Musa, não temas; vibra afoita o plectro.
Se tentas sublimar-te a grandes cousas,
Se mais que a força tua he tua empreza;
Eis NUMEN Bemfazejo inspira o canto,
NUMEN, de QUEM rival não fôra Apollo,
Nem de Aonias Irmans turba engenhosa.
Sonhão Poetas vãos Parnaso, e Pindo;
Hippocrene hé quimera: a ti dimana,
Do Solio desce a ti feliz audacia,
Que a mente acobardada esfórça, agita.
Assim remontarás segura os vôos;
Assim, transpondo os Ceos, transpondo os Mares,
Irás desentranhar, colher arcanos,
Não corruptos na voz da Fama incerta.
Outros (como que folguem de illudir-se)
Mandem rogo importuno aos Deoses do Estro;
Cobicem na Castalia mergulhar-se.
JOAÕ, CUJO Poder no mundo hé tanto,
E a CUJO Arbitrio cabe alçar o humilde,
O elevado abater, protege, ó Musa,
Teos sons, teo metro; e com benigno Aceno
Ordena, que altos feitos apregôes:
Idéa, engenho, ardor de Lá te influem.
Á sombra já de Auspicios tão sagrados,
Claros louvores de immortaes Guerreiros
Anhela celebrar fervendo a mente;
Dizer, com que perfidia atroz, e infanda
Foi pela Maura estirpe despertado
Nos Lusos corações o fogo antigo;
Qual soffreo nova pena a Gente odiosa;
Té que Marte á justiça os constrangesse.
Longe, longe as ficções. TUA ALMA Ingénua
Só quer, PRINCIPE Augusto, a ingenuidade.
Onde o Mar pelas terras mais se alonga,
Em cuja bocca he fama erguera Alcides
Arduas columnas, das fadigas termo,
Jaz annosa Cidade
[1], que parece
De Carthago ás ruinas esquivar-se,
Olhando ao longe de Sicilia as praias:
Outróra fundação nobre, opulenta,
Em tanto que do intrépido Navarro
Opprimida não foi com duro assedio:
Hoje triste enseada, e mal seguro
Surgidoiro aos baixeis. Dalli costuma
O rapido chaveco atraiçoado
Ás infestas rapinas arrojar-se;
De miseros mortaes alli mil vezes
C’os sanguentos despojos volve alegre:
Nem se apraz só do roubo a Raça infame,
Nódoa, horror da Razão, da Natureza;
Aos fracos agrilhoa as mãos inermes;
Quaes brutos, os alhêa a preço de oiro,
Ou lhe esmaga a cerviz com jugo indigno:
Eis seo louvor, seo nome, a gloria sua.
Alli preside asperrimo Tyranno
[2],
De torpe multidão senhor mais torpe;
Monstro, que desde a infancia exercitado
Em tudo o que os Mortaes nomêão crime,
Sacrilego infractor das Leis mais sanctas,
Delicto algum não vê, que em si não queira,
E dóe-se de o perder, se algum lhe escapa:
Maldade horrivel, que prodigio fôra,
Se estes dos homens sórdido refugo,
Desparzidos no Globo, o não manchassem.
Oh quanto mais se deve estrago, e morte
Ao barbaro Tropel, que hum trato amigo,
E aquella mutua fé, que enlaça os Povos!
Mas se robustas Mãos, que o Sceptro empunhão,
Não chovem contra os Féros inda o raio,
Tempo, tempo virá que exterminada
(O coração mo diz com fausto agoiro)
Apraza acantoar a iniqua Turba
Lá onde dos invernos carregado,
Junto ás extremas Ursas vai Bootes
Regendo a custo o vagaroso carro;
Ou lá onde rebrama o Sul recente,
Haja taes Cidadãos deserta plaga,
Até que a Eternidade absorva as Eras:
E das brenhas no horror, no horror das grutas,
Companheiros das féras, monstros novos,
Vivão de sangue, como as féras vivem,
Na garra, e condição peiores, que ellas.
A Maldade em caracter convertida
Hé sempre mãi do crime, e a Natureza
Já despir-vos não sabe, Artes perversas.
Como ha de a voz saudavel do Remórso
Melhorar corações, depois que a peste
De corrupta Moral se arreiga nelles;
Fermenta, lavra em fim de vêa em vêa,
De séculos a séculos medrando?
Quando os dons se amontôão sobre a culpa?
Quando a penuria a probidade ancêa,
De hum vulgo detestavel accossada?
A tudo a negra Turma inverte os nomes;
O bom desapprovando, ao máo se aferra:
E hé tanta nos crueis do crime a sêde,
O exercicio do mal taes forças ganha,
Domina tanto alli, que nunca omittem
Opportuna estação de perpetrallo,
Ou do ardor de empecer, ou da cobiça
De illegitima presa esporeados;
Como se a Rectidão, como se a Honra,
O que a todos illustra, os deslustrasse.
Não com lingua fallaz taes vozes sólto:
Ninguem no mundo o que descrevo, ignóra.
Quem de olhos carecer, e quem de ouvidos,
Só não conhecerá, quão vis alumnos
Pela terra esparzio o audaz Mafoma,
O refalsado author de Seita infanda.
Que dólos, que traições, que iniquidades
Da caterva brutal provaste há pouco,
Tu, dize, tu, magnanimo Donaldo
[3];
Conta os varios successos, conta os riscos,
Os trabalhos, que a ti, e aos teos urdira
Atro perjurio do bilingue Chefe;
Tudo porém troféo das forças tuas.
Lustroso do esplendor de imperio summo,
Tu foste quem primeiro apresentára
A dadiva da Paz, que, apadrinhado
De hum Rei potente
[4], o Barbaro implorava.
Quando hé que as condições mais leves forão?
Entreguem-se os Francezes acolhidos
Brandamente de Tripoli nos muros,
Ao throno do Sultão
[5] pesada offensa,
Grave infracção tambem do jus Britanno,
Da assentada concordia, e laço antigo.
Bachá, cumpre o dever, e a teos desejos
Verás a conclusão, verás o fructo.
Grão penhor te dará na fé, na dextra
AQUELLE, Cujas Leis adora o Tejo,
Ufano revolvendo arêas de oiro;
Cujas Leis teme o Niger, teme o Ganges;
São freio, acatamento do Amazonas,
Do Argenteo, que em torrentes resonantes
Immensos cabedaes aos Mares levão.
D’alta alliança o Régulo sedento,
Folga, exulta, accelera-se, convida
O animoso Guerreiro ao forte alcáçar.
Quer comtudo exercer primeiro astucias,
Que o feio coração lhe está brotando,
Bemque tanto aproveite, e tanto alcance
No que diz com a Razão, no que he justiça.
