de que o conde de Vimioso, sem querer descer inteiramente até á Severa, procurou guindal-a até elle, adoptando-a como sua amante.
E houve uma occasião em que ella pareceu disposta a deixar-se escravisar. Chegou a estar guardada por criados do conde durante uma noite. Mas o travesseiro aconselhou-a bem, e ella retomou logo o seu bom-senso, ao accordar.
De manhã veiu para a janella, e respirou a plenos pulmões o ar livre e fresco da rua.
Passavam carroças de lavadeiras, coguladas de trouxas de roupa lavada. A janella era baixa, a Severa pendurou-se do peitoril, deixou-se cair dentro de uma das carroças. Fugiu.
De outra vez, havia-se escapado á vigilancia do conde de Vimioso. Ninguem sabia d’ella, em vão a procuravam por toda a parte. Só ao cabo de muitas pesquizas foram encontral-a n’uma taverna do largo dos Inglezinhos sentada a tocar guitarra no meio de um auditorio compacto.
Então, um dos amigos do conde, que por ali passara, esgalgando o pescoço por entre o grupo dos ouvintes, cantou ao som da guitarra da Severa:
[Pg 156]
A Severa levantou, contrariada, a cabeça, tendo conhecido aquella voz. Estava apanhada, fôra descoberta; mas esse aventuroso incidente ainda mais augmentára a sua celebridade.[59]
Creio que deixo reduzida a biografia da Severa aos seus verdadeiros termos.
A lenda é boa; mas a historia é melhor.
Não ha duvida que a morte d’esta fadista celebre, que, prematuramente esgotada, falleceu aos vinte e seis annos de idade, em resultado de uma congestão que uma ceia de borrachos assados provocou, foi um acontecimento de sensação nas classes populares e até na bohemia elegante de Lisboa.
Appareceu então o seu Fado, a que foram ligadas algumas quadras em que a lenda começou a formar-se desde logo.
[Pg 157]
Variante:
Outra variante:
Variante:
Variante:
[Pg 159]
Comprehende-se que os fadistas tratassem logo de fazer a lenda, que engrandecia uma heroina da sua classe, associando-lhe o nome ao brazão do conde de Vimioso.
Mas, o que parece liquidado e certo é que a Severa foi a «divette do Fado»; que ninguem até hoje o soube cantar e bater melhor; e que o conde de Vimioso, apreciando essa qualidade, frequentou a Severa mais por extravagancia bohemia do que por loucura amorosa.
Comtudo, oiçamos a lenda, evidentemente de origem fadista:
[Pg 161]
Do Almanach da Severa para 1902.
A lenda foi tomando vulto, propagada nas guitarras do povo e nas trovas dos fadistas. Alguns escriptores modernos, com maior pompa de estylo que investigação historica, favoreceram a lenda.
Se não pudesse ouvir-se ainda o testemunho de algum raro contemporaneo, o conde de Vimioso passaria definitivamente á posteridade como tendo sido um desvairado e cego amante da Severa, um louco fidalgo apaixonado até ao desatino.
Ora o que ha de verdade na origem da lenda é que D. Francisco de Portugal, tendo sido um eximio picador e um destro toureiro, prendas aliás vulgares então na sua classe, tratava sem orgulho com pessoas de inferior condição que prestavam serviços n’esses dois generos de sport, e que ou por convivencia com essas pessoas ou por inclinação natural veiu a ser um fanatico dilettante do Fado, circumstancia que o aproximára[Pg 163] da Severa, a qual não foi nunca sua manceba teuda e manteuda, mas apenas sua parceira nas serenatas de guitarra e nas esperas de touros, com as facilidades que a situação d’ella podia proporcionar a todos os outros homens.
Posto isto, resta-me dizer que o sr. D. Caetano de Bragança (Lafões) possue uma guitarra, que se diz ter sido da Severa, e que é designada, em virtude da sua fórma, pelo nome de Melão.
O ultimo marquez de Angeja, ha pouco fallecido, manifestou-me, porém, duvidas sobre a authenticidade d’esta procedencia.
Fallemos agora, um pouco mais detidamente, d’aquelle dos Vimiosos cujo nome foi pela lenda associado ás tradições orgiacas do Fado.
A casa Vimioso não é, na historia de Portugal, uma familia incolor, nem incaracteristica como a de muitos outros fidalgos que se contentaram em dar frades e freiras aos conventos, esmolas aos santos e almas ao ceu.
Bastaria, para que se não afogasse jamais a memoria d’esta casa, o facto honroso de ter ella offerecido o lençol em que foi caridosamente amortalhado Luiz de Camões.
Os Vimiosos tambem são distinctos por outros mais predicados, que impõem respeitabilidade. Uns cultivaram as lettras, outros a musica, alguns evidenciaram-se na politica e nas armas.
O primeiro titulo de conde de Vimioso concedeu-o el-rei D. Manuel a Dom Francisco de Portugal, filho[Pg 164] natural do bispo de Evora, Dom Affonso de Portugal, e neto do primeiro marquez de Valença, primogenito do primeiro duque de Bragança.
Por aqui se vê o grau de parentesco existente entre Vimiosos e Braganças.
Dom Francisco de Portugal militou em Africa, servindo o rei em Arzilla e Azamor; favoreceu muitos estabelecimentos pios; exerceu o cargo de védor da fazenda; foi varão tão discreto, que lhe deram o cognome de Catão portuguez, e como cultor das muzas collaborou no Cancioneiro de Garcia de Rezende.
Succedeu-lhe no titulo seu filho Dom Affonso de Portugal, que na mocidade aventurosamente acompanhou o infante D. Luiz na expedição de Tunes, e na velhice seguiu el-rei Dom Sebastião na desgraçada empresa de Alcacerquibir, levando comsigo trez filhos. Lá morreu captivo, depois de ter visto na batalha cair morto um dos filhos aos pés de el-rei.
O seu primogenito, Dom Francisco de Portugal, foi o terceiro conde de Vimioso. Esteve com o pai em Africa, onde se apaixonou por elle uma irmã do xerife de Fez.[60] Resgatou-se, e seguiu devotadamente a causa do Prior do Crato, ficando ferido na batalha de Alcantara. Depois andou por Hespanha e França a manobrar politicamente em favor do seu querido Dom Antonio; por elle se tornou a bater no mar dos Açores;[Pg 165] e, finalmente, morreu em consequencia de peçonha que lhe deram para não cair nas garras de Filippe II.
Foi poeta, muito dado a damarias, e excellente cavalleiro e toureiro, o que explica, por atavismo, que estas duas prendas resurgissem, seculos depois, no 13.º conde.
Não deixou descendencia, motivo por que lhe succedeu no condado Dom Luiz de Portugal, segundo filho de D. Affonso, o segundo conde.
Este Vimioso tambem esteve com o pai em Alcacerquibir, e foi resgatado, mas Filippe II, por se vingar da affeição do 3.º conde ao Prior do Crato, sequestrou-lhe a casa. Andou Dom Luiz por Castella mais de trinta annos a requerer o que era seu, e só pôde rehavel-o tarde, e minguado.
Com os trabalhos e os annos reavivaram-se-lhe as tendencias para o mysticismo, manifestadas desde a mocidade. E elle e a condessa sua mulher deram ao mundo o singular espectaculo de abandonarem voluntariamente a côrte, a sua casa, os seus filhos, recolhendo-se a condessa ao convento do Sacramento, que ambos fundaram em Lisboa, retirando-se o conde para o mosteiro de Bemfica, do qual passou ao de S. Paulo em Almada, onde professou, vindo a morrer em Evora, e ahi jaz.
Na quarta parte da Historia de S. Domingos, livro terceiro, conta frei Luiz de Sousa largamente a historia d’este estranho divorcio, que por amor de Deus e sem desamor dos conjuges se effectuou.
[Pg 166]
E Garrett, no seu bello drama, tambem lhe faz referencia, quando Manuel de Sousa Coutinho diz á mulher, no segundo acto: «Olha a condeça de Vimioso, esta Joanna de Castro que a nossa Maria tanto deseja conhecer... olha se ella fazia esses prantos quando disse o ultimo adeus ao marido...»
O quinto conde de Vimioso foi D. Affonso de Portugal, primogenito do conde-frade e da condessa-freira. D. João IV, em 1643, creou-o marquez de Aguiar,[61] como premio dos serviços que prestára á causa da Restauração desde os tumultos d’Evora até ás longas campanbas de todo o Alemtejo, onde teve por émulo Mathias de Albuquerque, que o invejava.
Foi grande amador de musica, tão desvairado por ella, que em Madrid comprou por seiscentos mil réis duas violas, de bom fabricante, que o proprio Filippe IV achou caras.
D’esta paixão musical de Dom Affonso incidiu um reflexo atavico sobre o 13.º representante do titulo.
Succedeu-lhe o primogenito, Dom Luiz de Portugal. 6.º conde, que foi capitão de cavallaria (n’essa qualidade fez a campanha do Alemtejo, como seu pai), gentilhomem da camara do principe D. Theodosio, poeta, e helenista apreciavel.
Mas a todas as suas prendas fidalgas sobrelevou a da equitação, que exerceu a primor.
No famoso «desafio do jogo da péla», em que tomou[Pg 167] parte como padrinho de seu cunhado o conde de S. João, foi assassinado por um parcial do outro adversario, quando empregava esforços para impedir a pendencia.
Por não deixar successão legitima, passou a representação da casa para seu irmão Dom Miguel de Portugal, setimo conde, a quem Dom Affonso VI nomeou mestre de campo general, conselheiro de guerra, e governador das armas em Evora.
Foi estribeiro-mór da rainha Dona Maria de Saboya e védor da fazenda da princeza Dona Izabel.
Toda a sua paixão eram cavallos, musica, esgrima e livros.
É curioso observar como as tendencias hereditarias se vão reproduzindo n’esta família com pequenos intervallos de tempo.
Permittiu el-rei Dom Pedro II que o continuasse no titulo um filho illegitimo, Dom Francisco de Portugal, que foi o 8.º conde, e casou com uma filha dos primeiros marquezes de Alegrete.
Houveram um successor que foi Dom Joseph Miguel João de Portugal, 9.º conde, o qual escreveu, para lição e uso de seu filho, a relação da vida e feitos de seus ascendentes.
Intitula-se o livro Instrucçam que o conde de Vimioso Dom Joseph Miguel Joam de Portugal dá a seu filho D. Francisco Joseph Miguel de Portugal, fundada nas acçoens moraes, politicas, e militares dos condes de Vimioso seus ascendentes. Lisboa occidental, 1741.
N’este livro ha uma lacuna importante. O 9.º conde[Pg 168] não quiz fallar de seu pai, como por um sentimento de modestia, receioso de que pudessem tomar á conta de affecto filial quanto de elogioso houvesse de dizer.
Mas falla por elle o auctor da Historia Genealogica, o qual relata que Dom Francisco de Portugal recebeu o titulo de marquez de Valença,[62] que fôra de seu quinto avô, o conde de Ourem D. Affonso, filho do 1.º duque de Bragança.
Nós já tinhamos dito que o 1.º conde de Vimioso era neto do 1.º marquez de Valença, por onde vinha aos Vimiosos o parentesco com a casa de Bragança.
D. Francisco de Portugal, que foi provedor da Santa Casa da Misericordia, distinguiu-se tanto na piedade como nas bellas-lettras. Foi socio da Academia Real de Historia, em cujas collecções deixou escriptos seus, no genero das composições eruditas que caracterisam aquella academia e aquella epoca.
Innocencio, no Diccionario bibliographico,[63] traz a resenha de todas as obras compostas por Dom Francisco de Portugal, entre ellas uma que possuo, Instrucçam que o marquez de Valença D. Francisco de Portugal, do conselho de Sua Magestade, dá a seu filho primogenito D. Joseph Miguel Joam de Portugal. Lisboa, 1746.[64]
[Pg 169]
Esta Instrucçam, que é um compendio de conselhos moraes, com exemplos colhidos na historia universal, foi publicada trez annos antes do marquez de Valença morrer de apoplexia no paço real, e cinco annos depois do primogenito ter publicado aquella outra Instrucçam, que já mencionamos.
O 9.º conde de Vimioso e 3.º marquez de Valença, Dom Joseph Miguel, alem d’esta Instrucçam, e outras obras,[65] compoz a Vida do Infante D. Luiz, livro que anda nas mãos de todos os bibliophilos.
Casou com D. Luiza de Lorena, filha de seu primo co-irmão Manuel Telles da Silva, 3.º marquez de Alegrete.
Succedeu-lhe o 2.º filho varão, Dom Francisco Joseph, porque o primogenito morreu de pouco tempo.
Não sabemos o motivo por que este 10.º conde de Vimioso não usou o titulo de marquez de Valença.
O 11.º conde foi D. Affonso Miguel de Portugal e Castro, 4.º marquez de Valença, que falleceu a 27 de novembro de 1824.
O 12.º conde de Vimioso e 5.º marquez de Valença, D. José Bernardino de Portugal e Castro, par do reino e conselheiro de estado, casou com Dona Maria José de Noronha, 2.ª filha dos 1.ᵒˢ condes de Peniche, e morreu a 26 de fevereiro de 1840.
[Pg 170]
Fallemos agora do seu successor, que mais directamente interessa ao nosso assumpto.
O 13.ᵒ conde, D. Francisco de Paula Portugal e Castro, senhor da casa de Valença, com honras de parente, par do reino por direito hereditario, não foi, como continuador da sua familia, uma figura nulla e incolor.
A nobreza estava já decadente, em virtude das loucuras ruinosas da maior parte dos fidalgos, e do golpe politico que lhe vibrára a democracia constitucional.
Para o marquezado de Valença soara já a ultima hora, mas o condado de Vimioso, muito prejudicado em seus rendimentos pelo regimen liberal, que os ferira na origem, havia de sobreviver ainda alguns annos mais, na pessoa do seu decimo terceiro representante.
D. Francisco de Paula nascera a 28 de julho de 1817.
Aos vinte annos, isto é, em 1 de abril de 1837 casou por amor com D. Maria Domingas de Castello Branco, filha dos segundos marquezes de Bellas, e viuva do segundo conde de Belmonte, D. José Maria de Figueiredo Cabral da Camara, porteiro-mór da casa real, e capitão de cavallaria.
Esta illustre dama tinha mais 12 annos que D. Francisco de Paula, e enviuvára em 1834, ao cabo de 14 annos de casamento com o primeiro marido.
Não era rica, e não se preoccupara, desinteressadamente, com a questão de dinheiro ao passar a segundas nupcias.
Diz o sr. Queriol:
[Pg 171]
«O conde, novo e esbelto, casara por mutua paixão com uma virtuosa senhora viuva do conde de Belmonte, que tambem por sua parte pouco lhe ficára restando de fortuna propria.
«Mais velha do que o conde, a santa senhora limitou-se a ser educadora de seus filhos, libertando o marido do jugo matrimonial, do que elle bem se aproveitou, sendo um dos mais felizes conquistadores em assumptos amorosos. Foi talvez esta sociedade que lhe despertou o appetite da pouco duradoura aventura amorosa com a Severa.»
