[Pg i]
OBRAS
DO
V. DE A. GARRETT.
XVII.
(SEGUNDO DOS VERSOS.)[Pg iii]
VERSOS
DO
V. DE ALMEIDA-GARRETT.
II.
FÁBULAS—FOLHAS CAHIDAS, SEGUNDA EDIÇÃO.
LISBOA
NA IMPRENSA NACIONAL
1853.
No anno de 1828, em Londres, se publicou
o primeiro volume dos versos ou ‘poesias
fugitivas’ do Sr. Garrett. Extinguiu-se em
pouco tempo a edição; mas o auctor, occupado
de outros trabalhos e preoccupado de[Pg vi]
mais serios cuidados, não tractou nunca de
preparar a reimpressão que, entre nacionaes
e extrangeiros, pediam todos os collectores de
suas obras.
Até ao anno de 1841, não lhe foi possivel
nem lançar os olhos áquelle modesto volume
que, sob o nome de LYRICA DE JOÃO MINIMO,
tam popular o tinha feito, e algumas de cujas
peças ja tinham merecido ser trasladadas nas
linguas mais cultas da Europa.
N’esse anno, retirado a descançar no campo
de grandes fadigas de corpo e de espirito, deu
emfim algumas horas de mais lazer a repassar
as composições de sua infancia litteraria,
e a escolher as principaes das que, em mais
feita edade, lhe tinha arrancado a condescendencia
com amigos, ou a irresistivel inspiração[Pg vii]
de algum objecto ou circumstância
da vida que mais o impressionára.
Resmas e resmas de papel lhe vimos destruir
e queimar ao fazer d’esta escolha. E apezar
do desapiedado apuramento, ainda ficou
uma collecção copiosa que, entre o ja impresso
e o ainda manuscripto, dava materia
para bons quatro volumes.
Infileirou tudo por generos e datas,—algumas
das quaes só estavam na pouco exacta
reminiscencia do auctor. Mas depois de tentados
e desprezados varios methodos, assentou
porfim—que dos quatro volumes, ficaria sendo
o primeiro essa mesma LYRICA DE JOÃO MINIMO,
apenas alterada da primitiva edição de
Londres em leves differenças de collocação, e
acaso additada com alguma composição juvenil[Pg viii]
que o auctor desprezára, mas que reclamavam
os seus apaixonados;—que o segundo, sob o
titulo de FLORES SEM FRUCTO, conteria o resto
das composições lyricas da sua primeira e segunda
epocha;—que o terceiro sería destinado
ás FÁBULAS E CONTOS, e por appendice
aos poucos sonetos que não intregára ás chammas;—o
quarto volume finalmente, com o
titulo de FOLHAS CAHIDAS, foi dedicado ás
producções de edade mais madura e que elle
considerava como os seus ultimos versos.
D’estes quatro volumes assim detalhados,
não se tractou todavia por emquanto de dar
ao prelo senão o segundo, as FLORES SEM
FRUCTO, que ainda assim só vieram a imprimir-se
em 1845.
E nem a popularidade que obteve o livro,[Pg ix]
nem o remanso de maiores lidas, que por então
gosou o auctor, o poderam mover a pôr a
última mão a nenhum dos outros.
Sómente em principios de 1851 entrou na
imprensa o primeiro volume, isto é, a segunda
edição da LYRICA DE JOÃO MINIMO, e
o quarto, isto é, as FOLHAS CAHIDAS.
Motivos bem notorios de serviço público
vieram reclamar toda a efficacia e attenção
do nosso auctor; e os dois volumes lá ficaram
abandonados na imprensa, meio compostas e
meio revistas as folhas. Assim estiveram dois
annos até principios do actual, 1853, em que
felizmente desimbaraçado e liberto, pôde outravez
dar-se aos seus queridos cuidados litterarios.
Publicou-se então a LYRICA e as FOLHAS[Pg x]
CAHIDAS; aquella muito correcta e avantajada
á primeira edição; éstas cerceadas e mondadas
pelo auctor, que apenas ficou uma pequena
brochura do que tinha sido um volume
regular.
Em poucos dias porêm desappareceram as
FOLHAS;—levadas de bons e de maus ventos...
voaram.
E sendo reclamada pela opinião e pelas necessidades
do commercio uma segunda edição,
resolveu-se o auctor a fazer da reimpressão
d’esse voluminho, e do inedito que era destinado
ás Fábulas, sonetos, etc., um só tomo,
com o título de SEGUNDO VOLUME DOS PRIMEIROS
E ULTIMOS VERSOS.
Para resummir d’este modo, era necessario
porèm queimar ainda mais sonetos e mais[Pg xi]
apologos. Assim se fez, sendo genero de occupação
em que muito parece comprazer-se o
auctor.
Mas por tal modo, com estes dois volumes
e com o das FLORES SEM FRUCTO, está completa,
em tres tomos regulares, a collecção
das poesias menores do Sr. Garrett: nome
pelo qual sempre será mais conhecido o Visconde
de Almeida Garrett, a quem as dignidades
politicas não elevam nunca acima do
que a si proprio se eleva por seu ingenho e
estudo.
Detractores e inimigos gratuitos—porque
não invejosos tambem?—podem clamar que
essas dignidades rebaixam o nome que não
podem exaltar.
É um sophisma de calumnia, porventura[Pg xii]
admissivel como epigramma se, republicano
e demagogo, o auctor de Camões, de Gil-Vicente
e de Fr. Luiz de Sousa, houvesse alguma
hora professado as hypocritas doutrinas
do nivelamento social, que tam poucos acclamam
com sinceridade, e menos ainda com
perseverança. Mas a tribuna, a imprensa e o
Conselho o viram sustentar sempre com denodo
e dedicação a causa da monarchia, sustentá-la
como inseparavel da causa da liberdade
do povo, da qual é não menos zeloso e
strenuo defensor.
A verdade é que as distincções monarchicas
tanto dão lustre ao merito e o recebem
d’elle, quanto se invilecem e prostituem lançadas
á ignavia ou ao demerito que não conseguem
innobrecer.
[Pg xiii]
O dia em que os reis comprehenderem bem
este axioma, será o último das aspirações demagogicas.
Voltemos porêm á historia da nossa collecção.
Não ficou ella nem rigorosamente chronologica
nem perfeitamente systematica. Participa
de uma e de outra coisa, innevoada de
um certo mysterio que muito por acaso a
involve, sem nenhuma prevenção ou pretenção
da parte do auctor.
Na Lyrica de João Minimo, tal como no
princípio d’este anno se publicou, está a infancia
poetica, toda a vida juvenil do homem
de lettras, do artista, do patriota sincero e innocente,
do enthusiasta da Liberdade que ainda
não conhece, que ama com exaltação, que serve
com fervor, e pela qual sacrifica de bom grado[Pg xiv]
a patria, o socêgo doméstico, a fortuna, a saude
e quanto os homens mais prezam. Ha n’essa
lyra uma corda que ja soa de amor, do amor
apaixonado, ardente, cioso que um dia abafará
talvez as outras todas. Mas os gemidos
soltos que por agora lança, os vagos suspiros
que balbucia mostram bem claro que no coração
do poeta dormem ainda as tempestades
que porventura lhe hãode agitar depois a vida.
Para tudo o que não é a Patria e a Liberdade,
é tibio e froixo o seu canto, desgarrado
e mal sentido. Hade entrar muito fundo n’esse
coração a pena ou o prazer, antes que chegue
a fazer vibrar a corda íntima que está silenciosa,
distendida—e apenas geme a espaços
como harpa eolia pendente do ramo, que, agitada
por incerta brisa, suspira vaga e saudosa,[Pg xv]
sem a percutir ninguem, por ninguem,
por coisa nenhuma, e só movida de um indeterminado
presentimento do que hade ser,
do que póde ser, do que talvez não seja nunca.
Falla de amor o poeta... Sim, falla; e ha
Délias e ha Lilias, e ha flores e ha estrêllas,
e ha bejos e ha suspiros, e ha todo esse estado
maior e menor de um exército de paixões
que sai a conquistar o mundo no princípio
da vida de um rapaz cheio de alma, de
fogo, de exuberante energia e vehemencia de
sangue. Mas esse exército é todo de parada,
fórma bem na revista—em travando peleja
séria, hade fugir, porque é boçal e não o
anima nenhum sentimento verdadeiro e tenaz.
Ve-se o poeta atravez do amante: falso
amor e falsa poesia! Quando um e outro são[Pg xvi]
verdade, não apparece senão o amante, não
se ve senão a paixão, a arte some-se, annulla-se
deante d’ella: então vem a poesia do
coração.
Não ha ainda d’essa poesia na LYRICA DE
JOÃO MINIMO. A da alma sim. Nos tres livros
em que se divide a LYRICA estão as tres
primeiras epochas da existencia do mancebo.
As impressões e aspirações da infancia que
desponta á puberdade, os instinctos da glória,
do amor e do patriotismo suspiram no
primeiro livro, que se sente escripto no socêgo
da casa paterna á repousada sombra das
faias e das larangeiras da sua ilha no meio
do Athlantico,[1] e logo depois ás margens classicas[Pg xvii]
do Mondego, nas horas vagas dos estudos
superiores. O segundo livro é nova era
para o poeta e para o patriota. Alceu imberbe,
tribuno de dezeseis annos, levanta-se
com a revolução, destitue todos os idolos velhos,
e não canta senão hymnos á liberdade.
O profundo sentimento monarchico lá resumbra
todavia sempre dos mais exaltados cantos
com que se insurge a sua musa revolucionaria.
Ve-se que, apezar de todo o impeto que
leva essa carreira, jamais hade precipitá-lo
na anarchia. O irreconciliavel inimigo dos despotas
e dos hypocritas não hade ser nunca
o amigo dos demagogos, nem blasphemará jamais
contra Deus e contra a religião em nome
da liberdade que adora como emanação do
seio divino.
[Pg xviii]
No terceiro livro ahi está elle repousando
no lar paterno das primeiras lidas públicas;
ahi canta em suaves endeixas os mais puros
affectos da familia, a saudade dos que ja não
vivem, o carinho dos que ainda o abraçam.
Mas a patria, essa patria que hade renegá-lo
e proscrevê-lo d’ahi a pouco, a liberdade que
hade fugir bem depressa, vem tirá-lo do seu
momentaneo descanso. Os cinco annos da vida
de Coimbra passaram, o socêgo da casa materna
a que regressou cança-o. Elle que sai
outra vez da sua ilha tranquilla para as tempestades
da capital. A causa do povo é trahida,
abandonada... elle não a abandona; prefere
o exilio, e em terra extrangeira o ouvimos
cantar as suas imprecações, as suas saudades
e a constancia indomita do auctor do CATÃO.
[Pg xix]
Tal é a historia da LYRICA DE JOÃO MINIMO,
que termina em 1824.
Começa no anno seguinte a das FLORES SEM
FRUCTO, collecção ja muito menos volumosa,
porque a superabundancia de seus espiritos
poeticos tem ja outras derivações. O CAMÕES,
a DONA BRANCA, a ADOZINDA, absorvem muito
d’elle. Fórma-se com a experiencia e a observação
na terra extrangeira o talento do publicista,
aperfeiçoa-se na patria com a práctica;
começam as luctas politicas de 1826,
em que o redactor do PORTUGUEZ e do CHRONISTA
mostra que, se a natureza o fez poeta,
o estudo e o amor do seu paiz o fizeram orador
eloquente e escriptor politico abalisado.
Nova emigração, novos trabalhos litterarios
e politicos, e novos cantos lyricos tambem,[Pg xx]
em que ora geme, ora triumpha a liberdade.—Mas
no segundo dos dois livros
das FLORES começam as paixões do coração
a tomar posse mais ampla e mais tenaz do
poeta. Sería que as desillusões da politica,
os desappontamentos da vida pública, as deffecções
da amizade o levassem a refugiar-se
nas chymeras d’esse outro paiz de sonhos,
em que o despertar não é todavia nem menos
desanimado nem menos triste?
Não sei: a vida de um poeta hade sempre
ter capítulos mysteriosos, transições inexplicaveis
e inesperadas; a filiação de suas ideas
e de seus sentimentos é quasi sempre cryptogamica.
O certo é que, nas primeiras composições
dramaticas do restaurador do nosso
theatro, o amor não existe. No CATÃO e na[Pg xxi]
MEROPE só ha as paixões d’alma, o amor da
patria ou da familia; no GIL-VICENTE porêm
ja o coração toma o primeiro logar,—disputado
ainda pela glória, pela paixão das lettras,
da arte—mas o primeiro.
N’esta segunda collecção lyrica do nosso
auctor, basta a peça que tem por titulo As
minhas asas para se ver que o homem público,
o philosopho, o poeta da glória e da
liberdade pagou emfim o tardio e pesado
feudo de sua independencia vencida e subjugada.
Até então as homenagens ao suzerano
eram meias de escarneo, eram um
tributo de condescendencia—de uma como
elegante ironia! O estado de coisas é outro
agora.
As FOLHAS CAHIDAS continuam esse estado.[Pg xxii]
Os seus dois livros (que na primeira
edição foram um só) visivelmente o mostram.
As FOLHAS CAHIDAS são o principal n’este
segundo volume dos VERSOS, que vem a ser
o terceiro, porque entre elle e o primeiro
estão as FLORES SEM FRUCTO. As FÁBULAS
e os SONETOS não são senão appendices ou
accessorios; e por suas datas e por seu genero
pertencem mais á primeira collecção de
que acima fallámos, do que a ésta terceira
de que vamos occupar-nos.
Aqui os sentimentos patrioticos, o amor
da glória, o enthusiasmo da liberdade teem
ainda saudosos ecchos na lyra do poeta. Mas
a energia, a vehemencia de suas cordas não
vibra ja senão com outra paixão mais ciosa
e mais exclusiva. As Julias, as Délias, não[Pg xxiii]
se contentam ja de inspirar, dominam absolutamente
o coração do poeta, os hymnos, as
canções, as imprecações mesmas da sua lyra.
Que é de o Alceu que bramia liberdade,
o Anacreonte que zombava com o prazer, o
Tyrteu que precedia as phalanges da Terceira
aopé do pendão azul e branco da joven Rainha
dos exilados? Que é das elegias suaves
e melancholicas do auctor do Camões? Que
é feito dos desgarres semi-rabelaicos do poeta
de Dona Branca, dos sarcasmos byronicos e
incredulos, dos surrisos mephistophelicos espalhados
por essas VIAGENS NA MINHA TERRA,
pelo ARCO DE SANCT’ANNA, por tanto volume
de prosas e de versos?
Tudo isso acabou, porque acabaram provavelmente
todas as decepções do seu ânimo,[Pg xxiv]
e não ficou, em logar d’ellas, senão outra decepção
maior que ingana mais cega, e venda
mais apertada.
Taes são as FOLHAS CAHIDAS, última palavra
até agora, mas que não será a derradeira
do nosso poeta: affoitamente o confiâmos.
Confiâmo-lo de seu ingenho grande, de
sua alma elevada e nobre, traduzimo-lo da
sua admiravel introducção ao pequeno volume
que hoje reproduzimos.
As FOLHAS CAHIDAS não são o fim, são a
transição.
O que virá depois sabe-o Deus, sabe-o o
destino mysterioso de uma existencia á parte,
que não tem lei nas regras, mas nas excepções
da humanidade.
O tempo o mostrará, porque uma vida, que[Pg xxv]
tam longa parece por tam cheia que tem sido,
é ainda curta e môça bastante para nos deixar
aguardar socegadamente pelo futuro que
esperâmos d’ella... e muito!
[Pg xxvi]
[Pg xxvii]
PRIMEIROS VERSOS.
FÁBULAS E CONTOS.—SONETOS.
[Pg xxix]
Senti sempre que a lingua portugueza era
para todo o genero de composições. E o rebellar-se
ella em algumas pareceu-me que
era mais inhabilidade de quem a conduzia
do que defeito proprio seu. Por honra d’ella,
mais que por vaidade minha, tentei compor
em tam desvairados assumptos e generos como
tenho feito. Hoje estou crente e firme convencido[Pg xxx]
de que a tudo serve, a todo stylo se
presta. Nem me persuadi mais d’isso por alguma
coisa em que sahi bem de meus insaios,
do que pelas muitas em que falhei.
A singeleza de seu dizer, uma certa malicia
popular e mordente de sua innocencia
saloia faz o dialecto portuguez eminentemente
proprio para o apologo e para o conto.
Está pouco trabalhado o genero entre nós
em verso. Mas as fábulas dos animaes, contadas
em prosa pelas gentes do campo, teem
tanta graça de stylo como as de Esopo e de
Pilpay; e as narrativas do Decameron popular
em que sempre figura o frade, a mulher do
çapateiro, o marido logrado, o amante umas
vezes bem succedido em seus artificios, outras
colhido n’elles proprios e punido de sua
audacia, não teem que invejar a Lafontaine
ou ao licencioso italiano que fez as delicias
de nossos gaiatos avós da renascença.
Quando, em bem criança, quiz tambem insaiar
a minha penna n’este genero, não adverti
tanto no que agora escrevo e penso.
Fique pois o meu mau exemplo, fique a
minha quéda por farol de aviso aos que navegarem
n’este rumo, paraque saibam que[Pg xxxi]
as imitações dos extrangeiros são perigosas
sempre, e quasi sempre infelizes quando se
não poem bem deante dos olhos os unicos
typos verdadeiros, que são a natureza, a indole
da lingua, e os modos de dizer do povo
em cujo idioma se escreve.
Tambem comprehende a segunda parte destes
meus ‘primeiros versos’ alguns sonetos,
poucos. De centos que fiz, e que me fizeram
fazer, apenas deixei estes. Não são bons, e
eu não gósto do genero, que por indole propria
é pretencioso e facticio. Mas confesso
que hoje tenho remorso da reacção que promovi
contra o soneto. Tinha aomenos restricções
e difficuldades que não tem a sôlta liberdade
das canções descabelladas e plusquam
romanticas, pelas quaes foi substituido; na
qual soltura cresceu descompassadamente a
turma dos janisaros do Parnaso, que levaram
a anarchia poetica alêm de todas as raias do
senso commum.
Se nós invocaremos ainda o soneto e a Arcadia
e a Academia, como os povos, cançados
e infastiados das orgias da liberdade desinfreada,
invocam a tyrannia, último e fatal
remedio dos males presentes, que lhes fazem[Pg xxxii]
esquecer os passados? Ochalá que não, porque
a coisa era muito semsabor e muito pedante.
Mas ésta é tam piegas!
Da litteratura piegas nos livre Deus, sôbre
todas as coisas.
Emfim, a historia do mundo não é senão
uma serie de reacções e contra-reacções. A
da litteratura é o mesmo. O que unicamente
fica immutavel são os eternos principios da
verdade, do gôsto, e da razão em tudo.
Lisboa, Janeiro 1853.
[Pg 33]
FÁBULAS E CONTOS.
LIVRO UNICO
I.
INTRODUCÇÃO.
Cahiram com a folha os meus prazeres;
E as musas, caro Gomes,
[2] que, outro tempo,
Torrentes d’estro me esparziam n’alma,
Até as mesmas musas
Sem dó, sem compaixão desampararam
[Pg 34]
O froixo amante inválido.
Embalde as chamo, e as desmontadas cordas
Da saudosa lyra
Lhes peço aomenos que siquer me affinem.
São bellas, como bellas, caprichosas:
Não me admirou que fujam.
Porêm, amigo, no celeste côro,
Como por ca na terra,
De milagre inda ás vezes se depara
Com alma bemfazeja.
Das nove irmans gentis a mais gaiata,
Garrida e brincalhona,
A galhofeira, magica Thalia,
Rindo-se ás gargalhadas
Da lamuria que fiz por ver fugi-las:
—‘Deixa,’ me disse ‘és louco;
Deixa, que ellas virão sem que as tu chames:
É costume do sexo,
Assim fazemos todas.