Dá-se pressa: ameacem muito embora
Caso fatal as hórridas Muralhas,
Encerre o que encerrar ambigua estancia;
Todo firmado em si, maior que o susto,
Vai demandar o Heróe a hostil morada.
Hé desta arte, que só, que destemido
Carlos
[6] outróra ousou nos proprios lares
Encarar o Inimigo exacerbado,
Volvendo illeso aos seos, depois de muito:
Ou tal, fieis annuncios despresando,
Foi Cesar envolver-se entre os Conscriptos,
Dispostos a catástrofe cruenta;
De indócil ao temor, de habituado
Só có a presença a triunfar mil vezes.
Entre as sombras da noite absorto em tanto,
Metido em pensamentos veladores,
Até que ás ondas volte o grande Chefe,
(Se lhe hé dado talvez tornar, qual fôra)
Impéra n’alta Poppa o Delegado
[7];
E o lucto, que lhe cinge a fantasia,
Recata com semblante esperançoso.
Partindo prescrevêra o Cabo invicto,
Que, a negar-lhe o regresso indigna força,
Apenas alvejasse a grata Aurora,
Trazendo novo lustre ao Ceo, e á Terra;
Com todo quanto impulso em Lusos cabe,
Os pérfidos Contrarios commettessem.
Nada cura de si; nem quer ausente
Ser obstaculo aos seos: có a idéa erguida
A bens de mais valor, de mais alteza,
A vida se lhe antólha hum sonho, hum nada.
Á mente perspicaz não se lhe esconde,
Sente no coração, votado á Gloria,
Que da existencia a luz hé luz de raio;
Que, se as tubas da Fama os não precedem,
Vastos nomes no Lethes se baralhão
Entre escuro montão de escaços nomes,
O que affecta os sentidos deixa ao vulgo;
Engeita o que hé do vulgo, o que hé da morte,
E mais que humano, e sobranceiro ao Fado,
Quer duração, que os séculos abranja.
Por que os Fabios direi, sós contra hum Povo
Todo o peso da guerra em si tomando?
E o Rei, que deo, morrendo, aos seos victoria,
Rei derradeiro na Cecrópia terra?
Ou porque os Moços, que exhalando as almas,
Ferem, matão, derrubão densas hostes,
Estorvo das correntes, que bebião?
Tropel dez vezes cento (oh maravilha!)
Maior, que seos terriveis Adversarios;
Não visto n’outro tempo, ou n’outros climas,
Nem por outrem guiado ao Marcio jogo?
Vetustos monumentos nada ensinão,
Que dê mais esplendor; ou antes nunca
Se afoitou a idear viril denodo
Empresa mais illustre, audaz, violenta.
Mas como transcender-se as métas podem,
Onde se crê parada a Natureza,
Donaldo o manifesta, o prova ao Mundo.
Alta fama de hum só consente apenas
A Codro, aos Fabios, aos Varões de Esparta
O secundario gráo. Soltando a vida,
Chama o triunfo aos seos o Heróe de Athenas,
Acção rara, exemplar; porém ao Povo
O Cidadão, e o Rei devião tanto,
E a tanto a voz dos Ceos o arrebatava.
Se os trezentos impávidos Romanos
Aos arraiaes hostis se arremessárão,
Forão-lhe origem da proeza estranha
Velha aversão, troféos imaginados,
E agoiros de segura eternidade;
Além de outro incentivo inda mais caro:
Morrer nas armas, escudando a Patria.
Laconios Campiões, sim defendestes
Com requintado alento, e planta immovel
Da apertada Thermópylas o passo;
Mas os deoses, os filhos, pais, e esposas,
Os objectos do culto, e do amor vosso
Á vossa heroicidade objectos forão;
E derão-vos os Fados, que a vingança
Aligeirasse em vós da morte o peso.
Porém de circunstancias mais sublimes
O egregio, immortal Feito se rodêa,
Que me cumpre levar por toda a Terra:
Graveza aos hombros meos descompassada,
E excessiva talvez de Atlante aos hombros.
Não, aqui não se offrece abrilhantada
De attractivos externos a Virtude:
Nua apparece aqui, por si formosa.
Donaldo, avesso ao crime, o crime odêa,
Por amor da Virtude, ama a Virtude.
Nada do que usa erguer ao alto as mentes,
Nem patria, nem desejos de vingança,
Nem propria utilidade, ou qualquer outra
Das humanas paixões Donaldo incita:
Ante si do Dever só tem a imagem,
Seja qual for o effeito, ou lédo, ou triste.
Ai! que tramas dispoem Bando horroroso!
Que ciladas no astuto pensamento!
Plebe sem lei, sem fé prepara á furto
Traidores laços ao Varão, que assoma.
Já na imaginação devóra a presa:
De engenho mais sagaz se crê dotado,
Mais jus colhe ao louvor quem da perfidia
No atroz invento sobresahe aos outros;
Quem das negras, pestiferas entranhas
Crime inaudito, insólito attentado,
Nova abominação vomita, arranca,
Rugindo em torno rábida caterva.
Mal que na odiada arêa a planta imprima,
Esperar n’hum punhal o Incauto, e ás ondas
Em pedaços (que horror!) lançar-lhe os membros.
Hé deste opinião; voto hé daquelle,
Que subito assaltêe impia cohorte
O immune Orgão da Paz, e ferreas pontas
Daqui, dalli no coração lhe embebão,
Quando a infiel Cidade entrar seguro.
Quer outro, que de longe á fronte heroica,
De inviolavel caracter decorada,
D’entre o lume sulfureo vôe a morte.
Outro, que subterránea estrada infensa
Debaixo de seos pés ardendo estoire.
Nem occorre isto só: revezão todos
Horrores, que requintão sobre horrores.
Émulo ardor nos animos damnados
Tanta aos delictos affeição lhe atêa!
Tão preciosa lhe hé, tão doce a infamia!
Mas o Eterno desfez insidia enorme.
Nos olhos do Varão, na voz, no aspecto
Tal reverencia poz, poz tal grandeza,
Que vai por entre a luz, e os Inimigos
Incólume, e sereno. Erão famosos
Por sanguineas, innumeras brutezas,
Quantos desta (a maior) se encarregárão.
Mas quando o pensamento abominoso,
Já já fito na presa, a mão dirige,
Nega-se a mão (que assombro!) ao acto horrendo.
Tres vezes a vontade resoluta
Se a balança á traição; descahe tres vezes
N’hum frigido pavor o algoz Congresso;
Tres vezes fóge o ferro ás mãos, que tremem;
E, a seo pesar, baldada a vil perfidia,
Conduz pela Cidade insidiosa
Inerme o Vencedor triunfo insigne.