D. Francisco de Paula, impellido pela corrente tradicional da fidalguia portugueza, e desculpado pela bondade tolerante da esposa, entregou-se bem depressa á vida alegre e estouvada dos rapazes nobres do seu tempo e da sua idade.
Tornou-se perito exemplar em equitação e tauromachia e, por estes dois caminhos abertos á sua phantasia juvenil, entrou na bohemia elegante, a que tomou gosto, chegando a penetrar nas camadas populares onde a guitarra e o Fado, quando bem tangidos, não pediam passaporte, nem folha corrida a ninguem.
Era feição do tempo, e da nobreza de então.
Foi justamente na ultima classe social que encontrou a Severa, á qual não exigiu pergaminhos, nem credenciaes. Era uma excellente camarada para se fazer ouvir dedilhando a guitarra e cantando o Fado.
Como tal a acceitou na evidencia em que ella já se[Pg 172] tinha collocado por essas prendas, não obstante ter nascido condemnada á desgraça do lupanar.
Por sua parte, as classes populares adoravam o conde de Vimioso, que as tratava sem preoccupações hierarchicas, e que se distinguia pela exteriorisação de qualidades que muito deslumbram o criterio pouco intellectual do povo: a valentia, a coragem, o primor da guitarra e do toureio.
O unico exemplar notavel d’este genero de fidalgos foi, no meu tempo, o marquez de Castello Melhor.
O sr. Queriol reduziu tambem a lenda do conde de Vimioso aos devidos termos, mas ainda assim resulta do seu artigo uma figura sympathica, que foi o conde, distincta por aquellas qualidades, não intellectivas, que o publico aprecia e que ainda hoje constituem a galhardia do moderno sport.
Desde muito novo que D. Francisco de Paula se notabilisou pelo valor physico e destemida coragem.
Creança de 16 para 17 annos, serviu o exercito liberal como aspirante de lanceiros.
Com referencia a essa epoca conta o sr. Queriol:
«O seu animo corajoso e sua força herculea tornaram-n’o notavel em varias proezas, contando-se entre ellas a de ter nas linhas de Lisboa, em presença do imperador, mettido hombros e arrombado um forte portão de ferro que impedia a passagem de tropas liberaes que tinham de occupar uma posição estrategica e só por ali podiam fazer caminho.
«D’esta sua força muscular foi testemunha (e appello[Pg 173] para a memoria do então aspirante de artilharia e hoje general Victo Moreira, ajudante de campo de el-rei) quando n’uma tarde, sahindo D. Pedro de Sousa Coutinho, filho mais novo do conde de Linhares, de casa do fallecido conde das Galveias D. Antonio, no seu elegante pháeton puxado por dois poneys hanoverianos de forçosa pujança apesar da diminuta estampa de seus corpos, o conde de Vimioso, segurando com a mão direita o eixo trazeiro do carro e com a esquerda o varão do portão do palacio, embora o elegante D. Pedro se esforçasse em fustigar a parelha e esta se empenhasse em arrancar o trem do logar em que se achava, não puderam os poneys adiantar um passo limitando-se a escarvar a calçada, inutilisadas as suas forças pelas que lhes oppunha o valente titular.»
Outro exemplo de pujante denodo conta o auctor do artigo.
Foi por occasião da feira do Campo Grande.
Dois valentões da provincia tinham se postado junto ao portão de ferro, que então limitava o Campo Grande pelo lado do Lumiar, e não deixavam entrar nem sair ninguem.
A que distancia já ficam hoje estas bravas tunantadas portuguezas, e que mal se podem comprehender agora!
Raça de Hercules, no acerto ou na loucura, quebramos: agora estamos a pedir funda.
O povo levantou celeuma contra os dois pimpões,[Pg 174] mas não ouzava affrontal-os, porque algum saloio que investia, recuava ganindo, deslombado.
Com o conde de Vimioso estavam almoçando n’essa occasião o sr. Miguel Queriol e João Nunes Vizeu.
Ouviram o borborinho que vinha da alameda, informaram-se da occorrencia, e não tiveram um momento de hesitação.
Narra o sr. Queriol, sem faltar de si mesmo, mas certamente que não deixou de molhar a sua sopa, porque era muito desembaraçado:
«O conde de Vimioso e José Vizeu apenas tiveram tempo de cada um se munir de bons cajados de marmaleiro, e fazendo frente aos dois varredores de feiras os levaram a tombos até junto da feira, onde os soldados municipaes os receberam contusos e confusos da má sorte que em Lisboa veio offuscar a sua valentia provinciana.»
Todos estes predicados davam prestigio, faziam lenda ao conde no conceito popular. Pode imaginar-se a ovação de que elle seria alvo n’aquella manhã do Campo Grande, quando varreu os dois alcides que varriam a feira.
Como atirador, D. Francisco de Paula foi prodigioso.
Depõe o sr. Queriol, cujo artigo diz mais e melhor no seu proprio texto do que o poderiamos fazer em extracto:
[Pg 175]
«O conde de Vimioso era um notabilissimo caçador e em occasiões de falta de dinheiro, de proventos de sua casa, sahia de Lisboa e, provido apenas da sua espingarda, petrechos de caça e dos de toilette de que nunca prescindia, o que obtinha de suas excursões venatorias enviava como qualquer caçador de contracto á Praça da Figueira, para com o producto da venda viver modestamente nos sitios affastados da capital, mas sem recorrer a outros meios que sem verdade lhe attribuem.
«Da sua notavel aptidão como atirador ainda invoco o testemunho do actual general Victo Moreira (discipulo do conde em equitação, de que depois foi laureado cursador nos picadeiros em França); alem do que, outras testemunhas podem certificar de que sendo o conde desafiado a matar morcegos, ao anoutecer e em pleno Campo Pequeno, abateu todos os que esvoaçavam a distancia de tiro de espingarda, não obstante a escuridão que em nada lhe prejudicava a certeira pontaria.»
A phrase final do primeiro periodo que deixamos transcripto—mas sem recorrer a outros meios que sem verdade lhe attribuem—contramina a lenda de que o conde de Vimioso ciganava em cavallos mais que os proprios ciganos.
A este respeito temos dois testemunhos dignos de toda a fé: o do sr. Queriol e o de Bulhão Pato.
Refere o sr. Queriol que precisando comprar um cavallo, lhe offereceram uma égua, mas por tão baixo preço, que o fez desconfiar.
[Pg 176]
Foi consultar o conde, que lealmente o avisou de que não comprasse a égua, que era doida; e quanto á respeitabilidade do vendedor preveniu-o de que «em negocios de cavallos não havia que confiar em cavalheirismos, por ser essa a norma geral n’estes negocios».
Não contente com isto, o conde indicou ao sr. Queriol outro lavrador, que effectivamente o serviu bem, porque lhe vendeu a preço razoavel um cavallo sem resaibo, e muito resistente.
Conclue, com razão o sr. Queriol:
«Em abono á lealdade com que fui tratado, devo protestar contra a lenda que a muitos tenho ouvido de ser o conde de Vimioso o cigano mais temivel em negocio de cavallos, quando, como deixo acima dito, foi elle proprio a prevenir-me ser norma geral n’estes negocios não se confiar senão na propria experiencia.»
Quanto ao testemunho de Bulhão Pato, por igual abonatorio, logo o traremos a lume.
O artigo do sr. Queriol teve por fim principal refutar o episodio do drama do sr. Julio Dantas em que o conde (com outro supposto titulo) puxa de uma navalha.
Sobre esta phantasia o sr. Queriol protesta categoricamente, dizendo:
«O conde de Vimioso do nosso tempo era um excentrico, mas d’ahi a usar de navalha de ponta e molla e[Pg 177] a suciar com bolieiros e fadistas da Mouraria, vae a distancia de um extravagante que o era de polpa para um ser inferior que elle nunca foi.
«A navalha era por tal fórma alheia aos habitos sociaes em rapazes da época do conde de Vimioso, que uma só vez o que escreve estas recordações a viu brilhar na mão de um pouco conceituado frequentador do Marrare (cujo nome não cito por consideração a pessoas respeitabilissimas da sua familia, que ainda existem e não podem ter responsabilidade em factos degradantes de seus maiores já defuntos)—e que em questão de jogo de bilhar, offendido por um insulto do Lima da Cardiga, puxou de uma luzente catalan que Lima da Cardiga, em furia de leão, lhe arrancou da mão e fez pedaços no sobrado, subjugando sob os joelhos o aggressor, que os circumstantes salvaram de ser suffocado, mas não espesinhado pelo athletico Lima, que foi calorosamente applaudido pelos circumstantes, sendo apupada e envilecida a acção tão extraordinaria na sociedade d’então.
«Creio que d’esta scena foi testemunha D. João de Menezes, ainda vivo, mas pelo menos deve d’ella ter tido conhecimento.»
Agora é opportunidade de reproduzirmos o testemunho de Bulhão Pato; consta de uma carta dirigida ao sr. Queriol, e publicada no Popular de 8 de abril de 1901:
Monte de Caparica, Torre, março, 11, 1901.
Meu...
Conheci o conde de Vimioso quando tinha eu 15[Pg 178] annos, por que fui da creação do irmão mais novo—D. Pedro de Portugal e Castro. A mãe—marqueza de Valença—era muito minha amiga. Vimioso, como sabes, na praça dos toiros, no palacio e na feira dos ciganos era sempre um fidalgo de raça. Nunca usou faca senão as facas que montava; nunca levou aos beiços um quartilho em tabernas. A graça viva saltava-lhe da physionomia com os ditos originaes, portuguezes e galantes.
Fazia os seus alborques de cavallos, não havia cigano que o embaçasse, porém, repito, foi sempre um gentil-homem.
N’uma toirada no Campo Grande, no pateo da casa d’elle—em setembro de 88!—quando eu ia a metter um par de ferros n’um garraio—disse elle, alludindo aos meus primeiros versos—Se coras não conto—Se marras não brinco! Vivi muito, muito com elle, principalmente em caçadas na Torre Bella, nas lezirias, pelo Alemtejo. Que dias!
Abraço-te, a tua santa mulher e a teus filhos.
Teu do C.ᵒ
Bulhão Pato.
A maior evidencia do conde de Vimioso foi como cavalleiro tauromachico, prenda que reune duas aptidões distinctas, a da equitação e a do toureio.
«Montava com rara elegancia e perfeição—escreve[Pg 179] Pinheiro Chagas[66]—e póde dizer-se que foi o Marialva do nosso seculo XIX. Tambem esse grupo de rapazes que se denominam marialvas, se não quizessem ir buscar tão longe o seu cognome, podiam denominar-se vimiosos com muita razão, porque assim consubstanciavam n’um nome aristocratico as suas qualidades e os seus defeitos.»
Por sua parte diz o sr. Queriol:
«Notabilissimo na arte de montar—de uma figura elegante e sympathica—com o seu titulo de nobreza de sangue, o conde foi o escolhido pelos amadores da arte tauromachica, que ia decahindo em abatimento, para rehabilitar a memoria dos antigos lidadores em combate com o feroz animal, sendo unanimemente acclamado o cavalleiro que devia reivindicar a fama do seu antepassado marquez de Marialva. Desempenhou-se o conde do seu encargo com enthusiastico applauso de milhares de espectadores, nas primeiras touradas chamadas de Fidalgos que tiveram logar na praça do Campo de Sant’Anna sob a direcção de João Pereira da Silva da Fonseca «o morgado d’Alcobaça» e em que fizeram de netos D. José, da casa Loulé, e Roberto Camello, um elegante do seu tempo e muito estimado na sociedade lisbonense».
Os primeiros ensaios tauromachicos do conde realizou-os elle no pateo do seu palacio, ao Campo Grande.[Pg 180] Depois appareceu nas corridas de amadores na praça do Campo de Sant’Anna, ao lado de D. José Maria de Mendóça (Loulé), tambem official de cavallaria, e a opinião publica não duvidou acclamal-o como o primeiro «cavalleiro» do seu tempo.
A D. José Mendóça se referia um dos Fados tauromachicos cantados pela Severa, quando dizia:
O conde de Vimioso não se limitou apenas a executar as melhores sortes de toureio estabelecidas pela tradição: inventou uma, a que deu o nome de cara a cara.
É o que hoje chamamos á estribeira.
O cavalleiro dirige-se para o touro ladeando o cavallo sobre a direita, e na altura da rez arrancar, passa o cavallo de mão: o touro deve receber o castigo quando mette a cabeça junto ao estribo do cavalleiro.
Esta sorte é brilhante e arriscada, requer uma grande certeza. O conde de Vimioso, seu inventor, nem sempre pôde leval-a a effeito, mas enthusiasmava delirantemente o publico quando a realizava.
D. Francisco de Paula, como cavalleiro, adoptou um principio, que impunha a si proprio, e recommendava a todos os outros aficionados: «O trabalho do toureio a cavallo consiste essencialmente em que o cavalleiro,[Pg 181] pela sua destreza e arte, zomba do poder do animal, sem que elle ou o seu cavallo recebam o mais ligeiro contacto, o que constitue sempre desaire».
Uma ou outra vez lhe falhou na pratica este preceito, mas o conde desaffrontava-se logo com grande galhardia e brio.
Aconteceu isso em Evora, n’uma corrida a que assistiram muitos portuguezes e hespanhoes.
O touro saiu com tal rapidez, que nenhum recurso pôde ser efficaz ao cavalleiro.
Vimioso foi colhido e derrubado conjuntamente com o cavallo, que ficou muito contuso.
Mas, habilmente, o conde tirou-se da sella, montou outro cavallo em sellim razo, e castigou o touro, que o havia desfeiteado, com oito ferros, que levantaram a praça n’uma ovação colossal.
Comprehende-se que n’esta e outras occasiões, em que o conde de Vimioso enflorava o seu brazão com tantas provas de coragem, denodo e mestria, visse acenarem-lhe na praça muitos lenços brancos, agitados por mãos femininas, umas em que a brancura patricia era soignée com primor, outras morenas e menos cuidadas, como as da Severa, que, subjugada pela fascinação do cavalleiro prodigioso, o applaudia n’um frémito de enthusiasmo estonteante.
«O conde de Vimioso, diz o sr. Queriol, foi sempre o alvo dos mais calorosos applausos e o idolo das mais formosas damas, que lhe disputavam a preferencia em amores».
Como era de prevêr, a vida do conde gastou-se rapidamente.[Pg 182] O seu organismo ardia em frequentes incendios, que lhe apressaram a morte aos 47 annos de idade.
Coincidencia notavel: falleceu no palacio do largo do Metello no mesmo mez em que tinha nascido.
A Revolução de Setembro do dia 10 de julho de 1864 noticiava que o conde de Vimioso havia expirado na noite antecedente, depois de um prolongado padecimento, ao qual succedeu um typho.
N’esse mesmo dia 10, um domingo, se realizou o funeral.
E, coincidencia não menos notavel! á hora em que o funebre cortejo saía do largo do Metello, ali perto, na praça do Campo de Sant’Anna, effectuava o cavalleiro Diogo Henriques Bettencourt o seu beneficio com um curro de 13 toiros fornecido pelo lavrador do Ribatejo Francisco da Silva Falcão.