E que lhes queres tu? que incantos achas
Na macillenta, pallida Melpomene,
Que, desde que houve em Grecia um tal Eschylo
Até o dia d’hoje,
[Pg 35]
Sempre lagrymijando
Nos sécca, nos injoa
E nos quebra os ouvidos com gemidos?...
Sempre se anda a mattar e nunca morre!
As outras—na verdade,
Aqui muito em segredo,
Éstas minhas irmans... Não é má lingua,
Não é geito da saia... mas decerto
Não sei esses poetas
Porque tanto as incensam, tanto as buscam.
Olha: o velho Philinto,
Que tu, e os teus patricios—boa gente!—
Tanto gabaram, applaudiram tanto,
Sem lhe mattar a fome,
Postoque a todas nós galanteava,
Comtudo a do seu peito
Foi a mana Polymnia.
Nunca vi um namôro mais rançoso;
Fizeram duzias de odes... duzias!—centos.
Tantas e tantas foram,
Que emfim o mano Apollo
Ja de odes infastiado,
Assim que o pobre velho deu á casca,
Protestou, e protesta
[Pg 36]
Não dar a mais ninguem o officio vago
De Lyrico da casa.
‘Caliope, essa tolla impavezada,
Que Homero, e o teu Camões, Virgilio e Tasso
Tam mal acostumaram,
Sempre de bico doce,
Torce o nariz a tudo
E diz que a ninguem mais quer dar cavaco;
E até, se não soubesse
Que um tal poeta lá da tua terra
Que faz Orientes e baptiza Gamas,
E a quem nós todas temos mortal osga,
Fôra frade tambem... que ia ser freira.
As mais é tudo o mesmo,
São todas desdenhosas:
Além d’isso têem lá os seus namoros,
E não querem largá-los.
‘Eu ca não sou assim ... Porêm não penses,
Por me ver rir com todos,
Que a todos quero, que namóro a todos.
Ingana-se commigo muita gente,
Tenho inganado a muitos
[Pg 37]
Que julgam conseguir os meus favores:
Cahem como uns patinhos
Nas peças que lhes armo.
Cuidou que me pilhava aqui ha tempos
Um tal cantor de burros,
Macaco encyclopedico
Que em tudo quer metter-se.
Preguei-lhe um lôgro... oh este foi machucho:
Vesti a minha môça da cozinha
Que vocês lá no mundo
Appellidam Chalaça,
Que sempre anda mettida entre estudantes,
Marujos e arreeiros,
Vesti-a c’uma roupa do meu uso
Ja rota e desbotada,
E mandei-lh’a em meu nome ao tal poeta,
Que a pillula ingoliu,
E muito satisfeito da conquista,
Por tal a deu aos parvos
Que as sujas trovas, que os immundos versos
Extasiados applaudem.
‘Quando eu tinha os meus dôze, e era donzella...
—Que hoje, cre-me a verdade,
[Pg 38]
Vai ca no Olympo o que lá vai na terra!
Namorei-me de um Grego: oh! bello amante!
Chamava-se Aristophanes:
Dei-lhe, intreguei-lhe tudo
—Como o teu Camões disse—
O que deu para dar-se á natureza.
Um Phrygio corcovado,
Mas que tinha mil graças
Que a corcova das costas lhe incubriam,
Soube tambem vencer-me.
Com estes dois gosei prazer tam doce,
Tam deleitosas horas,
Que os monumentos d’ellas
Inda lá pela terra os mimos fazem
De quantos sentem de meus dons o preço.
‘Quando no Sena ovante,
Quando no Tejo e Tybre
Se ergueram nossos templos
Que a barbara ignorancia derrubára,
Ao cantor do Lutrin, ao da Pucelle,
Ao mago auctor do santarrão Tartufo,
Ao teu do bento Hyssope,
E a esse galhofeiro Italiano
[Pg 39]
Que aos animaes deu falla,
Dei-lhe os favores, franqueei-lhe os mimos
Que a Ariosto, a Gil-Vicente,
Que aos outros todos concedêra outrora.
Se o que elles foram sabes,
Quanto eu valho apprecia.
Eu não sou como as manas,
Rio de tudo, tudo rindo insino;
E nas coisas mais sérias
Acho, descubro o lado
Em que o sal do epigramma incaixa a geito.
Por mim da atroz affronta,
Por mim da escravidão, por mim da inveja
O ingenho se despica,
E n’um só trait d’esprit, de eterno opprobrio,
C’o sêllo do ridiculo,
Marca indelevel na ignorancia imprime,
Na presumpção, no orgulho,
Toma’ e, dizendo, me intregou a lyra,
‘Toma, e conhece quanto podem risos
Da magica Thalia.
Fere-a, e, se os sons mal destros,
Desafinados, rudes te sahirem,
Começa n’isso mesmo
[Pg 40]
A gosar minhas dadivas;
Ri-te d’elles, de ti, ri-te da lyra,
E de mim se quizeres.’
Tal me fallou a minha bella deusa
Que tantas gargalhadas,
Nos dias folgasões de nosso tempo,
Nos fez dar tantas vezes
Quando na voz roufenha
Do nosso mathematico Alvarenga.
[3]
Ás mãos cheias vertia
Pilherias do Kai-Pira e Sganarello,
[4]
Do impulhado Avarento.
Satisfeito da offerta, e mais que d’ella,
Do longo e bom cavaco,
—Cavaco que jejuo ha tanto tempo!
Cavaco suspirado
Com que me acenam ja vesperas sanctas
Do tardio feriado!—
Toquei, ou antes arranhei á toa
Os versos que te mando.
[Pg 41]
Ri-te se forem bons e se gostares,
Ri-te se forem maus e te injoarem,
Ri-te, ri-te, que o mundo
Não se póde levar de outra maneira:
Assim o insina a deusa.
Coimbra—1820.
[Pg 42]
II.
PELO ZURRO O BURRO.
CONTO ACADEMICO.
Naturam expellas
Furca, tamen usque recurral.
Era uma vez: diz mestre Lafontaine,
Que lh’o dissera Phedro seu amigo,
Que lh’o dissera um grego corcovado...
Pois tudo n’este mundo vai por dittos,
Tudo se diz porque outros o disseram...
E talvez que não fôsse Lafontaine,
Mas foi outro que tal, que vale o mesmo:
Um dia... mas o fio á minha historia
Não o tórno a quebrar por coisa alguma;
[Pg 43]
Poema que tem muitos episodios
Nunca póde ser bom, nem bons ser elles:
Diz padre Horacio ou outro tal como elle
D’estes que intentam accanhar o genio
Com leis servis por elles arranjadas
Que, segundo a moderna guapa eschola,
As não póde soffrer de taes birbantes.
Um dia pois o pae d’homens e numes,
Como eu ia contando aos meus leitores...
—Se é que a sorte, que os nega a bons poetas,
M’os deparar a mim, chulo trovista—
A rogos, mas de quem ja me não lembra,
Asno felpudo de orelhões cahidos
Quiz transformar em fervido ginete;
E ao bom Mercurio, seu fiel ministro,
Manda que o longo pêllo lhe tosquie
E um bom naco cerceie das orelhas.
Era grande o burrico, nedeo e gordo,
E por milagre do supremo Jove,
Que sempre faz como este bons milagres,
Ei-lo desimpennado e mui lampeiro,
Qual andaluz corcel ou egua arabia,
A par d’outros corceis se vai trotando.
[Pg 44]
O povo cavallar na fórma nova
Não reconhece a burrical maranha.
Como elles folgazão retouça e pulla,
Ladeia, faz corcovos, trava o passo,
Emfim parece—Tanto podem numes
E tal é o podêr de um bom milagre!—
Cavallo mestre e feito em picaria.
—Qual rustico peão de bronca aldea
De tamancos nos pés, no sacco a broa,
Que vem para imbarcar lá da provincia,
E para um tio, que é senhor d’ingenho,
Ricasso em pretos, em arroz, mellaço,
Ingoiado apprendiz vai ser caixeiro:
Morre-lhe o tio, eis o rapaz n’um sino,
Vende pretos e pretas e mellaço,
E vem, Cresso de cocos e patacas,
Metter toda Lisboa n’um chinello;
Ja por boas, luzentes amarellas
Serodeo compra fidalguesco fôro...
D’antes—que hoje a visita da saude,
Em cheirando a caturra, a bordo o prende,
E é ja barão quando põe pé em terra.
Ei-lo que alteia os hombros incolhidos,
Intufa em vento as bochechudas belfas,
[Pg 45]
Impina a pansa, ingrossa a voz pausada,
E no tropel dos nobres involvido,
Se o não conheces, crêra-lo provindo
Dos que nos velhos pergaminhos vivem.
Tal ja desorelhado e uffano o burro
Entre altivos ginetes campeava.
Mas, oh fado infeliz, mesquinha sorte!
Quando entre os novos ledos companheiros
Se vai trotando com pimpão meneio,
Ei-lo depara com villan jumenta
De hirsuta felpa e de costado esguio,
Que os fios corta d’alma a quem a via,
Como bem diz Latino-luso vate
De mui gaiata e festival memória.
Subito esquece o recem-nobre estado,
Lembram-lhe antigos, burricaes requebros
E o tom gallanteador de asnal namôro:
Estira amante o beijador focinho,
E em notas de invejar por um Lablache,
Psalmeia airoso, compassado orneio,
Deixa os amigos e a azzurrar se fica!
Ora pois, como fez o senhor Jove,
Fez certo gran’senhor de lettras gordas
[Pg 46]
E protector das magras.—Foi milagre
Que pela intercessão foi operado
De uma a que chamam deusa da Sandice,
De outra Impostura e de outra Pedantice.
Começa o caso c’o outro parecido.
Havia em certa terra muito longe,
Lá nas pontas dos pés d’este hemispherio,
Que dizem fôra outr’ora povoada
Por certo beberrão feitor de Baccho,
Havia uma familia de animalculos,
Zoophytos, e quasi mycroscopicos,
Aos quaes Lineu, que achou nomes a tudo,
Nunca deu nome, nem especie ou genero,
Nem eu lh’o sei tambem, só sei que arrotam
Textos, medalhas, chymicas rançosas,
Que trazem n’algibeira um compassinho,
Muito accanhado, curto e pequenino,
Talhado ao molde dos miollos d’elles,
Com que querem medir todo este mundo.
D’estes pois—e aqui vai o gran’milagre—
Burros na fórma, na sciencia burros,
Mas burros mais que tudo na cacholla,
[Pg 47]
Quiz o tal gran’senhor citado acima
Fazer—ó musa o quê?—Dize, não temas,
Não fujas, dize e vai-te.—‘Uma académia’
Disse a musa e safou-se ás gargalhadas.
Mas que académia!—Oh! venham as brilhantes
De Londres, de Paris, de Petersburgo
Beber aqui sciencia não sabida
De assopradas, pomposas ninharias.
Que producções, que producções! Oh quanto
Quanto seria mais se um deus maligno,
Inimigo dos guapos academicos,
Das tres que Deus nos deu potencias d’alma
Lhes não saccasse duas á surrelfa,
Deixando só memorias e memorias...
Quanto sería mais, quanto fulgira
Em gordos, grossos, grandes calhamaços
A portugueza, majestosa lingua,
Se os novos sabios, no comêço á emprêsa,
A antigas manhas não perdendo o affinco,
Não incontrassem por desgraça nossa
C’um perfido azzurrar—zurrar malditto!...
Ficaram no azzurrar sempre zurrando.
Coimbra—1818.
[Pg 48]
III.
AMOR E VAIDADE.
FÁBULA.
Ja mais veloz corria o espaço usado
Que as horas marca ao dia
O deus que atrás de Daphne
—Infructuoso trabalho!—dera ás gambias;
E aos braços d’Amphitrite ia mais cedo
Dos trabalhos da luz gosar nas trevas
Desejado descanço.
[Pg 49]
Iam seccando pelo prado as hervas,
E o verde-escuro dos frondosos montes
Amarello cahia;
Sentado aopé da magustal
[5] fogueira,
Vermelho e rubicundo
O bemdito e louvado San’ Martinho,
—Que a cega antiguidade,
Por não tomar a bulla da cruzada,
Nem jejuar aos dias de jejum,
Baccho chamava em sua escandalosa
E misera ignorancia—
Bastas fazia navegar, nos máres
Da barriga sanctissima,
As puchantes castanhas;
Banhos e quintas ao socêgo antigo
Despovoados tornavam;
Voava a folha, sibilava o vento,
E em fim, sem metaphoricas periphrases,
Era ja meio outomno.
Amor, Cupido, ou Ero, ou qual mais gostem
[Pg 50]
Dar-lhe baptismo ou chrisma,
Comtanto que não chegue
A tanto o desafôro
Que ousem—como eu ouvi, por meus peccados,
Co’estes que a terra um dia
Ou mar tem de comer—
Por louca affectação de Anglo-mania,
(O que não farão modas!)
Chamar-lhe em Portuguez... chamar-lhe Love!
Amor pois ou Cupido,
—Que assim nossos avos sempre disseram
Em tempos venturosos
Que tudo se chamava por seu nome,
Que ás bellas se dizia
Em Portuguez sincero e sem malicia
O que hoje é fôrça rebuçar no manto
De alegoria equivoca—
Amor, do rebulicio da cidade,
Do barulho infastiado,
Farto ja de frexar c’os aureos tiros
Os corações tam gastos,
Usados, velhos, estropiados, frouxos
Da gente que a povoa,
Para o campo fugiu d’onde ella foge.
[Pg 51]
Lá nos singelos bosques,
Nas simplices cabanas
Singelos corações, simplices almas
Espera achar ainda
Em Daphnis e Amaryllis.
Por um ameno solitario valle,
Em seus projectos imbebido o numen,
Caminhava... eis da incosta d’um outeiro
Ve descendo gentil, esbelta dama
Que bem, no airoso infeite,
No perluxo das modas,
Conheceu que não era habitadora
Da rustica espessura.
Fugi-la quer; mas sentimento occulto,
Que entre nós ca na terra
Se diz curiosidade,
—Não sei como no ceo lhe chamam numes!—
Sentimento imperioso
No sexo lindo que nos doira a vida...
—Que a doira se gosar sabemos d’elle,
Que aos parvos a invenena—
Este o reteve, suspendeu-lhe os passos.
Quem será? Quer sabê-lo.
[Pg 52]
Ei-los junctos; e Amor que á bella dama
Cortezmente sauda:
—‘No campo ainda e só, quando á cidade
Apressurada corre toda a gente!
Tam delicada, tam formosa dama
Da quadra desabrida
Os insultos não teme?
Foge acaso o prazer da sociedade,
E n’estas mudas selvas
Vem porventura, desgraçada amante,
Chorar na soledade?’
Não gostou do cortejo e cumprimento
A nympha bella, desdenhosa e dengue;
Offendida que o nome lhe ignorassem,
Orgulhosa responde:
—‘Conhece-me o universo; em toda a parte
Templos, altares tenho;
Domino os corações, govérno as almas,
Sou uma deusa, e chamo-me Vaidade.
Por mim co’a morte, c’os revezes lucta
O guerreiro no campo;
E ante o espelho traidor consomme a vida
A belleza que aos annos se não rende:
[Pg 53]
Por mim o litterato sôbre os livros
Curva a frente abrazeada;
Por mim nos gestos, no fallar se estuda
O adamado peralta;
Por mim vivem contentes satisfeitos
Os que menos razão têem de viverem;
E o mago meu podêr se estende a tanto,
Que entro no seio mesmo aos que me offendem,
Desprezam e injuriam.
Por meu influxo, n’esse proprio escripto
Em que me insulta o sabio,
Corrige e apura o sabio o stylo, a penna,
Aos louvores armando.
Eu as suberbas, elevadas cupulas
Ergo de vãos palacios;
E até na estancia gellida da morte,
Nas mentirosas lapidas
Lavro pomposas lettras
Que a inganado porvir levam memorias
De parvos, de maus reis, sanctões Tartufos,
De tonsuradas bêstas.
Eu em certa famosa academia
As charamellas tanjo,
As conclusões defendo,
[Pg 54]
Em vandalo Latim peroro ás turbas,
Tufo a brilhante borla
Com que as caveiras jumentaes adórno.
Emfim até d’amor perturbo o imperio:
Por mim, por meus auspicios,
A parvoa chusma dos galans mais parvos,
Dos fofos petimestres
Ja do sexo gentil não quer favores:
Indiff’rentes ao gôso e á ventura,
Basta que o mundo os tenha por felizes...
Por mim a dama desdenhosa e bella
Ja não procura amores,
Nem de Venus suavissimos deleites,
Mas o gaudio maior, mais lisongeiro
De que os outros a creiam
Cercada de servis adoradores,
De humildosos escravos’...
Ia por diante; mas o deus zangado,
Furioso a interrompe:
—‘Basta; o numen d’amor sou eu: não entra
Tam facil em meu reino
Teu sacrilego pé: sobejas vezes
De muitos corações tenho extirpado
[Pg 55]
Teu petulante vício.
Em vão esse Hymeneo, que deus se chama
E egual amim se inculca.
Ousa pleitear commigo:
Os nós lhe quebro que appellida sanctos,
E em seu templo introduzo
—Embora a testa doia
Aos miseros maridos—
Quem me apraz, quem me segue, e a quem eu quero.
Por mim se eguallam desvairadas sortes,
Que as baixas condições uno ás mais altas.
Lidia, a orgulhosa Lidia
Que a ladaínha dos avós impurra
A todo o instante e a todos,
Lidia que nunca ri... c’um tiro as pompas
E as sombras dos avós lhe desfiz n’alma:
Puni-a, fi-la escrava,
Fi-la escrava... e de quem!... do seu lacaio.
Togas, aureos bastões, borlas, espadas,
Mittras, coroas, toucas e capuzes
Ao meu imperio tudo está sujeito.’
Desdenhosa e surrindo ouviu a deusa,
E em submissa ironia lhe responde:
[Pg 56]
—‘Pois bem: assim será; não valho nada
No coração das bellas.
Mas expliquem sem mim seu vário peito;
Isso que o mundo appellidou capricho,
Que em sua alma domina,
Dize-me o que é? será sem causa o effeito?
Suas obras tam variaveis, tam confusas,
Com que os amantes pasmam,
Não as deciphro eu só, de mim não partem?’
Esquentou-se a questão: denovo os deuses
Pro e contra razões allegam, mostram.
É cabeçudo Amor, ella teimosa...
Não acabavam nunca.
Ficariam na mesma,
Se o meio de findar contendas tantas
Não acordasse á deusa:
—‘Prescindamos’ clamou ‘de vans palavras,
Argumentos deixemos;
Vamos a factos, e de nossas armas
Façamos experiencia.’
Sahia a ponto do vizinho bosque
Pastorella innocente:
[Pg 57]
Alma inda nova, coração ingenuo,
No simples do vestido,
No mal composto dos cabellos louros,
De sobejo mostrava:
Era toda ao pintar para a exp’riencia.
Consentem ambos em provar, na bella
E timida pastora,
O podêr de suas armas.
Jurou Amor de dar-se por vencido
Se de seus magos tiros
Podésse defendê-la a Vaidade.
Com lisonjeiro, placido semblante
E com doces palavras,
Tomando-a pela mão, a affaga a deusa;
Pungente frexa Amor no arco imbebe,
E mostrando-lhe a um tempo
Joven pastor que dera inveja a Páris,
O tiro lhe dispara.
Voa a setta fatal... mas no momento
Em que lhe toca o peito,
Subito a deusa aos olhos lhe apresenta
No mesmo instante crystallino espelho...
[Pg 58]
Pasma extasiada e fixa
A simplice donzella,
O semblante gentil contempla immovel;
Nem um só volver d’olhos para o bello
Mancebo lhe escapou.
Sorriu-se a deusa; Amor de invergonhado,
De corrido fugiu.