Já pisa do Tyranno os pavimentos,
(Não indignos de Caco) ou para dar-lhe
Penhor de amiga paz, ou o ameaço
Do trovão, que no bronze o pólo atrôa.
Eia, em que te detens, Varão prestante?
Por que inda não rebomba o som do raio
Nos insanos ouvidos? Por que em terra
Os féros baluartes não baquêão?
Porque o Regio Baixel não sólta os pannos,
E o barbaro palacio não fulmina?
Crês, que te hé dado achar sobre essa plaga
Huma só vez a fé? Jámais Astréa,
Desde que o Globo hé Globo, estancia teve
Nesse terreno infesto, onde a Verdade,
Onde os Tractados, a Razão se volvem
Nestes dois eixos sós: ou Oiro, ou Medo.
Rompe, rompe as tardanças, não perdóes
Á malvada Nação: com ella expendão
Donativos os mais; tu ferro, e fogo.
A Politica em vão, que tudo aplana,
Em vão contradicções compôr quizera,
Com que as palavras entre si repugnão:
A Progenie de Agar só teme a força.
Em quanto implora a paz, subtis pretextos
Tece o arteiro Bachá, para que frustre
Cláusula, em que somente a Paz se estriba,
Não hé porque o Francez cobice amigo;
Mas hé porque o Francez, e o Luso engane;
De balde, que a sisuda Sapiencia
Rege, illustre Donaldo, as vozes tuas;
E ao doloso Africano o dólo argue.
Tu primeiro lhe expões, quão mal confórma
Có a honra, de que tumido alardêa,
Dar manso gasalhado aos Inimigos
Dos Alliados seos, do grão Monarcha,
A cujo imperio vassalagem deve.
Tu promettes depois, já que ao falsario
Igualmente o Sultão de côr servia,
Mandar-lhe sobre a Poppa Lusitana
A origem do debate, os Prisioneiros,
De barbudas escoltas ladeados,
(Gloria nunca outorgada a Musulmanos).
Desmanchas do Agareno as fraudes todas;
Mas, aos mesmos principios aferrado,
No objecto, em que insistio, tenaz insiste,
E ás vozes da Equidade hé surdo, hé morto.
Colhido havias de experiencia funda,
Quanto a sanha Moirisca apura extremos
Em odio da Justiça, e quanto indóceis
Torne indulgencia os animos ferrenhos.
Que já da Natureza assim viérão.
Mas prompto a derrocar soberbas torres,
E prompto a confundir no horror da morte
Mancebos, e Anciãos, credores della,
Artes macias sobre a impia turba
Todavia exhaurir primeiro intentas:
Vêr, se lugubre quadro de ruinas,
Pela voz da eloquencia reforçado,
Por dita amedrontava a Casta imbelle,
Misérrimo espectáculo poupando,
Que o coração magnánimo te aggrava:
De insólito rubor as ondas tinctas,
Em sangue humano as terras ensopadas.
Mas a doce Piedade que aproveita?
Morre a Esperança; infructuosos jazem
Cuidados, e fadigas: inda geme
A Humanidade em ti, porém releva
Punir da Humanidade os Inimigos.
Em fim braveza hostil o Heróe concebe:
Notando quanto hé cega a Gente infida,
Sahe dos hórridos tectos infamados,
Sahe da féra Cidade, e deixa o porto.
Quem facil atégora ouvia as preces,
Já ferve por calcar insano orgulho:
Não de outra sorte pela selva umbrosa,
Ou quando sobre as Libycas arêas
Famulento caminha o Rei das féras,
Desdenha generoso o Passageiro,
Que, preso do terror, no chão palpita;
Mas se a pé firme alguem lhe está defronte,
Có as garras o derruba, o despedaça;
E audaz, e truculento, e com rugidos
Onde há mais resistencia, alli mais arde:
Succeda que o provoque, o desafie
Duro esquadrão, de lanças erriçado;
Arremessa-se a todas; e se morre,
Morre, como Leão, sem côr de medo.
Dos Lusos entre os vivas sôa o bronze;
E eis sanguinea bandeira açoita os ares,
Preságio de terrifica matança.
A bellicosa Turba em si não cabe;
Armas, armas, (vozêão) guerra, guerra:
Tudo se apresta, e tudo aos postos vôa,
Em quanto a Náo desfere as pandas vélas.
Luz na dextra o murrão; e em fim patentes
As éneas boccas cento agoirão mortes.
Já treme a desleal Cidade impura;
Já para os Ceos estende as mãos profanas;
Já se diz criminosa, e se pragueja.
Breve espaço, em que o animo repouse,
Em que dispa o temor, e se consulte,
Manda ao Luso implorar, que annue ao rogo.
Retarda-se horas doze a justa pena,
Justa há muito, e que em fim será vibrada
Sobre as infamias da Nação proterva.
Lume sereno, que azulava o Pólo,
Medonhas nuvens entretanto abafão;
Sombras pesadas pronosticão males.
Hé voz, que lá no centro dos Infernos,
A bem dos consanguineos Musulmanos,
E em despeito aos Christãos, que Lysia nutre,
Que ora os muros Mahométicos assombrão
Com próximos estragos, ante o sólio
Do torvo Dite Cortesãos immensos
Có as mâos erguidas longamente orárão.
Attento ouvio Sumano os impios votos;
E hum dos Ministros seos, que jaz mais perto,
Ordem recebe de surgir ao Mundo,
De voar n’hum momento á vasta Eolia,
E dos Tufões ao rispido Tyranno
Taes vozes transmittir:»Que altiva Gente,
»Que indómita Nação, capaz de tudo,
»(Por quem malquisto sempre, e defraudado
»O Reino do pavor carece de almas)
»Sobre Quilha arrogante aparta as ondas,
»Os dominios do equóreo Irmão lhe insulta,
»Que tambem da intenção quer advertido;
»Para que ambos có as forças apostadas,
»No mar cavando, erguendo abysmos, serras,
»O Lenho injusto, audaz sacudão, rompão,
»Que apavóra de Tripoli as muralhas,
»A elle Estygio Rei tão importantes:
»Perdidos os pilotos, e arrancada
»Do alto pégo, ou nas férvidas arêas,
»Ou nas sumidas róchas arrebente:
»Os frémitos do auxilio em vão rogado,
»A festiva Cidade escute, e veja
»Nas aguas os Christãos bebendo a morte.»
Disse, e o Nuncio veloz ao Mundo surge,
Á vasta Eolia vôa, e cumpre o mando.