O cortejo funerario d’esse que fôra o primeiro cavalleiro portuguez do seu tempo, e que tantas e tão ruidosas ovações conquistára na arena, contrastava singularmente com o cortejo tauromachico que á mesma hora entrava na praça ao som do hymno real para dar começo á lide.
As palmas e os bravos, com que o publico saudava os lidadores, contrapunham-se ás palavras doloridas com que os velhos aficionados lastimavam, caminho do cemiterio, a morte do conde de Vimioso.
E quando o ultimo raio de sol poente, n’essa calmosa tarde de julho, se apagava sobre o tumulo que recebera o cadaver do conde, o publico, na praça do[Pg 183] Campo de Sant’Anna, levantava-se em massa, fremente de enthusiasmo, a applaudir o grande Sancho, que acabava de marear o ultimo touro da corrida com uma brilhante navarra.
O Fado do Vimioso foi publicado no fasciculo 61 do Cancioneiro de musicas populares portuguezas.
[Pg 184]
Acompanham-n’o algumas quadras, de origem manifestamente popular, porque são incorrectas e banaes.
O conde é ahi tratado pelo anagramma de Moisivo.
A lettra é muito posterior á morte de D. Francisco de Paula, como se vê da seguinte quadra, penultima do Fado:
O auctor da lettra explora a lenda (elle mesmo emprega esta palavra) da «paixão» do conde pela Severa, cujos encantos avulta com poetica phantasia:
[Pg 185]
E, continuando a lenda, falla do conde como de um cego amante que tivesse morrido de amor:
O que é certo é que a lenda da Severa e do conde de Vimioso, tal como a musa popular a foi cantando ao sabor das multidões, estimulou a corrente que vulgarisou o Fado, especialmente no sul do paiz, e que lhe reforçou um caracter de vaga saudade, de tristeza plangente, em que parece pairar a longinqua memoria de uma supposta allucinação amorosa que um fidalgo bohemio experimentou por uma pobre moça fadista, de chinella de polimento ponteada a retroz vermelho.
Todas as mulheres dos bairros infamados, todas as criadas de servir, todas as camareras de botequim cantam de preferencia o Fado da Severa e o Fado do conde de Vimioso, dando-lhe uma intenção de aristocracia rehabilitadora pela esperança de que um novo conde, seguindo o exemplo de D. Francisco de Paula, venha enamorado, dedilhar a banza, em honra de uma segunda Severa plebea.
[Pg 186]
«Ainda hoje, diz Pinheiro Chagas,[67] se ouve cantar a deshoras, com acompanhamento de guitarras, por vozes nem sempre da primeira frescura, uma melodia melancolica e plangente, que se denomina o fado do conde de Vimioso.»
[51] Em os numeros de 7 e 8 de abril de 1901.
[52] Estas iniciaes são as do nome de Diogo Henriques Bettencourt.
[53] Os ciganos de Portugal, pag. 221.
[54] Os excentricos do meu tempo, pag. 289.
[55] Amores de Vieira Lusitano, pag. 129.
[56] Pag. 237.
[57] Photographias de Lisboa, pag. 64.
[58] Vol. 13.ᵒ, vocabulo Vimioso.
[59] Estes factos foram por mim recolhidos da tradição oral e contados n’um folhetim do Diario de Noticias, de 12 de junho de 1893,
[60] C. Castello Branco, Sentimentalismo e historia, pag. 70.
[61] Hist. Gen. tomo X, pag. 756-757.
[62] Por carta regia de 10 de março de 1716. Hist. Gen., tom. X, liv. X, cap. XI.
[63] Tom. III, pag. 27.
[64] Francisco José Freire escreveu o elogio do 2.º marquez de Valença. Foi publicado em 1749.
[65] Dic. Bibl. tom. V, pag. 74. Entre as outras obras merece especial menção a Instrucçam que dá a seu filho segundo D. Manuel José de Portugal, fundado nas acções christãs, moraes e politicas dos ecclesiasticos que teve a sua familia. Lisboa, 1744.
[66] Dicc. Pop., vocab. Vimioso.
[67] Dicc. Pop., vocab. Vimioso.
[Pg 187]
Sobre esse fundo de singeleza e espontaneidade, que tanto caracterisa a lettra e a musica da maior parte dos nossos Fados, lembraram-se alguns trovistas de bordar complicados floreios de palavras, procuradas com esforço e artificio, laboriosamente.
Assim como o rythmo musical foi asiaticamente ornado com variações pretenciosas, que rendilharam de laçarias difficeis a ingenuidade inicial do Fado, tambem a lettra, a glosa, se enredou em extravagancias e boleios exoticos de linguagem, parallelamente.
O espirito humano parece enfadar-se da simplicidade, que se lhe torna um ramerrão fastidioso, e d’ahi provéem os excessos e requintes com que arrebica as modas e exaggera os figurinos, tanto para vestir o corpo como o pensamento.
Os amphiguris, que ainda estavam em voga quando o Fado, singelo e corrido, os rechaçou como velharias[68],[Pg 188] vieram mais tarde a reproduzir-se, em differente métrica, mas com o mesmo intuito de jogos malabares de phrase, nos Fados exdruxulos, nos Fados enygmaticos, nos Fados de trocadilho e nos Fados tautophonicos (repetição).
É claro que toda a naturalidade da poesia popular foi estrangulada n’estas tentativas de habilidosa gymnastica, algumas mais felizes do que outras; mas a alma de um povo não se torce facilmente, como vara tenra, nas manifestações da sua sentimentalidade espontanea e nativa.
Essas tentativas passam, e a indole fundamental do Fado permanece a mesma.
Os Fados exdruxulos, bem como todos os outros em que o artificio predomina, podem ser admirados quando o mereçam, como esforço de paciencia; mas só isso, porque não encontram ecco dentro do nosso coração, nem affectuosa adhesão no nosso espirito e memoria.
Pode achar-se-lhes mais ou menos graça, mas não se lhes encontra sentimento, e a poesia do povo só vive á custa das suas proprias emoções.
Exemplo de Fado exdruxulo:
[Pg 189]
Exemplo de Fado enygmatico, em que é preciso interpretar o sentido das cacophonias:
Exemplo de Fado em trocadilho de homonymos:
[Pg 193]
Exemplo de Fado tautophonico sem que a rima seja obrigada a exdruxulos:
Entre os Fados de repetição merece menção especial o seguinte, que é, no genero, dos melhores e por ventura o mais litterario que conhecemos:
Lembrou, naturalmente, aos que procuravam esta estrondosa orchestra de palavras, que os glossarios ou nomenclaturas lhes podiam fornecer uma abundante[Pg 196] mina, e trataram de exploral-a com os minguados recursos technologicos de que dispunham.
Exemplo de Fado mythologico:
Exemplo de Fado botanico:
Exemplo de Fado zoologico:
Esta especie de Fados valorisou-se pela intervenção de um estudante bohemio que, dispondo dos conhecimentos scientificos que ia adquirindo nas aulas, de veia poetica e de graça espontanea, lhes deu um caracter de rigorosa technologia ao mesmo tempo que um sainete espirituoso, alteando-se sobre as composições corriqueiras com que o povo pretendia invadir os dominios da sciencia.
Chamava-se Luiz Filippe Ferreira d’Almeida Mello e Castro, e era filho de Bernardino Antonio Ferreira e de D. Maria José d’Almeida Mello e Castro.
Nasceu em Lisboa a 21 de abril de 1844.
Um seu contemporaneo e amigo, Urbano de Castro,[69] traçou-lhe á penna o seguinte retrato, a meu pedido:
«Luiz d’Almeida era de estatura acima do regular; a não ser nos dias de desalento, que não eram muitos para o seu espirito naturalmente despreoccupado e alegre, desempenava a figura, e attraia a attenção das mulheres pelo seu porte garboso.
[Pg 201]
«Os olhos pardos tinham scintillações tão vivas, que muitos olhos negros os invejariam. Graciosissimo o sorriso, onde brincava a ironia. Raras vezes recorria ao sarcasmo. O seu coração era bom de lei.
«O bigode, castanho, não era propriamente o que se chama uma bigodeira, mas tinha alguma coisa de petulante, com as suas guias retorcidas, agudas, como pontas de lanças.
«A gesticulação era viva como a de um puro meridional.
«A voz agradavel, e punha-lhe um tic especial de graça o carregado do r.
«Quando lhe dava para janota, nenhum official o excedia no brilho do uniforme, na elegancia do porte, etc.»
Luiz d’Almeida matriculou-se na Escola Polytechnica em 15 de outubro de 1859.
Estouvado e folgasão, deu pouca attenção ao estudo das disciplinas que ali ia buscar para seguir o curso militar na Escola do Exercito.
Assim foi que ficou reprovado na 1.ª cadeira (mathematica) e que não fez exame da 5.ª cadeira (physica) nem do 1.º anno de desenho.
Sem embargo, tanto os seus professores como os seus condiscipulos reconheceram-lhe desde logo uma intelligencia penetrante e, tambem, um fina graça natural, que o tornava querido e procurado dos outros estudantes, os quaes o acclamaram chefe da bohemia academica.
Em 1860 repetiu o anno na Polytechnica, tendo obtido[Pg 202] 12 valores em mathematica e 10 em desenho. De physica não fez exame.
Em outubro de 1862 matriculou-se na Escola do Exercito, como ordinario, com destino ao curso de infantaria.
Em 1863 fez exame da 1.ª cadeira a 22 de junho, e foi approvado com a classificação de sufficiente; exame de topographia, em 11 de julho, com igual classificação; e de sabre em 30 de julho, sendo approvado pela maior parte.
Matriculou-se pela segunda vez na Escola do Exercito em 14 de outubro de 1863, na mesma classe de ordinario, e fez exame do 1.º anno de desenho, obtendo a classificação de sufficiente.
Em 1865 voltou á Escola Polytechnica, onde se matriculou nas aulas de calculo, chimica mineral e economia politica.
O gosto pela bohemia havia-o empolgado completamente. Era o mais endiabrado dos estudantes nas folias do carnaval. E como guitarrista, nas serenatas ao luar, não havia quem o excedesse a cantar Fados de sua mesma composição, Fados scientificos, feitos com a nomenclatura das disciplinas em que se tinha matriculado, e de que elle apenas parecia disposto a colhêr a flor da graça.
Perdeu na Polytechnica, successivamente, trez annos lectivos, de 1865 a 1868.
Em 1869 pôde finalmente vêr-se livre do calculo, da chimica mineral e da economia politica, ficando approvado com 10 valores em cada uma d’estas cadeiras.
[Pg 203]
Mas não conseguira ainda desembaraçar-se do 2.º anno de desenho, em que ficou reprovado.
Relativamente ao anno de 1869, diz a nota que solicitei da Escola Polytechnica:
Matricula em 14 de outubro:
3.ª cadeira (mechanica) exame em 6 de julho de 1870: reprovado.
5.ª cadeira (physica) exame em 26 de julho: approvado com 10 valores.
Geometria descriptiva (1.ª parte) não fez exame.
Analyse e chimica organica, exame em 6 de maio: approvado com 10 valores.
Desenho (2.º anno) exame em 30 de julho: approvado com 10 valores.
Em outubro de 1871 voltou a frequentar a cadeira da mechanica, ficando approvado com 10 valores.
Tambem fez exame da 1.ª parte de geometria descriptiva, sendo classificado com 11 valores.
Intencionalmente publicamos estas indicações escolares, porque ellas mostram eloquentemente a feição bohemia de Luiz de Almeida.
Quando se propunha dar alguma attenção aos compendios, ainda que pouca, logo conseguia aproveitar o anno lectivo, sem cuidar de que outros menos intelligentes lhe passasem adeante com melhores classificações.
Mas, adeus livros, adeus aulas, quando a vida alegre e irrequieta o tentava, e os condiscipulos lhe punham entre as mãos a guitarra para que cantasse os seus Fados, que adquiriram grande voga entre todos os estudantes de Lisboa.
[Pg 204]
D’esses Fados, que merecem ficar archivados n’este livro, vamos dar trez specimens, em que esfusia a graça brilhante de Luiz de Almeida, e que representam a alliança da poesia popular com o vocabulario da sciencia n’uma expressão rigorosamente technica.
[Pg 208]
Este Fado appareceu no Almanach de Lembranças para 1890, pag. 472, assignado por José Carlos Lagrange (Lisboa).
[Pg 209]
Mas todos os contemporaneos e amigos de Luiz de Almeida lh’o attribuem.
Um d’elles, Urbano de Castro, veiu á imprensa reivindicar para esse inolvidavel bohemio, que tinha a especialidade dos Fados scientificos, a paternidade d’este Fado.
Essa reivindicação foi feita no Correio da Manhã, a cuja redacção pertencia então Urbano de Castro, que pessoalmente me confirmou este facto.
Luiz de Almeida tambem compoz um Fado dos vinhos, de que apenas conheço uma quadra, o mote:
Sobre a vida airada de Luiz de Almeida são muito interessantes as informações que me forneceu o illustre professor, e meu amigo, Luiz Feliciano Marrecas Ferreira.
Recorto de uma sua carta os seguintes periodos:
«Namorou-se de uma rapariga, que andava n’um baile de mascaras, vestida á Luiz XV—a Peregrina—levou-a para casa, mas, como o dinheiro, mal chegando para o indispensavel, não era elastico, não lhe pôde dar outro fato, resultando d’ahi o ella ter de ir ao talho, ao vinho... ao diabo! invariavelmente vestida á Luiz XV.
«Teve amores com uma outra, que era hespanhola,[Pg 210] e, como não soubesse a significação de varias palavras do idioma d’ella, resolveu-se a comprar um diccionario. N’um bello dia a mulher foge, elle quer-lhe ir no encalço, junta o pouco dinheiro que tinha e o que pôde realizar. Lá foi o diccionario para o prégo!
«Mostrando aptidão devéras para o estudo das cadeiras, que devia frequentar, pouco estudou durante largos periodos. Chegando a certa altura do anno, abandonava qualquer d’ellas e fazia um fado, onde revelava sempre com bastante espirito algum conhecimento do assumpto, não se lhe tendo nunca apontado um erro.
«Inventou a seguinte reacção chimica: «o alcool em presença do ether vinico perde uma molecula de agua e toma uma de vinho.» Se o alcool realmente toma, ou não, os sabios que digam, elle é que nunca deixava de tomar varias vezes por semana com uma frequencia bem assignalada pela policia e pelos numerosos amigos e companheiros.
«Depois de lauta ceia em casa de um titular, bastante conhecido (visconde de Trancoso?) foi passear com um amigo e já de madrugada recolheu a penates. Deu-lhe para molhar toda a gente, que passava pela rua, e da saccada do segundo andar, defronte da Polytechnica, foi deitando agua até que se lhe acabou—n’esse tempo não havia canalisação, vivia-se em pleno regimen de barril e aguadeiro—e elle foi-se resignando a assistir a sêco ao transito da rua. N’isto passa o antigo bando dos toiros: campinos a cavallo, uma charanga de barulho ensurdecedor, arruaça, garotos e não garotos a apanhar cartazes.