Coimbra—1818.
[Pg 59]
IV.
ESOPO E O BURRO.
FÁBULA.
A. TH. DA SILVA QUINTANILHA.
Foi grande tempo, amigo,
Aquelle tempo antigo:
Eram maiores peras e mellões...
Pois uma melancia?
Por essa casa dentro não cabia.
[Pg 60]
Bem o mostram as sábias conclusões
Do famoso Gil-Braz de Santilhana:
Guardadas proporções,
Se a conta não ingana,
Certamente sería
A maçan com que a Adão Eva inganou,
Maior do que uma abobora-menina:
E então ja bem se atina
Como ella lhe incalhou
No gargallo do pae da humanidade;
Cuja enorme hombridade,
Segundo o mesmo cálculo constante,
Devia ser maior que a d’um gigante.
N’esse tempo feliz da carochinha,
Em que pato e peru, porco e gallinha,
Burros e burras—e o rhynoceronte—
Cabreavam, ahi por esse monte,
Com toda a mais canalha
Que era da sua egualha,
Toda essa corja dizem que fallava,
Como nós, na sua lingua-mistiforio.
Não sei se Deus fez bem no seu decreto
Que a mercê lhe tirou do fallatorio;
[Pg 61]
Pois, segundo mui douto me insinava
Meu mestre José-Vaz, homem discreto
E de saber profundo,
Em toda a sociedade d’este mundo
Por fôrça hade reger
O famoso direito de accrescer.
Accresceu para nós, tristes humanos,
Toda a loquacidade
De quantos bicharrões, bichos, bichanos
D’este universo á grande sociedade
Veio a perdas e damnos:
E assim vemos fallar moços e môças,
Velhos e velhas, sabios e tarellos,
Com vozes finas e com vozes grossas,
O gentio, o christão, moiro e judeu,
Por quantos cotovellos
Deus e o direito de accrescer lhes deu.
N’esse tempo feliz então havia
Em Grecia um corcovado
Que de todo o animal, ave ou pescado
Intendia e fallava a algaravia.
Muitas ja tinha em Grego traduzido
Das famosas comedias,
[Pg 62]
Altisonas tragedias,
Entremezes chistosos e ingraçados,
A que tinha assistido,
Dos bichassos auctores mais fallados.
Um dia passeando
Por juncto de um ribeiro,
—Talvez algum dialogo pilhando
De bichitos de couve ou formigueiro—
Eis-ahi senão quando
Direito a elle em frente
Orelhudo jumento vem trotando;
E depois de o saudar mui cortezmente
Com uma cavatina
Em notas que nem ja Lablache affina,
Findado o ritornello,
Assim o nosso burro,
Em sua lingua asinina
De mui pullido zurro,
Ao corcunda fallou,
Quero dizer—orneou:
—‘Tenho um favor que te pedir, Esopo:
No apologo primeiro
Que em lingua traduzires da tua gente,
Não me faças tam zôpo
[Pg 63]
Como, useiro e veseiro,
Fazes constantemente.
Em meus discursos mette alguma graça
E pilherias com sal e com finura,
Que eu, a zurrar, sou forte na chalaça.’
O bom do Esopo olhou para a figura
Do elegante orelhudo,
E com tam destampada,
Tremenda gargalhada
Lhe respondeu ao animal felpudo,
Que elle, de orelha murcha e mui trombudo,
Se foi sem dizer nada.
Do sincero de Esopo quam diff’rentes
Andam certos auctores
Que altisonantes fallas farfalhudas
Imprestam a patetas gran’senhores,
Excelsos presidentes
De pedantes reaes academias,
Illustres senadores
Que as cachollas vazias
Inchados ornam de compradas flores!
Quantos ha ahi garraios descarados
[Pg 64]
Que vão pimpar, sem pejo, pelos pulpitos
Com os sermões espurios
Que aos padres mestres da ordem são furtados!
Quantos vates servís, lamosos gansos
Que, em vis dedicatorias campanudas,
De podres versos ranços,
Na linguagem da Phenix-renascida,
Vão dar ethica vida
A Zenobias barbudas;
E a Mecenas palhaças
De sabichões da Grecia dão fumaças!
Mas Esopo ficou qual d’antes era,
E o burro, burro estreme;
Mas aos nossos Mecenas sécca e treme
Na frente o loiro, a hera
Com que venaes poetas
Lhes coroaram as testas de patetas,
Em trovas semsabôres;
Mas os nossos modernos escriptores
Ficam asnos sem sizo
Para os homens de bem e de juizo.
Coimbra—1820.
[Pg 65]
V.
O MENINO E A COBRA.
C’uma cobra doméstica folgava
Criança innocentinha,
E—‘Meu bicho’ dizia a criancinha
‘Comtigo tam seguro eu não brincava
Se primeiro, o veneno refalsado
Não te houvessem tirado.
[Pg 66]
Que vós sois muito más, muito ingratonas,
Minhas serpentezonas.
Oh! nunca a tal historia me esqueceu
D’aquelle homem que a cobra achou na rua
—Talvez fôsse avó tua—
E tanto se doeu
De a ver toda de frio retransida.
Que no seio a metteu
E comsigo a aqueceu.
Que fez a bicha mal-agradecida?
Apenas se recobra
A traidora da cobra
Vai, e zaz!—e mordeu
O pobre homem, que logo da ferida
Venenosa morreu.’
—‘Bem parciaes’ responde-lhe a serpente
‘São as vossas historias;
Recontam-nos o caso mui diff’rente
Lá as nossas memorias.
O teu homem, que tens por charidoso,
Creu realmente a cobra ja finada,
E foi, por cubiçoso
Da pelle, que era linda e mosqueada.
[Pg 67]
Que o teu santinho d’home’ a quiz salvar:
Era para a esfollar.’
—‘Vai-te’ responde em cholera o menino
‘Vai-te, bicho mofino:
Todo o ingrato é ladino
Para se desculpar,
E ao seu bemfeitor calumniar.’
O pae da criancinha, mui contente.
Toda ésta conversa ouvindo esteve;
E—‘Pois, meu filho’ disse ‘honradamente
Julgaste como deve
Todo homem de bem:
Mas é preciso em tudo ser prudente,
E injusto com ninguem.
Ha casos de tam feia ingratidão.
Que a razão
Não se atreve
A crê-los, sem exame, assim de leve.
Raras vezes a ingratos obrigaram
Os que são verdadeiros bemfeitores;
Mas o mundo, meu filho, por desgraça,
Harto está cheio de ruins Mecenas,
[Pg 68]
De falsos protectores,
Que a detestavel raça
Dos ingratos no mundo propagaram.
Arrastados favores,
Inda menos baratos
Que interesseiras sordidas onzenas,
O que hãode produzir, senão ingratos?’
Coimbra—1821.
[Pg 69]
VI.
A SAUDE E A MEDICINA.
Ja tenho, meu Eloy,
[6] tudo inmallado;
Fica até no bahu o estro fechado.
Mas antes de partir,
Quero contar-te um conto, que hasde rir.
Hontem o incontrei
N’aquelle teu Pignotti tam magano;
E, se em meu Portuguez não desbotei
As côres do Italiano,
Hasde-lhe achar a graça que eu lhe achei.
[Pg 70]
Vou abrir o bahu, e venha o estro!
Sôbre o canhão da bota.
Como dizer se usa,
Farei regrinhas curtas e compridas.
Botas... e esporas tenho ja cingidas,
Montarei o Pégaso, que nem trota
Commigo, de esfalfado.
Eu muito descançado
Ahi me vou choitando,
O meu conto contando.
O conto é da Saude e Medicina...
E tracta de te rir,
Que, se não ris, serviu-te a carapuça,
É um reles doutor de mula ruça
Doutor que se amoffina
E não quer consentir
Que a pobre, atormentada humanidade
Se desforre uma vez co’a faculdade.
Jove, esse Jove em Grecia tam temido,
Que imperava nos ceos, nos elementos,
Nos raios e nos ventos,
De moda emfim cahido,
O credito perdeu e está fallido.
[Pg 71]
Mas quando elle reinava
Viam-se casos n’este baixo mundo
Que o vulgo parvo assegurar ousava
Desdizerem de seu saber profundo:
E n’este ponto a grega theologia
Por desculpa dizia
Que, ao dar ordem a coisa tam soez
Como é d’esta vida o entremez,
Lhe cahem muita vez
Os oc’los do nariz;
E que n’estes momentos
Tudo o que faz e diz
É asneira—sandice por um triz.
Em um d’estes accessos mazelentos,
Em que de facto, do nariz divino,
E sem elle dar tino,
Tinham cahido os seus oculos bentos,
Á terra nos mandou,
Só para nosso bem, como julgou,
Duas boas divindades companheiras,
Ambas riccas herdeiras
De sua graça divina:
A saber, a Saude e a Medicina.
[Pg 72]
Na fôrça juvenil tinha uma d’ellas
Ageis e vigorosos
Fortes os membros, cheios, musculosos,
Tintas de côr rosada,
Florida e ingraçada
As frescas faces bellas;
E nos olhos tranquillos e gozosos
Tinha a indolência com a paz pintada.
A outra, de gesto magro e macilento,
Cabello pouco, e o pouco de alvo argento,
Com as faces rugosas descahidas,
As carnes resequidas,
E em círculos de chumbo incaixilhados
Os olhos incovados
Remelosos, vidrados.
Intrançada de malva e de chicoria
Ampla coroa a frente lhe cingia,
Como um splendor de glória;
E a negra sotana que vestia
Rota, e cossado o pêllo, lhe luzia
Com erudita e sábia porcaria.
Aos hombros alquebrados,
Que a muita edade impêna,
[Pg 73]
Em fórma de capuz, juncto ao toitiço
Assim como uns calções esfarrapados
De antigo, velho riço,
E da côr de bandeira em quarentena.
N’um frangalho da tal coisa amarella
Lhe pendia, á feição de bambinella,
Não Tusão de Oiro ou a Pollar estrêlla,
Vermelho Christo ou roxo San’ Thiago,
Mas o instrumento aziago...
Certo tubo que todos conhecemos,
Que no lúbrico pau escorregando,
Emquanto vai e vem assim brincando,
Ao nobre officio serve que sabemos...
Cingida era de emtòrno
A venera pendente
De um magnífico adôrno
De pilulas, lancetas em pingente,
Sinapismos, ventosas,
Com que, a modo de pedras preciosas,
A nova ordem militar fulgia,
De Esculapio em memoria e honraria.
A este sabio Mentor, Jove intregára
Em guarda a bella deusa das rotundas
[Pg 74]
Bochechas rubicundas,
E mui severamente
Que em tudo a governasse, lhe mandára.
Ei-las, breve, a caminho:
E a deusa obediente
Submissa e reverente,
A sua mestra seguia
Como ao guardião faria
Um timido noviço capuchinho.
Mas, alguns passos dados,
A magra Medicina
Prega na outra os olhos incovados,
De admiração malina
Franze o sobrôlho esguio,
E tomando-lhe o pulso, em ar sombrio,
Com palavras que ignoras,
Profano vulgo, graves e sonoras,
Disse—‘que a robustez ja muito athletica
Que lhe achava, a fazia mui plethorica,
E daria em pleuritica ou phrenetica.
Provou-lhe mais com medica rhetorica
Que um excesso mui rude
Soffria de saude;
[Pg 75]
E para que o morboso estado mude,
E ella possa viver seguramente,
De todo era forçoso
Que tivesse o seu tanto de doente.’
Disse, impunha a lanceta,
Fere um vaso venenoso,
E á pobre da pateta
Tres libras de sadio e generoso,
Vermelho sangue puro lhe sacou:
Muito menos a muitos ja mattou!
Mas era a paciente
Tam pouco natural a estar doente,
Que á sua directora vigilante
De melhorar não deu signal bastante:
Pelo que foi gramando, ás ordens d’ella,
Nogenta beberagem amarella,
Fedorenta, asquerosa
Em dóze prodigiosa!..
Tanto, tanto bebeu,
Que a rebelde natura emfim cedeu.
O appetite, o vigor
Iam diminuindo;
E a brilhante côr,
[Pg 76]
A frescura das faces vai fugindo.
—‘Bravo,’ gritava a outra em ledo aspeito
‘Bravo, que a arte vai fazendo effeito!’
E temendo funesta recahida
Em quanto de uma vez
Não tinha debellada e bem vencida
Do morbo a robustez,
Manda avançar as horridas catervas
Dos xaropes, conservas,
Seguros laxativos,
Fortes aperitivos...
Com tal fôrça e podêr, que a desgraçada
Em sua consciencia
De todo em todo se sentiu curada.
Mas com tanta sciencia
Tam eruditamente era trattada,
Por via de tam graves aphorismos
E agudos sylogismos,
Lardeados de Grego e de Latim,
Que até, morrer assim,
Morrer n’esta doçura,
Morrer tam sabiamente era ventura.
Da nossa boa alumna, por má sorte.
Era estupida um tanto a natureza,
[Pg 77]
E romba de agudeza:
Graça a mais superfina
Que nos póde fazer a mão divina!
De tam ditosa morte
Não pôde comprehender toda a belleza.
Cobrou medo a mofina
Da sciencia divina,
E, sem mais Deus-te-salve ou mais embora,
Desanda-me a fugir, dando á canella
Por esse mundo fóra.
Larga a outra atrás d’ella
A correr... e correu, e correrá...
Mas nunca a apanhará.
E d’então para ca
Ninguem mais se gabou
De que junctas ou perto as incontrou.
Tal medo uma da outra concebeu,
Que aonde a Medicina appareceu,
É logo—n’um momento
Foge a Saude mais veloz que o vento.
Coimbra—1821.
[Pg 78]
VII.
O GALLEGO E O DIABO.
Eu por mim gósto de contos,
Diga o mundo o que quizer;
E para mattar o tempo
Um conto quero escrever.
Mattar o tempo é preciso
Aos ignorantes—dirão;
Ao sabio sempre elle corre
Voando, que lento não.
[Pg 79]
Porêm, amigo censor,
E quem me fez sabio a mim?
Sou eu lente ou academico,
Prégador ou coisa assim?
Verdade é, no Quebra-costas
Minha vez escorreguei,
Fui prêso por Verdeaes,
E á porta Ferrea m...ei.
Mas que doutor fiquei eu,
Se nunca o Martini li,
Se, o que sube da instituta
E do digesto, esqueci?
Sabenças para que servem?
Brucharia, eu t’arrenego!
Vou-me contar o meu conto;
E o meu conto é de um Gallego.
Era uma vez um Gallego
Boçal, felpudo e lanzudo,
Um Gallego em corpo e alma.
Em chancas, juizo e tudo.
[Pg 80]
Nunca lá das Gallileas
[7]
Sahiu cabeça tam romba
A alistar-se nas companhas
Dos bravos heroes da bomba.
Melena loira e comprida,
Azeitada e corredia,
Ôlho azul, pasmado e parvo,
Bôcca aberta, a barba esguia;
Calção de abanante orelha,
Por onde fura o quadril,
Nos pés a fragante chanca,
Ás costas sacco e barril;
Eis-aqui a vera effigie
De Thiago Manuel Juan,
O mais fiel dos Gallegos
Que jamais comieron pan.
[Pg 81]
Em devoção não fallemos,
Que nisso era exemplar;
Deixára um prato de tripas
Para á missa não faltar.
A miudo ia a confêsso;
E nunca o somno o pilhou
Senão a rezar o terço,
Que—nunca mais acabou.
Em duas ou tres egrejas
Era freguez de basar;
O seu barril tinha a honra
De agua benta ás pias dar.
Tam devoto, tam modesto
Nunca houve outro Thiago;
Não ha memorias de ouvir-lhe
Nem uma só vez um ajo.
Um dia, á volta das onze,
Cançado de apregoar,
—Era em Julho, que escaldava,
Um calor mesmo de assar!—
[Pg 82]
N’uma egreja de capuchos
O bom de Thiago entrava;
E a egreja tam fresquinha,
Que á oração convidava.
Por tendencia natural,
Instincto de chafariz,
Ajoelhou aopé da pia,
Herdeira de seus barris.
Mal se tinha
santiguado,
[8]
Isto é, se persignou,
Um berreiro destampado
Detrás de si escutou:
Era um membrudo capucho,
Destemido Ferrabraz
Que, a duros botes d’estolla,
Brigava com Satanaz.
[Pg 83]
Tinha-se o demo incaixado
No bôjo de uma beata,
E d’alli se defendia
Como de uma casa-matta.
Arripiaram-se as melenas
A Thiago no toitiço,
Pôz-se-lhe em pé no cachaço
Até o próprio choiriço.
[9]
Mas o ôlho arregallado
Em ponto de admiração,
Não se attrevia a tirá-lo
D’aquella horrivel visão.
Travava a descompostura
Do dize-tu, direi-eu...
Fallava o frade latim
Que nem o demo intendeu.
[Pg 84]
Satanaz é bom latino;
Ninguem lh’o póde negar:
As syllabadas do frade
Faziam-n’o blasphemar.
Grita o frade:—‘Abrenuncí-ò!’
E o cachorro do Asmodeu:
—‘Assim não me deitas fóra;
Dize abrenún-cio, sandeu.’
—‘Latim sabe elle, o malditto...’
Disse o frade aos seus cordões;
Que os frades, como os não usam,
Não fallam c’os seus botões:
‘No Latim me venceu elle,
E não fez grande façanha;
Elle é o diabo, e eu sou capucho!
Veremos se o faz na manha.’
Ria o demo ás gargalhadas
Por ter o frade incovado;
E o capucho, de velhaco,
Dava-se ja por cangado,
[Pg 85]
Mas co’a mão á caldeirinha,
Sem que o pesque Satanaz,
Vai mansinho... e de repente
Prega-lhe a hyssopada—zaz!
Deu tal estoiro a beata,
Que parecia uma bomba ...
Não era ella, era o demo:
Cheira a enxophre que tomba.
—‘Eu te esconjuro, malditto!’
Brada o frade em Portuguez
(Que não quiz comprometter
O seu Latim d’esta vez)
‘Eu te esconjuro, malditto,
Que d’este corpo te vas,
E não tornes a entrar nelle,
Negregado Satanaz.’
—‘Vou-me’ disse o porco-sujo
‘Vou-me embora, Fr. Sandeu,
Que me escalda essa agua benta.
Mas para onde heide ir eu?’
[Pg 86]
—‘Para onde?...’ E deitando os olhos
A um lado d’improviso,
Deu o frade com Thiago
Que rebentava de riso.
Thiago, de um grande medo
Passára a grande alegria;
E, esfregando as mãos no sacco,
Como um perdido se ria.
Leitor não te escandalizes;
Que o ver logrado o demonio
Até fez perder de riso,
N’um sermão, a Sancto Antonio.
—‘Para onde?...’ repete o frade
‘Que me importa a mim, pespêgo?
Vai-te metter, se quizeres,
No c... d’aquelle Gallego.’
Conhecem-se os grandes homens
Nas grandes occasiões:
Thiago, sem mais demora,
Deitou abaixo os calções;
[Pg 87]
E, em menos tempo ainda
Do que o demo esfrega um ôlho,
Ja na pia da agua benta
Tinha elle o seu de môlho.
Batte-me quatro palmadas
No rechonchudo do traz,
E diz-lhe:—‘Agora, só diabo,
Venha p’ra ca, se é capaz.’
Havre de Graça—1824.
[Pg 88]
VIII.
O Casquilho.
(JANOTA)
FÁBULA.
Quem de Ovidio os contos leu
Certo inda tem na memoria
A mais curiosa historia
Que elle em seus contos metteu:
—De como Jove indignado
C’uma nação de velhacos,
Para os não fazer em cacos
Os converteu em macacos.
[Pg 89]
Vendo-se assim humilhado,
Veio o povo castigado,
De contricto coração
A pedir perdão
Ao deus que fulmina o raio e o trovão.