Já rompem da masmorra os Euros bravos;
Já comsigo arrebatão quanto encontrão
Fóge o molle Favonio, fóge o Dia:
Os campos de Nereo a inchar começão:
Ao longe horrendamente o pégo ronca:
Eis subito encanece, e todo hé montes.
Quasi quasi a cahir d’hum, d’outro lado,
Os mastros vergão, as cavernas rangem:
Qual (se alguem a jogou) saltante péla,
Roça o Pinho os Infernos, roça os Astros;
Vai, e vem vezes cento abaixo, acima.
Carrancudos tres Sóes a luz negárão,
Por tres noites o Céo não teve estrellas:
E se Eólo, em seo impeto afracando,
Deo ao dia segundo algum repouso,
O experto General o ardil penetra:
Á guerra apercebidos chamma, e ferro,
Em tanto que, Neptuno fraudulento,
Tomas serena face; ao alto a prôa
Que se enderece, ordena, assim que os ventos
As vagas sobre as vagas encapellão:
Não succeda, que o pélago fervente,
Os insanos Tufôes contra as arêas
Com hum, com outro embate o lenho atirem.
Então, quanto se dá vigor em Numes,
Na lide porfiosa os dois esmerão:
Em roda novo horror carrega os mares.
Os sanhudos Irmãos guerrêão, berrão,
De regiões oppostas rebentando:
Escarcéos, e escarcéos lá se atropellão:
Por longo espaço treme o fundo aquoso;
Como que está Plutão do Estygio centro
C’os duros hombros abalando a Terra.
De taes, e tantas furias assaltado,
Que arte guiar podia o lenho indócil?
Nem lignea robustez, nem cabos valem:
Cahe com ruidoso estalo a rija antenna,
E batem susurrando as rotas vélas.
Destes gravames nada oppresso em tanto,
Por tudo se divide, a tudo acode,
Todos có a voz, e exemplo aviva o Chefe,
Grassando em todos émula virtude:
Não há frôxos: marêão, saltão, correm.
A engenhosa Prudencia em fim triunfa;
Vence a Constancia audaz; e a largos pannos
Vai-se amarando ovante a Náo veleira.
AQUELLE, CUJO Aceno os Astros móve,
QUE rege o Mar, o Vento, o Mundo, o Averno,
Progresso não permitte á raiva undosa:
E se atê-li soffreo, que encarniçados
Marulhos, Furacões travassem guerra,
Foi para que altamente as memorandas
Forças do Luso peito reluzissem.
Noto, Austro, Boreas, Áquilo emmudecem
Manso, e manso: e, despindo as prenhes nuvens,
O Céo veste hum azul sereno, estreme.
Volve o molle Favonio, volve o Dia,
E volvem mais que d’antes amorosos.
Fôra imposto a Tritão pegar do buzio,
Com que as ondas revoque: o buzio toma;
Surde por entre espumas orvalhoso,
A encher có a voz sonora emtorno os mares.
Eis sópra a concha ingente, e mal que sópra,
Resôa pela Aurora, e pelo Occaso.
Tornão violentas a seo leito as vagas:
Esta recua ás Siculas paragens
Por não vasto caminho; aquella ás Syrtes
Fervendo em rôlos vai; remotas margens
Mais tarde outra revê, donde corrêra
Ao nome, que a attrahio, que á patria sua,
E a Tripoli hé commum: tambem alguma
Foi visinhar có as aguas do Oceano:
Tal que d’antes jámais deixára o fundo,
Ao fundo se desliza, e jaz, e dorme.
Na quarta luz emfim desde as alturas
Tostada Multidão, que lá vigia,
Presume illusa descobrir ao longe
Cadaveres boiantes, vergas, táboas:
Há entre elles alguem, que derramados
Té de Lysia os thesoiros vê nas ondas;
E quem menos de lynce arroga os olhos,
Se atreve a assoalhar, crédulo, insano:
»Que se o pégo poupára algum dos Lusos,
»Só reliquias a Náo desmantelada
»Hia reconduzindo aos patrios lares.»
Mas em quanto delira o Povo adusto,
A gávea se desfaz ao sopro amigo:
Tentão de novo defrontar có as praias,
Que á merecida pena em vão se furtão.
Bem que findasse a noite, o róseo Febo
Não com tudo esmaltava o Mar, e a Terra:
Não era o tempo então nem luz, nem sombra.
Porém como surgio dos Thétios braços
O Filho de Hyperion, e os Céos lustrando,
Com seo raio expulsou de todo as trévas,
Alcança de mais perto, e vê primeiro
Navegante Polaca a véla, e remos,
Que aos Nautas patentêa: o Lenho a segue;
Rápida foge: o remo, o vento a ajudão.
Como no espaço azul medrosa Pomba,
Apenas a Aguia sente, apressa os vôos,
Contra as unhas crueis buscando asylo;
E em seos tremores incapaz de escolha,
De lugar em lugar sem tino adeja,
Por ferinos covis, palacios, bosques,
Assim (quão raramente!) escape ás garras:
De igual modo, apurando as ténues forças,
A curta embarcação, para salvar-se
Do inimigo fatal, varia os bordos:
Mas vendo que evitallo hé vão projecto,
Tomada do receio, a prôa inclina
Á conhecida arêa, e quasi encalha.
Já com menos affronta aqui respira;
Porque os baixios arenosos védão
A tremenda invasão da Lusa Quilha.
Então jactanciosa eleva a frente;
As flamulas no tópe lhe florêão;
Guerra ameaça então, e a guerra chama
Braços, a que a distancia tólhe o raio.
Esta audacia, porém, não fica impune:
Que obsta a Mortaes de espirito arrojado,
Quando iroso calor lhe accende o peito?
Ao Mar leves Bateis subito descem,
E commandados de hum, que os sobrepuja,
Vão có a vingança fulminar o aggravo.
Sobre elles, á porfia, a flor dos Lusos
Enceta heroicamente a grave empresa.
Gentilezas á Fama derão todos;
Todos em feitos grandes se estremárão.
Mas o louvor primeiro a ti compete,
Que d’arvore de Pallas
[8] te appellidas,
E cinges vencedor com ella a fronte.
Em saltar ao Batel tu te anticipas,
Tu dos igneos peloiros não detido,
Fórças os remos, a inimiga aferras,
Quando a fusca Equipagem temerosa,
Ao fragil seo baixel picando a amarra,
Nas praias dá com elle, dá comsigo,
E nellas imagina resguardar-se:
Tu primeiro tambem sobre os Contrarios
Disparas férreos globos, que os Cyclópes
Forjárão, fabricando a Jove as armas.