[Pg 211]
«Luiz de Almeida lembra-se de que ainda poderia haver alguma agua no fundo do pote, foi n’um pulo á cosinha, tira-o do poial e tral-o para a janella, onde o sacudiu a vêr se deitava alguma coisa, até que se lhe escapa das mãos indo cahir com grande estardalhaço n’um intervallo dos cavallos, partida esta que o levou á Boa Hora.
«Felizmente ninguem ficou ferido, e o pote, tambem como a taça do celebre rei de Thule, mereceu as honras de uns versos.
«No primeiro andar d’essa casa moravam as Manas Perliquetetes, n’essa época gente séria e recatada e só deixaram de o ser quando ao L. de Almeida passou pela cabeça—o que realizou—tornar-se seu perceptor.
«Quando não vivia em faux ménage, arranjava uma républica de rapazes, sendo então um verdadeiro inferno para os senhorios.
«No pequeno largo, entre a R. do Telhal e a de Santo Antonio dos Capuchos, morava n’um primeiro andar com o Alves (que morreu capitão de artilheria); o Anthero, do Porto; e o Thomaz Malheiro (engenheiro civil já fallecido). N’uma manhã põe escriptos nas janellas, apesar de nenhum d’elles ter feito tenção de se mudar; batem á porta, vae abrir a uns sujeitos que não conhecia, mostra-lhes a casa e leva-os para a cosinha depois de longo discurso sobre as vantagens e inconvenientes do que iam vendo, até que pôde fechal-os á chave. Os homens berraram, era uma bulha dos demonios na cosinha, os companheiros d’elle riam a bandeiras despregadas e o Luiz de Almeida vae pôr-se[Pg 212] á janella a assoprar n’um apito até que veiu a policia libertar os presos, pregando com estes e com aquelle no Carmo.
«Já official de artilheria e no polygono de Vendas Novas deu largas á veia poetica e folgazã fazendo versos a tudo e a todos.
«Alli havia por esse tempo um tal Rodarte, com mania de caçador, mas sem a destresa necessaria para esse sport, o qual á volta do campo trazia sempre, ou quasi sempre, alguma caça comprada a um ferrador, que existia no caminho. Fez-lhe um dia varias quadras, sendo a primeira:
Como todos os bohemios, Luiz d’Almeida morreu em plena mocidade, crêmos que pouco depois do verão de 1872, sem que possamos designar com segurança a data do seu fallecimento.
Na academia de Lisboa, elle foi o mais completo exemplar do estudante-menestrel, errante de bairro em bairro, de rua em rua, a cantar o Fado ao som da guitarra dolente, por noites de luar, n’umas férias sem fim.
Sempre os moços souberam canções, porque amam as mulheres, a liberdade e a alegria, e porque, n’uma palavra, são moços. Os estudantes teem por si a tradição[Pg 213] de poetas e namorados, que tambem é uma recommendação suggestiva. Lá diz a trova:
As suas canções (estudantinas), muito sentimentaes, prestam-se facilmente ao rythmo mavioso do Fado, para o qual elles compõem quadras de fino sabor litterario, que contrastam, pela elevação dos conceitos e pela belleza da fórma, com o Fado popular.
Em algumas localidades ha Fados escolares de classe, como, por exemplo, o Fado dos estudantes açorianos, que foi recolhido no Cancioneiro de musicas populares[85].
N’outras localidades, principalmente em Coimbra, cada estudante poeta dá largas ao lyrismo individual em quadras de Fado, que vão passando de guitarra em guitarra até se generalisarem na classe e depois no paiz.
Hylario foi moderadamente o grande aédo do Fado escolar coimbrão.
[Pg 214]
Depois de Luiz d’Almeida não tinha apparecido ainda entre a classe escolastica de Portugal um mais notavel e mais errante cantor de Fados litterarios.
A sua vida foi ephémera, segundo a lei fatal dos bohemios; mas o seu nome ficou ligado indissoluvelmente á tradição nacional do Fado.
Chamava-se Augusto Hylario Costa Alves; mas o seu nome de guerra foi simplesmente «Hylario».
Elle conquistou a celebridade que dispensa appelidos e avós.
Era natural de Vizeu e surprehendeu-o a morte quando, através as delongas proprias da vida esturdia, frequentava o 3.º anno da faculdade de medicina em Coimbra[86].
Tinha sido nomeado aspirante a medico do ultramar.
Matou-o, na sua terra natal, uma doença do figado, cremos que cyrrhose, aggravada por um ataque de grippe.
Falleceu, estando em férias de Paschoa, no dia 3 de abril de 1896.
A sua morte causou sensação em todo o paiz, e o seu funeral teve aquella pompa solemne que costuma derivar da celebridade do morto.
Dizia um telegramma de Vizeu, dando conta d’esse triste acontecimento:
[Pg 215]
«VIZEU, 4, ás 7 h. 35 m. da t.—Hylario, o estudante bohemio que todo o paiz conhece, principalmente pelo seu fado popularissimo, soffria do figado. Foi essa a doença que o matou, consequencia de um ataque de influenza.
«O seu corpo foi velado em casa da familia, onde morreu, por academicos.
«O seu enterro realizou-se ás 6 horas da tarde de hoje. Vestiram-lhe o uniforme de aspirante de medico naval. Acompanharam varias irmandades e a banda de musica de infantaria 14, sendo a chave do caixão entregue ao coronel do mesmo regimento. Ás borlas pegaram os officiaes, sendo o feretro conduzido pelos estudantes do lyceu de Vizeu e dos cursos superiores das differentes escolas do paiz, que aqui tinham vindo passar as ferias da Paschoa.
«No cemiterio foram depostas oito corôas, sendo uma da familia, outra do curso do terceiro anno medico e as restantes de varios academicos e pessoas amigas do inspirado guitarrista.
«Pronunciaram discursos, quando o corpo baixou á terra, um estudante do lyceu d’esta cidade, dois estudantes de Coimbra e o advogado Alberto Ponces.
«A guarda de honra, porque o finado tinha honras militares como aspirante a medico naval, foi prestada á porta do cemiterio por uma força, que deu as trez descargas do estylo.
«A morte do pobre rapaz foi muito sentida em Vizeu.»—M.
Na população de Coimbra, habituada a ouvil-o, a[Pg 216] manifestação de sentimento foi ainda maior talvez do que em Vizeu.
Um telegramma d’aquella cidade dizia:
«O academico Hylario era muito conhecido em todo o paiz pelos seus popularissimos fados. Em Coimbra deixa saudosas recordações. Seu genio jovial e tendencias bohemias deram-lhe grande prestigio e ascendencia na actual mocidade academica. Em Coimbra é sentidissima a sua morte.»
Todos os jornaes diarios do paiz se referiram largamente ao Hylario; alguns publicaram o seu retrato, esse conhecido retrato em que elle, de capa e batina, cabeça ao lado, olhos em extasi, dedilha na guitarra um dos seus Fados dolentes.
Lisboa conhecia-o, tinha-o ouvido; mas os seus Fados haviam chegado á capital primeiro do que elle.
Um jornal da epoca relembrou n’estes termos a sua vinda a Lisboa:
«Occorreram as festas em honra do João de Deus. Com a academia de Coimbra veiu Hylario a Lisboa.
«O rythmo inédito do seu fado ia então ter o ensejo de lançar o vôo e popularisar-se como se popularisaram os versos do grande poeta.
«A poesia e a musica do povo abraçavam-se ali, por um decreto do acaso, tendo surgido com o intervallo de trinta annos.
«Todos iriam decorar o fado do Hylario como haviam decorado as quadras adoraveis de João de Deus.
«O destino como que quizera tambem consagrar o grande poeta do amor inventando este bohemio legitimo,[Pg 217] authentico como os dos lendarios tempos de João de Deus, para fazer perdurar, por uma musica grata ao povo, a lembrança d’aquella festa sympathica da mocidade.
«E assim foi.
«Durante trez noites Lisboa ouviu, altas horas, os accordes tristes da guitarra do Hylario e a sua voz potente a que elle imprimia um tom de melancolia estranha:
«Da rua passou ao theatro. A não ser nas peças puramente academicas, estava deslocado n’aquelle meio. Tão legitimamente bohemios eram os seus fados, a sua maneira de cantar, que o effeito falhava todo como falharia um trecho de Mozart tocado n’uma baiuca de camareras.»
Em Vizeu sahiu a 12 de junho de 1896 o primeiro numero de um semanario imparcial, intitulado Hylario.
Declarava no artigo do fundo que o seu programma, alem de ser «uma consagração á memoria do que pode dizer-se o ultimo bohemio portuguez» era, conservando uma feição accentuadamente litteraria, empregar[Pg 218] como armas de combate a satyra e a critica, com firmeza, mas com moderação.
Estampou o retrato de Hylario na 1.ª pagina, o seu retrato de estudante e de bohemio; e varios artigos commemorativos da sua morte.
Não sei se este semanario tem continuado, mas possuo o 1.º numero.
Quero ainda referir-me á saudosa necrologia entoada nos jornaes do paiz, para transcrever as palavras com que um d’elles rematava a apologia do mallogrado Hylario:
«É menos um doido no mundo, dizem as pessoas graves e de circumstancia. Mas essas pessoas graves não farão verter, muitas d’ellas, á sua despedida d’esta vida, senão lagrimas de cerimonia, ao passo que esse doido é a esta hora sinceramente pranteado por muitos corações juvenis das filhas do Mondego, que, fascinadas pela sereia da sua guitarra, corriam em Coimbra apoz elle como as antigas virgens romanas apoz os seus heroes, offerecendo-lhe o óbolo do seu primeiro amor.
[Pg 219]
«Pobre Hylario! Parece que tinhas a previsão do teu fim tão rapido quando perguntavas:
«O destino acaba de te dar resposta.»
Hylario cantava quadras suas e de outros poetas, taes como Guerra Junqueiro, Antonio Nobre, Fausto Guedes Teixeira, etc.
Proprias ou alheias, avultavam no seu cancioneiro estas lindas trovas galantes:
Uma noite, no theatro do Principe Real, do Porto, Hylario improvisou esta quadra ás damas:
[Pg 224]
Depois conservou esta quadra no seu cancioneiro, modificando assim o segundo verso:
Nas quadras que acompanham o Fado Serenata, publicado no Porto por Eduardo da Fonseca, vem uma que não é do Hylario, nem dos poetas seus contemporaneos:
Esta quadra é popular, e mais antiga. Já tinha saido no Cancioneiro de Theophilo Braga em 1867.
Ouvi cantar o Hylario no theatro da praia de Espinho, no verão, por occasião de uma récita de caridade que ali se organizou.
Cabeça pendida sobre o lado esquerdo, como para ouvir melhor o que dizia o coração, a sua voz soluçava requebrada n’uma especie de arroubo illuminado de inspiração.
Assistia a esse espectaculo uma menina portuense (J. L. R.) vestida de preto e toucada com uma rosa; Hylario improvisou em sua honra a seguinte quadra:
[Pg 225]
Hylario tencionava colligir as suas canções n’um volume com o titulo de Guitarrilhas.
É-lhe attribuida a musica de varios Fados.
O Catalogo geral alphabetico do Cancioneiro de musicas populares dá-lhe a paternidade de cinco, o que me parece exigir alguma correcção.
Indica os seguintes:
I—Cancioneiro, fasc. 16, «As Estrellas» 1.º fado. Recolhido em Coimbra, 1890.
II—Cancioneiro, fasc. 13, «A filha do Guadalquivir».
É com leves alterações o Fado que nós em Lisboa chamamos «do Roldão». O Catalogo diz ser o 2.º Fado do Hylario, mas o Cancioneiro annota a respectiva melodia dizendo: «Parece que a musa teutonica inspirava o melodista, que não temos o gosto de saber quem é.»[101]
[Pg 226]
III—Cancioneiro, fasc. 23. Fado serenata. Traz a designação de: Musica de Augusto Hylario.[102]
[Pg 227]
Foi este que ouvimos ao proprio auctor em Espinho, e o que, de todos que elle indubitavelmente compoz, se tornou mais popular. Reproduzimol-o na pagina anterior.
IV—Cancioneiro, fasc. 34, «O Ultimo Fado», com a designação de—Musica de Augusto Hylario—e a seguinte nota: «Quando nas férias de 1895, Hylario se hospedou em uma dependencia do escriptorio da nossa Empreza, offereceu-nos esta composição dizendo-nos que era o seu ultimo fado, mas que tencionava addicionar-lhe algumas variações, e que reservassemos a publicação para quando elle as tivesse composto definitivamente.»
Tambem se popularisou este Fado, e por isso o reproduzimos.
[Pg 228]
[Pg 229]
V—Cancioneiro, fasciculo 68. «Fada pósthumo do Hylario» com a seguinte annotação: «Este fado foi recolhido em Sinfães pelo ex.ᵐᵒ sr. dr. M. M. Castro Côrte Real, que nol-o enviou com a seguinte nota: «Fado do Hylario (ultimo). O fado (IV) que vem no Cancioneiro com a designação de ultimo é anterior a este. Este é que é geralmente conhecido pelo ultimo; sempre assim o ouvi designar aos estudantes coevos do grande bohemio. A lettra é do ex.ᵐᵒ sr. Luiz Osorio.»
Ora este Fado é o mesmo que no Porto foi publicado com o titulo de Fado do 28.
Pessoa auctorisada, por ser muito competente na materia, diz-me d’aquella cidade que o auctor foi o rapaz cego a quem me referirei no capitulo VI quando tratar do Fado do 28.
No Cancioneiro, fasciculo 60, vem outro Fado relacionado com o nome do Hylario: é dedicado á sua memoria e acompanhado da seguinte lettra:
Diz a nota respectiva: «Este fado acha-se vulgarisado por todo o paiz com diversa lettra.»[103]
Na collecção de glosas de Fados modernos, vendida em Lisboa nos kiosques, sahiu um Fado para o Hylario, pranteando a sua morte.
Transcrevemos a ultima quadra:
O Hylario deixou escola em Coimbra, onde tem tido distinctos continuadores do Fado academico.
Um d’elles é o sr. Candido de Viterbo, que em 1899 compoz a serenatella para o Auto da sebenta, impressa (Coimbra, casa da viuva Paula e Silva) com outros Fados, a saber: Fado do Penedo da Meditação, Fado da Quinta das Lagrimas, Fado do Penedo da Saudade, Fado da Lapa dos Poetas, Fado da Fonte da Serêa.
O frontispicio, em lithographia, representa, alem de alguns trechos da cidade de Coimbra, o sr. Candido de Viterbo, de capa e batina, dedilhando a sua guitarra, sentado no alto de um penedo.
[Pg 231]
A lettra d’estes Fados pertence aos seguintes academicos: Augusto Gil, Lopes Vieira, Gomes Lopes, Antonio Macieira, Guedes Teixeira (Fausto Guedes), Teixeira de Paschoaes, Severo Portela, Humberto de Bettencourt, Pereira Barata, Marques dos Santos, Alberto Pinheiro, Mario Esteves e Dom Thomaz de Noronha.