Fazendo caretas, ganindo e guinchando
Lhe vinham bradando
Em mona e bugia:
—‘Restaura-nos, ó padre soberano,
O antigo vulto humano
Co’a perdida razão.’
O Tonnante, a quem passado
Era o primeiro furor,
Dos bugios ao clamor
Prestou ouvido apiedado;
Mas do macaco requerimento
Não despachou senão ametade,
E o resto a deidade
Mandou dispersar nas azas do vento.
Mal o acceno omnipotente
Troou na celeste abobeda,
[Pg 90]
A monaria contente
Se ergueu altiva, impavida;
Toda se impavesou
E repimpou;
E como gente
A andar por esse mundo se deitou.
O pêllo esfarripado.
Que as cabeças télli lhes ouriçava,
Em lindos caracoes se debruçava
Agora pelo rosto transmudado.
Não mudou por dentro o caco,
Que ficou sempre macaco;
E a cara por fóra
Tambem não mudou muito do que fôra.
Os mesmos focinhos,
As mesmas caretas,
E os parvos risinhos
E as fofas e as tretas.
Assim meio mudados, meio não,
Lhes fez o padre Jove um bom sermão,
E lhes mandou tomar
Aopé da raça humana o seu logar.
[Pg 91]
O homem com desprêzo o bicho olhou,
Nem siquer nome para dar-lhe achou;
Mas a mulher gostou
Da tal farofia de apparente brilho,
E á coisa pôz o nome de—CASQUILHO.
Londres—1829.
[Pg 92]
IX.
OS AMANTES GENEROSOS.
CONTO.
A. J. LARCHER.
Pois os mimosos sons da branda musa
Do tam gentil Bernard, na patria lyra
Queres ouvir suave modulados,
E em luso trajo disputar-se um beijo
De Tempe os generosos amadores,
As cordas ferirei por comprazer-te,
[Pg 93]
Cortar-lhe-hei galas dos pastores nossos:
Na lingua de Camões, se posso tanto,
Virão aqui a suspirar d’amores;
E os echos d’estes valles mais sinceros
Te dirão suas fallas namoradas.
Tu, que es meio francez, meio germano,
Que á meiga Deshouliers canções tam finas,
Que a Gesner mais singelo ouviste o canto
Na propria avena de seus tons cantado,
Se os teus pastores nas ribeiras nossas,
N’estas suaves margens do Mondego
Vires diff’rentes, demudada a graça,
E alternando sem arte a cantilena
Que em seu patrio idioma foi tam bella,
A ti só, que o quizeste, imputa o êrro,
Nem acoimes á lingua tam formosa
O desprimor e as faltas do poeta.
Juncto aos valles de Tempe, amena estancia,
Mansão querida de Pomona e Flora,
O joven Hylas, Égle inda mais joven,
Ambos loucos d’amor, o amor se occultam.
A um terno olhar suas fallas se limitam,
Sua chamma constrangida não se exhala:
[Pg 94]
O innocente pastor fallar não ousa,
Nem, que fallasse, a simples o intendêra.
Mas tarde ou cedo, se o desejo a inflamma,
Amestram a innocencia amor e a edade.
Tirou-os d’este nada em que jaziam
O acaso um dia. Á sombra da espessura,
Tam bella, ou mais que amor, Égle dormia,
Hylas a incontra, e os olhos namorados
Para admirá-la não lhe bastam ambos.
—‘Vénus’ exclama ‘eu tibio em teu serviço
Ouso implorar-te: dá-me que estes labios,
Em quanto aqui na relva Égle descança,
Possam nos seus colhêr suave beijo.
E eu te juro, ó divina Cytherea,
Que em trôco lhe darei dois mansos pombos
Muito mais lindos que os que tens em Chypre.’
O voto fez-se; o beijo foi colhido:
Fingido somno approveitou á bella,
E, á noite o preço recebeu do voto.
Veio outro dia, e Égle a dormir sempre...
Mas não dorme o pastor:—‘Deus dos amores,
Ves alli quanto adoro n’este mundo.
[Pg 95]
Ah, de tanta belleza, tantas graças
Consente que uma só eu gose ao menos.
Se eu podesse—sem que Égle o presentisse,
Sob o lenço invejoso ir co’a mão trémula
Tocar n’aquelles candidos thesoiros,
Dar-lhe-hia pelo roubo—tam secreto!
O cordeirinho que entre os meus mais quero.
Oh! adormece, amor, Égle formosa!’
O mais profundo somno Hylas incontra.
Viu, tocou, apalpou, beijou cem vezes
O seio d’Égle, que retem manhosa
Até o respirar, e a somno sôlto
Mais dormia... quanto elle mais velava.
Custou-lhe no outro dia a vir ao bosque,
Timida ainda e vergonhosa a bella;
Mas veio emfim... Foi só curiosidade,
Tinha curiosidade—era o que tinha—
De saber que presente aquelle dia
Lhe faria o pastor; veio. Após ella
Hylas veio também:—‘Eternos deuses,
Aqui a incontro! Oh concedei-me agora
Um último favor, que nos seus braços
[Pg 96]
Eu gose emfim dos seus incantos todos.
Ah! vós bem o sabeis: eu nada tenho,
Mais nada ja do que o meu cão—e dou-lh’o.’
Oh que pesado somno Égle dormia!
E é bem de crer que o instante em que o mancebo
No extasi do prazer fechára os olhos,
Os lindos olhos d’Égle não se abriram.
Mas o sonho acabou... e despertaram.
O pastor imbrenhou-se na espessura
E o cãosinho fiel ficou co’a bella.
Incontraram-se á tarde, invergonhados...
A pastora corou, elle suspira...
Sós se achavam, sem medo, sem receios...
Ao amante acordada Égle se intrega,
Acha mais doce não dormir agora,
E toda a imbriaguez do amor conhece:
Quantos dons do pastor Égle recebe,
Com dulcissima usura os restitue.
Mas as antigas dadivas pesavam
Á pastora gentil:—‘Sei que te devo
Duas pombinhas que uma vez me déste.
[Pg 97]
E se me ellas fugirem! vivo sempre
N’este receio! Toma-as lá, e o preço
Que por ellas te dei também m’o torna.’
Surriu-se o joven, e pagou-as... ambas.
Um momento depois o cordeirinho
Á pastora lembrou:—‘Tanto te quero,
E heide-te privar do que mais amas?
Tam bonito! era a tua companhia,
Comia-te nas mãos! Nada, não quero:
Recebe-o, que t’o dou.’ E o cordeirinho
Foi restituido.—O cão só lhe restava:
Novas razões, e emfim ordem por fôrça
De acceitar outra vez o seu rafeiro:
—‘Não tens mais que um, é o guarda do rebanho,
Recebe-o, doce amante, e ainda emcima,
De fóraparte te heide dar um beijo.
Eu não quero mais dadivas, querido;
Com o teu coração estou contente.’
Oh! taes dons para dar custaram pouco.
Mas o preço da intrega era dobrado ...
O pastor affroixou, negocio serio
Veio porfim a ser o tal brinquedo.
[Pg 98]
Aopé de Égle acordada Hylas dormia...
E ella, que mais pretextos ja não tinha,
A suspirar dizia tristemente:
—‘Não me dar elle todo o seu rebanho!’
Coimbra—1821.
[Pg 99]
[Pg 100]
I.
PORFIA D’AMOR.
D’emtorno á arvorezinha que murchára
Se affadiga o cultor esperançoso;
Invisca as varas caçador teimoso
Armando ao passarinho que escapára;
Porfiado rompe com a dextra avara
As intranhas da terra o cubiçoso;
Sua co’a bomba o nauta pressuroso
Por estancar a nau que lhe arrombára.
Mas larga cadaqual desesperado,
Quebra furioso o inutil instrumento
Se o continuo trabalho ve baldado.
Só eu, com desinganos cento e cento,
Só eu, por Délia sempre desprezado,
Teimo cadavez mais no meu tormento.
Angra—1814.
[Pg 102]
II.
CAMÕES NÁUFRAGO.
Cedendo á furia de Neptuno irado
Sossobra a nau que o gran’thesoiro incerra;
Lucta co’a morte na espumosa serra
O divino cantor do Gama ousado.
Ai do canto mimoso a Lysia dado!...
Camões, grande Camões, embalde a terra
Teu braço forte, nadador afferra
Se o canto lá ficou no mar salgado.
Chorae, Lusos, chorae! Tu morre, ó Gama,
Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo
Co’a dextra o mar, na sestra a lusa fama.
Eterno, eterno ficará vivendo:
E a torpe inveja, que inda agora brama,
No abysmo cahirá do Averno horrendo.
Angra—1815.
[Pg 103]
III.
A UMA FEIA COM LINDA VOZ.
Quando Orpheu pela espôsa suspirada
Desceu co’a maga lyra ao reino escuro,
Incantado Plutão ferrenho e duro
De júbilo exultou na atroz morada.
—‘Furias,’ clamou ‘e turba condemnada,
Quero tudo a cantar; do mais não curo.
Ralhe Jove ou não ralhe, eu voto e juro
Que não heide ouvir mais ésta assoada.’
Eis impunhando o açoite crepitante
Rege Megera o condemnado côro,
Cantando em doce voz pura e tocante.
Ah! quando te oiço, ó N—y, o som canoro,
E arrebatado attento em teu semblante,
Um milagre d’Orpheu no Averno adoro.
Lisboa—1816.
[Pg 104]
IV.
‘SUFFOQUE AS ÍRAS, CALLE E SINTA E GEMA’
Se d’uns olhos gentis, d’um gesto brando,
D’um surrir desdenhoso innamorado,
Imprega o triste amante o seu cuidado
Em quem das leis d’amor se vai zombando;
De tormento em tormento variando,
Té o proprio queixume lhe é vedado:
Ri-se a bella do mal que lhe ha causado,
Dos ferros mofa que lhe vai forjando.
Pene emtanto o infeliz, suspire ao vento,
Té de que o saiba a perfida se tema,
Não lhe assome no labio um só lamento;
E ao som da ferrea, da cruel algema,
Martyr de seu inutil soffrimento
‘Suffoque as íras, calle e sinta e gema.’
Porto—1817.
[Pg 105]
V.
‘É DOS OLHOS GENTIS DA MINHA AMADA.’
Um prodigio d’incantos, de belleza
Es, ó mãe dos ternissimos amores,
Que, em teus labios, seus aureos passadores
Hervam, seguros de acertar a prêza.
Fulge em teus olhos divinaes accesa
A tocha dos desejos seductores;
Em ti de seus esmeros, seus primores,
O thesoiro esgotou a natureza.
Mas oh, por mais que arte divina estude,
Não te dá da innocencia a flor nevada
Que se não finge, nem fingida illude!
Esse dom virginal que tanto agrada
É só mimo da candida virtude,
‘É dos olhos gentis da minha amada.’
Porto—1817.
[Pg 106]
VI.
‘NAS FROIXAS, DEBEIS AZAS DA SAUDADE.’
Esses muros que amor, razão despreza,
Que ergueu do fanatismo a voz trovosa,
Deixa, ó Nise gentil, deixa-os, vaidosa
De escutares a voz da natureza.
Crê no teu coração; não é fraqueza
Fugir aos males para ser ditosa:
Ja nos meus braços a ventura anciosa
Espera, com amor, tua belleza.
Vem, não oiças conselhos fementidos,
Ouve amor, a razão, a liberdade,
E a virtude e o prazer verás unidos.
Farás minha cabal felicidade,
Nem teus votos verás sempre perdidos
‘Nas froixas, debeis azas da saudade.’
Porto—1817.
[Pg 107]
VII.
O CAMPO DE SANCT’ANNA.
Longe, hypocritas vis, longe, impostores,
O mentido apparato religioso!
Que um deus d’amor, o nosso Deus piedoso
Abomina, detesta esses horrores.
De atrozes leis cruentos guardadores,
Vós curvais ante o despota orgulhoso,
E o sangue da patria precioso
Torpemente vendeis por seus favores.
Geme sem proctetor a humanidade:
E vós, juizes, vós, tigres humanos,
A immolais sem remorso e sem piedade.
Ah! tremei, sanguinarios deshumanos;
Que ella hade vir, tremei, a Liberdade
Punir despotas, bonzos e tyrannos.
Coimbra—1817.
[Pg 108]
VIII.
‘VIRTUDE SEM PRAZER NÃO É VIRTUDE’
Deixa, eu t’o rogo, deixa, Annalia minha,
Duros preceitos de moral sombria;
Fingiu-os a traidora hypocrisia
Que detrás d’elles, a zombar, se aninha.
Leis de tartufos, invenção danninha
Que protege a impostura e o vício cria,
O egoismo as dictou, funesta harpia
Que as horas do gosar nos amesquinha.
A mão da natureza, a mão sublime
O gran’sêllo forjou na eterna incude
Com que o signal de falsas lhes imprime.
O coração m’o diz, que não illude:
Crime sem dor, Annalia, não é crime,
‘Virtude sem prazer não é virtude.’
Coimbra—1818.
[Pg 109]
IX.
A FLOR SÊCCA.
Vai, flor gentil, vai prenda suspirada,
Doce mimo d’amor terno e fagueiro,
Vai, que elle mesmo grato e prazenteiro
Elle te hade levar á minha amada.
Cumpre a que ella te impoz, que é lei sagrada:
Se mudada te achar, sem côr, sem cheiro,
Se o viço, a gala do verdor primeiro
Em tuas pallidas folhas vir crestada,
Diz-lhe que mais que a ti, mais me queimára
O intenso ardor d’aquella saudade
Que a ambos n’este estado nos deixára.
Oh! se um benigno influxo de piedade
De seus formosos olhos te orvalhára...
Qual de nós ambos reviver não hade?
Porto—1819.
[Pg 110]
X.
A CERTA TRAGEDIA.
Mil parabens á musa portugueza
Que do padre José fulgiu na penna!
Cai a velha Melpomene da scena,
Foi-se a tragedia grega e a franceza.
Sóphocles pôz-se a dar voltas d’Andreza,
Euripedes está de quarentena,
Corneille indoudeceu de inveja e pena,
Crebillon foi queimar o Atreu e a mesa;
Racine professou nos Mariannos,
Voltaire está a leites de jumenta,
Alfieri vai fazer sonetos de annos.
Victorioso o padre a Branca ostenta:
Só por vencer lhe restam dois maganos...
Mas temiveis rivaes—Paiva e Pimenta.
Coimbra—1819.
[Pg 111]
XI.
MARIA E CAROLINA.
Que hade brindar á amavel Carolina
Pelos seus annos a gentil Maria?
Tam franca de seus dons, ao dar-lhe o dia,
Não deixou que outorgar-lhe a mão divina.
Qual de ambas póde haver offerta dina
De quantas liberal natura cria?
Que gera o loiro sol ou que allumia
Que encha os desejos d’alma peregrina?
A amigas taes, ao par que me innamora
Ja não tem que lhes dar a humanidade,
Por mais que seus thesoiros aprimora.
Amor, divino amor, doce amizade,
Numes do coração, valei-me agora:
Dae-lhes, pois deuses sois, a eternidade.
Porto—1819.
Seculos são, na vida que infastia,
Estes dias de exilio amargurados;
Um por um, mágoa a mágoa, vão contados
Em lenta e cruellissima agonia.
Oh! roubemos-lhe aomenos este dia,
Ao padecer que todos trás roubados;
Sejam pela amizade consagrados
Ao casto amor instantes de alegria.
Tem prazeres tambem a desventura:
A propria carrancuda adversidade
Surri co’a esp’rança que lhe luz futura.
Vem, amigo, no seio da amizade
Festeja a espôsa, sonha co’a ventura
Que um dia hade mattar tanta saudade.
Londres—1828.
[Pg 113]
ULTIMOS VERSOS.
FOLHAS CAHIDAS.
[Pg 114]
Cumpre-se a promessa feita no primeiro volume
d’esta collecção reunindo aqui, em segunda
edição muito augmentada e correcta,
as FOLHAS CAHIDAS.
Apezar de estarem no prelo desde 1851, o
auctor tinha descuidado na primeira edição
o seu habitual escrupulo de rever e corrigir;
e não teve paciencia para as augmentar com
muitas peças que agora vão, e que então não
estavam postas a limpo. Trabalhos mais serios
o distrahiram durante os dois annos que
levaram a imprimir tam poucas paginas.
Julgou-se agora melhor dividir em dois
livros o que, assim augmentado, ficaria demaziado
para um só.
Maio—1853.
[Pg 116]
ADVERTENCIA.[10]
Antes que venha o hynverno e disperse ao
vento essas folhas de poesia que por ahi cahiram,
vamos escolher uma ou outra que valha
a pena conservar, ainda que não seja senão
para memoria.
[Pg 117]
A outros versos chamei eu ja as últimas
recordações de minha vida poetica. Inganei
o público, mas de boa fe, porque me inganei
primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre
estão a dizer adeus ao mundo, e morrem
abraçados com o louro—ás vezes imaginario,
porque ninguem os coroa.
Eu pouco mais tinha de vinte annos quando
publiquei certo poema, e jurei que eram os
ultimos versos que fazia. Que juramentos!
Se dos meus se rirem, teem razão; mas
saibam que eu tambem primeiro me ri d’elles.
Poeta na primavera, no estio e no outomno
da vida, heide sê-lo no hynverno se lá chegar,
e heide sê-lo em tudo. Mas d’antes cuidava
que não, e n’isso ia o êrro.
Os cantos que formam ésta pequena collecção
pertencem todos a uma epocha de vida
íntima e recolhida que nada tem com as minhas
outras collecções.
Essas mais ou menos mostram o poeta que[Pg 118]
canta deante do público. Das FOLHAS CAHIDAS
ninguem tal dirá, ou bem pouco intende de
stylos e modos de cantar.
Não sei se são bons ou maus estes versos;
sei que gósto mais d’elles do que de nenhuns
outros que fizesse. Porque? É impossivel dizê-lo,
mas é verdade. E como nada são por elle
nem para elle, é provavel que o público sinta
bem diversamente do auctor. Que importa?
Apezar de sempre se dizer e escrever ha
cem mil annos o contrário, parece-me que o
melhor e mais recto juiz que póde ter um
escriptor, é elle proprio, quando o não cega
o amor proprio. E eu sei que tenho os olhos
abertos, aomenos agora.
Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao
Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os
seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento
paterno não impede de ver os defeitos
das crianças.
Emfim, eu não queimo estes. Consagrei-os[Pg 119]
ignoto deo. E o deus que os inspirou que os
anniquille se quizer: não me julgo com direito
de o fazer eu.
Ainda assim, no ignoto deo não imaginem
alguma divindade meia-velada com cendal
transparente, que o devoto está morrendo
que lhe caia paraque todos a vejam bem
clara. O meu deus desconhecido é realmente
aquelle mysterioso, occulto e não-definido
sentimento d’alma que a leva ás aspirações
de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do
poeta.
Imaginação que porventura se não realisa
nunca. E d’ahi quem sabe? A culpa é talvez
da palavra, que é abstracta demais. Saude,
riqueza, miseria, pobreza, e ainda coisas mais
materiaes, como o frio e o calor, não são senão
estados comparativos, approximativos. Ao
infinito não se chega, porque deixava de o
ser em se chegando a elle.
Logo o poeta é louco, porque aspira sempre[Pg 120]
ao impossivel. Não sei. Essa é uma disputação
mais longa.
Mas sei que as presentes FOLHAS CAHIDAS
representam o estado d’alma do poeta nas
variadas, incertas e vacillantes oscillações do
espirito que, tendendo ao seu fim unico, a
posse do IDEAL, ora pensa tê-lo alcançado,
ora estar a ponto de chegar a elle—ora ri
amargamente porque reconhece o seu ingano—ora
se desespera de raiva impotente por
sua credulidade van.