Mais inda remanéce, inda te sobrão
No ensejo Marcial discrimes duros,
Assombrosas acções, que te levantem
Ao cimo de fragoso, aéreo monte,
Lá onde em Paços de oiro a Gloria reina
Com sceptro diamantino, e circumdada
De numerosa, esplendida Assemblêa;
Entre as quaes pela mão da Eternidade
Teo vulto surgirá, marmóreo todo.
Para tanto não basta, que empolgasses
O curvo Bórdo opposto, ou que o subissem
Os Companheiros teos, depois de expulsa
A vil Tripulação por vis terrores.
Os azares, e os jubilos se enlêão,
Por que a mesma desgraça, o que no mundo
Hé mal, hé damno a todos, te aproveite.
Repentina resáca a dois comtigo
Constrange a recuar no débil casco,
E á praia arroja os Tres, quando reflue.
Aqui se vê, qual és, que ardor, que alento
Te abrange o coração, te anima o pulso:
N’hum feito Herculeos feitos escureces,
E quanto as Musas fabulárão delles.
Féra gente, de Arábica linhagem,
De tôrva catadura, hirsuta, e negra,
Pelos serros contiguos vagueando,
Á maneira de lobos, se apascenta
Nas rezes dos rebanhos desgarradas;
Ou, émula do Tigre, as selvas rouba,
Rouba os redis; e o medo, o sangue, a morte
Diffunde aqui, e alli. Munio-se agora
De armas de toda a especie: huns vibrão lanças,
Outros forçosa vara, espadas outros,
Ou pedras, ou punhaes, ou fogo, ou settas.
Ei-los das agras serras vem correndo
Acudir aos Irmãos: (quem há que os conte?
São quaes manadas, que devastão campos.)
Como ardida falange escalar tenta
Castello situado em cume alpestre,
Ou romper torreões de alta Cidade:
Huma, e outra Caterva os Tres investe,
E quanto esforço tem, no attaque emprega.
Se a cada qual dos Tres té-li se oppunhão
Moiros cincoenta, os Árabes, que occorrem,
A cada qual dos Tres oppoem milhares,
Todos bravios, formidaveis todos!
Em que facundia taes portentos cabem?
Quem ha que pasme assás de taes portentos?
Quem, se não fôra testemunha o Mundo,
Por fábula, ou por sonho os não teria?
Trôão da Fama no clamor; e vivem
Olhos, que os virão, braços, que os fizerão.
Era para attentar tão nova scena!
O denodado Heróe, e os Dois, que inflamma,
As bravuras sostem de hum Povo inteiro.
Rue a raivosa, rustica Torrente;
Retumba em valle, e valle a grita horrenda.
D’ambos os lados o Guerreiro apertão:
Sibilão tiros, golpes se redobrão:
Mas elle có a sinistra, elle có a dextra
A Multidão rechaça, illeso, immoto.
Aos Barbaros o pejo atiça as furias:
De artes mil desusadas se refazem
Na espantosa refrega; mas sem fructo:
O Varão permanece invulneravel,
E nas Estygias aguas cem mergulha.
Para aqui, para alli a espada hé raio,
Nunca em vão. D’hum, que audaz de perto o arrosta,
Enterra-a nas entranhas; outro que era
De membros gigantêos, de lança enorme,
E exhortava na frente á guerra os tardos,
A dois golpes, não mais, do Luso Achilles
Jaz inerme; e com hum, com outro arranco
O espirito feroz lhe cahe no Inferno.
A este, que na terra ancioso arqueja,
Vão as auras vitaes desamparando;
Aquelle hé tronco só: por toda a parte
Voão braços, cabeças, fervem mortes.
Ó tu, que dos Almeidas tens o agnome
[9],
Tu, que ligar podeste em nó lustroso
Ás honras de Mavorte as de Minerva,
Tambem te faz eterno este aureo Dia.
Se os Lusos, que pelejão sobre as praias,
E aquelles, que a Polaca prisioneira
(Sossobrado o Batel) retem no bojo,
Onde de longe os vexa o Mauro insulto;
Se todos volvem salvos, Obra hé tua.
Em quanto por auxilio a huns, e a outros
Envias Alexandre
[10], nunca esquivo
Da nobre estrada, que trilhára o Grande,
Ignivomo canhão, que infatigavel
Respondêra a dezoito bronzeas boccas,
E silencio lhe impôz, de novo esparge
Por entre horrivel som, e opáca nuvem
No centro dos cerrados Africanos
Granizo de lethifera metralha.
O primeiro terror tu lhe infundiste,
Tanto que a de Mafoma agreste chusma
Vio córados de sangue arêas, mares:
O mandado Varão croou a empresa.
Rápidamente o remo as ondas varre:
E Sousa
[10] impetuoso aos socios chega:
Contra os donos assésta o bronze adverso,
E assim lhes restitue as férreas balas.
Já cede, já fraquêa a Tropa escura,
De convulso temor enregelada.
Ei-los fugindo vão, nem que aves fossem;
Por huma, e outra parte se tresmalhâo,
Crendo sentir estrépito, que os segue.
A bordo então Donaldo os seus convoca;
Corre a abraçallos, e na voz, na face
O cordial prazer exprime a todos.
Memorando as façanhas huma a huma,
Do condigno louvor as enche, as orna,
Altivo de reger tão brava Gente.
Mal que o descanço os animos sanêa,
(Já declinante o Sol do ethéreo cume)
Á terra se avisinha o mais que póde
A bellicosa Náo; e c’os primeiros
Coriscos Marciaes vareja o Bando,
Que em mór tumulto as praias enxamêa.
Do grande lenho á sombra os lenhos breves,
(Porque estanhado o mar jaz em silencio)
Artes, e forças empenhando, intentão
A Maura presa despegar da margem;
Vãmente, que folgando o lindo Coro
Das filhas de Nerêo, sobre ella salta,
A querem para si, lhe chamão sua.
E quem de hum Nume á Prole, aos seos direitos
No patrio senhorio obstar podéra?
Ou pulsos Briarêos onde acharia,
Para o trabalho immenso? Ella, com tudo,
Nereidas, não foi vossa, indaque dignas
Sois de mil dons, e, como Venus, bellas.
O que á Victoria escapa, engole a chamma;
De jus: damno menor maiores véda;
Mais facilmente detrimentos leves
Caracter pertinaz subjugão, domão,
Do que meigo favor o torna grato.
Arde o Pinho, o furor Vulcáneo reina:
Nutre o pez, e o betume as pingues flammas,
Tanto á pressa, que em vão, inda recentes,
Extinguillas quizera industria humana.
Crebros estalos se ouvem: d’entre o fumo
Brotão centelhas mil, como que aspirão
Ás estrellas volver, donde emanárão.