Vamos dar alguns specimens:
De Augusto Gil:
[Pg 232]
De Lopes Vieira:
De Antonio Macieira:
De Fausto Guedes:
De Teixera de Paschoaes:
De Severo Portela:
[Pg 233]
De Humberto de Bettencourt:
De Pereira Barata:
De Marques dos Santos:
De Alberto Pinheiro:
[Pg 234]
De Mario Esteves:
De Dom Thomaz de Noronha:
Foi Coimbra que deu ao Fado a alta cotação litteraria, que elle tem hoje nas serenatas academicas.
Muitas d’essas quadras, que ahi ficam relembradas, são poemas encantadores, doloras suavissimas, verdadeiras obras d’arte em miniatura.
Não conheço na poesia popular dos outros paizes, e não a conheço mal,[104] perolas de mais subida concepção poetica do que a maior parte d’essas quadras que pareciam sair da bocca do Hylario como um bando de queixumes estonteados, que algum temporal de amor tivesse desaninhado da alma dos poetas.
De mais a mais o Fado, transplantado litterariamente para Coimbra, não soffreu uma deslocação violenta[Pg 235] como quando entrou, producto exotico, nas salas de Lisboa, e passou da guitarra ao piano.
Em Coimbra elle tem conservado toda a sua amargura dolente, continua a ser, na voz dos estudantes, o hymno da desgraça, não da que se debate em abysmos de miseria social, mas em tormentos, certamente exagerados, de amor e de saudade.
Prevalece integral no Fado de Coimbra a mesma feição psychica de soffrimento e angustia com que nasceu o Fado de Lisboa.
Não tem a desnatural-o a garridice frivola das salas, a inconsciencia musical com que elle é martelado nos pianos alfacinhas sem uma parcella minima de senso esthetico e de vibração emotiva.
Em Lisboa alguns poetas «novos» teem seguido o exemplo dos de Coimbra, dando ás coplas do Fado uma expressão accentuadamente litteraria.
[Pg 236]
Do sr. Ribeiro de Carvalho citarei os seguintes.
Logo que a litteratura se apropriou do Fado, como de um poema curto e profundo, a arte foi procurar n’elle a alma do povo, o caracter nacional, e á semelhança do que fizera Franz Liszt, inspirando-se nos[Pg 237] motivos populares da Hungria, começaram a apparecer as rapsodias portuguezas, o rythmo do Fado foi superiormente glosado por alguns compositores, n’uma alta expressão de technica profissional.
As Rapsodias de Victor Hussla contéem Fados; Munier compoz um arranjo sobre o Fado corrido; Rey Colaço já publicou 8 Fados, incluindo o Hylario e o Corrido; Moreira de Sá deu recentemente a lume o Fado choradinho variado, etc.
Foi certamente Coimbra que, fazendo entrar o Fado nos dominios da litteratura, chamou para elle a attenção dos artistas portuguezes e dos estrangeiros que, como Victor Hussla, viveram em Portugal.
Dos nossos poetas modernos, aquelles que passaram por Coimbra são pois os que melhor revelam nos seus cantares toda a delicada comprehensão esthetica do Fado, toda a sua grande doçura maviosa como expressão sentimental.
Lembra-me, a proposito, esta quadra de Antonio Nobre:
Cito de preferencia este poeta ainda pela circumstancia de que a sua morte prematura inspirou o Triste Fado, musica de Julio Silva, lettra de Armando de Araujo.
Mas não deixarei em silencio outras quadras, de[Pg 238] rapazes que passaram por Coimbra. Ellas dão toda a emoção produzida pelo Fado na alma nacional:
Da academia de Coimbra tem partido a publicação de folhas volantes, editadas pelo livreiro França Amado: uma d’ellas intitula-se Cantigas para o Fado e para as Fogueiras do San João.
[68] Quando o sr. D. Antonio Ayres de Gouvea, hoje bispo de Bethsaida, foi cursar a Universidade em 1850, ainda os estudantes compunham e cantavam amphiguris. Segundo informação de s. ex.ᵃ, appareceu mais tarde o Fado de Coimbra e depois o da Figueira. Fado ainda não era então, em Coimbra, uma designação generica, mas apenas especial d’aquellas duas canções.
[69] Emquanto este livro esperava o momento de entrar no prélo, falleceu Urbano de Castro, ás 3 horas da manhã de 6 de novembro de 1902.
Aqui fica n’esta pagina um clarão do seu espirito tão finamente litterario. É como se eu plantasse aqui uma saudade.
[70] Leia-se: Vê zero.
[71] Leia-se: Vê dois ró.
[72] Leia-se: F (éfe) primo.
[73] Leia-se: M linha.
[74] Leia-se: Dêtê.
[75] Leia-se: Hidrogénio.
[76] Leia-se: Agua.
[77] Leia-se: Prata.
[78] Leia-se: Potassa.
[79] Leia-se: Chloro.
[80] Leia-se: Hydrogénio.
[81] Leia-se: Antimonio.
[82] Leia-se: Agua.
[83] Leia-se: Chumbo.
[84] Leia-se: Azote.
[85] Fasciculo 56.
[86] Ficára reprovado em alguns preparatorios e no 1.º anno d’esta faculdade.
[87] Esta quadra é de Guerra Junqueiro, na Morte de D. João.
[88] De Fausto Guedes.
[89] De Antonio Nobre.
[90] Presumo que esta quadra é do Hylario.
[91] Tambem attribuo esta quadra ao Hylario.
[92] De Francisco Bastos, estudante brazileiro, morto.
[93] De Fausto Guedes Teixeira.
[94] Repetimos esta quadra por causa do seu encadeamento com as duas seguintes. Suppomos que é do Hylario.
[95] É do Hylario.
[96] De Fausto Guedes Teixeira.
[97] De Fausto Guedes Teixeira.
[98] É do Hylario.
[99] Esta e as trez quadras seguintes são de Fausto Guedes Teixeira.
[100] Supponho que é do Hylario.
[101] Ha manifesta contradicção entre o Cancioneiro e o seu Catalogo, de modo que o leitor fica hesitante. O Cancioneiro é um vasto e importante repositorio de canções populares, mas carece de algumas rectificações e de muitas aclarações, o que aliás não admira em obra de tanto vulto. Assim, no fasc. 4., diz que o amphiguri Duzentos gallegos appareceu em 1846 e 1847, sendo porem certo que Filinto Elysio já se refere a elle. Reappareceu n’essa epoca, o que faz differença. No fasc. 56 traz sob o titulo Remar... remar... uma barcarola com a seguinte nota: «É esta barcarola, uma das canções orpheonicas do Mondego, hoje vulgarisada por todo o paiz.» Não cita o nome do auctor, e comtudo eu conheço-o muito bem. Sou eu mesmo, que dos 16 para os 17 annos a compuz: é a «Barcarola de Ismael» no poemeto A nereida.
Mais tarde, quando inclui este poemeto no livro Cantares, procurei corrigir algumas infantilidades, que me saltaram aos olhos. Fiz reparo nos dois seguintes versos:
No commum dos casos, se o vento sopra não é preciso remar. Por isso modifiquei assim a barcarola:
A barcarola, tal como ella vem no Cancioneiro, chega a não fazer sentido logo no primeiro verso, que diz:
E padece outras alterações, que facilmente podiam ter sido evitadas.
[102] Tambem publicado, com a lettra, nos Cantos populares editados no Porto por Eduardo da Fonseca.
[103] Tambem vem publicado na 2.ª série de Cantos populares, Porto, editor Eduardo da Fonseca.
[104] Consegui reunir na minha modesta livraria 24 volumes sobre a poesia popular das nações da Europa. Estimo muito esta collecção, não só porque não é facil juntal-a, mas porque n’ella encontro bellezas que deixam a perder de vista muitos poetas cultos e gloriosos.
[105] No jornal A Chronica, n.º 68, do 3.º anno.
[Pg 239]
É quasi impossivel coordenar um catalogo completo dos Fados (musica) hoje mais ou menos vulgarisados em Portugal.
Succedem-se uns aos outros. Apparecem, alguns d’elles gosam de certa popularidade, e demoram-se até que um novo Fado lh’a roube ou pelo menos cerceie; outros não encontram ecco no gosto publico, passam e esquecem rapidamente.
O catalogo alphabetico, que em seguida publicamos, abrange, ainda assim, mais de 100 Fados.
As indicações bibliographicas, que pudemos reunir, são por vezes deficientes, mas algumas não deixarão de ser interessantes.
De muitos Fados se ignora o nome do auctor.
A este respeito baldamos longas pesquizas e aturados esforços, mas tivemos de resignar-nos a mencionar apenas o titulo dos Fados por não haver meio de descobrir quaes foram os seus auctores.
É possivel que, n’uma nova edição, logrêmos preencher algumas lacunas.
[Pg 240]
Sempre que dissermos Fados, deve entender-se que são as composições musicaes d’este nome; quando se trata apenas da cantiga ou lettra, temos o cuidado de o fazer sentir para evitar equivocos.
Como entre a entrega do manuscripto ao editor e a publicação do livro mediaram largos mezes, pudemos addicionar a este capitulo alguns fados que foram publicados ou reeditados entretanto; bem como a noticia de outros que chegaram ao nosso conhecimento, e varias indicações que encontramos na imprensa relativas ao assumpto.
Posto isto, segue o catalogo.
Açoriano (Fado)
Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.
Albertina (Fado)
Editor Raul Venancio, rua do Ouro, Lisboa.
Alcantara (Fado d’)
O sr. Fernando Diniz, professor lisbonense de guitarra, recolhe todos os Fados que vae ouvindo.
Possue uma collecção de mais de 60, mas não sabe o nome dos auctores de muitos d’elles.
Só por este colleccionador é que tive noticia do Fado d’Alcantara.
[Pg 241]
Alegre (Fado)
Auctora, Theodolinda E. Silva.
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Algarve (Fado do)
Musica de Alberto de Moraes; lettra de Bernardo de Passos.
Lettra:
Editores d’este Fado: Benjamin & Filgueiras, Lisboa.
Alijó (Fado de)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Amanhã (O) Fado.
Este Fado era cantado pelo actor Queiroz na revista do anno de 1895, Retalhos de Lisboa, por Eduardo Schwalbach Lucci.
Foi lithographada a musica na officina da rua das Flores, 13, Lisboa.
Basta citar uma ou duas copias para dar idéa da intenção do titulo:
Amphiguri (Fado)
Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 49.
[Pg 243]
Anadia (Fado)
Este Fado nem foi composto pelo penultimo conde de Anadia, como muita gente suppõe, nem teve por berço a villa da Anadia.
Testemunha contemporanea (o fallecido Severo Ernesto dos Anjos) contou-me uma vez que o titulo d’este Fado lhe adveio de ter sido offerecido em Lisboa áquelle titular por um musico, de que me disse o nome, que infelizmente esqueci.
Vem publicado no 5.º fasciculo do Cancioneiro de musicas populares, e ahi se diz que «é uma das musicas no estylo moderno, do genero, mais distincta e não monotona.»
Incluido nas collecções das casas Lambertini, Sassetti, etc. de Lisboa, e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.
O conde de Anadia viveu na bohemia elegante, mas não cantava o Fado, e supponho que não tocava guitarra.
Antonino (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Armada (Fado da)
Este Fado foi aproveitado por Freitas Gazul na revista de Souza Bastos Sal e pimenta. Cantava-o actriz Carmen Cardoso, applicando-lhe quadras allusivas aos[Pg 244] vehiculos do empresario Jacinto, que então faziam carreiras nas ruas de Lisboa. Por este motivo se lhe ficou chamando tambem Fado do Jacinto.
Vide Jacinto.
Artilheiro (Fado)
Vide Fado Robles.
Até Chora! (Fado)
Composição de Julio Neuparth.
Atroador (Fado)
Incluido na 1.ª série de Fados da casa Sassetti, de Lisboa, e na collecção da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.
Ballada (Fado)
Original de Militão Lucio Garcia Coelho, professor de piano em Lisboa.
Beira (Novo Fado da)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra, na sua collecção.
Bohemio (Fado)
De Reynaldo Varella. Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca.
[Pg 245]
Lettra:
Branco e Negro (Fado do)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Brazileiro (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Brilhante (Fado)
Canto nacional para piano por N. S. Propriedade do auctor. Lith. R. das Flores—Lx.ᵃ.
[Pg 246]
Brisa (A) Fado
Composição de Francisco Jorge de Sousa Bahia, professor de musica em Lisboa.
Brisa e Rosa (Fado da)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Campestre (Fado)
Incluido (com o n.º 23) na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti. Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 33.
Cantadores (Fado dos)
Incluido (com o n.º 22) na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Carmona (Fado)
Incluido (com o n.º 20) na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti. Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 62.
Carriche (Fado de)
Pequena povoação da freguezia do Lumiar, arrabalde de Lisboa, Carriche é um sitio muito frequentado por occasião das esperas de touros, posto já o fosse mais, quando ali havia, ao fundo da calçada, o[Pg 247] Hotel de Nova Cintra, com uma bella horta para comesainas ao ar livre. Hoje o dono do Hotel veio estabelecer-se no Campo Grande. No sitio, apenas restam algumas tascas, que ainda assim fazem bom negocio em noitadas de touros, e que são habitualmente visitadas pelos saloios que ali passam.
Cascaes (Fado)
Muito vulgarisado. Incluido (com o n.º 18) na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti, e na collecção de 8 Fados da casa Lambertini. Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 56.
Cascaes é a praia aristocratica de Portugal; a praia da côrte.
Cascos de rolhas (Fado de)
Incluido (com o n.º 27) na 3.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Casino Lisbonense (Fado do)
Original de João Maria dos Anjos.
Veja pag. 68 d’este livro.
Cega (Fado da)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
[Pg 248]
Cegos (Fado dos)
Incluido (com o n.º 17) na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Celta (Fado do)
Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 72.
Cezaria (Fado da)
Este Fado para guitarra foi dedicado por Ambrosio Fernandes Maia, como já dissemos, a uma rapariga de nome Maria Cezaria, continuadora das tradições fadistas da Severa.
A ella se refere a ultima das seguintes glosas de um Fado moderno:
(Transcriptas do Almanach da Severa para 1902).
Chegou! chegou!
O mesmo que Fado Visconti. Vide Visconti
Chiado (Fado do)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.
Choradinho (Fado)
O Cancioneiro de musicas populares (fasc. 18) traz este popularissimo Fado com a seguinte annotação: «Recolhido em Lisboa, em 1850. Este é um dos fados propriamente ditos, e dos mais antigos, por onde se moldaram outros muitos que posteriormente appareceram.»
Não ha duvida que é, chronologicamente, dos primeiros. Mas o primeiro decerto não foi. (Vide Fado do marinheiro). Bem podia elle ter estabelecido o typo d’este genero de canções a julgar pela sua grande espontaneidade de sentimento, singela e profunda. Todavia a designação de Fado choradinho parece indicar que já havia outros, e que este se distinguia por um tom[Pg 250] ainda mais plangente, d’onde lhe viera o nome. Em verdade, dir-se-ia um rosario musical feito de gemidos e suspiros.