Deixae-o passar, gente do mundo, devotos
do podêr, da riqueza, do mando, ou da glória.
Elle não intende bem d’isso, e vós não intendeis
nada d’elle.
Deixae-o passar, porque elle vai onde vós
não ides; vai, ainda que zombeis d’elle, que
o callunieis, que o assacineis. Vai, porque é
espirito, e vós sois materia.
E vós morrereis, elle não. Ou só morrerá
d’elle aquillo em que se pareceu e se uniu[Pg 121]
convosco. E essa falta que é a mesma de
Adam, tambem será punida com a morte.
Mas não triumpheis, porque a morte não
passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou
quasi nada no poeta.
Janeiro—1853.
[Pg 122]
[Pg 123]
FOLHAS CAHIDAS.
LIVRO PRIMEIRO.
I.
IGNOTO DEO
D. D. D.
Creio em ti, Deus: a fe viva
De minha alma a ti se eleva.
Es:—o que es não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
[Pg 124]
Em que—indistinctas!—se involve
Este espirito agitado,
De ti vem, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sôpro creador
Tudo o mais, o hade tragar.
Só vive de eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito d’onde veio.
Belleza es tu, luz es tu,
Verdade es tu só. Não creio
Senão em ti; o ôlho nu
Do homem não ve na terra
Mais que a dúvida a incerteza,
A fórma que ingana e erra.
Essencia! a real belleza,
O puro amor—o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os póde ver
O que inspirado se affasta,
Ignoto Deus, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vans e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
[Pg 125]
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida teem. Eu, consagrado
A teu altar, me prostro e a combatida
Existencia aqui ponho, aqui votado
Fica este livro—confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só spera.
Adeus! para sempre adeus!
Vai-te, oh! vai-te, que n’esta hora
Sinto a justiça dos ceus
Esmagar-me a alma que chora.
Chóro porque não te amei,
Chóro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem n’o sei,
[Pg 127]
Mas tu... tu nada perdeste:
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tam damninhos
Que o seu podêr só sei eu.
Oh! vai... para sempre adeus!
Vai, que ha justiça nos ceus.
Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa vibora medonha
Que por seu fatal condão
Hade rasgá-lo ao nascer:
Hade sim, serás vingada,
E o meu castigo hade ser
Ciume de ver-te amada,
Remorso de te perder.
Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
Que sou eu capaz agora
De te amar.—Ai! se eu te amasse!
Vê se no arido pragal
D’este peito se ateasse
De amor o incendio fatal!
[Pg 128]
Mais negro e feio no inferno
Não chammeja o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso?—Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou supportar
O cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!
E cuidas amar-me ainda?
Inganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a illusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lagryma verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
N’esta seara de abrolhos,
Que a fonte seccou. Agora
Amarás... sim hasde amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh! mas n’outro hasde sonhar
Os sonhos de oiro incantados
Que o mundo chamou amores.
[Pg 129]
E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos incovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ella cegarei?
Se o nada d’essas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Tambem eu sonhar... Perdida,
Perdida serás—perdida.
Oh! vai-te, vai, longe, embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai! não;
E que pude a sangue frio,
Covarde, infame, villão,
Gosar-te—mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Commettendo em cada bejo
Um crime... Ai! triste, não chores,
Não chores, anjo do ceu,
Que o deshonrado sou eu.
Perdoar-me tu?... Não mereço.
A immundo cerdo voraz
[Pg 130]
Essas perolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te hade admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente... Oh! o perdão
É perdido no villão,
Que de ti hade zombar.
Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrêlla.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para intendê-la:
Alta está no firmamento
Demais, e demais é bella
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o incantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua belleza
Do azul do ceu á pureza,
[Pg 131]
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
D’onde me vem sangue ás veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra—e não cabe
N’elle uma idea dos ceus...
Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!
[Pg 132]
III.
QUANDO EU SONHAVA.
Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
[Pg 133]
Agora que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Paraquê?—Quando era vaga,
Uma idea, um pensamento,
Um raio de estrêlla incerto
No immenso firmamento,
Uma chymera, um vão sonho,
Eu sonhava—mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não n’a conhecia...
.............................
[Pg 134]
IV.
AQUELLA NOITE!
Era a noite da loucura,
Da seducção, do prazer,
Que em sua mantilha escura
Costuma tanta ventura,
Tantas glórias esconder.
Os felizes... e ai! são tantos!...
—Eu por tantos os contava!
Eu que o signal de meus prantos
Do afflicto rosto lavava—
Os felizes presumpçosos
Iam nos coches ruidosos
Correndo aos salões doirados
De mil fogos alumiados,
D’onde em torrentes sahia
[Pg 135]
A clamorosa harmonia
Que á festa, ao prazer tangia.
Eu sentia esse ruido
Como o confuso bramar
De um mar ao longe movido
Que á praia vem rebentar:
E disse commigo:—‘Vamos,
Os luctos d’alma dispamos,
Á festa heide ir tambem eu!’
E fui: e a noite era bella.
Mas não vi a minha estrêlla
Que eu sempre via no ceu:
Cubriu-a de espesso véo
Alguma nuvem a ella,
Ou era que ja vendado
Me levava o negro fado
Onde a vida me perdeu?
Fui; meu rosto macerado,
A funda melancholia
Que todo o meu ser revia,
Qual o atahude levado
[Pg 136]
A egypcio festim, dizia:
—‘Como vós fui eu tambem;
Folgae, que a morte ahi vem!’
Dizia-o, sim, meu semblante,
Que, onde eu chegava, o prazer
Cessava no mesmo instante;
E o labio, que ia a dizer
Doçuras de amor, gelava;
E o riso, que ia a nascer
Na face linda, expirava.
Era eu—e a morte em mim,
Que só ella espanta assim!
Quantas mulheres tam bellas
Ebrias de amor e desejos,
Quantas vi saltar-lhe os bejos
Da bôcca ardente e lasciva!
E eu, que ia chegar-me a ellas...
Para logo a fronte esquiva
De recatos se involvia
E, toda pudor, tremia.
Quantas o seio anhelante,
Nu, ardente e palpitante
[Pg 137]
Andavam como intregando
Á cubiça mal-desperta,
Gasta ja e desdenhosa,
Dos que as estavam mirando
Com vaga luneta incerta
Que diz:—‘Aquella é formosa,
Não se me dava de a ter.
E esta? É só baroneza,
Vale menos que a duqueza:
Não sei a qual attender.’
E a isto chamam prazer!
A grande ventura é ésta?
Vale a pena vir á festa
E vale a pena viver.
Como então quiz á tristura
Do meu viver isolado!
Fique-se embora a ventura,
Que eu quero ser desgraçado.
Levantei alto a cabeça.
Senti-me crescer—e a frente
Desanuviar-se contente
Do feio negrume espesso
[Pg 138]
Que assustava aquella gente.
Logo os surrisos cabiam
Para o meu lado tambem:
Ja como um dos seus me viam,
Que em mim não viam ninguem.
Eu, de olhos desincantados,
A ellas, como as eu via!
Meus enthusiasmos passados.
Oh! como eu d’elles me ria!
Frio o sarcasmo sahia
De meus labios descorados,
E sem dó e sem pudor
A todas fallei de amor...
Do amor bruto, degradante
Que no seio palpitante,
Na espadua nua se accende...
Amor lascivo que offende,
Que faz corar... Ellas riam
E oh que não, não se offendiam!
Mas a orchestra bradou alta:
—‘Festa, festa! e salta, salta!’
Os seus guizos delirantes
[Pg 139]
Sacode louca a Folia...
Adeus, requebros de amantes!
Suspiros, quem n’os ouvia?
As palavras meias dittas,
Meias nos olhos escrittas,
Voavam todas perdidas
Dispersas, rotas no ar;
Que se foram almas, vidas,
Tudo se foi a walsar.
Quem é ésta que mais voltas
Gyra, gyra sem cessar?
Como as roupas leves, sôltas,
Aerias leva a ondular
Emtôrno á fórma graciosa,
Tam flexivel, tam airosa,
Tam fina!—Agora parou,
E tranquilla se assentou.
Que rosto! Em linhas severas
Se lhe desenha o profil;
E a cabeça, tam gentil,
Como se fôra devéras
A rainha d’essa gente,
Como a levanta insolente!
[Pg 140]
Vive Deus! que é ella... aquella,
A que eu vi na tal janella,
E que triste me surria
Quando passando me via
Tam pasmado a olhar para ella.
A mesma melancholia
Nos olhos tristes—de luz
Oblíqua, viva mas fria;
A mesma alta intelligencia
Que da face lhe transluz;
E a mesma altiva impaciencia
Que de tudo, tudo cança,
De tudo o que foi, que é,
E na erma vida só vê
O raio da vaga espr’ança.
—‘Pois isto sim que é mulher’
Disse eu—‘e aqui ha que ver.’
Ja vinha a pallida aurora
Annunciando a manhan fria,
E eu fallava e eu ouvia
O que até áquella hora
Nunca disse, nunca ouvi...
[Pg 141]
Toda a memoria perdi
Das palavras proferidas...
Não eram d’estas sabidas,
Nem quaes eram não n’o sei...
Sei que a vida era outra em mim,
Que era outro ser o meu ser,
Que uma alma nova me achei
Que eu bem sabia não ter.
E d’ahi?—D’ahi, a historia
Não deixou outra memoria
D’essa noite de loucura,
De seducção, de prazer...
Que os segredos da ventura
Não são para se dizer.
[Pg 142]
V.
O ANJO CAHIDO.
Era um anjo de Deus
Que se perdêra dos ceus
E terra a terra voava.
A setta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as pennas que levava
Não eram pennas de amor.
[Pg 143]
O anjo cahiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tyranno caçador.
De aza morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes valles de dor,
Andou gemendo e chorando.
Vi-o eu, o anjo dos ceus,
O abandonado de Deus.
Vi-o, n’essa tropelia
Que o mundo chama alegria.
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao labio que tremia...
E só lagrymas beber.
Ninguem mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que ja não posso amar!
Quem n’o havia de salvar?
Eu, que n’uma sepultura
Me fôra vivo interrar?
Loucura! ai, cega loucura!
[Pg 144]
Mas entre os anjos dos ceus
Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo,
D’aquella infamia salvá-lo
Só fôrça de amor podia.
Quem d’esse amor hade amá-lo,
Se ninguem o conhecia?
Eu só.—E eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrôjo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu n’essa cruz
Minha alma que renascia,
Que toda em sua alma puz.
E o meu ser se dividia,
Porque elle outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi,
E elle á vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Tambem o infeliz morreu.
Minha Julia, um conselho de amigo;
Deixa em branco este livro gentil:
Uma só das memorias da vida
Vale a pena guardar, entre mil.
E essa n’alma em silencio gravada
Pelas mãos do mysterio hade ser;
Que não tem lingua humana palavras,
Não tem lettra que a possa escrever.
[Pg 146]
Por mais bello e variado que seja
De uma vida o tecido matiz,
Um só fio da tella bordada,
Um só fio hade ser o feliz.
Tudo o mais é illusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.
De que serve guardar monumentos
Dos inganos que a espr’ança forjou?
Vãos reflexos de um sol que tardava
Ou vans sombras de um sol que passou!
Crê-me, Julia: mil vezes na vida
Eu co’a minha ventura sonhei;
E uma só, d’entre tantas, o juro,
Uma só com verdade a incontrei.
Essa entrou-me pela alma tam firme,
Tam segura por dentro a fechou,
Que o passado fugiu da memoria,
Do porvir nem desejo ficou.
[Pg 147]
Toma pois, Julia bella, o conselho;
Deixa em branco este livro gentil,
Que as memorias da vida são nada,
E uma só se conserva entre mil.
Leva este ramo, Pepita,
De saudades portuguezas;
É flor nossa, e tam bonita
Não n’a ha n’outras devezas.
Seu perfume não seduz,
Não tem variado matiz,
Vive á sombra, foge á luz,
As glórias d’amor não diz;
[Pg 149]
Mas na modesta belleza
De sua melancholia
É tam suave a tristeza,
Inspira tal sympathia!..
E tem um dote ésta flor
Que de outra egual se não diz:
Não perde viço ou frescor
Quando a tiram da raiz.
Antes mais e mais floresce
Com tudo o que as outras matta;
Até ás vezes mais cresce
Na terra que é mais ingrata.
Só tem um cruel senão,
Que te não devo esconder:
Plantada no coração,
Toda outra flor faz morrer.
E, se o quebra e despedaça
Com as raizes mofinas,
Mais ella tem brilho e graça,
É como a flor das ruinas.
[Pg 150]
Não, Pepita, não t’a dou...
Fiz mal em dar-te essa flor,
Que eu sei o que me custou
Trattá-la com tanto amor.
[Pg 151]
VIII.
ESTE INFERNO DE AMAR.
Este inferno de amar—como eu amo!
Quem m’o pôs aqui n’alma... quem foi?
Ésta chamma que alenta e consome,
Que é a vida—e que a vida destroi—
Como é que se veio a atear,
Quando—ai quando se hade ella apagar?
[Pg 152]
Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que d’antes vivi
Era um sonho talvez...—foi um sonho—
Em que paz tam serena a dormi!
Oh! que doce era aquelle sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos gyravam,
Em seus olhos ardentes os puz.
Que fez ella? eu que fiz?—Não n’o sei;
Mas n’essa hora a viver comecei...
Quem disse á estrêlla o caminho
Que ella hade seguir no ceu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave apprendeu?
Quem diz á planta:—‘Florece!’
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lh’os inreda?
[Pg 154]
Insinou alguem á abelha
Que no prado anda a zumbir
Se á flor branca ou se á vermelha
O seu mel hade ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não m’o disse ninguem.
Como a abelha corre ao prado,
Como no ceo gyra a estrêlla,
Como a todo o ente o seu fado
Por instincto se revella,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.
Se estou contente, querida,
Com ésta immensa ternura
De que me enche o teu amor?
—Não. Ai! não; falta-me a vida,
Succumbe-me a alma á ventura:
O excesso do gôso é dor.
[Pg 156]
Doe-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua belleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não ha ser bastante
Para este gosar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo d’elle, e delirante
Sinto que se exhaure em mim
Ou a vida—ou a razão.
[Pg 157]
XI.
PERFUME DA ROSA.
Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um sylpho? Ou que nume
Com esse aroma delira?
Qual é o deus que, namorado,
De seu throno te ajoelha,
E esse nectar incantado
Bebe occulto, humilde abelha?
[Pg 158]
—Ninguem?—Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem t’a pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.
E a côr de purpura viva
Como assim te desmaiou?
E essa pallidez lasciva
Nas folhas quem t’a pintou?
Os espinhos que tam duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
T’os desarmaram, ó rosa?
E porquê, na hástea sentida
Tremes tanto ao pôr do sol?
Porque escutas tam rendida
O canto do rouxinol?
Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas aguas d’esse retiro
Não espreitei a tua imagem?
[Pg 159]
Não a vi afflicta, anciada...
—Era de prazer ou dor?—
Mentiste, rosa, es amada.
E também tu amas, flor.
Mas ai! se não for um nume
O que em teu seio delira,
Hade mattá-lo o perfume
Que n’esse aroma respira.
[Pg 160]
XII.
ROSA SEM ESPINHOS.
Para todos tens carinhos,
A ninguem mostras rigor!
Que rosa es tu sem espinhos?
Ai, que não te intendo, flor!
Se a borbuleta vaidosa
A desdem te vai beijar,
O mais que lhe fazes, rosa,
É surrir e é corar.
[Pg 161]
E quando a sonsa da abelha,
Tam modesta em seu zumbir,
Te diz:—‘Ó rosa vermelha,
Bem me pódes acudir:
Deixa do caliz divino
Uma gotta só libar...
Deixa, é nectar peregrino,
Mel que eu não sei fabricar...’
Tu de lástima rendida,
De malditta compaixão,
Tu á súpplica atrevida
Sabes tu dizer que não?
Tanta lástima e carinhos,
Tanto dó, nenhum rigor!
Es rosa e não tens espinhos!
Ai! que não te intendo, flor.
[Pg 162]
XIII.
ROSA PALLIDA.
Rosa pallida, em meu seio
Vem, querida, sem receio
Esconder a afflicta côr.
Ai! a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.
[Pg 163]
Pois sim... quando livre, ao vento,
Sôlta de alma e pensamento,
Forte de tua isempção,
Tinhas na folha incendida
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.
Mas não eras, não, mais bella.
Coitada, coitada d’ella,
A minha rosa gentil!
Coravam-n’a então desejos,
Desmaiam-n’a agora os bejos...
Vales mais mil vezes, mil.
Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos ceus,
Comparar tua belleza
Ás filhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.
[Pg 164]
E vergonha!... de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê?... porquê em teu semblante
A pallida côr da amante
A minha ventura diz?
Pois quando eras tam vermelha
Não vinha zangão e abelha
Emtôrno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Historias dos mil amores
Que não tinhas, repetir?
Que hãode elles dizer agora?
Que pendente e de quem chora
É o teu languido olhar?
Que a tez fina e delicada
Foi, de ser muito bejada,
Que te veio a desbotar?
[Pg 165]
Deixa-os: pallida ou corada,
Ou isempta ou namorada,
Que brilhe no prado flor.
Que fulja no ceo estrêlla,
Ainda é ditosa e bella
Se lhe dão só um amor.
Ai! deixa-os, e no meu seio
Vem, querida, sem receio
Vem a frente reclinar.
Que pallida estás, que linda!
Oh! quanto mais te amo ainda
Des que te fiz desbotar.
[Pg 166]
XIV.
FLOR DE VENTURA.
A flor de ventura
Que amor me intregou,
Tam bella e tam pura
Jamais a creou:
Não brota na selva
De inculto vigor,
Não cresce entre a relva
De virgem frescor;
[Pg 167]
Jardins de cultura
Não póde habitar
A flor de ventura
Que amor me quiz dar.
Semente é divina
Que veio dos ceus;
Só n’alma germina
Ao sôpro de Deus.
Tam alva e mimosa
Não ha outra flor;
Uns longes de rosa
Lhe avivam a côr;
E o aroma... Ai! delirio
Suave e sem fim!
É a rosa, é o lirio.
É o nardo, o jasmim;
É um philtro que apura,
Que exalta o viver,
E em doce tortura
Faz de âncias morrer.
[Pg 168]
Ai! morrer... que sorte
Bemditta de amor!
Que me leve a morte
Bejando-te, flor.
[Pg 169]
XV.
BELLA D’AMOR.
Pois essa luz scintillante
Que brilha no teu semblante
D’onde lhe vem o splendor?
Não sentes no peito a chamma
Que aos meus suspiros se inflamma
E toda reluz de amor?
[Pg 170]
Pois a celeste fragancia
Que te sentes exhalar,
Pois, dize, a ingenua elegancia
Com que te ves ondular,
Como se baloiça a flor
Na primavera em verdor.
Dize, dize: a natureza
Póde dar tal gentileza?
Quem t’a deu senão amor?
Vê-te a esse espelho, querida,
Ai! vê-te por tua vida,
E diz se ha no ceo estrêlla,
Diz-me se ha no prado flor
Que Deus fizesse tam bella
Como te faz meu amor.
[Pg 171]
XVI.
OS CINCO SENTIDOS.
São bellas—bem o sei, essas estrêllas,
Mil côres—divinaes têem essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para ellas:
Em toda a natureza
Não vejo outra belleza
Senão a ti—a ti!
[Pg 172]
Divina—ai! sim, será a voz que affina
Saudosa—na ramagem densa, umbrosa.
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a mellodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti—a ti!
Respira—n’aura que entre as flores gyra,
Celeste—incenso de perfume agreste.
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti—de ti!
Formosos—são os pomos saborosos,
É um mimo—de nectar o racimo:
E eu tenho fome e sêde... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de bejos,
E so de ti—de ti!