A lignea contextura eis toda hé fogo;
E o fogo em linguas cento as nuvens lambe.
D’entre penedos, e arvores, que a abrigão,
Ao longo da ribeira a má Progenie,
Accesa em furias vans, o incendio nota:
Cuidadosa de si, da luz não fia;
Artes, porém, que póde, a salvo exerce.
Dalli com mira attenta os Marcios tubos
Huma vez, e outra vez dão som baldado;
Daqui baldados seixos vem zunindo,
Ai! não todos baldados: mão tyranna
Em alvo, que lhe apraz, có a morte acerta:
E aquelles, que a bem custo hum só podérão
Tocar com leve golpe em campo aberto,
Da perfidia amparados, se glorião,
Ao ver que hum semimorto os socios levão.
De Marte a crua Irmã quer este sangue,
Havendo de lavar aos Vencedores
Tudo quanto hé mortal, e dar-lhes vida,
Com que assoberbem as Idades todas.
Silva
[11] por isto os séculos invade
Em rápida carreira irresistivel;
França
[12] por mãos da Gloria enloira a fronte;
Rocha
[13] morrer não sabe; o mesmo ignóra
Esse, a quem de
Homem[14] o appellido ajusta;
E o que chamão
da Guerra[15], e que o merece:
E tu, claro Avellar
[16], com elles vives,
Com elles vivirás, em quanto a Honra
Tiver cultores, e existencia o Mundo:
Ri-se Virtude assim das leis do Fado.
Era o tempo, em que a lassa Natureza
Appetece o repouso; em que os Ethontes
De nectar se robórão; quando a Noite,
Diurnos pesadumes ameigando,
Desdobra sobre a Terra o véo dos Astros.
A quebrantada força então renovão
Os descançados, os jacentes Nautas:
Inda estão repisando o que lidárão.
Este a aquelle refere, aquelle a este,
Que riscos evitára, e que feridas;
E quantos despenhou na sombra eterna.
Fallão huns, outros fallão, té que o somno,
Nunca tão brando, lhe entorpece as linguas.
Mas da fallaz Cidade o Chefe injusto,
De importunos cuidados perseguido,
Os mimos de Morfêo gozar não póde.
Seo negro coração ralão remorsos;
Toma, pela desgraça, o peso ao crime,
Ao crime, indole sua, e seo costume.
O baixel, que perdeo, não dóe ao Féro;
Os mortos Cidadãos tambem não chóra;
Olha sómente a si: já vê, já ouve
As flammas vingadoras; sente o ferro
Ir-lhe sobre a cerviz; escuta o baque
Das muralhas, das torres: pendem, pasmão
Alvedrio, Razão: que escolha há nelle?
»Novamente o Varão, que vezes tantas
»Illudirão traições (diz o Tyranno)
»Emprenderei mover? Submisso rôgo
»Ha de sempre acalmar-lhe as justas iras?
»Se os Francezes lhe der, tão mal negados,
»Será bastante? O que exigia, havendo,
»Não ousará tambem quebrar promessas,
»E no abuso da fé regozijar-se?
»Vingança hé deleitosa ao resentido;
»Sómente se não vinga o que não póde.
»Que, pois? ... Á dubia sorte dos combates
»A mim proprio exporei, e os meos prazeres?
»Dubia disse? ... Tentalla hé perder tudo.
»Se podérão só tres pôr medo a tantos,
»E esses mesmos a vida (oh pasmo! oh pejo!)
»A tantos arrancar, ficando illesos,
»Quem há que lhe resista, unidos todos?
»Fóge, infeliz; e o que podéres, salva;
»Fóge: assim pouparás vergonha, e morte.
»Mas ah! triste! Em que plaga hirei sumir-me?...
»Que mar, ou que paiz, bem que deserto,
»Guarida me dará, prófugo, errante?...
»Quem terei, que me siga, amigo, ou servo,
»Já nua de esplendor minha grandeza?
»Antes vulgo infiel após meos passos
»Bramindo correrá; e ou da existencia,
»Ou dos haveres meos, ou della, e delles
»Por carniceiras maons serei privado.
»Não, não; nossos desastres custem caro;
»Usemos toda a fraude, os crimes todos.
»Cerque-se de traições esse Guerreiro,
»Vaidoso do troféo: có a falsa offerta
»De tudo o que de mim quizer o Avaro,
»Posso aqui outra vez, posso attrahillo.
»E quando imaginária utilidade,
»Vã cobiça o trouxer, se das ciladas
»Intacto apparecer ante meos olhos,
»Em pedaços farei có as mãos, có a bocca
»A nefanda cabeça: ao peito aberto
»O coração maldito hei de arrancar-lhe;
»Roello, devorallo inda fumante.
Tal esbraveja; e nem a si perdôa,
A si labios, e mãos morde, remorde:
Qual hórrida Serpente, encarcerada
Entre férreos varões, se alguem a assanha,
Com rápido furor se desenvolve,
Cem vezes arremete ao que a provoca;
Mas vendo, que debalde exerce a furia,
De sangue os olhos tinge, agudos silvos
D’entre as fauces venéficas despede,
Com que a farpada lingua está vibrando;
Em tudo o que a rodêa, em tudo ferra
Os espumosos dentes, e em si mesma,
Ensovalhando o chão, e a vária cauda
Có as sórdidas peçonhas, que vomita:
Em tanto o mofador se ri seguro.
Da Aurora o nuncio amiudára o canto.
O matutino humor tempéra as mágoas,
E os somnos insinua até no Afflicto:
Por isso do Bachá desatinado
Virtude soporifera se apossa,
Lhe amansa os frenesis, lhe cerra os olhos.
Como quem fatigado está das iras,
Pesadamente o Bárbaro resóna.
A seos males, porém, não colhe allivio,
Nem demorada paz lhe rega os membros.
Fantasmas, que velando o espavorião,
Inda entre a doce languidez o aterrão.
Vê-se indigente, só, desamparado,
Ermos em outro mundo a pé trilhando,
Ermos sem rasto de homem, nem de féra;
Onde ave alguma não discorre os ares.
Já sévo Abutre de implacavel fome
Lhe atassalha as entranhas; já querendo
Fugir de hasta inimiga, que o persegue,
Que lhe toca as espaldas quasi, quasi,
Treme todo, e mover não póde a planta;
Já pende de ardua rócha sobre as ondas.
Eis entre estas visões, que traça o Medo,
Imagem verdadeira, agigantada,
Clara, como o que a luz nos apresenta.
Surge aos olhos do attónito Agareno.