O Cancioneiro dá-lhe a lettra de algumas quadras populares, taes como esta:
É claro que se lhe póde applicar qualquer outra lettra.
Este Fado está vulgarisadissimo.
Em Lisboa anda nas collecções das casas Sassetti, Engestrom, Lambertini, etc.
No Porto, Moreira de Sá escreveu sobre elle variações para piano, para rabeca, bandolim ou flauta com acompanhamento de piano ou de violão e guitarra.
Em Lisboa, Rey Colaço tambem glosou o Fado choradinho; dizia o jornal Novidades, de 31 de janeiro de 1903:
«Foi agora posto á venda mais um trabalho do illustre pianista Rey Colaço, uma das mais poderosas organisações artisticas do nosso paiz. É um fado (choradinho), e, como todas as producções inspiradas na melopeia que é o caracteristico da nossa raça, esta de Rey Colaço é cheia d’uma melancolia de poente do outono, terna e triste como uma despedida.
«O delicioso fado, que é dedicado ao sr. Raul Lino e estampa no frontispicio a reproducção da casa portugueza[Pg 251] que aquelle architecto anda a construir para Rey Colaço, está á venda em todos os armazens de musica.»
Choramigas (Fado)
Incluido (com o n.º 34) na 3.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Cigarreiras (Fado das)
Incluido (com o n.º 26) na 3.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Cinira Polonio (Fado)
É o nome da gentil actriz brazileira, que durante muitos annos viveu e representou em Portugal, e que está actualmente na sua patria.
Este Fado foi recolhido pelo sr. Fernando Diniz (logar citado).
Cintra (Fado de)
Auctor, A. dos Santos Garcez.
Coimbra (Fado de)
Publicado no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 29.
Incluido (com o n.º 8) na 1.ª serie de Fados da casa Sassetti.
[Pg 252]
Collecção de fadinhos
(Vide Fadinhos).
Corrido (Fado)
O Cancioneiro de musicas populares diz que este Fado já era popularissimo em 1870, e dá-lhe a lettra de algumas quadras que andam na tradição oral.
Mas o Corrido não é mais que o simples acompanhamento do canto.
Sobre este typo melodico teem sido bordadas muitas variantes por Alexandre Rey Colaço, Reynaldo Varella, Militão e outros, incluindo um compositor extrangeiro, Munier.
O Fado corrido anda em todas as collecções.
Cotovia (Fado da)
Não sei o nome do auctor.
Custodia (Fado da)
Auctora, Custodia Maria. É antigo.
Damas (Fado das)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção, manuscripta, de Fados.
[Pg 253]
Desfalque, O (Fado)
Cantado na revista do anno, Agulhas e alfinetes, de Eduardo Schwalbach Lucci.
Dez mandamentos (Fado dos)
Por uma referencia do livro In illo tempore, de Trindade Coelho, sabemos da existencia d’este fado: «um condiscipulo que nós tinhamos chamado Miguel Dias, que era doido por musica, e levava o tempo a tocar violão, e a cantar o fado dos Dez mandamentos».
Diario de Noticias (Fado do)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.
Dias de Souza (Fado)
O sr. J. Dias de Souza é aspirante dos telegraphos no Porto, collaborador de varios jornaes, auctor de alguns fados e acompanhador, á viola, dos primeiros guitarristas portuenses.
Antonio Mouson não gosta de tocar sem ser acompanhado por elle.
Nascido no Porto, baixo e extremamente magro, Dias de Souza, que não conta mais de trinta e tantos annos, tem uma physionomia illuminada por uma dupla expressão de intelligencia e bondade.
[Pg 254]
Domingos de Campos (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Eduardo Silva (Fados)
1.º, 2.º e 3.º
Recolhidos pelo sr. Fernando Silva na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Elegante (Fado)
Nada pude apurar a respeito do nome do auctor.
Elite (Fado da)
Composição do sr. Carlos Stuart Torrie, actualmente residente em Lisboa, mas oriundo de uma familia portuense.
Este Fado, foi editado pelo proprio auctor, em 1900.
Tem segunda edição.
A lettra é do sr. Mattoso da Fonseca. Transcrevemos as primeiras trez quadras:
Estoril (Fado do)
É o n.º 25 da 3.ª serie de Fados da casa Sassetti.
O Estoril, sobre a linha ferrea de Cascaes, é hoje um dos sitios mais elegantes que a população de Lisboa procura para veranear. Possue lindos e numerosos chalets, um estabelecimento thermal, magnifico hotel, matta sombria, e uma excellente praia de banhos. Com o Mont’Estoril, S. João do Estoril e Parede, constitue actualmente uma nova serie de estações balneares, que se povoaram dentro de poucos annos, e que fazem grande concorrencia a Cascaes.
Estudante (Fado do)
Do seu auctor apenas sei que tem o appellido Leite.
Estudantes (Fado dos)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 56.
Fadinho liró
Composição de Francisco Jorge de Souza Bahia.
[Pg 256]
Fadinhos (Collecção de)
Auctor, Moraes. Esta collecção foi editada pela casa Moreira de Sá, no Porto.
Fadinhos Portuenses
Só a lettra, e sem valor litterario. Collecção publicada no Porto pela Livraria Portugueza, de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5. Conheço o fasciculo 2.º, que comprehende: Fadinho Brazileiro, Fado dos Amantes, Fado de S. Martinho, Fado do Caminho de Ferro. Transcrevemos este ultimo:
Fado (Novas cantigas do)
Por Jayme de Sá. É publicação anterior a 1882, e foi feita no Porto pelos editores Clavel & C.ᵃ, rua do Almada 119-123.
Fado (Um)
Vide Rey Colaço e Fado plagiario.
Fado (Um)
Para piano por D. Laura Gentil. Lisboa.
[Pg 258]
Fado Nocturno
Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.
Fado Novo
Auctor, Raymundo Varella.
Fado Novo
Na revista Beijos de burro, representada em abril de 1904 no theatro do Rato em Lisboa.
Fado Serenata
Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa. Vide Sinhá.
Fados
Rapsodia de Fados, para piano, composição do professor da «Tuna do Diario de Noticias», Augusto Machado. Dedicados á sr.ᵃ D. Maria Guerra Quaresma Vianna. Estão impressos, mas já antes haviam sido executados em publico.
Fados
Por Veterano. Só a lettra, publicada no Porto, em 1902. São cinco fados, contendo allusões pessoaes, como os seus titulos indicam.
[Pg 259]
Fados
Para piano, «escriptos expressamente para o «Auto de Misericordia», do Ex.ᵐᵒ Snr. Severim de Moraes, peça representada no Theatro D. Amelia, no sarau dos distinctos estudantes da Escola Polythecnica por A. Mantua».
São dois Fados. A lettra, como acima se diz, é de Severim de Moraes.
Do 1.º Fado:
Do 2.º Fado:
Fados modernos (Collecção de)
Só a lettra, e sem valor litterario. Publicada no Porto pela Livraria Portugueza de Joaquim Maria da Costa, Largo dos Loyos, 5. Contém:
[Pg 260]
Fado dos janotas (primeira parte), fado do adeus do degredado, fado do verdadeiro amor, fado da velha presumida, fado do pescador, fado do cego e o cão.
Fado do meu coração (segunda parte), fado do medo da trovoada, fado do beijo, fado do pastor, fado do meu anjo.
Fado da saudade (terceira parte), fado de Lisboa, fado da minha guitarra, fado do engeitado, fado da donzella e o espelho, fado do pastor.
Fado do exercito (quarta parte), fado do ramalhete, fado da ultima vontade, fado das tesouras, fado dos ladrões, fado das guitarras.
Fado do noivado (quinta parte), fado do meu desejo, fado do amor, fado do escravo, fado d’um baptisado, fado dos padeiros.
Fado dos animaes (sexta parte), fado do que eu amo, fado do jantar, fado das cosinheiras, fado das torradinhas.
Fado do engeitado (setima parte), fado dos dois esposos, fado da mulher, fado das eleições, fado do casamento, fado do bebado.
Fado das aves (oitava parte), fado do leque, fado da desgraçada, fado do desafio, fados das fructas.
Não sei se n’esta mesma collecção ou n’outra, da mesma casa, anda a lettra dos seguintes Fados: Do Marquez de Pombal, de Luiz de Camões, da Portugueza, da Deusa Venus, Lisboeta, Bréjeiro, do Exercito, Descriptivo, Tripeiro, da Maia, etc.
Estes dois ultimos já se vendiam (1884) na antiga Livraria Civilisação, do Porto, rua de Santo Ildefonso.
[Pg 261]
É curioso que no texto de qualquer dos dois Fados não haja nenhuma composição que justifique o titulo.
Sob a designação de Fadinho Tripeiro estão incluidos:
A joven seduzida, A phylloxera, Não posso deixar de amar, Poucos se affastam do vicio; e sob a designação Fadinho da Maia: O mendigo, A miseria, Não chores! As criadas de servir.
Vide Fadinhos Portuenses.
Fados modernos
Collecção de 99 cantigas sob o titulo—A Guitarra d’ouro. Collaboração de Augusto Garraio, Luiz de Athaide, Luiz d’Araujo, Joaquim dos Anjos, Armelindo Veiga, Baptista Diniz, A. Roldão, Carlos Harrigton, Celestino da Silva, Coimbra Lobo, Dupont de Souza, Eduardo Fernandes, Ernesto Varella, Feliciano Correa, J. Rodrigues Chaves, Julio Dumont, J. I. d’Araujo, Penha Coutinho, Salomão Guerra e F. Napoleão de Victoria.
Figueira da Foz (Fado da)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 28.
É o n.º 2, com o epitheto de «rigoroso», da 1.ª serie da casa Sassetti.
Tambem publicado pelas casas Engestrom e Lambertini, de Lisboa; e Eduardo da Fonseca, do Porto.
[Pg 262]
Fonte da Sereia (Fado da)
É o n.º 6 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.
Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.
A Fonte da Sereia, que deu o titulo a este Fado, pertence á bella Quinta de Santa Cruz em Coimbra.
Hoje construiu-se n’essa magnifica vivenda d’outr’ora um bairro novo, mas crèmos que a Fonte da Sereia subsiste de pé.
Furnas (Fado das)
Musica de Alberto de Moraes; lettra de Candido Guerreiro.
Este Fado deve ser de inspiração michaelense, porque o valle das Furnas é o sitio mais bellamente pittoresco da ilha de S. Miguel.
Garoto (Fado do)
Lettra e musica de D. Ernestina Leite.
D’este Fado, bem como do anterior, são editores Benjamin & Filgueiras, Lisboa.
Gato (Fado do)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 63.
É o n.º 6 na 1.ª serie da casa Sassetti.
O mesmo que Fado Taborda. Vide Taborda.
[Pg 263]
General Boum
O n.º 14 na 2.ª serie da casa Sassetti.
General Boum é o nome de uma das personagens da operetta A Gran-Duqueza de Gerolstein.
Graça (Fado)
A justificação do titulo está no facto de ter sido dedicada esta composição ao sr. Silva Graça, proprietario e director do jornal O Seculo.
Guitarra (A) d’Almaviva
Canções da plebe (collecção de Fados, cantigas) por Adelino Veiga. Porto, 2.ª edição, 1882.
Hylaria (Fado da)
Publicado pela casa Engestrom; Lisboa.
Hylario (Fado ao)
Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 229.
Hylario (Fados do)
Veja-se o cap. V d’este livro, pag. 225.
Jacinto (Fado do)
Veja-se Armada.
[Pg 264]
Jacinto era o nome do empresario de uns vehiculos, que faziam carreiras nas ruas de Lisboa. Como os Ripperts, a empresa resistiu por muito tempo, e ainda mais do que elles, á concorrencia dos carros americanos.
Esta resistencia tornou-se celebre pela tenacidade, apesar da pesada contribuição que a camara municipal impoz ao Jacinto.
Por fim, a sua empresa seguiu o exemplo dos Ripperts e deixou-se absorver pela companhia dos americanos, com a qual se fundiu.
Agora vieram os carros electricos e metteram os americanos n’um chinelo, como estes tinham mettido os Ripperts e os Jacintos.
É a lei do progresso: Celi tuera cela.
Janotas (Fado dos)
Auctor, J. R. Cordeiro.
João Blach (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
João de Deus (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 73.
João e Helena (Fado)
É o n.º 21 na 2.ª serie da casa Sassetti.
[Pg 265]
João Maria dos Anjos (Fado)
Composto em 1868.
Jorge da Silva (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
José Ricardo (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz. José Ricardo é o actor d’este nome.
Lamparina (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Lapa dos poetas (Fado da)
É o n.º 5 da Collecção do estudante Candido de Viterbo. Editora, a viuva Paula e Silva.
A Lapa dos poetas é um logar celebre e pitoresco na quinta das Cannas em Coimbra.
Lazarista (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 73.
[Pg 266]
Leandro (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 69.
Leça (Fado de)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 59.
É o n.º 16 na 2.ª serie de Fados da casa Sassetti.
Leça da Palmeira, certamente. Assim se chama a villa que se defronta com a de Mattosinhos (arrabalde maritimo do Porto). O rio Leça, separando as duas povoações, deu o nome a uma d’ellas.
Tambem nos suburbios do Porto ha Leça do Bailio, notavel ainda hoje pelo seu templo gothico, que pertenceu á ordem militar de S. João de Jerusalem.
O Fado deve ser de Leça da Palmeira, terra de marinheiros e, por conseguinte, de guitarras.
Leixões (Fado de)
Este Fado é o n.º 35 na 3.ª serie da casa Sassetti.
Leixões, penedia distante meia legua da foz do Leça, deu o nome ao porto artificial que procurou evitar os perigos da barra do Porto para navios de maior tonelagem.
Tem um Fado, e já teve um poema (heroe-comico) As viagens a Leixões, publicado em 1855 por Alexandre Garrett, irmão do visconde de Almeida Garrett.
[Pg 267]
Limoeiro (Fado do)
Composição do Padre Borba.
Linda-a-Velha (Fado de)
Musica de Alberto de Moraes; lettra de Alfredo Portugal. Editores, Benjamin & Filgueiras, Lisboa.
Linda-a-Velha (Ninha-a-Velha se dizia antigamente) é uma graciosa povoação, que se ergue sobre um cabeço, na freguezia de Carnaxide, dominando o largo panorama do Tejo.
Liró (Fadinho)
Vide Fadinho liró.
Lisbonense (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 22.
É o n.º 5 na 1.ª serie da casa Sassetti.
Tambem publicado pelas casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa; e Eduardo da Fonseca, do Porto.
Foi seu auctor João Maria dos Anjos.
Livro d’ouro do fadista
Nova collecção de fados para cantar ao piano e á guitarra, escriptos e recopilados por Faustino Antonio da Cunha. Porto, 1878, Editora—Livraria portugueza e extrangeira.
[Pg 268]
Luar (Ao)
Fado muito facil para piano por Antoine de Ferrière. Editora, a livraria Avellar Machado.
Lettra: duas quadras apenas.