[Pg 173]
Macia—deve a relva luzidia
Do leito—ser porcerto em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar n’outras delicias
Senão em ti—em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos n’um confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.
[Pg 174]
XVII.
ROSA E LIRIO.
A rosa
É formosa;
Bem sei.
Porque lhe chamam—flor
D’amor,
Não sei.
[Pg 175]
A flor,
Bem de amor
É o lirio;
Tem mel no aroma,—dor
Na côr
O lirio.
Se o cheiro
É fagueiro
Na rosa,
Se é de belleza... mor
Primor
A rosa,
No lirio
O martyrio
Que é meu
Pintado vejo:—côr
E ardor
É o meu.
[Pg 176]
A rosa
É formosa,
Bem sei...
E será de outros flor
D’amor...
Não sei.
[Pg 177]
XVIII.
COQUETTE DOS PRADOS.
Coquette dos prados,
A rosa é uma flor
Que inspira e não sente
O incanto d’amor.
De purpura a vestem
Os raios do sol;
Suspiram por ella
Ais do rouxinol:
[Pg 178]
E as galas que traja
Não as agradece,
E o amor que accende
Não o reconhece.
Coquette dos prados
Rosa, linda flor,
Porquê, se o não sentes,
Inspiras amor?
Acabava alli a terra
Nos derradeiros rochedos,
A deserta arida serra
Por entre os negros penedos
Só deixa viver mesquinho
Triste pinheiro maninho.
[Pg 180]
E os ventos despregados
Sopravam rijos na rama,
E os ceos turvos, annuviados,
O mar que incessante brama...
Tudo alli era braveza
De selvagem natureza.
Ahi, na quebra do monte,
Entre uns juncos mal-medrados,
Sêcco o rio, sêcca a fonte,
Hervas e matos queimados,
Ahi n’essa bruta serra,
Ahi foi um ceo na terra.
Alli sós no mundo, sós,
Sancto Deus! como vivemos!
Como eramos tudo nós
E de nada mais soubemos!
Como nos folgava a vida
De tudo o mais esquecida!
[Pg 181]
Que longos bejos sem fim,
Que fallar dos olhos mudo!
Como ella vivia em mim,
Como eu tinha n’ella tudo,
Minha alma em sua razão
Meu sangue em seu coração!
Os anjos aquelles dias
Contaram na eternidade:
Que essas horas fugidias,
Seculos na intensidade,
Por millenios marca Deus
Quando as dá aos que são seus.
Ai! sim foi a tragos largos,
Longos, fundos que a bebi
Do prazer a taça:—amargos
Depois... depois os senti
Os travos que ella deixou...
Mas como eu ninguem gosou.
[Pg 182]
Ninguem: que é preciso amar
Como eu amei—ser amado
Como eu fui; dar, e tomar
Do outro ser a quem se ha dado,
Toda a razão, toda a vida
Que em nós se annulla perdida.
Ai, ai! que pesados annos
Tardios depois vieram!
Oh, que fataes desinganos,
Ramo a ramo, a desfizeram
A minha choça na serra,
Lá onde se acaba a terra!
Se o visse... não quero vê-lo
Aquelle sítio incantado;
Certo estou não conhecê-lo,
Tam outro estará mudado,
Mudado como eu, como ella,
Que a vejo sem conhecê-la!
[Pg 183]
Inda alli acaba a terra,
Mas ja o ceo não começa:
Que aquella visão da serra
Sumiu-se na treva espessa,
E deixou nua a bruteza
D’essa agreste natureza.
[Pg 184]
XX.
ESTES SITIOS!
Olha bem estes sitios queridos,
Vê-os bem n’este olhar derradeiro...
Ai! o negro dos montes erguidos,
Ai! o verde do triste pinheiro!
Que saudades que d’elles teremos...
[Pg 185]
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, n’este ar que bebêmos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de innocencia e vigor!
Oh! aqui, aqui só se ingrinalda
Da pureza da rosa selvagem,
E contente aqui só vive Amor.
O ar queimado das salas lhe escalda
De suas azas o niveo candor,
E na frente arrugada lhe cresta
A innocencia infantil do pudor.
E oh! deixar taes delicias como ésta!
E trocar este ceo de ventura
Pelo inferno da escrava cidade!
Vender alma e razão á impostura,
Ir saudar a mentira em sua côrte,
Ajoelhar em seu throno á vaidade,
Ter de rir nas angústias da morte,
Chamar vida ao terror da verdade...
Ai! não, não... nossa vida acabou,
Nossa vida aqui toda ficou.
Diz-lhe a adeus n’este olhar derradeiro,
Dize á sombra dos montes erguidos,
[Pg 186]
Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Dize-o a todos os sitios queridos
D’esta ruda, feroz soledade,
Paraizo onde livres vivemos...
Oh! saudades que d’elle teremos,
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
E eu n’alma—tenho a calma,
A calma—do jazigo.
Ai! não te amo, não.
[Pg 188]
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida—nem sentida
A trago eu ja commigo.
Ai, não te amo, não!
Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.
Não te amo. Es bella; e eu não te amo, ó bella.
Quem ama a aziaga estrêlla
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?
E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.
[Pg 189]
E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.
Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma côr,
Aquella visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.
[Pg 191]
Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ella descia
Como um veo que lhe involvia,
Que lhe adoçava a belleza.
Era assim; o seu fallar,
Ingenuo e quasi vulgar,
Tinha o podêr da razão
Que penetra, não seduz:
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.
Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.
[Pg 192]
Mas não es tu... ai! não es:
Toda a illusão se desfez.
Não es aquella que eu vi,
Não es a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lh’o senti.
Vem do amor a Belleza,
Como a luz vem da chamma.
É lei da natureza:
Queres ser bella?—ama.
[Pg 194]
Fórmas de incantar,
Na tella o pincel
As póde pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Belleza é isso?—Não; só formosura.
Surrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver,
—Qual surri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer—
A mãe é a mais bella das obras de Deus,
Se ella ama!—O mais puro do fogo dos ceus
Lhe ateia essa chamma de luz crystallina:
[Pg 195]
É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Belleza
Em toda a pureza
Que Deus a creou.
Anjo es tu, que esse podêr
Jamais o teve mulher,
Jamais o hade ter em mim.
Anjo es, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
[Pg 197]
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu podêr.
Anjo es tu, não es mulher.
Anjo es. Mas que anjo es tu?
Em tua frente annuviada
Não vejo a c’roa nevada
Das alvas rosas do ceo.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o veo
Com que o soffrego pudor
Vela os mysterios d’amor.
Teus olhos têem negra a côr,
Côr de noite sem estrêlla;
A chamma é vivaz e é bella,
Mas luz não tem.—Que anjo es tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jehovah ou Belsebú?
Não respondes—e em teus braços
Com phreneticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
[Pg 198]
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lagryma?—Escaldou-me...
Queima, abraza, ulcéra... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo malditto,
Que este ardor que me devora
É ja fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em que mysterios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo es tu ou es mulher?
Como a vibora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que á nascença o espedaçou.
Para elle nascer morri;
E em meu cadaver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.
[Pg 201]
FOLHAS CAHIDAS.
LIVRO SEGUNDO.
I.
BARCA BELLA.
Pescador da barca bella,
Onde vas pescar com ella,
Que é tam bella,
Oh pescador?
Não ves que a última estrêlla
No ceo nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
[Pg 202]
Deita o lanço com cautella,
Que a sereia canta bella...
Mas cautella,
Oh pescador!
Não se inrede a rede n’ella,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bella,
Inda é tempo, foge d’ella,
Foge d’ella
Oh pescador!
Bem sei que é toda de flores
Essa coroa d’amores
Que na frente vais cingir.
Mas é coroa—é reinado;
E a pôsto mais arriscado
Não se póde hoje subir.
[Pg 204]
N’esses reinos populosos
Os vassallos revoltosos
Tarde ou cedo dão a lei.
Quem hade conter, domá-los,
Se são tantos os vassallos
E um só o pobre do rei?
Não vejo, rainha bella,
Para fugir essa estrella
Que os reis persegue sem dó,
Mais que um meio—fallo serio:
É pôr limites ao imperio
E ter um vassallo só.
Por todas quantas estrêllas
Tem o ceo que possam mais,
Pelas flores virginaes
De que se c’roam donzellas,
Pelas lagrymas singellas
[Pg 206]
Que o primeiro amor derrama,
Por aquella etherea chamma
Que a mão de Deus accendeu
E que na terra allumia
Quanto ha na terra do ceu!
Por tudo quanto eu queria
Quando eu sabia querer,
E por tudo quanto eu cria
Quando me era dado crer!
Bem fadada seja a vida
Que por éstas folhas brancas
[11]
Sua historia hade escrever!
Que as dores lhe venham mancas
E com azas o prazer!
Ésta sina que lhe dou,
Bruxa não n’a adivinhou,
Nem duende m’a insinou:
[Pg 207]
Li-a eu por meu condão
Em seus olhos innocentes,
Transparentes—transparentes
Até dentro ao coração.
Ai Helena! de amante e de espôso
Ja o nome te faz suspirar,
Ja tua alma singela presente
Esse fogo de amor delicioso
Que primeiro nos faz palpitar!...
Oh! não vas, donzellinha innocente,
Não te vas a esse ingano intregar:
É amor que te illude e te mente,
É amor que te hade mattar!
[Pg 209]
Quando o sol n’estes montes desertos
Deixa a luz derradeira apagar,
Com as trevas da noite que espanta
Véem os anjos do inferno incubertos
A sua victima incauta affagar.
Doce é a voz que adormece e quebranta,
Mas a mão do traidor... faz gelar.
Treme, foge do amor que te incanta,
É amor que te hade mattar.
[Pg 210]
V.
THE ROSE—A SIGH.[12]
If this delicious, grateful flower,
Which blows but for a little hour,
Should to the sight so lovely be,
As from it’s fragrance seems to me,
A sigh must then it’s colour show,
For that is the softest joy I know.
And sure the rose is like a sigh,
Borne just to soothe and then—to die.
[Pg 211]
Se ésta flor tam bella e pura,
Que apenas uma hora dura,
Tem pintado no matiz
O que o seu perfume diz,
Porcerto na linda côr
Mostra um suspiro d’amor:
Dos que eu chego a conhecer
É este o maior prazer.
E a rosa como um suspiro
Hade ser; bem se discorre:
Tem na vida o mesmo gyro,
É um gôsto que nasce e—morre.
[Pg 212]
VI.
RETRATTO.
(N’UM ALBUM)
Ah! despreza o meu retratto
Que lhe eu queria aqui pôr!
Tem medo que lhe desfeie
O seu livro de primor?
Pois saiba que por despique
Eu sei tambem ser pintor:
Co’esta penna por pincel,
E a tinta do meu tinteiro,
Vou fazer o seu retratto
Aqui ja de corpo inteiro.
[Pg 213]
Vamos a isto.—Sentada
Na cadeira ‘moyen-âge,’
O cabello en ‘chatellaines,’
As mangas sôltas.—É o traje.
Em longas pregas negras
Caia o velludo e arraste;
De si com desdem regio
Com o pésinho o affaste...
N’essa attitude! Está bem:
Agora mais um geitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.
Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lh’os tira melhor.
Este é o ar, ésta a ‘pose,’ eu lh’o juro,
E o trajar que lhe fica melhor.
Vamos agora ao difficil:
Tirar feição por feição;
Intendê-las, que é o ponto,
E dar-lhe a justa expressão.
[Pg 214]
Os olhos são côr da noite,
Da noite em seu começar,
Quando inda é joven, incerta,
E o dia vem de acabar;
Têem uma luz que vai longe,
Que faz gôsto de queimar:
É uma especie de lume
Que serve só de abrazar.
Na bôcca há um surriso amavel.
Amavel é... mas queria
Saber se é todo bondade
Ou se meio é zombaria.
Ninguem m’o diz? O retratto
Incompleto ficará,
Que n’estas duas feições
Todo o ser, toda a alma está.
Pois fiel como um espelho
É tudo o que n’elle fiz;
E o que lhe falta—que é muito,
Tambem o espelho o não diz.
Ergue a frente, lirio,
Ergue a branca frente!
O astro do delirio
Ja surgiu no oriente.
Ves, o sol ardente
Lá cahiu no mar;
A frente pendente
Ergue a respirar!
[Pg 216]
Alvo é o luar,
Teu alvor não cresta;
A hora de gosar,
De viver é ésta.
Longa foi a sésta
Longo o teu dormir;
Ergue a branca testa,
Tempo é de surgir!
Ja se abre a surrir
Tua bôcca linda...
Despertar, sentir
Ou sonhar é ainda?
Sonho que não finda
Será o teu sonhar,
Se a dormir, Lucinda,
Te sentes amar.
[Pg 217]
VIII.
AS DUAS ROSAS.
Sôbre se era mais formosa
A vermelha ou branca rosa,
Ardeu seculos a guerra
Em Inglaterra.
Paz entre as duas, jamais!
Reinar ambas as rivais,
Tambem não; e uma ceder
Como hade ser?
[Pg 218]
Faltei eu lá na Inglaterra
Para acabar com a guerra.
Ei-las aqui bem eguaes,
Mas não rivaes.
Atei-as em laço estreito:
Que artista fui, com que geito!
E oh! que lindas são, que amores
As minhas flores!
Dirão que é cópia;—bem sei:
Que todo inteiro o roubei
Meu pensamento brilhante
Do teu semblante...
Será. Mas se é tam bello
Que lhe deem esse modello,
Do meu quadro, na verdade,
Tenho vaidade.
A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.
A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma eu vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi seccar...
[Pg 220]
E em torrentes de harmonia
Minha alma se exhalará,
Ésta alma que muda e fria
Nem sabe se existe ja.
Seus olhos—se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou—
Não tinham luz de brilhar,
Era chamma de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como o facho do Destino.
[Pg 222]
Divino, eterno!—e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tam fatal podêr,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.
Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tammanha a sua dor,
Quando, ja passada a aurora,
O sol, ardente de amor,
Com seus bejos a devora?
—Feche virgineo pudor
O que inda é botão agora
E ámanhan hade ser flor;
Mas ella é rosa n’esta hora.
Rosa no aroma e na côr.
[Pg 224]
—Para ámanhan o prazer
Deixe o que ámanhan viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Ámanhan... o que hade ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se hade volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a soffrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.
[Pg 225]
XII.
A JOVEN AMERICANA.
Donde é que te eu vi, donzella,
E o que eras tu n’esta vida
Quando não tinhas vestida
A fórma de virgem bella
Que ora te vejo trajar?
[Pg 226]
Estrêlla foste no ceo,
Serias no prado flor?
Ou, no diaphano splendor
De que Iris faz o seu veo,
Estavas, Silpha, a bordar?
Não houve poeta ainda
Que te não visse e cantasse,
Mulher que não te invejasse,
Nem pintor que a face linda
Te não fôsse copiar.
Seculos tens.—E ah!... ja sei
Quem es, quem foste e hasde ser:
Bem te eu estava a conhecer
Quando primeiro te olhei
Sem te podêr estranhar.
Com Deus e co’a Liberdade
De nossas terras fugiste
Quando perdidos nos viste,
E te foste á soledade
Do novo-mundo acoitar.
[Pg 227]
Pois que ora piedosa vens
E nos sentes resurgir,
Oh! não tornes a fugir,
Que melhor patria não tens
Nem que mais te saiba amar.
Teu natal celebraremos
Hoje e sempre: teus amigos
Somos na lealdade antigos,
E no ardor novos seremos,
No desvéllo em te adorar:
Porque tu es o Ideal
Da só belleza—do Bem;
Não es estranha a ninguem,
E de ti só foge o mal
Que te não póde incarar.
[Pg 228]
XIII.
ADEUS, MÃE!
—‘Adeus, mãe! adeus, querida,
Que eu ja não posso co’a vida,
E os anjos chamam por mim.
Adeus, mãe, adeus!... Assim,
Juncta os teus labios aos meus,
E recebe o último adeus
[Pg 229]
N’este suspiro... Não chores,
Não chores: aquellas dores
Ja sinto accalmar em mim.
Adeus, mãe, adeus!... Assim,
Juncta os teus labios aos meus...
Um bejo—um último... Adeus!’
E o corpo desanimado
No collo da mãe cahia;
E ella o corpo... só pesado,
Só mais pesado o sentia!
Não se lamenta, não chora,
E quasi a surrir, dizia:
—‘Que tem este filho agora,
Que tanto pésa? Não posso...’
E uma a uma, osso por osso,
Com a mão trémula tenta
As mãosinhas descarnadas,
As faces cavas, myrradas,
A testa inda morna e lenta.
—‘Que febre, que febre!’ diz;
E em tudo pensa a infeliz,
Tudo que ha mau lhe occorreu,
Tudo—menos que morreu.
[Pg 230]
Como nos gelos do norte
O somno traidor da morte
Ingana o desfallecido
Que imagina adormecer,
Assim cançado, esvahido
De tam longo padecer,
Ja não ha no coração
Da mãe fôrça de sentir;
Não tem ja lume a razão
Senão só para a illudir.
Acorda, ó mãe desgraçada,
Que é tempo de despertar!
Anda ver a eça armada,
As luzes que ardem no altar.
Ouves? É a rouca toada
Dos padres a psalmear?...
Vamos, que a hora é chegada,
É tempo de o amortalhar.
E os anjos cantavam:
‘Alleluia!’
E os sanctos clamavam:
‘Hosanna!’
[Pg 231]
Ao triste cantar da terra
Responde o cantar do ceu;
Todos lhe bradam:—‘morreu!’
E a todos o ouvido cerra.
E os sinos a tocar,
E os padres a rezar,
E ella ainda a accalentar
Nos braços o filho morto,
Que ja não tem mais confôrto,
Mais socêgo n’este mundo
Que o jazigo humido e fundo
Onde hade ir a sepultar.
Levae, ó anjos de Deus,
Levae essa dor aos ceus.
Com a alma do innocente
Aos pés do Juiz Clemente
Ahi fique a sancta dor
Rogando á Eterna Bondade
Que extenda a immensa piedade
A quantos peccam d’amor.
Maria, doce mãe dos desvalidos,
A ti clamo, a ti brado!
A ti sobem, senhora, os meus gemidos,
A ti o hymno sagrado
Do coração de um pae voa, ó Maria,
Pela filha innocente.
[Pg 233]
Com sua debil voz que balbucia,
Piedosa mãe clemente,
Ella ja sabe, erguendo as mãos tenrinhas,
Pedir ao Pae dos ceos
O pão de cada dia. As preces minhas
Como irão ao meu Deus,
Ao meu Deus que é teu filho e tens nos braços,
Se tu, mãe de piedade,
Me não tomas por teu? Oh! rompe os laços
Da velha humanidade;
Despe de mim todo outro pensamento
E van tenção da terra;
Outra glória, outro amor, outro contento
De minha alma desterra.
Mãe, oh! mãe, salva o filho que te implora
Pela filha querida.
Demais tenho vivido, e só agora
Sei o preço da vida,
D’esta vida, tam mal gasta e prezada
Porque minha só era...
Salva-a, que a um sancto amor está votada,
N’elle se regenera.
[Pg 234]
XV.
OS EXILADOS.
Á SENHORA ROSSI-CACCIA.[14]
Elles tristes, das praias do destêrro,
Os olhos longos e arrazados de agua
Estendem para aqui... Cravado o ferro
Da saudade têem n’alma; e é negra mágua
A que lhes ralla os corações afflictos,
É a maior da vida—são proscrittos.
[Pg 235]
Dor como outra não ha, é a dor que os matta!
Dizer eu: ‘Essa terra é minha... minha,
Que nasci n’ella, que a servi, a ingrata!
Que lhe dei... dei por ella quanto tinha,
Sangue, vida, saude, os bens da sorte...
E ella, por galardão, me intrega á morte!’
Morte lenta e cruel—a de Ugolino!