Aquelle a quem venéra ainda o Ganges,
E o rio
[17], que Imaús na origem banha;
Aquelle, que de jus noméão Grande,
De Marte émulo não, mas Luso Marte,
Albuquerque immortal, de amor eterno
Pelos seos penhorado, esquece o néctar;
E, escusando hum momento os bens celestes,
Não desdenha baixar aos impios Muros,
Nem có a palavra serenar discordias.
Á Náo, que do seo nome se engrandece
[18],
Arde por madurar devidos loiros.
Com vozes ponderosas accommette
O aterrado Tyranno, que maquina
Na desesperação atrocidades.
Resplandece o Guerreiro; hé tal, hé tanto,
Como quando o temeo por vezes duas
A que do Indico Estado hoje hé Cabeça;
Como quando Malaca o vio triunfante;
E em ti, pomposa Ormuz, pendões erguia:
No magestoso olhar, na longa barba
Traz a veneração, e arnez hé todo.
»Que intentas, miseravel? Que revolves
»No espirito dobrado? (a Sombra exclama).
»Crês acaso afastar o mal, que te insta,
»Perfidia com perfidia encadeando?
»Não sabes, por ventura, a quem te atreves?
»Que Nação contra ti, que Throno irritas?
»Esquece-te, que nunca impunes deixão
»Taes crimes? Quem melhor, que Moiros, deve
»De Luso conhecer a ousada Estirpe?
»Inda que até dos teos a historia ignores,
»Força hé que saibas o que sabem todos:
»Que estragos, que deshonras grangeastes
»Deste Povo de Heróes, em resistir-lhe.
»Sobre esmagados collos de Reis Moiros
»O Maior dos AFFONSOS, o Primeiro
»Impoem da Monarquia a Base eterna.
»Flagello assolador da Maura gente,
»Em quanto a Regia Mão fulmina o ferro,
»E o grão Mendo, nas portas entalado,
»Abre caminho aos seos; eis se apodérão
»Da celsa Fortaleza, e da Cidade,
»Que hé longa tradição fundára Ulisses;
»Essa, que do aureo Tejo honrando as margens,
»Alterosa, escorada em sette montes,
»Taes fados mereceo, que ambos os Pólos
»Tiverão de acatar-lhe as Leis sagradas.
»SANCHO, digno do Pai, com quantas mortes
»Injustas possessões ao Moiro arranca,
»E ajunta novo Reino ao Reino Avito!
»Ondas de negro sangue Mauritano
»Pela terra visinha, e pela herdada
»Derramão, coriscando, outros AFFONSOS.
»Nem maculou sómente os nossos campos
»A mortandade vossa. O Quinto AFFONSO,
»E o Primeiro JOAÕ restavão inda,
»QUE ao proprio seio d’Africa levárão
»Ferro, e flamma, e terror: MANOEL restava,
»Feliz, (e com razão Feliz chamado)
»QUE, maior do que o seo, quiz ter mais Mundos,
»E a QUEM prostrados Reis seo REI quizerão.
»Tangere o sabe; Arzilla, e Ceuta o dizem;
»O attestão Indios, Númidas o attestão.
»Relatar huma, e huma acções tamanhas
»Para que? Dos Heróes sómente os nomes,
»Sem o immenso louvor, que os acompanha,
»Pedem horas: sobeja o que hás ouvido,
»Para attentares bem, que lance estreito
»Hé o lance, em que estás, e com que Gente.
»Pondéra ainda mais, quão despresiveis
»São para o Portuguez ciladas tuas:
»Há muito que a experiencia nos ensina
»Até que altura o Moiro enganos sóbe:
»A Prudencia, e Valor nos meos competem.
»Porque, pois, te detens? Supplice, e curvo
»Huma vez, outra vez, porque não rógas
»Aos Lusos teo perdão, bem que indevido?
»Se elles se pagão de calcar soberbas,
»Se de punir delictos se comprazem,
»Apiedar-se do réo tambem lhe he uso,
»Quando os implora. Ao tempo, em que vingado
»O Sol tenha o Zenith, a Náo possante,
»A maior, que teos portos fortalece,
»Será do Vencedor; sello-hão com ella
»Dois menores Baixeis recem-cativos,
»E o Chefe, e as Equipagens numerosas.
»Mas não temas; có a supplica rendida
»Tudo recobrarás. Cobiça de oiro
»Jámais vicia o peito aos generosos:
»Não quer servos, nem presas; quer amigos
»Minha honrada Nação. Eia, aproveita
»O tempo, que te hé dado: olha, que foge.»
Disse, e voou sem que resposta espere.
Salta do leito o Moiro arripiado,
Volve em torno, e revolve os turvos olhos.
Quasi arrombando as portas, corre tudo,
Tudo vê, chama, brada, acodem servos;
Mas não sabe, o que diga, absorto, insano.
Nisto ao mar de repente os olhos volta;
Por todo elle os alonga, e fica immovel.
Em quanto as ondas sôfrego examina,
Não ser sonho a Visão, no effeito observa.
Vê como a Lusa Náo demanda o porto;
Como próxima a elle, em roda vira;
Como enfunada, e mais veloz que os Euros,
Vai dar caça ao Baixel, que ao longe aponta
Com remeira Galé; vê como as toma;
Como as presas conduz, e audaz campêa:
Como sobre a maior em fim subido
Castro
[19], e nada tardio, á voz do Chefe,
Outra, que sobrevém, combate, e rende.
Fôra melhor á Triste o dar-se logo.
Daquella, bem que inutil resistencia,
Gloria, afoito Avellar
[20], houveste em dobro.
Usado a presumir que a morte hé nada,
Com poucos, e munido de ti mesmo,
Eis o Mauro convés ganhas de hum salto:
Gira o ferro, e triunfas, dois prostrando.
Tudo isto, verdadeiro em demasia,
E d’alta Apparição vaticinado,
Caramáli
[21] do Alcáçar descortina.
Primeiro o coração lhe agitão furias;
Não pára; vai, e vem; doudeja, freme;
As melenas arranca, arranca as barbas:
Pouco a pouco depois temor o abranda.
Gravado tem o Heróe na fantasia;
E porque em tudo o mais o vê sincero,
No resto da Visão firma esperanças.
Hesitando, com tudo, em si murmura:
»Quem do contrario seo fiar-se deve?»
Mas, passado hum momento, assim não pensa.
»Em tentar que me vai? Senão, que resta?»
Disse, e a hum, entre os seos authorisado,
Que lhe provára fé n’outros extremos,
Envia de Albuquerque á Náo temida
C’os Francezes fataes, que, á similhança
Da Gorgónea carranca, damnão vistos.