Luiz Petroline (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Machado Corrêa (Fado)
Supponho que Machado Corrêa é o jornalista d’estes appellidos, que collaborou na Tarde, Dia e Novidades, foi ponto de theatro em Lisboa, auctor dramatico, e que tendo ido para o Pará, como secretario da empresa Sousa Bastos, por lá se deixou ficar, passando depois para o Rio de Janeiro. Ultimamente regressou a Lisboa.
Madrugada (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 27.
Maggioly (Fado)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 5.º.
Maggioly é o appellido de um dos nossos melhores tocadores de guitarra.
Veja pag. 63 d’este livro, nota.
[Pg 269]
Marinheiro (Fado do)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 68.
Marinheiro (Fado do)
Este Fado é differente do anterior.
Parece ser dos primeiros que se vulgarisaram em Lisboa, segundo informa o velho guitarrista Ambrosio Fernandes Maia.
Elle não tem ideia de outro qualquer Fado mais antigo.
Maritimo (Fado)
É o n.º 9 na 1.ª serie da casa Sassetti.
Meiguinho (Fado)
Por Alberto Pimenta: Porto, 1901. Lettra de Campos Monteiro.
Meu (O) enlevo
Fado muito facil para piano por A. Dourade. Editora, livraria Avellar Machado, Lisboa.
Lettra: duas quadras apenas.
Monchique (Fado de)
Lettra e musica de Alberto de Moraes.
Editores: Benjamin & Filgueiras, Lisboa.
Monchique é, como se sabe, a «Cintra» do Algarve.
[Pg 270]
Mondego (Fado)
Editor, Raul Venancio; rua do Ouro, Lisboa.
Morenas (Fado das)
Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca.
Crêmos que foi recolhido na provincia.
Tem lettra, que não pudemos obter.
Mouraria (Fado da)
É o n.º 31 na 3.ª serie da casa Sassetti.
Tambem anda nas collecções das casas Lambertini e Engestrom, de Lisboa; e da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.
Mouraria é, como se sabe, um dos bairros fadistas de Lisboa.
Mousão (Fado)
O sr. Antonio Mouson (é assim que o seu appellido deve escrever-se) nasceu no Porto e foi discipulo, em guitarra, de João Maria dos Anjos.
O seu nome inscreve-se entre os dos primeiros guitarristas portuenses, que são, além d’elle, Chico Brandão e Guilherme de Campos.
Dizem-me d’aquella cidade, a seu respeito:
«É o mais fecundo auctor de fados, o mais sentimental na expressão e no canto, fino rapaz de sala, fallando distinctamente o castelhano, o francez e italiano,[Pg 271] um dos melhores vivants da troupe bohemia.»
Outra informação acrescenta:
«De altura regular, robusto e valente, é, a par d’estas qualidades physicas, um excellente rapaz, coração de ouro e alma educada para comprehender e sentir todos os grandes affectos, todas as grandes dores. O Porto inteiro o conhece e estima; tem muitos amigos e admiradores.
«É frequentador dos theatros, bailes de mascaras e dos cafés, especialmente do Portuense, onde se encontra todas as noites.
«Apesar de ter a cabeça quasi branca, não conta mais de 36 annos.
«Dedilhando a guitarra, entoa fados deliciosos, que as mulheres escutam com enlevo.
«Já se tem feito ouvir nos nossos theatros e nas praias, portuguezas e hespanholas, sempre com vivo enthusiasmo e ruidosos applausos.»
Mulher (Fado da)
Recolhido pelo sr Fernando Diniz, professor de guitarra.
Muller fils (Fado)
Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.
Nacional (Fado)
Composto por João Maria dos Anjos.
[Pg 272]
Vem incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 54.
É o n.º 12 na 1.ª serie da casa Sassetti.
Nazareth (Fado da)
Nazareth, praia de banhos na Extremadura, districto de Leiria. Terra celebre pelo famoso milagre com que ali foi favorecido D. Fuas Roupinho.
Noite serena (Fado)
Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.
Notas falsas (Fado das)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.
Novo fado
Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.
Olinda (Fado serenata)
De Jacinto Freire. Editor, Eduardo da Fonseca, Porto.
Lettra:
Palmyra Bastos (Fado)
Pelo actor Roldão. Editora, a livraria Avellar Machado; Lisboa.
Este Fado chamou-se assim em razão de ter sido cantado por aquella actriz na revista Tim-tim por tim-tim.
Traz o retrato de Palmyra Bastos, a lettra em verso, e um artigo em prosa assignado por Julio de Menezes.
Parodia (Fado da)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, na sua collecção.
Pedro Rolla (Fado)
Tambem recolhido pelo sr. Fernando Diniz.
Pedrouços (Fado de)
O sr. Simões Ratolla, excellente consultor sobre tudo[Pg 274] que diz respeito a Pedrouços, teve a gentileza de me fornecer a seguinte informação:
«O Fado de Pedrouços não tem lettra. A musica é de Antonio e Eduardo Castello Branco. Possuo um exemplar impresso, para piano, com 12 pautas, e com o n.º 982, que julgo ser de chapa.
«Nas caixas de musica, de 4 Fados, encontra-se um com a indicação: Fado de Pedrouços—Branco.
«É o mesmo Fado; evidentemente só ha um Fado de Pedrouços.»
Penedo da meditação (Fado)
É o n.º 1 da Collecção do estudante Candido de Viterbo, publicada em Coimbra.
Editora, a viuva Paula e Silva.
O «Penedo da Meditação», que fica nas proximidades de Cellas, é um dos sitios mais pittorescos e mais decantados dos arrabaldes de Coimbra.
Penedo da saudade (Fado do)
É o n.º 4 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.
Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.
O «Penedo da Saudade» é uma das mais encantadoras paragens do formoso aro que circumda a cidade de Coimbra. Sitio predilecto dos estudantes, como o «Penedo da meditação». Diz a lenda que D. Pedro I frequentava muito este logar, onde desafogava saudades da sua querida e desditosa Ignez.
[Pg 275]
Pimpão (Fado do)
Para piano e canto. Lettra de Pan Tarantula. Musica de Arthur Davis Tavares de Mello.
Na capa reproduz em miniatura o frontispicio de um numero do periodico O Pimpão.
Duas quadras, das seis que constituem a lettra:
Este Fado foi publicado pela empresa da folha humoristica O Pimpão.
Pina (Fado do)
Composição de Julio Neuparth.
Pintasilgo (Fado do)
Auctor, Rey Colaço. Veja-se este nome.
Pisões (Fado dos)
É o n.º 32 na 3.ª serie da casa Sassetti.
[Pg 276]
Pitada (Fado do)
É o n.º 19 na 2.ª serie da casa Sassetti.
Plagiario (Fado)
Por A. B. Ferreira Junior.
Editor, Eduardo da Fonseca; Porto.
O auctor intitulou assim a sua composição, porque n’ella imita outra de Rey Colaço, Um Fado, que está incluido nos 5 a que fazemos referencia no principio da noticia Rey Colaço.
Pobre preto (Fado do)
Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.
Popular (Fado)
Na 2.ª serie da casa Eduardo da Fonseca, do Porto.
Porto (Fado)
Encontro uma referencia a este Fado no Livro d’ouro do fadista, Porto, 1878.
Diz assim:
Povo (Fado do)
Na collecção da casa Engestrom, de Lisboa.
Primavera, A (Fado)
Editado no Porto, para piano, por Eduardo da Fonseca.
Vem acompanhado de lettra, que principia:
Primeiro Fado
De Luiz Pinto d’Albuquerque. Offerecido a Rey Collaço. Publicado no Porto, por Moreira de Sá.
Traz as seguintes quadras:
[Pg 278]
Quinta das lagrimas (Fado da)
É o n.º 3 da Collecção do estudante Candido de Viterbo.
Editora, a viuva Paula e Silva, Coimbra.
A Quinta das lagrimas, em Coimbra, é uma propriedade celebre pela sua belleza e pela lenda. Uma fonte, chamada dos amores, ainda hoje mantem a tradição.
Rabicha (Fado da)
É o n.º 30 na 3.ª serie da casa Sassetti; Lisboa.
Rabicha é o logar que fica sob o arco grande do aqueducto das Aguas Livres, em Lisboa. Ha ali hortas, retiros, muito frequentados por fadistas e outra gente de vida airada. Não ha dia em que se não cante o Fado n’aquelle rincão votado ao prazer do canto e do copo.
Recreio musical (Fado do)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.
Rey Colaço (Fados de)
Estão publicados 8. Cinco d’elles não teem nome especial. Os outros intitulam-se: Hylario, Corrido e Pintasilgo.[Pg 279] Um d’aquelles cinco é offerecido á sr.ᵃ duqueza de Palmella.
Alexandre Rei Colaço é um brilhante pianista, professor do Conservatorio.
Os seus Fados são verdadeiras rapsodias portuguezas, variações artisticas sobre motivos populares.
Quasi todos são acompanhados de uma ou duas quadras colhidas na tradição oral.
Lia-se no Diario de Noticias, de janeiro de 1904:
«N’uma linda edição feita por uma das primeiras casas editoras de musica da Allemanha, acaba de ser posta á venda a encantadora e popularissima collecção de fados do nosso eminente pianista e professor Rey Colaço.
«A impressão é muito nitida e perfeita. A capa, para que tudo tenha o sabor portuguez, é uma curiosa e magnifica reproducção a côres do nosso lenço popular, o celebre lenço da estamparia do Bolhão, orlado d’arabescos com caracter genuinamente oriental.
«A collecção comprehende oito fados—os que são propriedade do compositor, porque o 2.º é do sr. Sassetti—entre esses fados ha o «Choradinho», o «Corrido», o «Hylario», o «Pintasilgo» e esse «primeiro fado» que tem corrido o paiz e que todos os amadores gostam de tocar, e toda a gente gosta d’ouvir.
«Este «primeiro» fado foi levemente modificado n’um sentido mais artistico e musical.
«A mencionar ainda a deliciosa «Canção das Serras», talvez a mais bella pagina de Colaço, n’um rythmo originalissimo—o mesmo da «Canção do Mondego»—digna[Pg 280] de figurar ao lado das «Feuilles d’album» do Grieg. Pediriamos ao delicadissimo compositor que nos desse mais d’estas «Feuilles d’album», genero que elle, como ninguem, póde cultivar entre nós com exito.
«Uma collecção que todos os «dilettantes» devem ter sobre a sua estante.»
Ribatejo (Fado do)
Conheço muito bem a musica d’este Fado, que pela primeira vez ouvi em 1901. Não sei quem é o auctor. Tambem não sei se ha apenas a musica ou se anda acompanhada de lettra especial.
Creio que a sua área de divulgação se circumscreve ás povoações ribeirinhas mais proximas de Lisboa. Em Santarem não é conhecido, como d’ali me diz o sr. João Arruda, redactor do Correio da Extremadura, em carta que vou transcrever, porque n’ella se encontram algumas rapidas informações que confirmam asserções minhas, expostas no texto d’este livro.
Diz o sr. Arruda:
«Não se conhece nenhum fado do Ribatejo e quanto a fados locaes diz-me um regente de musica muito distincto, que ha aqui, que todos nascem em Lisboa. Por aqui temos o verde-gaio, o balhariló e outras cantigas.
«Tambem consultei o mestre da banda de caçadores 6, e um amador de musica, que muitos annos dirigiu a Academia Bellini, e elles nada conhecem, tendo aliás feito alguns fados baseados no que existe.»
[Pg 281]
Ribeira Nova (Fado da)
Na collecção da casa Lambertini.
Rigoroso (Fado)
O mesmo que Fado corrido. Vide Corrido. É o simples acompanhamento para as trovas de qualquer Fado.
Palmeirim diz a respeito da Severa:
«O orgulho de se considerar a primeira da sua classe, de ouvir o seu nome celebrado em todas as banzas, e os seus amores assoalhados em todos os fados, «desde o rigoroso, que não consente variações», até ao mais artistico, em que a voz adormece, e acorda em requebros languidos, tornavam-n’a surda á voz da consciencia».
Robles (Fado)
J. R. Robles, que foi 1.º sargento de cavallaria e agora é empregado da Companhia dos Tabacos, em Lisboa, já vem mencionado a pag. 63 d’este livro entre os melhores tocadores de guitarra.
Este Fado anda na 2.ª série da casa Eduardo da Fonseca, Porto, e foi incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 57.
O seu auctor compol-o de 1879 a 1880. Estando por esse tempo em Evora, ahi se generalisou o seu Fado. Em 1900, havendo tido baixa no exercito, deu-o a rever em Lisboa a pessoas competentes, e depois o publicou.
[Pg 282]
O Fado Robles, que algumas pessoas denominam Artilheiro, tambem é popular no Porto, onde o auctor fez serviço militar até janeiro de 1891.
Roldão (Fado)
Este Fado foi cantado pelo actor Roldão na peça José João (parodia) que se representou no theatro do Principe Real em Lisboa.
O auctor da peça, e, portanto, das coplas é o sr. Eduardo Fernandes (Esculapio), antigo redactor do Seculo, hoje do Diario.
A musica e a lettra foram editadas pela Livraria Popular, de Francisco Franco, travessa de S. Domingos, Lisboa.
O frontispicio é illustrado com dois retratos do actor Roldão e com uma scena da peça.
Um dos retratos representa aquelle actor vestido de fadista, guitarra em punho, tal como apparecia no palco.
Dizeres do frontispicio: Fado Roldão, cantado pelo auctor, etc.
Ora, como já dissemos em outro logar, este Fado é, com leves alterações, especialmente na 2.ª parte, a canção Hija del Guadalquivir, que estava publicada desde 1894, no Porto, em o Cancioneiro de musicas populares.
Não dizemos isto como censura, mas apenas para notar uma coincidencia casual, que muitas vezes se tem dado na poesia e na musica.
O actor Jorge Roldão nasceu em 1859: foi musico[Pg 283] de infantaria 16; entrou para o theatro como executante na orchestra; depois passou a ponto, e de ponto a actor. Trabalhou no Porto, nos theatros D. Affonso e Carlos Alberto; em Lisboa tem trabalhado nos theatros da Rua dos Condes, Principe Real, Trindade e Avenida.
Artista de merito secundario, é comtudo uma «utilidade».
Roldão cantava o «seu» Fado em ré maior.
No folheto Fados modernos vem a lettra de um Fado para o Roldão.
Rosa de Vila (Fado)
Composto pelo sr. Julio Neuparth expressamente para ser cantado pela artista d’aquelle nome na festa de caridade realizada no Colyseu dos Recreios, a 26 d’abril de 1904, em beneficio da classe dos vendedores de jornaes de Lisboa, após a gréve dos typographos.
Rosas (Fado das)
Pelo actor Roldão. Editora a livraria Avellar Machado; Lisboa.
Ruas (Fado das)
É o n.º 23 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa.
Salas (Fado das)
Na collecção da casa Engestrom e da casa Sassetti, de Lisboa; e na de Eduardo da Fonseca, Porto.
[Pg 284]
Santo Thyrso (Fado de)
Apenas existe a lettra, que recolhi no livro Santo Thyrso de Riba d’Ave, e que foi composta por um pobre carpinteiro d’aquella villa, Narciso Ferreira d’Araujo, o Ferreirinha, quando partiu para o Brazil, onde falleceu.