[15] [Pg 255]
Bem lhes quizeram dar...
Mas não será assim: sôpro divino
De bondade e nobreza
Não o póde apagar
Nos corações da gente portugueza
Esse rancor de fera
Que em almas negras, negro e vil impera.
Tu, genio da Harmonia,
Tu sólta a voz em que triumpha a glória,
Com que suspira amor!
Bella d’enthusiasmo e de fervor,
Ergue-te, ó Rossi, tua voz nos guia:
A tua voz divina
Hoje um echo immortal deixa na historia.
Inda no mar d’Egina
Soa o hymno d’Alceu;
E atravessaram seculos
Os cantos de Tyrtheu.
Mais poderosa e válida
A tua voz será;
A tua voz etherea,
Tua voz não morrerá.
Nós no templo da patria pendurâmos
Ésta c’roa singela
Que de myrtho e de rosas intrançâmos
Para essa fronte bella:
Aqui, de voto, ficará pendente,
E um culto de saudade
Aqui, perennemente,
Lhe daremos no altar da Liberdade.
XVI.
PREITO.
[Pg 237]
É lei do tempo, Senhora,
Que ninguem domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale n’esta hora
Um vassallo bem sujeito,
Leal de homenage e preito
E facil de governar?
Pois o tal sou eu, Senhora:
E aqui juro e firmo agora
Que a um despotico reinar
Me rendo todo n’esta hora,
Que a liberdade sujeito...
Não a reis!—outro é meu preito:
Anjos me hãode governar.
XVII.
NO LUMIAR.
[Pg 239]
Era um dia de Abril; a primavera
Mostrava apenas seu virgineo seio
Entre a folhagem tenra; não vencêra,
De todo, o sol o mysterioso inleio
Da nevoa rara e fina que extendêra
A manhan sôbre as flores; o gorgeio
Das aves inda timido e infantil...
Era um dia de Abril.
E nós iamos lentos passeiando
De vergel em vergel, no descuidado
Socêgo d’alma que se está lembrando
Das luctas do passado,
Das vagas incertezas do porvir.
E eu não cançava de admirar, de ouvir,
Porque era grande, um grande homem devéras
Aquelle duque—alli maior ainda,
Alli no seu Lumiar, entre as sinceras
Bellezas d’esse parque, entre essas flores,
A qual mais bella e de mais longe vinda
Esmaltar de mil côres
Bosque, jardim, e as relvas tam mimosas,
Tam suaves ao pé—muito ha cançado
De pisar alcatifas ambiciosas,
De tropeçar no perigoso estrado
Das vaidades da terra.
E o velho duque, o velho homem d’Estado,
Ao fallar d’essa guerra
Distante—e das paixões da humanidade,
Surria malicioso
D’aquelle surrir fino sem maldade,
Que tam seu era, que, entre desdenhoso
E benevolo, a quanto lhe sahia
Dos labios dava um cunho de nobreza,
De razão superior.
E então como elle a amava e lhe queria
A ésta pobre terra portugueza!
Velha tinha a razão, velha a experiencia,
Joven só esse amor.
Tam joven, que inda cria, inda esperava,
Inda tinha a fe viva da innocencia!...
Eu, na fôrça da vida,
Tristemente de mim me invergonhava.
—Passeavamos assim, e em reflectida
Meditação tranquilla descuidados
Iamos sós, ja sem fallar, descendo
Por entre os velhos olmos tam copados,
Quando sentimos para nós crescendo
Rumor de vozes finas que zumbia
Como enxame de abelhas entre as flores,
E vimos, qual Diana entre os menores
Astros do ceo, a fórma que se erguia.
Sôbre todas gentil, d’essa extrangeira
Que se esperava alli. Perfeita, inteira
No velho amavel renasceu a vida
E a graça facil. Cuidei ver o antigo
O nobre Portugal que resurgia
No venerado amigo;
E na formosa dama que surria,
O genio da subida,
Rara e fina elegancia que a nobreza,
O gòsto, o amor do Bello, o instincto da Arte
Reune e faz irmãos em toda a parte;
Que affere a grandeza
Pela medida só dos pensamentos,
Do stylo de viver, dos sentimentos,
Tudo o mais como futil desprezando.
Pensei que a saudar o velho illustre
Em seus ultimos dias
E a despedir-se, até Deus sabe quando,
De nossas praias tristes e sombrias,
Vinha esse genio... Tristes e sombrias,
Que o sol lhe foge, lhe esmorece o lustre,
E onde tudo o que é alto vai baixando...
O triste, o que não tem ja sol que o aqueça
Sou eu talvez—que, á míngua de fe, sinto
O cerebro gelar-me na cabeça
Porque no coração o fogo é extincto.
Elle não era assim,
Ou, sabía fingir melhor do que eu!
—Como o nobre corcel que invelheceu
Nas guerras, ao sentir o aureo telim
E as armas sôbre o dorso descarnado,
Remoça o garbo, em juvenil meneio
Franja de espuma o freio,
E honra os brazões da casa em que foi nado.
Nunca me hade esquecer aquelle dia!
Nem os olhos, as fallas, e a sincera
Admiração da bella dama ingleza
Por tudo quanto via;
O fructo, a flor, o aroma, o sol que os gera,
E ésta vivaz, vehemente natureza,
Toda de fogo e luz,
Que ama incessante, que de amar não cança,
E continua produz
Nos fructos o prazer, na flor a esp’rança.
Alli as nações todas se junctaram,
Alli as várias línguas se fallaram;
A Europa convidada
Veio ao festim—não ao festim, ao preito.
Vassallagem rendida foi prestada
Ao talento, á belleza,
A quanto n’alma infunde amor, respeito,
Porque é devéras grande:—que a grandeza
Os homens não a dão;
Põe-na por sua mão
N’aquelles que são seus,
Nos que escolheu—só Deus.
Oh! minha pobre terra, que saudades
D’aquelle dia! Como se me aperta
O coração no peito co’as vaidades,
Co’as miserias que ahi vejo andar álerta,
Á sôlta, appregoando-se! Na intriga,
Na traição, na calúmnia é forte a liga,
É fraca em tudo o mais...
Tu, socegado
Descança no sepulchro; e cerra, cerra
Bem os olhos, amigo venerado,
Não vejas o que vai por nossa terra.
Eu fecho os meus, para trazer mais viva
Na memoria a tua imagem
E a dessa bella Ingleza que se esquiva
De nós entre a folhagem
Dos bosques de Parthenope. Cançado,
Fito n’esta miragem
Os olhos d’alma, em quanto que arrastado,
Vai o tardio pé
Por este que inda é,
Que cedo não será, bem cedo—em mal!
XVIII.
A UM AMIGO.
[Pg 246]
Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu joven amigo
Versos proprios d’este dia.
E que de os ver tam singelos,
Tam simples como eu, não ria
Qualquer os fara mais bellos,
Ninguem tam d’alma os faria.
Que sôbre a flor de seus annos
Soprem tarde os desinganos;
Que emtôrno os bafeje amor,
Amor da espôsa querida,
Prolongando a doce vida
Fructo que succeda á flor.
Recebo este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quiz trazer-te n’este dia
Em poucos versos singelos,
Qualquer os fara mais bellos,
Ninguem tam d’alma os faria.
XIX.
OS LUSIADAS.
[Pg 247]
EPILOGO DE PAGGI.
I.
Co’a doce voz o cysne lusitano
Assim as proprias feras abrandava;
Mas nem o Tejo, de seu canto ufano,
Nem as ingratas Tagides tocava:
De seu impio destino deshumano
Nunca as íras fataes, nunca domava;
Nem achou entre os seus humanidade
Quem moveria as pedras á piedade.
II.
Ingrata patria, o ingenho sublimado
Digno de um capitolio em Roma antiga,
Tu não o ergueste d’esse baixo estado
Em que só por tua glória se affadiga!
O ingenho que te inveja mallogrado
Toda a nação de meritos amiga,
Tu na vida em miserias o deixaste,
E em leito vil á fome o assacinaste!
III.
Vai! Sua glória é mais hoje a maravilha
Das gentes, porque mais o perseguiste;
Morre o teu nome quando o seu mais brilha,
Despojam delle a tua lingua triste;
Iberia o adoptou, França o perfilha,
Britannia o quer; e agora eterno existe,
Que n’um e n’outro italico idioma
Entre os seus vates o colloca Roma.
IV.
Tu fica-te c’os ossos deshonrados
Que te accusam de ingrata ao ceo e á terra;
Seu spirito, esse vai onde prezados
São virtude e talento, e onde ímpia guerra
Stulto o podêr não faz aos mais honrados:
Mais de outros ja que teu, ja não se incerra
N’um canto do orbe sua altiva fama,
Que Augusto a ampara e um Alexandre a acclama
V.
Lá onde surge de alto monte, e brilha
Sôbre a escolhida grey de Deus a estrêlla,
E egual áquella antiga maravilha
Que os reis guiou a Deus, sôbre os reis véla,
Lá onde ao merito o podêr se humilha,
Beja a paz da justiça a face bella,
E de illustre carvalho á sombra amena
Descança Roma no velar de Siena,
[18]
VI.
Lá vai, minha obra, e d’esta luz roubada
Tu leva á patria musa esses primores;
Em falla ignota estava sepultada,
Raios de extranho sol são seus fulgores.
Vai, viverás: tambem com luz furtada
Deu vida Prometheu. Se mais não fores,
Serás reflexo de belleza, lustre,
E de eterno splendor émula illustre.
[19]
XIX.
LA LUSIADA.
EPILOGO DI PAGGI.[17]
I.
[Pg 248]
Cotal cantava il lusitano cigno
Molcendo con sue voce anco le fere,
Non che l’amato patrio Tago e’l Migno,
E le del canto suo Tagide altere:
Che pur del suo destino empio e maligno
Non puote unqua addolcir l’ire severe;
Non trovando fra suoi humanitade
Quei ch’i scelsi avria mossi anco a pietade.
II.
Potesti, ingrata patria, un spirto degno
D’un campidoglio in una Roma antica,
Non sollevar da basso stato, indegno
Di cui fiè per te gloria ogni fatica?
Un spirto che t’invidia al maggior segno
Ogni altra nazion di mer’ti amica,
Veder soffristi vivo egro e scontento
Ed in vil letto di disagio spento!
III.
Ma vanne pur che, quanto iniqua, austera
Fusti com lui, tanto fra l’altre genti
Sorgerá la sua gloria ove tua pera,
Fino a caciarne i tuoi nativi accenti.
Adotteranlo la nazione ibera,
La franca, use adottar spirti eminenti,
L’angla; ed ambe le italiche favelle
Vorran che viva fra suoi poeti anch’elle.
IV.
Tienti pur l’ossa inonorate ancora
Che t’accusan d’ingrata anco sepulte;
Che lo spirto di lui, gia di te fuora
Non errará, ne fien sue pene inulte;
Vedrailo accolto ove virtu s’onora:
Gia piu d’altri che tuo, fra le piu culte
Genti del orbe, e maturar sua speme
Sotto un Augusto e un Alessandro insieme
V.
La ve ad illuminar da eccelso monte
Astro di Dio, l’eletta gregia, sorge,
Che al par di quel che ad inchinar la fronte
Condussi i regi a Dio, i regi scorge,
La dove il merto abbatte sforzi ed onte,
La giustizia à la pace il labro porge,
E di quercia Feretria à l’ombre amena
Riposa Roma al vigilar di Siena.
VI.
Or la vanne, opra, ed à le patrie muse,
Quasi terzo cristal le luci rendi
Che sotto ignoto dir sepolte e chiuse
Da sol che altrove splende or furi e prendi.
Vanne, e qual gia Prometteo anima infuse
Con le luci non sue, tu vita attendi:
Spechio del altrui bello, emulo industre
E d’eterno splendor riflesso illustre.
[Pg 256]
XX.
O TEJO.
AO SENHOR VISCONDE DE ALMEIDA-GARRETT.
PELO CONDE DE CAMBURZANO.
N’essas margens risonhas do Tejo
Não ha som que não cante de amor;
Em suas ondas azues o lampejo
Das estrêllas, no albor, se espelhou.
[Pg 257]
XX.
IL TAGO.
AL SIGNOR VISCONTE DE ALMEIDA-GARRETT.
DAL CONTE DI CAMBURZANO.
Sule sponde ridenti del Tago
Dice ogni eco canzone d’amore;
In que’ flutti d’azzuro sì vago
Ogni stella al mattin si spechiò.
[Pg 258]
Essa terra produz a violeta
Ao primeiro surrir da manhan,
Vago Zephyro a flor indiscreta,
Sussurrando, lascivo beijou.
É loquaz este bosque sombrio,
Cheio ainda do canto dos bardos;
Aqui é Tempe, aqui o Menalo frio,
E o Meandro que os cysnes produz.
Oiço uns echos de magica lyra
Pela noite ir ao longo da praia...
Quem é esse tam fero que ahi gyra
E do dia desdenha da luz?
É Catão,
[20]—só a este não doma
Quem a terra fez muda a seu mando;
É Catão—a infamia de Roma
Na sua frente jamais não pesou.
[Pg 259]
Quella terra produce la viola
Al primiero dell’ alba sorriso,
Zefiretto che lene trasvola
Susurrando quel fiore baciò.
Son loquaci le brune foreste,
Piene ancora del canto de’ bardi;
Quivi è Tempe, quì Menalo agreste,
E’l Meandro che i cigni nutrì.
Odo un suono di magica lira
Lungo il lido sull’ umida sera...
Chi è colui che sì fiero s’aggira
E disdegna la luce del di?
Egli é Cato
[21], lui solo non doma
Chi la terra fè muta á suoi cenni;
Egli é Cato, l’infamia di Roma
Sul suo capo giammai non pesò.
[Pg 260]
Como geme alva pomba ferida,
Assim Merope
[22] geme e lamenta;
Soam trompas guerreira alarida,
E a alegria ao seu peito voltou.
Nas cumiadas de Herminio
[23] nevosas,
Que dos horridos gelos se c’roam,
Ve a aurora coberta de rosas
De belleza em que pompa surgiu!
Na hástea debil as tenras florinhas
Vão o puro rocio bebendo,
Cada gotta do ceo, nas hervinhas,
Ricca perola ardente luziu.
Mas o Genio do monte, que horrendo
Entre as sombras impera da noite,
Bate as azas, ja foge e fremendo
No profundo do mar mergulhou.
Come gemon le bianche colombe,
[Pg 261]
Cosi Merope
[24] piange e lamenta;
Ma improviso squillare di trombe
Alta gioja in suo cuore versò.
Su le cime d’Erminio
[25] nevose,
Cui fan gl’orridi ghiacci corona,
Ve’ l’aurora cosparsa di rose
Qual fa pompa di rara beltà!
I fioretti sul gracile stelo
Van bevendo la pura rugiada,
Ogni stilla caduta dal cielo
Fra l’erbette una perla si fa.
Ma lo Spirto del monte, che orrendo
Tiene impero fra l’ombre di notte,
Bate l’ali, gia fugge e fremendo
Nel profondo dei mari piombó.
[Pg 262]
Repentino lá surge um guerreiro,
Torvo o cenho, a armadura de ferro...
É Viriato... a seus pés—o primeiro!—
Calca as Aguias que o mundo adorou.
Da caverna que os ossos lhe incerra
Surde a voz... Inclinae as cabeças
Ante o livre que impavido á terra
—Ou morrer—ou salvá-la jurou...
Immudece a harpa.—O nome adorado
Da sua Julia
[26] as Driades cantem!
Sôbre a fronte ao poeta sagrado
Phebo proprio os seus loiros poisou.
[Pg 263]
Un guerriero repente si desta,
Torvo il ciglio, rachiuso nell’arme,
É Viriato... un vessillo calpesta
Che tremante la terra mirò.
Dallo speco che l’ossa ne serra
Una voce si parte—t’inchina
A colui che la libera terra
O far salva o perire giurò...
Tace l’arpa... Di Giulia
[27] ripeta
Ogni Driade il nome soave!...
Su la fronte del sacro poeta
Febo istesso l’alloro posò.
[Pg 264]
XXI.
CANÇÃO DA DONZELLA FINLANDEZA.
Oh! se o meu Bem me volver,
Se quem d’antes via, eu vejo,
Traga elle a bôcca a escorrer
De lobo em sangue, lh’a bejo;
E a mão vou-lh’a apertar,
Cobras lh’a andem a inroscar.
Ah! se o vento alma tivera,
Lingua o ar da primavera,
Fôra a sua voz bastante:
Novas levára e trouxera
Entre um e outro amante.
Desprézo finos guizados,
Deixo ao cura os seus assados;
Só quero amar, ser constante
A quem o verão me deu
E o hinverno affez a ser meu.
[28]
[Pg 265]
XXI.
EYTON RUNO SUOMALAISEN.
Jos mun tuttuni tulisi,
Ennen nähtyni näkyisi,
Sillen suuta suikkajaisin;
Jos olis suu suden weressä;
Sillen kättä käppäjäisin,
Jospa käärme kämmen-päässä.
Olisko tuuli mielellisnä,
Ahawainen kielellisnä:
Sanan toisi, sanan weisi,
Sanan liian liikuttaisi,
Kahden kaunihin wälillä.
Ennen heitän herkku-ruuat,
Paistit pappilan unohdan,
Ennenkun heitän herttaseni,
Kesän kestyteltyäni,
Talwen taiwuteltuani.[A]
[Pg 266]
XXI.
CARMEN FENICAE FUELLAE.
Ille si meus veniret,
Visus ante si veniret;
Illitum lupi cruore
Os libenter oscularer;
Si ter implicaret anguis,
At manum manu tenerem.
Si qua mens adesset austro,
Si qua lingua veris aurae;
Ferret aura, ferret auster,
Et referret usque verba,
Nuntians, amanti amantis.
Nil moror dapes opimas,
Presbiter nihil quod assat,
Dum mihi meum reservem,
Quem mihi subegit aestas,
Bruma quem dedit domandum.
A. Hedner
Praepositus Ydriensis.
[Pg 267]
XXI.
ΕΙΔΥΛΛΙΟΝ ΦΕΝΝΙΚΟΝ
Ὡς ἴκοιθ’ ὁ προσφιλής μοι,
Τὸν πάλαι φανέντ’ ἴδοιμι,
Τόνδε κἀκ λύκου φιλοῖμ’ ἄν
Αἱματοσταγῆ τὰ χείλη,
Ἐν χεροῖν αὐτοῦ δὲ φῦσα
Ὄφιος οὐ ταρβοῖμ’ ἑλιγμούς.
Εἰ γένοιτ’ ἔμφρων μὲν αὔρα,
Εἰ πνοὴ δ’ ἔναυδος ἦρος,
Σὺν τάχει πρόσω πάλιν τε,
Τοὺς ἂν ἀλλήλων ἐρώντων,
Πίστεως λόγους κομίίζοι.
Πλὴν λιχνεύματ’ ἂν μεθείην,
Ὀπτὰ κρέα θ’ ἱρέως ἔγωγε
Μᾶλλον, ἢ τἀνδρὸς λαθοίμην,
Τοῦπερ ἐν θέρει δαμέντος,
Ἐν κρύει κατεκράτησα.
J. Spongberg
Professor Linguæ Græcæ
[Pg 268]
TRADUCÇÕES LITTERAES.
I.
ALLEMAN.
Oh! wenn mein Geliebter
[29] kommen würde,
Der früher gesehene, wenn er erschiene (erscheinen würde):
Sogleich würde ich einen Kuss auf seinen Mund drücken,
[30]
Auch wenn er (der Mund) mit Wolfsblut besudelt
[31] wäre!
Seine Hand würde ich zugleich auch warm (herzlich) fassen,
[32]
Wenn auch eine Schlange sich um seine Finger schlängelt!