Diz-lhe (se tanto ousar)»que em troco delles
»Peça os Varões, os Lenhos apresados;
»E tudo facilite ao grato assenso.»
Além das esperanças vai o effeito:
De nada para si querendo a posse,
Donaldo restitue (acordes todos)
O Almirante infiel, Varões, e Lenhos;
E prende a tantos dons o dom brilhante,
Que suspira o Bachá, de Amigo o nome,
Promettendo que o Throno há de approvallo.
O coração do Régulo não basta
Ao jubilo insperado. Alegres vivas
A voz dos Cortesãos, e a voz do Povo
Manda aos ares: no pélago reflectem,
E tocão dos Lusiadas o ouvido.
Que nectáreas correntes inundárão
Portuguezes espiritos, olhando
Sobre as amêas das profanas Torres
As Bandeiras de hum DEOS, de CHRISTO as Quinas,
Do Reino occidental eterno Abono!
Em quanto acclamações da infida Plebe,
E a espaços o trovão da artilheria,
Já do mar, já da terra, os Céos atrôão!
Eis de tanto suor o idóneo preço:
Quem seo DEOS, e seo REI a hum tempo serve,
Que mais quer, ou da Gloria, ou da Ventura?
A Ti, ó
Lima[22], Conductor supremo
Da Lusitana Esquadra, a Ti, que és Grande
Na Ascendencia de Reis, no Gráo, nos Fados,
Inda maior no Engenho, e na Virtude,
Tambem do Caso illustre se deriva
Applauso não vulgar: por Ti mandado
Fez o patrio Valor tão raras coisas:
Foi sua a execução, Teo fôra o plano.
Nem menores pregões Te deve a Fama,
Nelson preclaro, da Victoria Filho,
Que usurpas a Neptuno o grão Tridente:
O que o Luso acabou, Tu lhe apontaste.
Mas a origem de tudo a QUEM respeita,
A QUEM melhor quinhão de gloria cabe,
Ou falle a Musa, ou não, ninguem o ignora:
Soão praias seo NOME, e soão mares.
A Nautica Pericia, que afamados
Outróra os Portuguezes fez no Mundo,
Que os levou a reinar a extremas plagas,
Sem cultura jazia (oh vilipendio!)
Do centro das Brasilicas florestas
Desarreigadas quilhas inda arfavão
Sobre as Tágicas ondas, mas em ócio.
E se alguma imprudente ousava acaso
Ás Hyadas expôr-se, expôr-se a Arcturo,
Ronceira dividia o Lago immenso,
Dos mares, e dos ventos esquecida;
Incapaz do Conflicto, e da Procella.
Raro o Nauta, e com alma entorpecida,
O ministerio seo desaprendêra:
Obedecer, mandar nenhum sabia
Eis
Coutinho[23]: eis o Genio antigo acorda;
Eis nova Geração com ELLE assoma.
Para Marte, e Nerêo sábia Académia
Cultiva Cidadãos: escolhe entre elles
O illustrado VARAÕ, quem se avantaja;
E, bem que repartido em mil cuidados,
O peso de altas coisas sostentando,
C’o louvor afervora o que he louvavel,
E em quem merece o premio, os amontôa:
Desta arte a Mocidade aos astros sóbe;
Assim com Socios taes luzio Donaldo.
Oh tres, e quatro vezes venturosos
Nós, aquém dado foi, que respiremos,
Subditos de JOAÕ, serenas vidas;
E ser de tanto Bem participantes!
JOAÕ, da Patria PAI, RENOVO Insigne
De Monarchas, de Heróes, de Semideoses;
AMOR, GLORIA, ESPERANÇA, e LUZ da Gente,
Que, os mares invadindo, ousou primeira
Ver, e afrontar o Adamastóreo vulto;
Desde a ultima Hesperia hir lá na Aurora
Arvorar contra as tórridas Falanges
O Estandarte dos Céos, Penhor do Imperio;
JOAÕ, QUE em quanto as Guerras tudo abrázão,
Em quanto Erinnys senhorêa o Mundo,
Afaga, Justo, Pio, Optimo, Ingente,
Com amorosa paz os largos Póvos,
Que o Jugo LHE idolatrão, perto, e longe;
Do Exemplo dos AVÓS Illuminado,
D’ELLES nutrindo em SI toda a Virtude,
Na principal, na egregia SE realça
De eleger (tudo o mais daqui depende)
Almas, com quem do Sceptro adoce o peso.
Astuto Cortezão, que ambiciosos,
Sinistros, devorantes pensamentos
Com zelo vão, fallaz pallia, e doira.
Hé por ELLE repulso; e chama aquelles,
Que as Honras merecendo, ás Honras fógem.
O veneno dos Paços, a Lisonja
Ante Seos Olhos em silencio treme:
Só da Verdade Oráculos attende,
Só da Sciencia Oráculos escuta:
Pallas, Themis presidem-LHE aos Conselhos;
Ás Acções LHE presidem Themis, Pallas.
Não, para sobjugar Nações, Imperios,
Não despe o ferro aqui Gradivo iroso;
Mas só porque na força a Paz se estêe
E só porque sem nódoa permaneção
O Decóro, os Brazões de altos Maiores.
Não he Seo, para SI JOAÕ não reina:
O Pôvo, a que dá Leis, prefere a tudo.
Orem Nobre, Plebêo, Nautas, Colonos,
Ou diante do Solio, ou não presentes;
Ore o Commerciante, ore o Soldado;
Provão merecimento? Os premios levão.
Volve feliz o que infeliz O busca:
A todos satisfaz, Igual com todos;
E até mesmo ao desejo o Dom precede:
Só com pesado pé se móve a Pena.
Ó Lysia, ó Patria, surge, altêa a fronte:
Que não cumpre esperar com taes Auspicios?
Eia, applaude a Ti mesma, ó Lysia, applaude.
As Tres, em cuja voz os Fados soão,
Prazeres de oiro para Ti já fião.
Sahe, (Reinando JOAÕ) sahe das estrellas
Ordem nova de Séculos ao Mundo:
Folga: Assombros tens já; viráõ Portentos.
Sôltas do coração, mil preces manda
Aos Climas immortaes; fatiga os NUMES,
Porque da ESPOSA ao lado Excelsa, e Cara
O CONSORTE Real no Throno exulte;
Porque orvalho do Céo fecunde, amime
Os Tempos de JOAÕ, de nuvens limpos;
Porque IDOLO dos Seos, TERROR de Estranhos,
Brilhe, viva, e dos Netos Netos veja;
Até que tardas Eras O arrebatem
Aos Astros, donde veio honrar a Terra:
ELLE hé digno de Ti, Tu digna d’ELLE.