Adaptava esta lettra a qualquer Fado dos até então conhecidos.
Saudade (Fado)
Para piano, por Herminio dos Anjos. Homenagem ao inconfundivel poeta das «Peninsulares». Editora, livraria Avellar Machado.
Traz no frontispicio o retrato de Simões Dias, e n’uma folha appensa esta «silva de cantigas» do mesmo poeta, para serem cantadas com a musica do Fado:
Sebenta (Fado da)
Composto por D. Laura Escrich e offerecido á Tuna academica de Coimbra, em 1899, a proposito de se celebrar n’aquella cidade o centenario da Sebenta, hilariante festa escolar promovida e realizada pelos alumnos da Universidade.
[Pg 287]
A Sebenta é, como se sabe, a synopse, redigida por um estudante e adquirida pelos outros, da prelecção feita pelo professor em cada cadeira.
Tradição universitaria, tem resistido á troça dos estudantes e á opposição de alguns lentes.
Em 1852 escrevia o dr. Adrião Forjaz, da faculdade de direito:
«Continuarão as sebentas? quer dizer continuará a trocar o maior numero de alumnos juristas o indispensavel estudo dos seus compendios e das obras magistraes, que os elucidam, pela tomada de cór d’uma papeleta, que o agiota-alumno autographou á pressa dos apontamentos tomados durante a exposição do professor? Receamos que a molestia não diminua. Ajuda-a grande numero de empresarios, a preguiça que favorece em muitos dos alumnos, e a falta talvez d’uma combinação e energica decisão dos professores.»
Referindo-se ao prematuro fallecimento da auctora d’este Fado, dizia a folha lisbonense, O Dia, no seu numero de 12 de novembro de 1902:
«Ha existencias affastadas e calmas, tão serenas que parecem ter direito a que a desgraça as esqueça.
«A senhora que acaba de fallecer, loura, elegante e distincta, com trinta e cinco annos apenas, tinha uma vida de grande simplicidade e dedicação—iamos quasi a dizer d’heroismo.
«Só com sua mãe, uma senhora de altas virtudes e raro caracter, trabalhava incessantemente, para que no seu lar houvesse o agasalho sufficiente a uma senhora de cabellos brancos, que n’um momento via partir-se-lhe[Pg 288] dolorosamente o coração. A morte leva-lhe assim, inesperadamente, a sua unica filha!
«A sr.ᵃ D. Laura Escrich, filha do sr. Frederico Alexandre Meiners, allemão, ha muito tempo no Rio de Janeiro, vivia entregue ás suas licções de pintura, em que era distinctissima, adorada pelas suas discipulas. Compunha tambem valsas e musicas de grande harmonia e valor.
«Cinco dias bastaram para espesinhar e dispersar toda esta existencia de serenidade e trabalho. Hontem ás 11 horas bruscamente morria. Curvemo-nos perante a grande Dôr d’aquella que viu ao mesmo tempo morrer-lhe nos braços a filha e com ella fenecerem-lhe as ultimas esperanças de felicidade na terra.»
Sebenta (Fado da)
É a serenatella do «Auto da sebenta», composta pelo estudante Candido de Viterbo.
Veja-se o que dizemos a este respeito no capitulo V, quando tratamos dos Fados litterarios.
Sello (Fado do)
Referindo-se á romaria do Senhor da Serra, em Bellas, anno de 1902, dizia o Diario de Noticias, de Lisboa:
«Dançou-se animadamente durante a tarde, em varios sitios da quinta, não deixando tambem de ouvir-se um ou outro cantador de fado, que ao som do «pianinho»[Pg 289] largava a sua cantiga mais ou menos engraçada, como a que segue:
É possivel que o cantador enfiasse outras quadras allusivas ao mesmo assumpto. Mas esta basta como prova de que o sello já entrou alguma vez nos dominios do Fado.
Sem nome (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Sentimental (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz na sua collecção, manuscripta, de Fados.
Sepulveda (Fado do)
Sepulveda é o sr. Julio Cesar Affonso Sepulveda, despachante na Alfandega de Lisboa, mais conhecido entre os rapazes pela abreviatura Veda.
D’este Fado fez ultimamente uma edição, impressa na Allemanha, o sr. Raul Venancio, estabelecido em Lisboa na rua do Oiro.
[Pg 290]
Serenata (Fado)
Composto por Manuel Luiz Ferreira Tavares para a recita do curso do 5.º anno theologico-juridico, 1900-1901.
Lettra de Nanzianceno de Vasconcellos:
Serenata (Fado)
Vide Olinda.
Severa (Fado da)
Vide cap. IV, pag. 158.
[Pg 291]
Sinhás (Fadinho das)
É o n.º 36 na 3.ª serie da casa Sassetti, de Lisboa.
Soffrimento (Fado do)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 55.
Sol e dó (Fado)
Supponho que é edição da casa Sassetti.
Syndicateiros (Fado dos)
É o n.º 29 na 3.ª serie da casa Sassetti.
Taborda (Fado)
Vide Gato.
Talvez te escreva (Fado)
Da revista do anno, de Eduardo Schwalbach Lucci, intitulada Nicles.
Tancos (Fado de)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 70.
É o numero 7 na 1.ª serie da casa Sassetti.
Tancos, villa da Extremadura, concelho da Barquinha,[Pg 292] onde Fontes Pereira de Mello mandou construir em 1865 um campo de manobras.
Theodolinda (Fado)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz.
Torrinha (Fado da)
É o n.º 33 na 3.ª serie da casa Sassetti.
A antiga quinta da Torrinha, situada no casalinho do Carvoeiro a Valle de Pereiro (alto da Avenida da Liberdade) em Lisboa, foi uma horta muito frequentada por gente patusca, que ali ia merendar e ceiar n’uma tasca.
Trez horas (Fado das)
Musica de Reynaldo Varella. Lettra:
Este Fado foi composto n’uma noite de patuscada, exactamente á hora que lhe serve de titulo, e editado, no Porto, pela casa Eduardo da Fonseca.
Triste (Fado)
Composição de Augusto Machado.
Triste (Fado)
Musica do professor de guitarra Julio Silva; lettra de Armando de Araujo.
Cantou-se no sarau da imprensa realizado em 1902 no Colyseu dos Recreios.
É dedicado á memoria do poeta portuense Antonio Nobre, cujo retrato, em traje academico, orna a capa da musica.
[Pg 296]
Trovadores (Fado dos)
Auctor, Avelino Baptista.
Vaporosas (Fado das)
Recolhido pelo sr. Fernando Diniz, professor de guitarra.
Victor Hussla (Fados de)
Victor Hussla nasceu em S. Petersburgo a 16 de outubro de 1857. Veio para Lisboa em 1887 como director da Real Academia de Amadores de Musica. Violinista distincto e professor bem orientado, prestou importantes serviços artisticos áquella associação e a Lisboa.
A seu respeito escreve Ernesto Vieira no Diccionario biographico dos musicos portuguezes:
«Como compositor produziu Hussla trabalhos de muito valor. De todos o mais importante é a sua grande symphonia, obra vasta e trabalhada com grande esmero no mais puro estylo allemão. De igual auctor é a «Abertura», composição menos extensa mas do mesmo modo trabalhada.
«Não foram porém estas as suas producções que mais lisonjearam o nosso ouvido meridional. Sobrelevaram-lhes no effeito as celebres «Rapsodias portuguezas», em que os nossos cantos nacionaes tiveram pela primeira vez a honra de ser luxuosamente revestidos de uma orchestração primorosa e em alguns pontos verdadeiramente admiravel.»
[Pg 297]
Nas «Rapsodias» foram por elle comprehendidos alguns Fados.
Nomeado professor do Conservatorio em 1897, falleceu repentinamente, indo a entrar para aquelle edificio, na manhã de 14 de novembro de 1899.
Vida (A) Fado
Composição de Julio Neuparth.
Vimioso (Fado)
Vide capitulo IV d’este livro, pag. 183.
28 (Fado do)
Publicado no Porto, para piano, pela casa Eduardo da Fonseca.
Tem sido attribuido ao Hylario, como dissemos no cap. V, pag. 229.
Mas o seu auctor foi um rapaz cego que viveu em Braga e era protegido do reverendo abbade de S. João do Souto, padre José do Egypto Vieira.
Este cego tinha no asylo o n.º 28, e toda a gente o conhecia mais pelo numero que pelo nome.
D’ahi o titulo com que o seu Fado se generalisou.
Visconti (Fado)
Visconti, um cançonetista de circo, veio a Lisboa, onde o rythmo das suas canções comicas se tornou popular.
[Pg 298]
Esse rythmo é o que se chama Fado Visconti. (Está incluido na collecção de Fados da casa Eduardo da Fonseca, Porto.)
Lettra de algumas das canções:
Zé povinho (Fado do)
Incluido no Cancioneiro de musicas populares portuguezas, fasciculo 72.
FIM
[Pg 299]
Ácerca da synonymia das palavras Fado e discurso, esqueceu-nos citar Max Muller, que diz: «Fatum, a fatalidade; significava primitivamente o que tinha sido dito; e antes que a fatalidade se tornasse uma potencia superior ao maior dos deuzes, esta palavra significava o que tinha sido dito por Jupiter, e que o proprio Jupiter não podia alterar.» La science du langage, traducção franceza.
N’estas poucas palavras fica bem assignalada não só a correlação existente entre aquelles dois vocabulos, como tambem o caracter fatalista, irremediavel, de Fatum, que nós bem propriamente traduzimos por Fado (discurso em verso, acompanhado de musica).
Encontramos mais uma prova da não existencia do Fado no seculo XVIII.
Vem no tomo XIV do Theatro de Manuel de Figueiredo:
«... a imperfeição d’alma, que eu padeço pela minha ignorancia, me não deixou nunca esquecer da graça, que achei nos tocadores de viola, e rebeca nos proprios lugares, que juntos ião á Penha, e ao Beato nos Domingos, e dias Santos de tarde (ainda no tempo das espadas) com a banda direita do capote lançada[Pg 300] por cima do hombro esquerdo, ficando-lhes as mãos fóra delle, e o cotovelo direito: as gentes corrião atraz daquella repetida tonadilha da fofa, e do fandango, como o rancho das galinhas atraz da feliz, que tem a lagartixa no bico».
Estas palavras são de Francisco Coelho de Figueiredo, editor e commentador do Theatro do irmão.
Francisco C. de Figueiredo nasceu em 1738 e morreu em 1822.
O tomo a que nos referimos sahiu em 1815.
A expressão «Nascemos de um grupo de lusitanos» não importa mais que uma vaga e tradicional referencia aos tempos anteriores á constituição da nacionalidade portugueza.
Bem sabemos como Herculano se empenhou em negar qualquer especie de unidade nacional entre os portuguezes e a tribu ou tribus de celtas hespanhoes conhecidos pelo nome de lusitanos.
Mas tambem sabemos que o proprio Herculano reconheceu quanto seria difficil vencer a força da tradição, «a crença nacional e quasi popular» que nos dava como successores e representantes dos lusitanos.
Esta crença é alimentada até pelo titulo da grande epopea portugueza—Os Lusiadas.
Escrevendo para o povo, encostamo-nos insensivelmente á formula popular, salvaguardando, é claro, o respeito devido á formula erudita.
[Pg 301]
O methodo de guitarra de Ambrosio Fernandes Maia teve a sua 1.ª edição em 1877, e a 2.ª em 1897.
Este methodo é figurado por algarismos: e ao seu auctor parece ser o mais facil que tem apparecido, segundo declara.
No prologo da 2.ª edição diz Fernandes Maia:
«A guitarra, esse instrumento de vozes tão melodiosas, que, como nenhum outro, fere tão intimamente as fibras do coração fazendo-nos ouvir os cantos, as canções mais populares de nossa terra, esse pequeno instrumento, que traduz a alma do povo portuguez, jazeu longos annos no mais completo abandono; a ella votaram os nossos antigos o mais completo desprezo, e ai d’aquelles que se atrevessem a dizer «toco guitarra».
«Durante annos viveu nas espeluncas mais ordinarias, e eram d’uma má reputação, todos que dedilhavam as suas cordas.
«Destinos do acaso: o piano entrou nos cafés, elle, que nascera na opulencia, e a guitarra sempre modesta, com os seus tons tão melancholicos, com os seus gemidos, entrou triumphante nos salões da nossa primeira sociedade!»
O sr. Affonso Lopes Vieira, que ha pouco deixou os bancos da Universidade, consagrou uma das suas poesias á psychologia do Fado.
Transcrevo algumas quadras:
[Pg 302]
Capitulo I—Origens do Fado | pag. 7 |
» II—Fadistas | » 43 |
» III—Os assumptos do Fado | » 78 |
» IV—A Severa e o Conde de Vimioso | » 140 |
» V—Fados de nomenclatura—Fados litterarios | » 187 |
» VI—Bibliographia musical do Fado | » 239 |
—Notas finaes | » 299 |
Pag. 18, linha 20, onde se lê «e de começar por» deve lêr-se «e começar por».
Pag. 19, linha 26, onde se lê «par alguns escriptores», deve lêr-se «por alguns escriptores».
Pag. 20, linha 21, onde se lê «a nossa sensibilidade doentia» deve lêr-se «a nossa sensibilidade doentia».
Pag 116, onde se lê «Antonio Feleciano» deve lêr-se «Antonio Feliciano».
Pag. 13, linha 26, onde se lê «Copia textualmente», deve lêr-se «Copio textualmente».
Pag. 135, onde se lê «Entrará logo Neto» deve lêr-se «Entrará logo o Neto».
Mesma pagina; linha 28, onde se lê «serãos» deve lêr-se «serão».
Pag. 140, linha 18, onde se lê «ida», deve lêr-se «idea».
Pag. 142, linha 71, onde se lê «dedidgna», deve lêr-se «dedigna».
Pag. 151, linha 8, onde se lê «que» deve lêr-se «o que».
Pag. 154, nota, onde se lê «vocabulo» deve lêr-se «vocabulo».
Pag. 213, linha 26, onde se lê «moderamente» deve lêr-se «modernamente».
Pag. 238, linha 1.ª, onde se lê «que passaram por Coimbra:», deve lêr-se «que passaram por Coimbra.».
Pag. 239, linha 4, onde se lê «m Portugal» deve lêr-se «em Portugal».
Pag. 258, linha 1.ª, onde se lê «Fado noucturno» deve lêr-se «Fado nocturno».
Pag. 265, linha 14, onde se lê «Paula e Siva» deve lêr-se «Paula e Silva».
Pag. 278, linha 7, onde se lê «a tradição.» deve lêr-se «a tradição:».
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GOMES DE CARVALHO
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Sem passar a fronteira., 1 vol. 500
É uma serie de folhetins que, como o titulo indica, se referem só a aspectos e factos da nossa terra. Alguns d’esses trechos são interessantissimos, e dão bem a nota de serem vividos, e narrados em hora em que uma grata despreoccupação mais facil e limpida torna a sinceridade das almas.
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