Ach! wenn der Wind Verstand hätte,
[33]
Der frische Lenzeshauche, wenn er einer Sprache mächtig wäre:
[34]
Ein Wort würde er hinbringen,
[35] ein Wort würde er zurückbringen;
Mit Nachrichten würde er schnell eilen
[36]
Zwischen zwei Liebenden.—
Lieber verschmähe ich die kostbarsten Speisen,
[37]
Vergesse lieber den Braten auf des Priesters Tische,
[38]
Als dass ich meines Herzens Geliebten verlasse,
Den, welchen ich im Sommer mir ergeben machte
[39]
Den, welchen ich im Winter (an mich) befestigte.
[40]
[Pg 269]
II.
INGLEZA.
Oh! If my beloved
[41] would come,
The before seen, if he would appear;
Instantly I should press a kiss on his mouth,
[42]
Even though it (the mouth) were stained with the blood of a wolf.
[43]
His hand I should at the same time warmly (cordially) seize,
[44]
Even though a snake wound round his fingers!
Oh! if the wind had understanding,
[45]
The fresh zephyrs of the spring, if they were capable of speech:
A word they would bring hither,
[46] a word they would return,
With intelligence they would quickly hasten
[47]
Between two lovers.—
I should sooner give up the nicest dishes
[48],
Forget rather the roast-meat on the priest’s table
[49]
Than I forsake my dear beloved,
Him, whom in the summer I made attached to me,
[50]
Him, whom in the winter I captivated.
[51]
[Pg 270]
III.
LATINA
O, si ille familiaris meus veniret,
Antea visus mihi appareret!
Statim ei os porrigerem,
[52]
Etiamsi esset (os) lupi cruore maculatum.
[53]
Manum ejus calide
[54] premerem,
Etiamsi anguis digitos cingeret.
[55]
O! si ventus esset mente praeditus,
[56]
Si flamen
[57] veris alacre
[58] linguae esset potens;
Verbum huc ferret, verbum referret,
[59]
Nuntium vicissim motu ageret
[60]
Inter duos amantes.—
Rejiciam potius lautissimas cupedias,
Quin carnis assae de mensa presbyteri
[61] obliviscar,
Quam meum ex corde amatum deseram;
Quem aestate mihi deditum reddidi,
[62]
Quem hieme satis mansuefeci.
[63]
[Pg 271]
IV.
FRANCEZA.
Ah! si mon bien-aimè
[64] voulait venir,
Celui que je voyais jadis, voulût-il reparaître!
A l’instant je presserais un baiser sur sa bouche,
[65]
Si même elle était tachée de sang de loup.
[66]
Je saisirais ardemment sa main
[67]
Quand même un serpent fût roulé autour de ses doigts.
Oh! si le vent avait de la raison,
[68]
La fraiche haleine du printemps, si elle savait une langue;
Elle irait chercher un mot, un mot elle rapporterait;
Vite elle se hâterait avec des nouvelles
[69]
Entre deux amants.—
Plutôt je me passerais des mets les plus delicats,
[70]
J’oublierais plutôt le rôti sur la table du pasteur,
[71]
Que je n’abandonne le chéri de mon cœur,
Celui qu’en été je m’attachai,
[72]
Celui que j’enchainai pendant l’hiver.
[73]
[Pg 273]
[Pg 275]
NOTAS
ÁS FÁBULAS E CONTOS.
Nota A.
Um tal poeta lá da tua terra
Que faz Orientes e baptiza Gamas pag 36.
Este verso, e um soneto, que é o X na collecção do
presente vol., são as duas unicas debilidades em que cahi
mostrando má vontade satyrica ao bem conhecido Padre
José Augustinho de Macedo, homem de estudo e talento,
mas o mais atrabiliario escriptor que ainda creio que
tivesse a lingua portugueza. O rancor que toda a vida professou
a quantos professaram as lettras no seu tempo, uma
inveja impropria de talento tam verdadeiramente superior,
o arrastou a desvarios que deslustraram o seu nome
e mancharam a sua fama. Nem o furioso e sanguinario
que foi em seu partido, nem a perseguição politica de
que a mim proprio me fez victima, poderam mover-me a
desacatar n’elle o homem de lettras que todavia honro
ainda. Sei que no A. do RETRATTO DE VENUS, no redactor
principal do PORTUGUEZ, elle perseguia principalmente[Pg 276]
o ainda mais odioso A. do poema CAMÕES. Todas
as suas offensas porém foram só politicas; litterariamente
não me aggravou jamais. Perdoe-lhe Deus como lhe
perdoei sempre. A posteridade não lhe perdoará decerto
a sua stulla rivalidade com o A. dos LUSIADAS: foi a
essa que os versos annotados alludiram. Queimava-os se
fôra a outra coisa. Metter as lettras nas nossas questões
politicas e nas mesquinhas e soezes paixões individuaes que
d’ellas nascem, é para a baixa villania dos insultadores
publicos, despreziveis rans do charco stagnado da intriga
que nem siquer para si coaxam, mas para quem os faz coaxar
por sua conta.
Nota B.
Conto academico pag. 42.
Este conto é uma verdadeira gaiatice de estudante de
Coimbra que despede chufas á direita e á esquerda como
pancadas de cego. Se o diccionario da nossa academia
ficou no azzurrar, a collecção de suas preciosas memórias
cantou bem alto e sonoro: muito receio que fôsse
cantar de cysne!
Nota C.
O famoso direito de accrescer pag. 61.
O direito de accrescer é o que em qualquer sociedade
resulta ao todo dos socios da renúncia tacita ou expressa[Pg 277]
que de seu quinhão faz um d’elles. No meu primeiro anno
da Universidade era a explicação d’este romanismo um
dos pontos mais graves do curso de direito.
Nota D.
O menino e a cobra. pag. 65.
É imitação ésta fábula de uma composição alleman do
seculo passado, não me lembro de que auctor.
Nota E.
A Saude e a Medicina. pag. 69
Imitação, e quasi traducção em muita parte, da fábula
de Pignotti do mesmo nome.
Nota F.
Fui prêso por Verdeaes pag. 79.
Até a côr das fardas dos archeiros da Universidade
mudaram os fomentadores de 1834-5. Dizem que os
pintaram de azul! Não tenho ânimo de ir a Coimbra,
nem olhos com que tal veja. Os verdeaes azues! Que
reforma!
[Pg 278]
Nota G.
O Casquilho. pag. 88.
Imitação de um apologo ingles, cujo auctor me não
lembra tambem.
AOS SONETOS.
Nota A.
A certa tragedia pag. 110.
Vej. a nota A das Fábulas.
ÁS FOLHAS CAHIDAS.
Nota A.
Coquette dos prados pag. 171.
A palavra coquette não é portugueza. Mas não ha remedio
senão acceitá-la e dar-lhe a carta de naturalização
desde que a coisa se afforou tanto entre nós.
Nota B.
Voz e aroma. pag. 219.
Parece-me, e quero confessá-lo, que estes versos são
uma reminiscencia de Lamartine.
[Pg 279]
Nota C.
No Lumiar. pag 239.
Tinha promettido estes versos sôbre a visita de Mrs.
Northon ao Lumiar, ha tres para quatro annos, ao nosso
commum amigo S. de L. Perdoe-me elle se tam tarde
cumpro a minha prometa.—Dezembro. 1851.
Nota D.
O Tejo. pag. 256.
O Sr. Conde de Camburzano, secretario da Legação
de Sardenha em Lisboa, foi aqui mui pouco conhecido
da nossa sociedade, nem o sería com vantagem, porque
dançar e jogar, jogar e dançar, de verão e de hynverno,
nossa occupação exclusiva e unica, não podia ser a de
um homem de forte pensar e de vehemente sentir.
Manda-lhe aqui éstas saudades um dos poucos Portuguezes
que tiveram a fortuna de o conhecer.
Nota E.
Deixo ao cura os seus assados. pag. 264.
Este pequeno poema foi-me enviado de Stockolmo pelo
illustre litterato o Sr. Zetterquist, com as traducções poeticas
e litteraes que publíco junctamente com o texto, e
que me serviram para fazer a traducção portugueza que[Pg 280]
com tanta instancia me pediram. Veio tudo acompanhado
da seguinte explicação em Francez, que aqui ponho textualmente
tambem para melhor esclarecimento do assumpto:
REMARQUES DIVERSES SUR CETTE RUNA FINOISE[74]
Ce petit poème, que l’on peut appeler une réminiscence
de l’état d’innocence primitive des peuples et des langues,
fut composé il y a peut-être quelques siècles, par
une jeune paysanne finoise. Comme le chant l’indique,
elle parait avoir eu un amant auquel elle avait donné
son cœur et son premier amour, mais qui, plus tard, pour
une cause quelconque, l’abandonna, malgré les promesses
de mariage qu’il avait jurées à sa fiancée. Une circonstance
pareille n’a jamais été et ne sera jamais rien d’extraordinaire:
c’est, nonobstant, le thème de ce chant si
simple. Simple, il est vrai; mais il ne manque pas pour
cela d’originalité, ni même de poésie, pareil en cela, du
reste, à tous les vieux et sublimes chants nationaux du
Nord. Je pourrais même à cet égard soutenir sans exagération
que celui qui nos occupe est l’un des plus beaux
produits de la poésie populaire. Où trouver, par exemple,[Pg 281]
une pensée plus sublime que celle de la seconde
stance, où cette Sapho, quoique n’étant pourtant pas de
Lesbos, donne sous l’inspiration du moment, l’essor aux
brûlants sentiments de son cœur: “Oh! si le vent était
douè de raison, et la fraîche haleine du printemps, si elle
savait une langue: ils porteraient alors un mot d’amour
et le rapporteraient entre deux amants.” Mais que l’on
n’oublie pas non plus que c’est l’amour, chez cette poète
toute d’inspiration naturelle, née et grandie dans un pays
de forêts couvertes de neiges et de glaces, qui lui a mis
sur les lèvres ces paroles d’une si douce poésie. Quant à
la 3ème ou dernière stance, il me semble aussi nécessaire
d’y fixer l’attention plus spéciale du lecteur. On
pourrait, par aventure, regarder comme une espèce d’étrangeté
les expressions suivantes: “Plutôt je me passerais
des mets les plus délicats, j’oublierais plutôt le rôti
sur la table du pasteur, que je n’abandonne le chéri de
mon cœur.” Pour celui qui ne connaît pas les particularités
caractéristiques des paysans findandais, et leur appréciation
des choses, une image ou un objet concret pareil
au rôti sur la table du pasteur, pourrait paraître quelque
chose d’étonnant en poésie: mais cette pensée ou cette
image ne présente par contre rien d’étonnant, lorsque l’on
est initié à la vie nationale de la Finlande, et surtout, si
l’on sait quelle profonde vénération les paysans finois
avaient jadis pour leur prêtre, pour leur instituteur religieux;
mais outre cette saint vénération, qui touchait[Pg 282]
presque à une adoration mystique, ils donnaient à ses
biens matériels une valeur et leur montraient un respect
non moins grands. La jeune fille, inspirée par le dieu de
l’amour, n’aurait donc voulu pour les friandises les plus
recherchées au monde, pas même pour les mets les plus
délicats que la table du pasteur pût offrir, se départir de
l’objet aimé. Cette strophe renferme aussi, en conséquence,
une pensée tout aussi raisonnable que belle.—Et
quoique ce petit morceau lyrique soit un modèle de style
simple et naturel, il ne se fait, on vient de le voir, pas
moins remarquer par un sentiment ardent, par sa force,
et surtout par de ces images hardies comme des poètes
plus exercés et plus instruits en cherchent en vain.
J’ose dans tous les cas espérer qu’on ne m’imputera
raisonnablement pas à blâme, d’avoir, comme base de
mon entreprise choisi de préférence ce simple chant antique,
au lieu de prendre un morceau moderne d’une autre
tendance. Un original de caractère religieux, n’aurait,
par exemple, indubitablement pas convenu; d’autant plus
que comme il s’agit ici d’obtenir le plus grand nombre
possible de traductions, non seulement en langues écrites
mais encore en idiomes provinciaux, le morceau que j’ai
choisi me paraît plus que tout autre propre a conduire à
ce résultat.
Si j’en viens maintenant au but même de mon travail,
je crois pouvoir déclarer à ce sujet, qu’à tous égards, une
collection polyglotte semblable doit indubitablement être[Pg 283]
fort intéressante pour les personnes possédant des connaissances
philologiques plus ou moins grandes, et surtout
pour celles qui s’occupent de linguistique comparée,
Un résultat pareil dépend naturellement de la fidélité, de
l’exactitude qui sera apportée à chaque traduction. L’on
ne doit, en conséquence, pas considérer cette entreprise
comme une affaire de curiosité, ni comme un simple amusement,
mais comme un travail utile, autant que possible,
pour l’histoire générale des langues.
Sous le point de vue de la réunion d’un si grand nombre
de traductions, tant en dialectes qu’en langues écrites
mortes et vivantes, elles seront rangées en ordre systématique
basé sur leurs origines et leurs affinités. Le nombre
d’idiomes dont cette carte philologique se composera, dépendra
naturellement de la quantité de traductions que
j’obtiendrai. Cependant, me fondant sur la bienveillance
dont j’ai déjà été l’objet pendant le cours de quelques
années, j’ose espérer que la collection se composera d’environ
200 ou 300 idiomes, dont je possède déjà un nombre
assez considérable. Cet ouvrage sera encore augmenté
de quelques appendices de musique, et d’une introduction
philologico-historique. Ensuite, les traductions seront autant
que possible imprimées avec les caractères particuliers
à chaque langue.
Enfin, que l’on me permette d’ajouter au sujet de cette
Runa finoise, qu’avant moi déjà, diverses personnes l’ont
remarquée avec intérêt; je dois nommer entr’autres le[Pg 284]
Conseiller d’État suédois S. E. Mr. A. F. de Skjöldebrand,
lequel publia en 1810 à Stockholm une magnifique
collection de gravures sur la Suède, la Finlande et la
Laponie, suivie d’une description en langue française, et
portant le titre de: “Voyage pittoresque au Cap Nord.”
La Runa que j’ai choisie se trouve dans cet ouvrage,
tant en original, qu’en traduction française en prose.
L’auteur y annonce qu’elle lui fut communiquée par Fr.
Mich. Franzén (alors professeur à l’Academie d’Abo)
comme un des meilleurs échantillons de la poésie runique
finoise, et l’un des plus propres à montrer à quel riche
degré la nation finoise possède l’inspiration poétique.
Mais la langue finoise est aussi sous le point de vue grammatical
singulièrement flexible, elle est surtout fort mélodieuse,
ce que lui donne une certaine ressemblance avec
le Grec antique.
A peu près vers le même temps que l’ouvrage de Mr.
de Skjöldebrand, apparut en Anglais, d’un certain Joseph
Arcebi, une description de Voyage en Suède, en
en Finlande et en Laponie, dans laquelle se trouve aussi
la même Runa, en traduction anglaise, faite toutefois
assez librement. Cette description de Voyage, fort intéressante,
a été traduite en Français et en Allemand. Mais
ces deux auteurs ne son pas les seuls: le célèbre poète
allemand Göethe a fait aussi de ce chant une traduction
imprimée dans ses: «Poetische und Prosaische Werke.»
[Pg 285]
QUELQUES INDICATIONS PARTICULIÈRES POUR LES TRADUCTEURS
DE CE CHANT.
1.º MM. les traducteurs voudront bien suivre, aussi
fidèlement que possible, l’une des trois traductions verbales
ci-dessous. 2.º Quant aux idiomes dans lesquels
il serait difficile et peut-être même impossible de faire
des traductions en vers, l’on devra, dans un tel cas, se
contenter de les faire en prose, plutôt que de n’en point
faire du tout. Je désire toutefois que ces traductions
soient en vers blancs (non-rimés), como les trois traductions
verbales. 3.º Si le traducteur voulait communiquer quelques
explications grammaticales sous forme de notes, elles
seraient reçues avec la plus grande reconnaissance.
4.º De même, si quelqu’un voulait se charger, en cas
que ce fût possible, de procurer de la musique à l’une
des traductions; ce serait aussi une chose que je désirerais
volontiers. 5.º MM. les traducteurs sont priés d’écrire
leurs traductions aussi distinctement que possible,
pour éviter les fautes typographiques qui pourraient s’y
glisser. 6.º L’on ne doit pas oublier de traduire le titre:
Chant d’une jeune paysanne finoise. 7.º Chaque traducteur
voudra bien signer sa traduction.
C. G. ZETTERQUIST
A quem ler | pag. V |
PRIMEIROS VERSOS |
XXVII |
Advertencia |
XXIX |
Fábulas e Contos |
33 |
I. |
Introducção |
ib. |
II. |
Pelo zurro o burro |
42 |
III. |
Amor e vaidade |
48 |
IV. |
Esopo e o burro |
59 |
V. |
O menino e a cobra |
65 |
VI. |
A saude e a medicina |
69 |
VII. |
O gallego e o diabo |
78 |
VIII. |
O casquilho (janota) |
88 |
IX. |
Os amantes generosos |
92 |
Sonetos |
99 |
I. |
Porfia d’amor |
101 |
II. |
Camões náufrago |
102 |
III. |
A uma feia com linda voz |
103 |
IV. |
Suffoque as íras, calle e sinta e gema |
104 |
V. |
É dos olhos gentis da minha amada |
105 |
VI. |
Nas froixas, debeis azas da saudade |
106 |
VII. |
O Campo de Sanct’Anna |
107 |
VIII. |
Virtude sem prazer não é virtude |
108 |
IX. |
A flor sêcca |
109 |
X. |
A certa tragedia |
110 |
XI. |
Maria e Carolina |
111 |
XII. |
Saudade |
112 |
[Pg 287]
Ultimos Versos |
pag. 113 |
Dos Editores |
115 |
Advertencia |
116 |
Folhas Cahidas |
123 |
Livro Primeiro |
ib. |
I. |
Ignoto Deo |
ib. |
II. |
Adeus |
126 |
III. |
Quando eu sonhava |
132 |
IV. |
Aquella noite |
134 |
V. |
O anjo cahido |
142 |
VI. |
O album |
145 |
VII. |
Saudades |
148 |
VIII. |
Este inferno de amar |
151 |
IX. |
Destino |
153 |
X. |
Gôso e dor |
155 |
XI. |
Perfume da rosa |
157 |
XII. |
Rosa sem espinhos |
160 |
XIII. |
Rosa pallida |
162 |
XIV. |
Flor de ventura |
166 |
XV. |
Bella d’amor |
169 |
XVI. |
Os cinco sentidos |
171 |
XVII. |
Rosa e lirio |
173 |
XVIII. |
Coquette dos prados |
177 |
XIX. |
Cascaes |
179 |
XX. |
Estes sitios |
184 |
XXI. |
Não te amo |
187 |
XXII. |
Não es tu |
190 |
XXIII. |
Belleza |
193 |
XXIV. |
Anjo es |
196 |
XXV. |
Vibora |
199 |
Livro Segundo |
201 |
I. |
Barca bella |
ib. |
II. |
A Coroa |
203 |
III. |
Sina |
205 |
IV. |
Ai Helena |
208 |
[Pg 288]
V. |
A rosa—um suspiro |
pag. 210 |
VI. |
Retratto |
212 |
VII. |
Lucinda |
213 |
VIII. |
As duas rosas |
215 |
IX. |
Voz e aroma |
219 |
X. |
Seus olhos |
221 |
XI. |
A Délia |
223 |
XII. |
A joven americana |
224 |
XIII. |
Adeus, mãe! |
228 |
XIV. |
Ave Maria |
232 |
XV. |
Os exilados |
234 |
XVI. |
Preito |
237 |
XVII. |
No Lumiar |
239 |
XVIII. |
A um amigo |
246 |
XIX. |
Os Lusiadas |
248 |
XX. |
O Tejo |
256 |
XXI. |
Canção da donzella finlandeza |
264 |
Notas |
273 |